sexta-feira, 29 de março de 2024


Tripolarização

Tal como sucede com muitos supostos neologismos que não passam, em boa verdade, de mais ou menos graves degenerações da língua portuguesa, aqui o erro é crasso e evidente, embora ninguém pareça preocupar-se muito com o assunto.

"Polo" é cada uma das duas (únicas!) extremidades, necessariamente opostas, do eixo imaginário da Terra.

"Polo" pode também ser, extensivamente, cada uma das duas extremidades opostas de um magnete, ou, em sentido figurado, qualquer dos elementos de um conjunto de duas realidades opostas entre si.

Claro que "polo" também pode ser - vá-se lá saber porquê... - cada um dos terminais de um acumulador elétrico, um desporto, uma peça de vestuário ou um modelo de uma popular marca de automóveis: mas não no sentido em que os supostos criadores da "tripolarização" o entendem, que é o único que interessa aqui.

Do que antecede, extrai-se, antes de mais, que os polos são, sempre, dois, o que conduz a também duas conclusões:

  • primeira: o amplamente dicionarizado termo "bipolarização" contém evidente redundância, pois, sendo os polos sempre dois, bastaria falar de "polarização" para qua a dualidade ficasse perfeitamente estabelecida, assim se mostrando, no contexto, o prefixo "bi" absolutamente inoperante e, como tal, indesejável;
  • segunda: a felizmente ainda não dicionarizada "tripolarização", em sentido próprio, que aqui nos traz - ou seja, a existência de três extremos, supostamente opostos entre si - não passa de uma impossibilidade material inopinadamente introduzida pelo prefixo "tri".

Há que mencionar, no entanto, a existência do termo "tripolar", também impropriamente utilizado, por exemplo, em física ou em psicologia, referindo-se, não a uma verdadeira polaridade, mas à mera diversidade, à margem da ideia de oposição, o que tampouco é admissível.

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Esta infeliz ideia da "tripolarização" política teve origem no ganho de preponderância de um pequeno partido quando da eleição legislativa portuguesa de Março de 2024, a qual lhe deu algum peso efetivo na contabilidade parlamentar. Terá, desta forma, deixado de existir, como até então acontecia, um quadro com dois partidos dominantes, para, ainda que forçando um pouco as coisas, se passar a poder falar de um trio.

Todavia, nem no anterior cenário parlamentar português a utilização do termo "polarização" - ou "bipolarização", se insistirem na redundância - faria qualquer sentido, dado que os tais dois maiores partidos se posicionavam no centro do espetro político, e não nas extremidades, como é pressuposto de uma polarização.

Ponhamos, assim, um freio à criatividade destemperada, absurda, geradora de neologismos chabouqueiros que a mais não levam do que à inapropriada "evolução" do português, e fiquemo-nos pelo "bipartidarismo", ou pelo "tripartidarismo". Ou, até, pelo "tetrapartidarismo" e por aí fora, que, dominantes ou não, sempre poderá haver tantos partidos quantos quisermos em democracia.

Polos, extremos opostos, é que não.

terça-feira, 19 de março de 2024


A Gata do Coração

Às vezes, até dormiam juntos. Ele a abraçar-lhe o frio, ela a aquecer-lhe o coração.

Para ele, o café da manhã; para ela, um pouco de ração. Para ele, o trabalho por casa ou no quintal, que era o mundo dela; para ela, um rato ou um passarinho, o troféu, a refeição.

À noite, lá ele lhe abraçava o frio, lá ela lhe aquecia o coração.

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Educado, trajando simplesmente, nem desleixado, nem opulento, na mesa ao lado o homem de barba branca prosseguia, maravilhado e maravilhoso, de olhos vidrados, a história do que a belíssima gata trouxera ao desolado ocaso da sua já avançada estação.

Dormir com a gata na cama? Que horror, dirão! Que porcaria! Micróbios! Álcool, já! Desinfeção!

Não passa, afinal, esta história de mais uma do primado do coração sobre a razão, eternos opostos que, a cada dia, dentro de nós debatem, por um lado, a substância, a essência da vida; por outro, o que dela fizemos, a grande e caricata ilusão.

Faz-se, agora, inteligência não humana, artificial, desumana, nascida da razão dos computadores, do puro e frio raciocínio, destituída de emoção. Mas o núcleo de nós, homens e gatos, não é replicável, explicável, racionalizável; e é ele a razão de tudo, da própria Criação.

Essa nova inteligência de que falam, imensa, deslumbrante, aterradora, não passa do exponencial desenvolvimento do conhecimento e da lógica que sobre ele opera, arrimado em intermináveis sequências de instruções e em bancos de dados de inimaginável dimensão.

Mas, dizem os sábios, jamais alguém vencerá o verdadeiro desafio: entender o coração, seja ele o do Homem, do gato ou do cão.

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A nós, simples e pequenos, convém o simples e pequeno: fica mal a roupa, quando é larga ou roça o chão.

Por um segundo da Vida, a pequena gata foi a fiel companhia do também pequeno velho.

Nas noites de Inverno, ele abraçou-lhe o frio; ela, aqueceu-lhe o coração nas noites de solidão.