quarta-feira, 4 de agosto de 2021


José Hermano Saraiva

O Tejo a Correr para o Mar

"Continuará a haver noites de luar,
Serra de Sintra
e o Tejo a correr para o mar
"


Será que estamos a preocupar-nos com aquilo que, de facto, importa?

Ou estaremos antes, por via da inevitável insatisfação sentida por não podermos vir a ter coisas de que muito desejaríamos poder desfrutar, reféns de estereótipos de criação mediática, de antevisões quase fantasmagóricas de um Futuro cuja felicidade e tranquilidade nós mesmos acabamos por condicionar?

Coisas que, ainda por cima, de bem pouco servem ao enriquecimento espiritual dos seres superiores em cuja definição tanto gostamos de nos mirar...

Numa das suas últimas entrevistas televisivas, em novembro de 2011 ao programa ´Alta Definição´*), da SIC, apresentado pelo jornalista Daniel Oliveira*), o historiador José Hermano Saraiva*) falou sobre vários aspetos da sua vida profissional e pessoal e, também, sobre o País real.

A certa altura, questionado sobre qual poderá ser o futuro de Portugal, respondeu, simplesmente: ''Olhe, qualquer que seja, continuará a haver noites de luar, Serra de Sintra*) e o Tejo a correr para o mar'

Dá que pensar...

ª ª
Acontece questionarmo-nos sobre o que estará aí para vir, no caso de a guerra na Ucrânia alastrar ou se tornar mais séria. Sobre o que acontecerá quanto, apesar de tudo, o Tejo continuar a correr para o mar...


segunda-feira, 2 de agosto de 2021


Wende Snijders: Hey!

Há letras emocionantes, músicas magníficas, interpretações fantásticas.

Wende Snijders cantando Hey
Imagem: i.ytimg.com

São, no entanto, realidades que não parecem conviver harmoniosamente: encontramos uma, outra, talvez duas delas, mas raramente moram juntas.

Aqui, a letra e a música dispensam comentários, e a espetacularidade da interpretação está na simplicidade.

No intervalo de leituras mais sérias, deixemo-nos comover por estes escassos três minutos.


sábado, 31 de julho de 2021


Otelo: O Espinho que nem a Morte Arrancou

Propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica,
inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos
junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo tem o direito de
boicotar a própria obra; e, em matérias tão importantes e sensíveis
como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar

      1. Fala Breve sobre a Motivação
      2. A Dívida dos Portugueses
      3. O Homem da Revolução
      4. O Lado Mais Negro
      5. Anedotário Politicamente Correto
      6. Cuidar do Futuro
      7. Requiescat

Sobre a Motivação
1. Fala Breve sobre a Motivação

No Palácio da Pena, em Sintra, existe a Sala das Pegas*), cujo teto está pintado com cento e trinta e seis destes pássaros – a quantidade de damas da corte na altura -, cada uma das quais segura a rosa que simboliza a Casa de Lencastre e ostenta, junto ao bico, os dizeres “POR BEM”.

Conta-se que, na origem da pintura, terá estado um beijo que El-Rei Dom João I, marido de Dona Filipa de Lencastre, dera a uma cortesã, gesto testemunhado por uma dama da corte que, qual pega tagarela, terá ido piar ao ouvido da Rainha o ternurento evento.

Justificando-se, responderia o Rei a Dona Filia que beijou “por bem”, com tal expressão querendo afastar qualquer condenável intenção.

- x -

Foi sem querer”. “Foi por bem”.

Quantas vezes não ouvimos já, às crianças grandes que somos e às verdadeiras crianças, expressões como estas procurando justificar algo de menos bom que se fez por acidente? Ou, até, com boa intenção, mas com alguma falta de jeito, qualquer das duas expressões apenas visando fazer aceitar o que, por vezes, parece injustificável, desde um simples pecadilho a uma morte às mãos de alguém.

À morte sem intenção às mãos de alguém, ora chama o Direito crime por negligência, ora legítima defesa, e a pena aplicada é relativamente leve no primeiro caso e, até, inexistente no outro, já que seria aberrante punir quem mata ou fere para se defender ou para salvar a vida de outrem.

Deixando o contexto penal, no mundo dos comum mortais quem também “sem querer”, por mero acaso, obtém um bom resultado para outros, não pratica, na verdade, uma boa ação; logo, não merece especial louvor, já que nada terá, propositadamente, feito para que esse bom resultado acontecesse.

De igual modo, quem, já não “sem querer” mas deliberadamente, com má intenção, acaba por praticar uma boa ação, faz, também uma obra sem mérito, pois com má intenção e a título meramente instrumental a fez.

Ou seja: fê-lo, porque, para alcançar o resultado censurável que o movia, era imprescindível praticar esse tal bem que, mais tarde e sem qualquer mérito, os beneficiários, enganados e indevidamente agradecidos, lhe viriam a atribuir.

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A Conduta do Agente
Numa sociedade que se pretenda minimamente civilizada e evoluída, a valoração da conduta do agente, depende menos do resultado, bom ou mau, do que da motivação na sua génese; e isto vale, tanto para o Direito, como para a Ética, como deveria valer para o desenho da imagem mais ou menos folclórica da personagem, daquilo que, dos seus feitos, fica para contar.

Assim, aquilo que, em dado momento e com resultado positivo acidental para o bem comum, alguém possa ter feito antes não desculpa o mal que vier a fazer depois - ou a quantidade daqueles que na cadeia as culpas purgam seria, seguramente, muito inferior.

 

A Dívida dos Portugueses

Não vou preocupar-me com a demonstração de factos que bem altas instâncias já deram como provados: cingir-me-ei, unicamente, à interpretação dos mesmos tal como me chegaram e que demonstram, antes de mais, que a responsabilidade do então Major Saraiva de Carvalho no êxito da revolução que viria a derrubar a ditadura é inquestionável, e é, e será sempre, digna de assinalável registo histórico, ou jamais seria credível a História.

A fazer fé nas palavras do próprio e relembrando aquilo que, à época, se ouviu e a que se assistiu, o Senhor Major não foi apenas o comandante operacional: foi a mente por detrás do planeamento do golpe militar. Foi, a bem dizer, quase tudo, