sábado, 3 de abril de 2021


Quero Ser Feliz!

(Introdução à Secção ‘Sociedade’)

"O que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade
consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe,
realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém,
por nossa causa, acabar por perder"

Recebi há dias, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem a informar de que vinha a caminho “a encomenda da sua felicidade”, assim se designando, pelos vistos, uma coisa qualquer indiferenciada e sem importância que, por força do dever geral de recolhimento, me vi na contingência de ter de encomendar em vez de, como habitualmente, ir à loja buscar.

Mas, a quem tem de estar fechado em casa, que espécie de felicidade é que uma banalidade daquelas poderia trazer?  Por que razão há de um fornecedor entender que qualquer coisa que venda, mesmo meia dúzia de esferográficas, é suscetível de causar felicidade?  O que é, para estas pessoas, essa tão ambicionada felicidade?

O conceito de felicidade é dos mais difíceis de definir claramente:  para uns, um momento; para outros, uma época; para outros ainda uma quimera, uma mera ilusão.  Para uns, esfusiante alegria; para outros, simples bem-estar; para outros, apenas que a saúde e a mesa não causem preocupação.

Nos tempos que correm, porém, os mais fiéis sinónimos de felicidade parecem ser riqueza, prazer e ostentação, tudo isto orientado, de forma mais ou menos evidente, para o eterno eu, centro do Universo, e sem o qual todos os outros – os infelizes que não sabem ser felizes como eu – passarão a vida inteira de monco caído por não poder admirar e idolatrar alguém como… eu.

Eu sou assim”, estou “muito bem resolvido” e, como consigo irradiar toda essa felicidade, todos me amam, pelo que “estou muito orgulhoso de mim”; e, como tanto faço pelos outros, tudo quanto tenho “eu mereço”.

Balelas!

Tudo isto, herdado, porventura, do bem conhecido e mais subversivo dislate publicitário que os meus olhos e ouvidos alguma vez captaram e, provavelmente, captarão: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” - do qual me não lembro de que as tão sensíveis consciências cívicas que por aí andam alguma vez se tenham queixado; e, como o anúncio continuava a dar na televisão, provavelmente até o  cosmético embevecida e obedientemente  utilizavam e eram, até, capazes de elogiar.

Todavia, dizer que, se eu não gostar de mim, mais ninguém gostará não passa da defesa abjeta do cada um por si, do completo afastamento daquela entreajuda elementar que até os mais ferozes bichos sabem o que é, da absoluta negação de tudo quanto é social e, como tal, vital à manutenção da vida como por cá a conhecemos e, embora com bem necessárias melhorias, gostaríamos de continuar a conhecer.

Seja qual for a capacidade económica, muita desta gente que pensa unicamente em si - e, pateticamente, se leva muito a sério - não se limita à congratulação íntima e ao recatado usufruto daquilo que a carteira lhe permite adquirir: obriga, antes, o egocentrismo desmesurado a que os assim chamados sucessos sejam deliberada e pormenorizadamente esfregados na cara daquilo que, aos seus olhos embaciados por uma espécie de glamour parolo, não passa de uma mole de adeptos tão medíocres que jamais conseguirão imaginar quão pequena fração o pouco que têm representa do suculento bolo que os bem sucedidos empanturra - por não terem sido ensinados a digeri-lo.

Ao adquirir o bem não visam um prazer de uso ou qualquer outro tipo de vantagem que dele possam extrair: compram, simplesmente, a ideia de riqueza que subjaz à posse.

Por não saberem quanto a própria imagem é desoladora, estas autênticas marionetas animadas pelas mãos da vaidade cultivam-na obsessivamente, continuamente impondo, àqueles que não podem deixar de o ver, o desfile patético daquilo com que, raras vezes o dinheiro, muitas o crédito, algumas a troca de favores lhes permite obter, como as acessíveis e inevitáveis unhas de gel, o já não tão acessível conjunto da última moda que viram na revista da cabeleireira, a carripana das mais caras que o dinheiro pode comprar, um iate, um aviãozinho, a leiloada camisola transpirada pela prática desportiva de um notável qualquer.

Talvez inspirados por slogans irresponsáveis como "A Criar Excêntricos Todas as Semanas"*), da desbragada ostentação se não coíbem estes magníficos, estes narcisistas porventura indiferentes ao sofrimento alheio - porque não basta dizer que temos muita peninha... -,mesmo numa altura em que o Mundo inteiro sofre como poucas vezes terá sofrido, em que a miséria grassa, os hospitais transbordam por falta de meios, o medo espreita.  Não obstante, alguma legitimidade há que lhes reconhecer para pensar como pensam, já que nem em tão desoladora conjuntura deixam de ser idolatrados por adeptos com paupérrimas mentes e depauperadas algibeiras, integrados em famílias desesperadas que, para povoar o imaginário das suas vidas sem graça, continuam a depender da alheia e impressa ou televisionada ostentação.

Enfim, sendo a inconsciência o lar da verdadeira felicidade, a alguma dela sempre acharão estes tacanhos e desamparados amigos e seguidores que, embasbacando-se perante tamanha vulgaridade, lá acabaram por aceder - ignorando ou preferindo ignorar que, para aqueles que, com tanta luz, lhes queimam os olhos, cada um destes confrangedores basbaques não passa de “uma pinta num melão verde”.

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Inesgotável manancial para um caricaturista, esta casta de salientes habita os mais diversos lugares - e vive em todos os estratos económicos e sociais -, mais não representando, todavia, do que o papel da sua própria personagem, numa carência de substância total ou quase total.  Apesar do efeito que sabem provocar nas suas plateias, domésticas ou universais, estas estranhas e superficiais pessoas não passam de aprendizes de ilusionistas, de desengraçados comediantes papagueando um mal-amanhado texto e esquecendo-se de que, como acontece com tudo na vida, chamar a atenção para nós mesmos, só é saudável até ao ponto preciso em que deixa de o ser.

A desmedida soberba ainda seria tolerável se, juntamente com a tralha que exibem, nos não impusessem aos olhos a desagradável imagem das suas personalidades e, pior ainda, aos ouvidos as palavras ocas e atiradas ao calhas que já nem pachorra temos para tentar entender.  Agora, e para cúmulo, alguns dos mais abastados até se deixam convencer de que sabem escrever, assim dando razão a quem diz que “com dinheiro no bolso somos sábios, elegantes e até sabemos cantar” - não se ralando minimamente com o facto de não saberem estar.

Trata-se, afinal, de pessoas que são aquilo que não mostram e mostram aquilo que não são, que não são aquilo que mostram e não mostram aquilo que são.  Mas, pelo menos, não macem, não se imponham, nem sequer apareçam: quem vive só para si mesmo, só consigo mesmo deve viver.

Isto, sejam os ditos poderosos políticos, funcionários corruptos, aldrabões profissionais, milionários feitos à pressa, medalhados da treta ou apresentadores arvorados em acionistas de canais de televisão sem particular apetência pelo cumprimento das suas contratuais obrigações, todos eles talvez nem sempre animados das mais nobres intenções e valendo-se da facilidade com que, fazendo-se servir dos mais modernos artifícios comunicacionais, mesmo à distância conseguem ir ganhando injustificada afeição, mormente junto das camadas menos instruídas e educadas da população.

Ou poderá tratar-se daqueles multimilionários que aprenderam a dar uns toques na bola, alguns deles de couro pouco cabeludo mas cheio de pinceladas surrealistas; daqueles que têm, ganham e não cessam de exibir centenas de milhões, evitam, por desconhecimento, as obrigações fiscais, e vêm de longe a longe, alardear na imprensa donativos de parcas centenas de milhar a uns bombeiros, a um hospital ou a um lar.  Não é por terem tido sucesso e conseguido molhar o pão na sopa que, uns ou outros, passaram a fazer parte dela, da mesma forma que uma mosca que aterra numa sopa de legumes não passa a ser um legume: continua a ser uma ridícula e indesejável mosca no meio da gamela.

Lá se vão, pois, esgadanhando uns aos outros esses infelizes na disputa do protagonismo essencial à manutenção dos fluxos monetários que abundantemente jorram da inesgotável fonte da publicidade ou dos fartos seios da República, e dos quais dependem para alimentar os monstros de vaidade em que, sem remédio, se vão transformando, já que “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros*) – coisa que toda a gente sabe mas custa muitos votos dizer.

Fariam bem os teóricos e os politicamente corretos em ter em conta, nos seus comentários, recomendações e decisões, que há muita gente assim; e que muitos deles querem ser felizes, à maneira deles, comprando, ostentando, fazendo mal, ora ourados com a glória assegurada pela simples posse, ora transidos de medo de que lhes reduzam o agasalho ou lhes penhorem os brinquedos que tanto gostam de assoalhar.

Toda esta oca palermice de acenar com muitos bens, com muito eu, aos muitos fans – em inglês, que é mais chic -, aos muitos amigos das armadilhas (perdão: redes!) sociais, não passa da eterna busca pela felicidade; mas é uma busca enviesada e vã, já que os que mais se esforçam por mostrar o quanto são amados, são, quase sempre, os mais infelizes, também: apesar da aura de infuencers, de orientadores espirituais da gulodice dos outros, estes lastimáveis seres, ao mesmo tempo que explodem em simulada alegria, muitas vezes implodem em profunda dor no mais íntimo dos seus corações.

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Mal ou bem, ensinaram-me que ser respeitável não é ter direito ao respeito dos outros, mas sim merecê-lo - coisa que em certos espíritos parece ter grande dificuldade em entrar, já que, seja qual for o nível de vida ou a dimensão da bolha de empréstimos, toda a atividade do cérebro empobrecido de quem se maravilha com a sua pessoa parece focar-se na incontrolável necessidade de causar inveja junto dos atentos e obrigados veneradores que se esgorjam por mostrar que conhecem todos os seus importantes segredos para, pressurosamente, depois os bichanar ao ouvido do vizinho.

Boa, ‘Miga, vão morrer de inveja!” parece ser a frase preferida desta trupe cada vez mais preponderante num país que, a acreditar nos Censos, é maioritariamente cristão e no qual, paradoxalmente, tanta gente parece empenhar-se em fomentar nos outros a prática do um pecado mortal da inveja.

Quando a montanha de notas não tem cume, não deixam estes alpinistas de ter alguma razão, na medida em que estão mesmo a pedi-las aqueles que, tão longe da realidade dos seus ídolos, nem inveja deles e das coisas deles conseguem sentir, já que não é possível invejar algo de nós tão distante que nem logramos vislumbrar sua real dimensão.

Já quando, pelo contrário, as poucas notas que há em casa pertencem todas ao banco ou nem dão para aconchegar a carteira, as canseiras a que os mais pequenos se dão para imitar os poderosos apenas os fazem parecer ainda mais pequeninos, pobretes, mais ridículas, e desproporcionadas as suas pretensões.

Para estes e para aqueles que, apesar de afortunados, são menos dados a essas coisas da inveja e da ostentação, a felicidade não passa da animalesca maximização do usufruto dos bens efémeros a que conseguem aceder, muitos dos quais acabam por ficar na posse de quem, para eles os poderem comprar, caiu na asneira de o dinheiro emprestar.  Também há, é claro, as cirurgias plásticas sem fim, as dependências do mesmo género, os casos dramáticos, as histórias que acabam mal, que toda a gente conhece e de que, por isso mesmo, nem vale a pena aqui falar.

Sempre haverá gente que, mesmo quando se acha feliz, continuará a ambicionar sê-lo ainda mais, em lugar de pensar em passar a dedicar-se à felicidade dos outros.  Gente que sempre confundirá felicidade com facilidade em todos os momentos da vida, e cada vez mais.  Trata-se da abissal diferença entre o ser relativamente feliz e o procurar, ao menos, por uns breves momentos, sentir-se feliz, contentando-se com isso, que já não é nada mau (sei que, a pensar assim, não vou longe, mas apontem à vontade o dedo à minha falta de ambição, a qual prefiro, de longe, a ser adjetivado de algumas outras formas).

"Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade do dever cumprido".

No entanto, o que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe, realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém, por nossa causa, acabar por perder: perdem os que não ganham, os que são roubados, os enganados, os que pasmam embevecidos ou embasbacados, os que passam a vida infelizes, à espera de acabar.

Nestes conturbados tempos, alguém mais exposto ou vulnerável também perde quando outro alguém fica feliz por ter conseguido uma não planeada picadela de seringa, e alguns inocentes perdem quando outro alguém consegue trazer, como sobra de uma jantarada fora com amigos ou de um bacanal, um microscópico bicharoco cheio de perninhas, da família dos Covid Portugal, seus primos brasileiros, africanos ou ingleses, que, generosamente, esse inocente irá partilhar com quem ao caminho se lhe cruzar, durante ou depois do tal jantar.

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A felicidade está, ou não está, em nós próprios:  é insano contar que no-la deem outros que a querem para eles. O segredo para sermos felizes é saber voar com os pés no chão, desejar, apenas, aquilo que, naturalmente, podemos alcançar ou ter sem, para tanto, coisas bem mais importantes termos de sacrificar.

Não vale, também, a pena tentar compensar com o dinheiro e com o corpo a debilidade do espírito: só é especial quem o é para os outros, quem busca a felicidade procurando fazer do mundo que o rodeia uma feliz cidade.

Ser especial para si mesmo é nada.  Ser especial é darmo-nos; e darmo-nos não é fazer pelos outros aquilo que nos apetece, se e quando nos apetece – mesmo que não apeteça a eles.

Quando não ligamos aos outros, não podemos legitimamente esperar que liguem a nós.

Esta indiferença faz com que, cada vez mais, experimentemos o medo, o pânico próprios de um ser frágil e dependente como o humano, muito especialmente quando, por ignorarmos os outros, acabamos por nos sentir cada vez mais... sós.

sábado, 27 de março de 2021


Chocante Desigualdade!

"Quem tem meios para arrendar uma casa para comemorar o aniversário natalício
numa festa de arromba com amigos, tem quantos duzentos euros quiser para pagar
uma coima ridícula para as suas posses e que, por isso mesmo, nada terá de punitivo"

A prisão é pena justa e equitativa na medida em que, independentemente da qualidade e das circunstâncias da vida do condenado, ele irá passar parte da vida atrás das grades, como qualquer outro e independentemente da duração da pena aplicada.

Pode ser pobre, rico, viver mal, viver bem, viver só ou ter família e amigos, andar a pé, de automóvel ou, até, de foguetão: uma vez condenado por sentença transitada em julgado, vai parar ao lugar por onde tantos outros passaram, e pode razoavelmente dizer-se que, abstraindo de inevitáveis idiossincrasias do condenado e diferenças na qualidade da enxovia, o tempo que por lá ficará irá custar-lhe tanto como terá custado a qualquer daqueles.

Em suma:  dez anos de cadeia são dez anos de cadeia, seja o desgraçado o que ou quem for.

O mesmo já se não pode, evidentemente, dizer das sanções pecuniárias, seja a coima pela papelada entregue fora do prazo ou por ter estacionado o carrinho fora de sítio, seja a pena de multa, eventualmente até a substituir a prisão; e não pode dizer-se o mesmo porque o valor de coimas e multas é sempre absoluto e independente da capacidade económica do infrator – por cá e em qualquer parte do Mundo, tanto quanto julgo saber.

Inevitavelmente, a enorme desproporção entre a capacidade económica dos diversos indivíduos faz com que, por exemplo, uma coima de umas dezenas de euros por estacionamento ilegal represente, para quem aufere o salário mínimo, uns dez por cento deste, enquanto para um bem remunerado alto quadro de uma empresa a mesma coima por idêntica infração pouco mais representará do que o incómodo de ter de a ir pagar – incómodo, aliás, também ele desprezível, já que o pagamento será, provavelmente, efetuado em casa, ao teclado do computador no intervalo do programa que na televisão estiver a ver quando se lembrar daquela coisa estúpida que o fizeram pagar.

No caso específico das infrações ao Código da Estrada*), a sanção acessória da inibição de conduzir procura, de alguma forma, atenuar as diferenças; mas, mesmo neste caso, tal apenas é aplicável aos casos mais graves, assim deixando de fora a maior parte das infrações.  Aliás, à inibição pouca gente liga, já que a probabilidade de se ser apanhado é escassa e, mesmo que tal aconteça, ninguém se esquecerá tão cedo do caso daquela senhora que conduzia diariamente sem que alguma vez houvesse sido aprovada num exame de condução*) e só ao fim de dezenas de vezes foi encarcerada;  e, em prol da habitabilidade das prisões, dada a substancial quantidade de condutores desencartados terá de continuar a ser assim.

A desigualdade é, pois, escandalosa como outra não me ocorre - embora, no que às multas diz respeito, a situação não seja tão grave como a relativa às coimas, uma vez que antes de aplicar a multa o tribunal sempre acaba por fazer alguma ponderação.

Até há alguns anos, não existiria alternativa viável a esta previsão de um valor fixo, uma vez que a inexistência e, mais tarde, a falta de integração dos sistemas informáticos ao serviço da administração pública*) faria com que, mesmo mediante a utilização de meios informáticos, a imposição de sanções pecuniárias que implicassem a realização de um cálculo com base no rendimento efetivo do autuado necessitasse de uma averiguação mais demorada e mobilizadora de recursos do que seria minimamente razoável sequer considerar.

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Os anos passaram, no entanto, e neles ganhou forte alento, entre nós, a denominada modernização administrativa *), para a qual foi, até, criada uma agência governamental.  Porventura devido a ela - ou paralelamente -, atingiu-se, em Portugal, um nível de integração da informação, designadamente fiscal, que quase faz esquecer o tempo do papel nas declarações de imposto e a obrigatoriedade de o apresentar nas correspondentes e mui rigorosas inspeções.

Bem pelo contrário, nos nossos dias informação bastante precisa quanto ao rendimento efetivo de cada contribuinte, individual ou coletivo, está bem ao alcance de um Estado que diariamente a utiliza com poucas restrições e com crescentes ganhos de eficiência no acesso.

Apesar de, neste quadro, já não ser possível alegar impossibilidade material do cumprimento, continua a violar-se sistematicamente uma das mais básicas manifestações de devida aplicação do princípio constitucional da igualdade, obstinando-se os poderes públicos em tratar em pé de igualdade o que não é, sequer, comparável, quanto mais igual; sobretudo num país que se gaba de estar na crista da onda da inovação tecnológica - do que a Via Verde*) está longe de ser a única manifestação.

Mesmo tendo em conta a fuga aos impostos*), as declarações erradas e o facto de parte dos rendimentos ser tributada na fonte – o que não impede que seja, também ela, suscetível de apuramento por via informática a partir do número fiscal de contribuinte -, a aplicação de sanções pecuniárias proporcionais, por exemplo, ao rendimento líquido do mais recente ano fiscal para o qual haja sido emitida liquidação de imposto é hoje, não apenas uma possibilidade, como um imperativo constitucional.

Alguém escreveu que “o ogre fisco tem o apetite do leão para uns, mas a sobriedade do camelo para outros”.  Será esta a receita que, podendo não o fazer, queremos continuar a aplicar às multas e coimas enquanto instrumentos de uma supostamente cega Justiça?

Como será tão profunda alteração concebida e implementada, não cabe aqui desenvolver por quem não detém competências especiais na matéria. Já quanto ao caminho a seguir, não parece grandes dúvidas existirem:  mantendo a lei exatamente como está, publicar-se-ia uma outra dispondo que o valor mínimo atualmente previsto para qualquer multa ou coima seria percentualmente agravado em função da diferença ponderada entre o rendimento líquido do agregado familiar apurado na mais recente liquidação de imposto e o rendimento mínimo de inserção*), o salário mínimo nacional*) ou um termo de comparação equivalente, dependendo da opção política.  O mesmo para as pessoas coletivas, dependendo de terem ou não fins lucrativos e de outras especificidades a considerar.

A menos, claro está, que prefiramos continuar a ver automóveis ao alcance de apenas algumas bolsas literalmente largados no meio de faixas de rodagem ou encostados à esquina do passeio, enquanto os condutores e seus acompanhantes se enchem de bolos na pastelaria do bairro, sabendo que, na pior das hipóteses, lá terão, um dia, o trabalho de ir ao computador transferir para o Estado uma esmola de valor possivelmente pouco inferior ao que terão despendido com a gulodice.  Ou, muito pior ainda, que queiramos continuar a, durante dramáticos estados de emergência, ver por aí deambular entre festas ou restaurantes, escapulir-se por túneis que vão dar ao rio*) ou passear cachorros fantasma*) segurando uma trela solta na mão autênticos energúmenos sociopatas dispostos a pagar os, para alguns insignificantes, duzentos euros da coima por violação do confinamento obrigatório.  Agravados por reincidência ou não.

Quem tem meios para arrendar uma casa para comemorar o aniversário natalício numa festa de arromba com amigos, tem quantos duzentos euros quiser para pagar uma coima ridícula para as suas posses e que, por isso mesmo, nada terá de punitivo.

Com a alteração aqui proposta, um indivíduo que, por auferir uns três mil euros mensais for autuado, em lugar de duzentos, em qualquer coisa perto de mil euros por andar, em plena pandemia, a pavonear-se sem máscara por um passeio qualquer, irá, com muito maior probabilidade, começar a entender que “quem engendra um método simples e engenhoso de intrujar a lei não pode esquecer-se de que esta nem sempre se deixa enganar”.

Lembrar-se-á, sobretudo, de que, não raras vezes, a conquista daquilo que um quer depende do sacrifício de muitos; de muitos mais sacrifícios do que aquilo que, sobretudo em tempos difíceis, uma sociedade decente poderá, razoavelmente, suportar.


sábado, 20 de março de 2021


Demagogia à Portuguesa

"A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para,
desembainhando a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos
do descontentamento laboral (...) e cavalgando a passadeira estendida por grupos profissionais
dos mais insatisfeitos outrora no feudo do PCP, conseguir o 
Chega!, em tempo incrivelmente curto,
a almejada e indispensável visibilidade inerente a uma elementar
mas preciosa representação parlamentar"


   1. Introdução
   2. Na Génese da Demagogia Portuguesa
   3. Primeira Sacudidela
   4. A Inversão da Tendência
   5. O Trambolhão
   6. De Onde Fugiram os Votos
   7. Hipótese

1. Introdução

Apregoou-se por aí, durante quase cinquenta anos, que Portugal era uma democracia madura, de maioria de esquerda e fortes convicções políticas.

A sustentar essa tese, quatro fatores principais caracterizavam uma vivência política na verdade desinteressante e pantanosa, que a generalidade dos políticos e dos comentadores se foi habituando a confundir com estabilidade.

Por um lado, as frequentes maiorias do Partido Socialista (PS).  Por outro, as contribuições do mais jovem Bloco de Esquerda (Bloco), aparentemente potenciadoras de sinergias numa esquerda que se acreditava forte no plano eleitoral.  Acima de ambos, a tão propalada lealdade estoica de uma parte do eleitorado fiel à proposta do Partido Comunista (PCP), sobretudo em Setúbal e no Alentejo. 

Por fim, a manifesta dormência à direita de todos estes, mormente num Partido Social Democrata (PSD) que não parece saber como se livrar da perene imagem de maior partido da oposição e num Partido do Centro Democrático e Social (CDS/PP) demasiado próximo do anterior, sem margem para uma expansão democrática à direita e que nem com a inflexão para Partido Popular soube encontrar espaço político onde apenas havia um razoável campo de manobras e trampolim para quem dele se soubesse aproveitar.

Os humilhantes resultados da extrema esquerda na eleição presidencial de 2021*) fizeram soar, no pantanal, campainhas de alarme, cujas pilhas a coincidente ascensão da votação na extrema direita esteve a pontos de completamente gastar.

Muitas opiniões autorizadas se fizeram, então, ouvir, desdobrando-se na apresentação de explicações aritméticas para tão estranha, inesperada e abrupta transferência de votos – alguma dela, entre os extremos que alguns dizem tocar-se. Ora, pelo menos quanto à dependência da demagogia, os extremos tocam-se ou tocaram-se mesmo, e misturam-se bem com o centro, como nas linhas seguintes procurarei demonstrar.

 

2. Na Génese da Demagogia Portuguesa

Até ao final do século XX, se alguém perguntasse qual era, no panorama político português, o partido que, imediatamente, associávamos à ideia de esquerda, a resposta evidente seria o PCP; aliás, a única, já que, na extrema mais extrema ainda, procuravam manter-se à tona minúsculos partidos que apenas uma vez ou outra lograriam obter representação parlamentar - sempre meramente  simbólica e que jamais souberam potenciar.

Não é difícil recordar as causas do PCP, as suas bandeiras, a que, para concitar as suas hostes, parecendo dinâmico e aguerrido, prefere chamar lutas.  Note-se que a escolha vocabular é acertada, desde logo porque, digam o que quiserem continuar a dizer, a prática democrática nunca foi, até à data em que a maior parte acabou por cair com estrondo, a dileta dos governos ditos comunistas, que o PCP ainda hoje diz admirar;  e continua a não ser naqueles países que, contra toda a lógica e evidência, afirmam encontrar nas comprovadamente ocas e ineficazes teorias marxistas legitimidade ideológica para os respetivos povos democraticamente oprimir e espezinhar.

A escolha do termo lutas é acertada também porque o que, em tempos há muito idos, valeu ao PCP aqueles quinze por cento – ora mais uns pós, ora menos uns pós - que lhe permitiram afirmar-se foi a imagem de força desalinhada, de partido antirregime, que só o não era mais porque, como não o deixaram impor-se à batatada, alternativa não lhe restava a sujeitar-se ao voto popular.

Para angariar votos, caia-lhe, então, às mil maravilhas o ambiente pós-revolucionário, o desejo de mudança há muito legitimamente sentido e alimentado.  Mais do que tudo, foi fulcral a sagacidade de um Secretário Geral, cuja inteligência fina e trato cordial souberam camuflar o objetivo final e a verdadeira estratégia atrás do mais antigo discurso demagógico da democracia portuguesa, prenhe de chavões proferidos em incessante catadupa, naquele tom bem conhecido e característico que alguns dirigentes do PCP de hoje nas suas cacofónicas prosas ainda não conseguem – ou não querem - evitar.

Nesse registo de então, paradoxalmente monocórdico e acutilante, quase agressivo, cujas promessas soavam como música aos ouvidos dos mais descontentes, dos mais oprimidos, dos menos esclarecidos, sucediam-se referências a bandeiras como a da prolongada luta pelo direito à reforma e a uma pensão digna*), a da luta pela reforma agrária*), a da luta contra o pacto de agressão da direita com a Europa contra a Segurança Social*), a da luta pelo aumento do salário mínimo*) e por aí fora, habilmente visando cada foco de descontentamento – espontâneo ou induzido e mesmo que tal foco fosse politicamente explorável apenas no limiar da irracionalidade -, independentemente da disponibilidade económica e financeira do Estado, a qual jamais pareceu preocupar.

Todas estas lutas iam sendo travadas sob a égide de duas ideias estruturantes da mensagem:  a união de todos os trabalhadores em torno dos ideais comunistas salvadores, e a defesa de uma Constituição da República Portuguesa*) originariamente feita à medida do Partido.  O braço armado – por assim dizer - residia, então como agora, na CGTP Intersindical*), estrutura reverberante e pujante a brandir a espada da greve como ameaça permanente à cabeça dos governantes.

3. Primeira Sacudidela

Desgraçadamente para o PCP, o Secretário Geral decidiu retirar-se no ano seguinte ao do desaire de 1991 – acontecido poucos dias antes da há muito anunciada queda do Muro de Berlim*) -, ato eleitoral em que a compacta coligação com o estranho satélite denominado Partido Ecologista os Verdes (PEV) fez um enorme buraco no patamar daqueles quinze por cento que, na verdade, desde 1987 eram só doze. Excetuando, curiosamente, as eleições europeias, mergulharam de então em diante os números nas profundezas abaixo dos dois dígitos, numa queda livre da qual, até hoje e excetuando uma ou outra insignificante oscilação, o PCP jamais conseguiria recuperar.

A saída do Secretário Geral levou com ela a substância, a superior inteligência e a empática habilidade do discurso demagógico do Mestre, passando aquele a ser tentado pela pena de próceres simpáticos, mas de postura frouxa, nada convincente, visivelmente pouco elaborada, sem carisma, e que, aliada à absoluta falta de alternativa válida e disponível, apenas a proverbial obstinação do Partido em fazer passar uma imagem de inabalável segurança e de continuidade durante tantos anos acabou por sustentar.

As ideias, entretanto, eram as mesmas, os processos idênticos, e o discurso encontrava-se esvaziado já que, além de faltar quem soubesse enriquecê-lo, colapsara ante múltiplos e inegáveis fracassos o substrato ideológico essencial para o suportar.

A morte política do comunismo um pouco por todo o Mundo, acabaria por atingir, também, os minúsculos partidos da extrema esquerda portuguesa.  Apesar disso, apercebendo-se da entropia que ia aniquilando o outrora bastião antissistema, alguns deles lá trataram de engolir um sapinho aqui, outro ali, acabando, quase no fim do século passado, por se entender num amalgamado Bloco que pretendia ser – e durante certo tempo foi – a nova pedrada no charco.

O discurso demagógico, outrora bandeira do PCP, foi então encabeçado, à esquerda, por um coordenador do Bloco de Esquerda que, não obstante se apresentar algo tímido e reservado, lá conseguiu, ao fim de uma década e em eleições legislativas, quase atingir os dois dígitos, beneficiando do marasmo do gigante comunista, que continuava inanimado.

Cabe abrir aqui um parênteses para referir que, no extremo oposto do hemiciclo parlamentar, encabeçava então as hostes do CDS/PP um político de gema, mestre na arte da manipulação de cariz demagógico, que, no fim da primeira década ficou conhecido pelos apelos ao voto junto das peixeiras do Mercado de Benfica, em contraponto com o Coordenador do Bloco que, ao que diziam, ali as não visitava.

A eficácia desta demagogia do centro-direita não é, no entanto, fácil de avaliar tendo como base resultados de eleições presidenciais, já que, desde 1996, o Partido não tem por hábito apresentar candidato próprio.  Mas a verdade é que o em tempos partido do táxi *) conseguiu, durante vários anos, manter uma representação próxima de quinze deputados, daí passando até para mais de vinte, e culminando com uma significativa participação ao nível do governo – experiência pela qual já noutros tempos havia passado.

Não poderia esta ascensão do CDS/PP deixar de ser associada ao pendor fortemente demagógico do discurso e do desempenho do Presidente do Partido, pelo que, embora sem suporte em resultados eleitorais independentes, este texto ficaria incompleto se aqui a omitisse.  Tanto mais que, em votos em eleições legislativas, estava o CDS/PP até ligeiramente acima de quem, à esquerda, o contraponto esboçava.

Voltando ao Bloco de Esquerda, à façanha de quase atingir os dois dígitos nas legislativas de 2009, seguiu-se um trambolhão para quase metade, após o que foi o Coordenador substituído por uma sucessora cujos dotes comunicacionais inatos, académica e profissionalmente desenvolvidos e progressivamente cultivados para as necessidades da vida política, voltaram a, decisivamente, elevar os resultados nas eleições legislativas.

Como candidata às duas eleições presidenciais do seu consulado, a Coordenadora escolheu a deputada ao Parlamento Europeu, militante cuja qualidade humana e simpatia inegáveis em 2016 valeriam ao Bloco dez por cento dos votos expressos*), a melhor marca de sempre obtida por um candidato presidencial recrutado nas hostes do Partido – ou do Movimento, como preferem chamar-se.

Talvez por essa razão, e com toda a justeza, foi a mesma Candidata selecionada como representante na eleição presidencial de 2021, altura em que também o discurso demagógico do Bloco esmorecera já bastante, tendo os seus dirigentes preferido como que sofisticar a mensagem, passando a propugnar causas fraturantes*) que apenas a algumas minorias poderão interessar, simultaneamente relegando – pelo menos aos olhos da opinião pública - para segundo plano a defesa dos tradicionais alvos que, em tempos, com o agora estiolado Partido Comunista Português costumava disputar.

As classes menos favorecidas, menos letradas, menos esclarecidas da população votante foram, por este processo, deixando de se rever nas causas defendidas pelo Bloco de Esquerda, que passou a ser cada vez mais conotado com a ideia de uma emergente esquerda que procura votos tentando impor, a maiorias democraticamente estabelecidas e consolidadas, minorias que talvez preferissem que as deixassem em paz.

Juntando esta inflexão do Bloco ao colapso do PCP, a ainda muito considerável massa menos esclarecida de votantes deixou de ver, nos partidos da esquerda, quem com alguma eficácia agitasse as águas, alguém que ainda desse a ideia de os estar a representar.

Erro fatal!


4. A Inversão da Tendência

Vai daí que num belo dia de 2019, tendo, à direita, o discurso demagógico do CDS/PP perdido o brilho com a saída do Presidente uns anos atrás, começaram os tais desiludidos eleitores a aperceber-se da existência, lá muito à direita, de um novo partido que, de forma para eles aparentemente muito mais promissora e exaltada, pretendia pugnar precisamente por aquilo com que, em tempos idos, lhes acenara sobretudo a esquerda.

É certo que este novo partido dizia, ao mesmo tempo, umas coisas de arrepiar, mas não há de ser nada; e é claro que aquilo não passa de disparates que, com o tempo, acabam por passar - além do que nada disso importa quando o discurso chega bem vivo, acutilante e brejeiro, de um tribuno de inteligência viva resposta pronta e palrar infrene, suficientemente incisivo para conseguir as hostes animar com uma lata bem apropriada a uma fatia básica e esquizofrénica da população, capaz de exigir o encerramento das escolas para, três semanas depois e sem consenso na comunidade científica, logo a necessidade da imediata reabertura alardear.

Concluiu, então, essa ilustrada mole que Chega! de ficar à espera de que o Bloco perca as peneiras, o PCP volte à vida, o PSD encontre alguém com o carisma necessário para protagonizar uma verdadeira oposição e o CDS/PP deixe os cuidados intensivos, tudo isto enquanto o PS continua, tranquila e desnorteadamente, a mandar.

A catalepsia política destes partidos foi habilmente aproveitada para, desembainhando a espada em pretensa defesa de alguns dos setores mais críticos do descontentamento laboral – professores, enfermeiros e forças policiais – e cavalgando a passadeira estendida por grupos profissionais dos mais insatisfeitos outrora no feudo do PCP, conseguir o Chega!, em tempo incrivelmente curto, a almejada e indispensável visibilidade inerente a uma elementar mas preciosa representação parlamentar.

Conseguiu tudo isto sem ainda se ter, sequer, estabilizado, estruturado enquanto partido, não passando, para já - e se quisermos ser muito simpáticos -, de uma heterogénea amálgama de gente saturada da bem patente incapacidade dos partidos do regime para gerir seja o que for.

Bloco e PCP, bem se esforçaram, então, por balbuciar sucessos associáveis à sua presença na geringonça governativa.  Mas como pode a generalidade dos eleitores, não militantes e pouco ligados a estas coisas da política, deixar-se sensibilizar por difusas alegações de autoria dos sucessos ou de partilhada responsabilidade positiva pelos mesmos?

Perspicaz, o Presidente do Chega! entendeu que, aos espíritos menos vocacionados para a política, com menos apetência para absorver informação, menos preparados, menos aptos, menos esclarecidos, quase iletrados – e tantos são, ainda! –, a ilusão de promissora eficácia tem muito mais a ver com energia, com vivacidade, com carisma, com o espetáculo proporcionado pelo permanente chasquear com os colegas parlamentares do que com visitas à sala poeirenta onde cada partido expõe troféus alegadamente ganhos em tempos passados que nada podem melhorar.  Como, no século XIX, alguém em França escreveu, “um governo seria eterno com a condição, de todos os dias, oferecer ao povo um fogo de artifício, e à burguesia um processo escandaloso”.  O Chega! sabe-o bem.

O que rende votos é o tom da mensagem, a vivacidade, o dinamismo, ser convicto e, sobretudo, falar a linguagem de quem nos ouve, trazer novidades, ainda que a suposta diferença se traduza numa bússola ideológica completamente à deriva, que a vivacidade roce a ordinarice e a aparente convicção se mostre irrepreensivelmente vazia de valores.  São, em grande medida, estas qualidades que levam o eleitor português que vota porque sim a encarar um partido como sendo o seu clube do coração, a vestir a camisola, a acreditar, a votar no seu candidato de eleição.  Insistir unicamente no debate das ideias, como se todos por elas se interessassem e fossem capazes de as entender, é estar, como acontece com a generalidade dos partidos tradicionais, em estado de alienação, de negação.

De facto, é tão sensato esperar que um eleitor comum perceba a fundo de política como que um doente seja perito em medicina.  A verdade é que sabemos escolher tão bem o medicamento ideal para nos curar, como o sistema melhor para nos governar.  Escolhemos, não o remédio, mas o médico, o governante e não o sistema político, assim nos interessando tão pouco a bula do remédio como o programa partidário; e eleitores comuns somos quase todos nós.

O Presidente da República reeleito sabe muito bem tudo isto, pelo menos, desde o dia em que mergulhou no rio Tejo*).  O Primeiro Ministro, vai aprendendo.  Ao Presidente do Chega!, corre nas veias sem ter de se esforçar.

No extremo oposto, fatigada, talvez, pelo esforço de exigentes anos passados como única deputada do Partido ao Parlamento Europeu, a Candidata do Bloco mostrou, na campanha eleitoral, evidentes sinais de fatiga e desgaste, de desânimo quase, que a invocação da batalha pelos cuidadores informais não chegou para obnubilar.

Já o PCP viu bem o perigo, a pontos de, em lugar de imolar na pira eleitoral um outrora sacerdote*) que ninguém conhecia, desta vez tudo ter jogado na decisão de optar pelo gambito do delfim designado para suceder ao atual Secretário Geral, nele tendo apostado todos os seus trunfos.  Mas o olhar parado, uma voz que mal se ouve e o discurso de antanho nunca poderiam tê-lo levado longe, mais a mais sempre apoiado na velha cartilha, agora ainda mais insonsa por ter sido enriquecida com a estafada lengalenga da defesa da Constituição*) - esquecendo-se de que que, por todos estarem ao cumprimento desta obrigados, nunca tão pouco original defesa moverá quem padecer de eleitoral indecisão.

Apenas se consolidou, desta forma, no eleitorado a ideia generalizada de que continuará a definhar até à morte o velho Partido, casado com uma inércia nele de tal forma entranhada que jamais conseguirá o divórcio ou, pelo menos, a separação; que bem sabe que o novo 'slogan' "O Futuro Tem Partido" mais não visa do que obnubilar a certeza de que a utopia dos ainda propalados, mas defuntos, ideais comunistas deu lugar à distopia de um futuro no qual, ao invés, nem nos bastidores o Partido tem lugar.

Continuou, entretanto, o Partido Socialista por ali a pairar à toa, sem que um candidato próprio tenha, às eleições de 2021, sido apresentado pelo partido da governação, apenas tendo, espontaneamente, avançado uma candidata independente - de apaixonado e nem sempre muito coerente discurso demagógico em decalque das tais causas da nova e sofisticada esquerda personificada pelo Bloco -, Candidata essa militando na zona mais à esquerda do Partido, área política que, deixando saudades dos tempos áureos do Procópio, se apresenta hoje deserta de verdadeiras figuras.

Dadas as inevitáveis inconsequência e falta de continuidade posteriores do seu gesto, não se entende bem o que, além de barulho e de dispersar os já escassos votos mais à esquerda, a tal Candidata a estas eleições foi fazer.

 

5. O Trambolhão

Para os supostamente indefetíveis eleitores de esquerda, naquele dia de Janeiro de 2021 lá se foi o Marx, mais o Lenine e a cartilha toda que, em boa verdade, nunca lhes interessou:   longe de serem indefetíveis, votavam em quem votavam apenas porque lhes faltava quem, à esquerda ou à direita, tivesse um discurso mais espetacular, mais demagógico e mais agitasse as pantanosas águas do sistema, mais os fizesse sonhar.

A grande ilusão da nação convicta implodiu espalhafatosamente, para gáudio dos oportunistas que, com pequenas alfinetadas em sítios judiciosamente escolhidos, num ápice esvaziaram a bolha da inanimada esquerda ao convencer boa parte dos votantes de que a defesa dos seus anseios prometida pela interminável, monocórdica e sincopada parlenda do Partido Comunista jamais iria, verdadeiramente, levar a bom porto a maior parte das reivindicações.  Fez-lhes ver que aquilo que o Partido há décadas para eles exigia, sempre seria, pelos detentores do poder – e mesmo no quadro da Geringonça –, concedido como uma esmola a conta gotas, unicamente destinada a suster aquela incómoda mania de fomentar e apoiar sucessivas paralisações laborais;  e que, no marasmo comunicacional das frases repetidas, repisadas até mais não se aguentar, as pouco invejáveis condições de vida desses eleitores iriam perdurar, até porque a medida colossal da sempre incómoda falta de liquidez do Tesouro jamais, foi, ou será, coisa de preocupar, apenas servindo para os fazer mudar de canal quando os entendidos dela começam a falar.

Perceberam eles, também, que a sua esperança não residia naquele estranho e cada vez mais apagado conjunto de pessoas que ocupa o cantinho mais à esquerda da bancada parlamentar, e cujos alegados impacto e eficácia na luta pelos direitos dos trabalhadores agora se não consegue vislumbrar, quase se limitando agora a perorar sobre causas fraturantes das tais minorias que, de tão badaladas, já ninguém tem, propriamente, apetência para apoiar, ou, sequer, paciência para delas ouvir falar.

Tirando os adeptos ferrenhos que gostam de ver o seu partido jogar na Sport Parlamento TV, o supostamente mui consciente e politizado povo português de esquerda não lê programas partidários, programas de candidatos presidenciais, programas seja de quem for:  quer é ver a vidinha resolvida por quem mais possibilidades lhe pareça ter de, expeditamente, a resolver, bem sabendo que lá não irá pela mão de quem durante mais tempo na campanha arrastar o seu desinteressante e pouco credível palrar;  e, quanto ao palrar, do que essa menos favorecida e mais volátil massa eleitora gosta mesmo é de os ver todos à bulha nos debates que as estações televisivas generalistas e noticiosas tão bem sabem explorar.

 

6. De Onde Fugiram os Votos

Meio milhão de fascistas portugueses vota no Chega!? *)  Claro que não.

Mas também pouco sentido fará atribuir o sucesso eleitoral do jovem Presidente desse novo Partido maioritariamente à migração de votos do PCP - no Alentejo, em Setúbal, onde for.  Embora tampouco seja despiciendo, em certa medida, fazê-lo:  por um lado, porque o segundo lugar em Beja, Évora, Portalegre e Setúbal não pode deixar de estar relacionado com a campanha de proximidade, quer física, quer do discurso, relativamente aos anseios da população;  por outro, porque, desta vez, o candidato do PCP não era um ilustre desconhecido, mas o próprio Delfim e deputado europeu, o que deveria ter servido para imprimir uma mensagem de confiança suficientemente forte para captar os votos da tal fatia menos esclarecida do eleitoral bolo, pelo que bem poderia ter conseguido melhorar, de forma expressiva, o resultado da votação.

Ao invés, os resultados percentuais em três destes distritos foram, até, ligeiramente inferiores aos de 2016 - não tendo comparação possível com os de 2011*) - o que permite dizer, numa extrapolação algo liberal para os resultados globais, que o eleitorado fiel e disciplinado do PCP ronda, quando muito, os quatro por cento, pelo menos em eleições presidenciais.

Por sua vez, o sofrível desempenho em campanha da Candidata do Bloco permite admitir que nela terão, também, votado quase unicamente os obedientes, ficando-se a base estável de apoio pelos mesmos quatro por cento.

Por fim, atentos a atitude trapalhona e o discurso mal alinhavado, quase entontecido e pouco propício a atrair multidões, os magros quase treze por cento obtidos pela Candidata da ala esquerda socialista levam a concluir pela possibilidade de ser essa, quanto à ala em que milita no Partido, a verdadeira representação.

Juntando estes três restinhos, terão ficado, para a habitualmente maioritária esquerda - esclarecida e convicta - uns bem medidos vinte por cento, devendo-se tudo o resto que noutras eleições em votos tem recebido à mais ou menos eficaz manipulação, pela mensagem, de um eleitorado flutuante que, basicamente, se está nas tintas para quem vai ganhar, desde que esse alguém o convença de que, antes de todos, será esse mesmo eleitorado que, com a escolha, terá a ganhar.

Os grandes vencedores da eleição presidencial de 2021 foram os que já sabemos:  os mestres da comunicação, cuja retórica capaz de fazer derreter o gelo e vibrar as pedras atrai às assembleias de voto largas centenas de milhar de votantes, mesmo que receosos de, ao deixar o voto, poderem levar, em troca, um virulento bicharoco capaz de dar cabo deles e dos seus.

Ganharam porque, ao contrário do que parece ser geralmente entendido, demagogia não é sinónimo de extrema direita.  A demagogia, de onde quer que venha, é, porventura, o instrumento mais eficaz para quem quiser aproveitar-se dos verdadeiros e incuráveis calcanhares de Aquiles da democracia:  a ignorância e o défice de consciência política e cívica de boa parte dos eleitores.

Ao que parece só o discurso demagógico - e popularucho – alguma vez logrará desviar as atenções da incompetência e do vazio político de um partido, tácito mas claríssimo e irrecusável convite à emergência de outros.

Independentemente da evolução futura do Chega!, os resultados da eleição presidencial foram um sério alerta, e a mensagem para os partidos do sistema é clara:  procurar, preservando a ética, apostar na qualidade e, sobretudo, no dinamismo da comunicação, adaptando-a não apenas às expetativas dos eleitores, mas, durante a campanha, também à capacidade de entendimento de cada segmento visado.

Talvez, acima de tudo, aos seus gostos e necessidades de evasão, de distração.

 

7. Hipótese

Entre os menos esclarecidos ou menos interessados eleitores de qualquer quadrante, o caráter mais ou menos demagógico do discurso político tende, nos atos eleitorais, a condicionar mais fortemente, respetivamente para mais ou para menos, o sentido da votação, do que a divulgação das grandes linhas programáticas de quem se candidata; e os resultados eleitorais são, cada vez mais uma medida de avaliação do desempenho das agências de comunicação.

Sic transit gloria mundi...

sábado, 13 de março de 2021


Refugiado e Refugiados

"Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu
que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas,
bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará,
globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.
Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento
"

Imaginemos um país; um país europeu de dimensão relevante, desenvolvido e estimado pelos seus pares.

Imaginemos, também, que, nesse país e por circunstâncias que aqui não vêm ao caso, um governante de topo, um abastado rei, por exemplo, se vê na contingência de, fazendo uso do seu lauto pé de meia e da generosidade ou do pagamento de favores por parte de alguns amigos, ter de se exilar*), de abandonar a sua terra, rumando a paragens mais a Oriente para por lá se refugiar.  Tendo em conta a História recente da política europeia, é um cenário que não será difícil idealizar.

A esse governante, seria - sem hesitação, em condições excecionais e ao nível adequado a alguém com a sua anterior ocupação - facultado o acesso a todas as estruturas e serviços dessa sua temporária terra de adoção, desde os fornecimentos básicos de eletricidade e água, até aos cuidados de saúde, públicos e privados; e, se de idade avançada, aos necessários cuidados e tratamentos complementares.

Na nova terra, ninguém se espantaria, ninguém se insurgiria ou se sentiria lesado pelo luxuoso tratamento dispensado, pelo Estado e pela iniciativa privada:  uns, porque nem chegariam a saber o que se estaria a passar;  outros, porque se identificariam com o ilustre refugiado e para os próprios esperariam, em idênticas circunstâncias, iguais benesses;  por fim, os palermas que até se sentiriam honrados com tão distinta companhia e lamentariam, consternados, o facto de a veneradíssima personagem não poder regressar ao seu palácio para o Natal familiar.

Pensemos, agora, por um instante, num bote vindo de África, a transbordar de pessoas menos ilustres, desconhecidas, anónimas, desesperadas, sem Natal, a lutar pela sobrevivência, em fuga de quem, por razões políticas ou outras, os escorraçara da sua terra natal; fugindo da guerra, mas também da perseguição política ou religiosa, da miséria indizível; sabendo que parte deles nem chegará, porque o mar não irá deixar.

A estes refugiados pobres*), muitos portos batem com a porta na cara, acabando eles, por vezes, por se virar para um pequeno país a Norte das suas terras natais, logo acima e um bocadinho ao lado do Mediterrâneo, onde, mais coisa, menos coisa, dez milhões de seres humanos têm, entre muitas outras benesses, acesso a um serviço de saúde amiúde elogiado, porquanto fracamente financiado e, quanto a recursos, deficitário;  um serviço de saúde que, apesar de tudo, não desespera quando mergulhado numa pandemia, e lá vai arranjando meios e forma de acolher, de tratar e de recuperar as pessoas que o bote traz das paragens de onde foram escorraçadas, e que nesse pequeno país mais a Norte buscam refúgio.

Os refugiados dos botes são muitos?  Vêm em grande quantidade   Não.

Em pequenas embarcações, chegam a esse pequeno país umas cinco pessoas, em média, por dia.  Das minúsculas cascas de noz, veem os aviões que, aqui e ali, os sobrevoam como a expressão mais visível da crueldade do Mundo. Ignoram que, nesse preciso momento, um outro refugiado veleja, com ar enfadado, não num bote, mas num seu iate, rodeado de amigos, em magníficas paragens.

Será que acolher essas cinco pessoas por dia, cuidar delas, acarinhá-las será uma carga assim tão grande para o sistema de saúde desse pequeno país de dez milhões?  Será que o facto de não ter essa gente agora sem terra com o que pagar os cuidados que lhe são prestados justifica ser, por outra gente sem um mínimo de compaixão, mas com acesso a trabalhos parlamentares e a programas televisivos, exposta como parasita, como oportunista, composta por falsos necessitados que consigo até trazem telemóveis?

Será que a permanência dessas pessoas por cá, trabalhando como puderem, irá prejudicar assim tanto a empregabilidade dos nem sempre muito empenhados autóctones? Ainda que inicialmente não especializado ou particularmente bem preparado, será de desprezar o contributo que estes nossos habitantes darão à economia e à cultura do pequeno país que as acolhe?

Mesmo abstraindo do fator humano, a lógica elementar dirá ao mais desinformado fariseu que, desde que as operações de acolhimento e de acompanhamento sejam bem planeadas, bem geridas e bem executadas, o proveito para os países que abram os seus braços ultrapassará, globalmente, o inicial inegável impacto negativo sobre as contas do Estado.  Não se trata de um custo, mas de económico e social investimento.

A partir dos dados disponíveis, concluir o contrário revela falta de humanidade, ou que anda por aí tenebrosa desinformação, a ponto de poder fazer esquecer que a maior maravilha do Mundo é as pessoas serem como são.

Aumento da criminalidade?  Claro que nem todos são santos, mas também não são os criminosos empedernidos que alguns querem fazê-los parecer.  Entre os refugiados há de tudo, melhor e pior, tal como de tudo há, também, no tal abençoado cantinho à beira mar plantado.

Em qualquer caso, não pode duvidar-se de que esse pequeno país de dez milhões tem alguma, embora reconhecidamente limitada, capacidade de acolher quem em tão deploráveis condições o demanda; e a responsabilidade varia na razão direta das nossas capacidades e na razão inversa das nossas limitações.

Não se entende, assim, como podem, no tal pequeno país, pessoas ditas de bem insurgir-se contra o acolhimento de meia dúzia de casos em cada mês*), manifestando-se pela imediata decisão de os deportar. Como pode continuar-se a confundir esta quantidade mínima, residual, que lá consegue desembarcar com o estabelecimento de uma nova rota migratória para quem quer ficar, inerte, a receber bens e serviços do país de acolhimento nada tendo que, por sua vez, lhe dar?

Há coisas que nem em campanha eleitoral se deve dizer.  Melhor dizendo, que, sobretudo em campanha eleitoral, não se deve dizer.  Num pequeno país que se pretende humanista, seria, para qualquer político, bem mais adequado e inteligente exaltar os valores a essa ideia indelevelmente associados.

Tampouco se entende o que leva alguns a associar a esquerda ou direita a decisão de acolher ou deportar, de discriminar positivamente ou de apenas tolerar, quando, independentemente da cor política, a rejeição se deve, fundamentalmente, a egoísmo, orgulho e preconceito, e pouco mais.

Quantos refugiados desses que vêm em botes não seria possível albergar, alimentar e tratar apenas com os milhões que, qual jogador de bola fugido ao fisco, o refugiado de luxo do início destas linhas irá entregar às Finanças do país de origem para um dia o deixarem regressar ao seu sumptuoso palácio sem temer mais pesada pena ter de pagar?

Pois não são estes refugiados seres humanos enquanto tal em tudo iguais a esse abastado velejador noutro país refugiado, apenas diferindo, no que é essencial, pelas condições degradantes e insustentáveis em que lutam para sobreviver?

Não, iguais ao abastado governante, de facto, não são.

São até bem diferentes as razões que os fazem escolher outra terra para morar;  e poucas dúvidas restam de que o próximo bote trará carga humana bem mais válida do que um decadente e rico pobre diabo obcecado por mulheres, pelo dinheiro e por aquilo que com ele poderá comprar.

Sic transit gloria mundi...

* *

Apesar de tudo, convirá ter presente que o acolhimento de refugiados não deve, não pode, pôr em risco funções tão essenciais à sociedade que os recebe - e, inevitavelmente, aos próprios - como é o caso da saúde.

sábado, 6 de março de 2021


O Menino das Rãs (conto infantil para adultos)


"Quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;
quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;
e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar"


Era uma vez um menino que nasceu numa aldeia por onde corria uma ribeira que tinha rãs.

Os pais tinham pouco dinheiro e o menino não ia à escola.

Como ele, muitos outros meninos do povo não podiam ir à escola;  mas, ao contrário dele, alguns outros meninos esforçaram-se, mesmo assim, por aprender fora da escola e chegaram, até, a dirigentes do Clube dos Meninos da Aldeia.

O nosso menino, no entanto, não era só pobre: era, também, pouco inteligente, embora se julgasse esperto como, também, alguns dos demais.

Ora, como acontece com meninos pouco inteligentes que procuram, com a esperteza, compensar o que da outra lhes falta, tratou o menino de pensar na melhor maneira de se salientar, de sobressair, de se exibir.

Pensou, pensou… e, de tanto pensar, pensou que era filósofo, como acabava por acontecer com boa parte de outros meninos que também passavam o tempo a pensar.

Vai daí, arranjou uma folha de papel, muito grande, muito grande, onde ia escrevendo as suas ideias, que lhe pareciam cada vez mais brilhantes, e das quais ele achava que era uma pena que todos os outros meninos não tomassem conhecimento para, assim, viverem mais felizes por aprenderem com ele, que pouco ou nada sabia.

Depois de escrever cada pérola de sabedoria, dobrava a folha e punha-a num bolso do casaco, contente com a sua habilidade.

- x -

De tanto pensar, um dia, pensou, até, que, quando subia o passeio do lado direito da sua rua, os carros estacionados desse lado ficavam à sua esquerda, e que, quando descia a rua, os mesmos carros que, quando a subia, ficavam à sua esquerda, continuavam, ao descer, à esquerda também.

Animado com tão espantosa descoberta, e porque se tratava de esquerda e de direita, achou-se predestinado à Política.

Lá arranjou, então, meia dúzia de amiguinhos também do povo a que dizia pertencer, e com eles fez um grupinho de apoio que conseguiu as assinaturas necessárias a que o menino pudesse candidatar-se a Presidente do Clube dos Meninos da Aldeia. É que ele achava que, se os outros que lá estavam e, dentro ou fora da escola, tinham estudado para se preparar para o desempenho do alto cargo, ele, embora fosse burrinho e nem competência tivesse para mandar nos seus poucos brinquedos, também tinha o direito de lá estar.

Tinha direito, apenas porque sim, e porque a campanha eleitoral seria a melhor maneira de mostrar que era o que não era, uma oportunidade única para se pavonear, e não porque estivesse minimamente preparado para ocupar o lugar ou preocupado com o serviço que, aos outros meninos, poderia esperar-se que viesse a prestar.

- x -

Ora, para a presidência do Clube, havia, além do presidente atual, outros meninos candidatos, os tais que tinham estudado e que seria mais provável estarem à altura do que a função lhes exigia do que o menino armado em filósofo que mal duas frases seguidas sem chavões – ou pérolas tiradas do papel que sempre trazia no bolso - conseguia articular.

Tinha, por essa altura, a rádio local organizado conversas dos outros meninos candidatos, dois a dois, sobre as propostas que as respetivas candidaturas tinham a apresentar. Mas, como o menino da nossa história não dava duas para a caixa e já ninguém estava para o aturar, a rádio lá conseguiu desenterrar um qualquer critério jornalístico pacífico e plausível para, sem parecer muito mal, o menino não ser convidado a participar.

Isso, sim!! O menino tanto se queixou, tanto se lastimou, que a rádio lá arranjou uns minutos para, numa frequência menos ouvida, pôr o menino a, um a um, abusar da paciência dos outros meninos candidatos, sempre com aquele ar de ingenuidade bacoca e deslumbrada com o papel que estava a representar.

Todo contente, lá levou no bolso a grande folha de papel dobrado que, orgulhosamente, até mostrou ao atual presidente do Clube e recandidato, o qual que só lhe faltou tratar por tu; e lá despejou, para indisfarçável embaraço e tédio de cada um dos outros meninos e dos senhores da rádio que os entrevistavam, a habitual e infindável série de lugares comuns e de brocardos tirados da sua cabecinha pobre, respondendo, qual verdadeiro político e por falta de ideias das quais conseguisse falar trinta segundos seguidos, sempre ao lado daquilo que ainda lhe conseguiam perguntar.

Bom, nem sempre respondia ao lado:  quando lhe perguntavam o que pensava da economia da aldeia, dizia que ninguém do povo não devia ser pobre;  quando lhe perguntavam sobre a saúde, que todos os meninos do povo deviam ser saudáveis;  e quando lhe perguntavam sobre o mar dizia que todos os meninos do povo deviam poder ir à praia nadar.

- x -

Claro está que o menino não foi eleito, e até teve menos votos do que da outra vez em que tinha obrigado os outros a ouvi-lo falar, porque, ao contrário do que dizia esperar, foram muito poucos os meninos parvos que caíram na asneira de sair de casa para nele votar.

Claro está, também, que valeu a pena candidatar-se – se valeu ! -, já que tal lhe permitiu, não só massajar vigorosamente o ego, como ganhar estatuto junto dos poucos meninos vaidosos, egoístas e espertalhões da tal aldeia onde havia rãs e de outras terras por ali perto.  Tudo isto, à custa do tempo sem qualquer interesse que fez perder à rádio local, do sacrifício da paciência dos que o ouviram – ou leram no jornal do Clube – e do dinheirão que, pelo duvidoso privilégio de ouvir as suas pérolas, a todos indiretamente fez pagar.

Afinal, para aqueles dias serem tão bons para o menino, por que não haviam todos os outros meninos de colaborar ?  Até ia parecer que não gostavam dele.  Mas gostavam, claro:  de tão brilhante menino filósofo, como não gostar ?

- x -

Como já não era a primeira vez que se candidatava, e aquilo até foi giro, o menino não tem, de então para cá, parado de continuar a encher a folha onde escreve as suas ideias mais vazias e disparatadas.

Para quê ?

É que, agora, o grupo de meninos que o apoiou nas eleições já se juntou num partido que até dá vontade de rir, de meninos como ele que querem ajudá-lo a mandar.

E as eleições para as secçõezinhas do Clube não vão tardar…

Uma coisa é certa:  a história do menino que brincava com as rãs não vai aqui acabar e, se não alteram rapidamente os Estatutos do Clube para o travar, ainda todos nós vamos ter muito que lhe aturar.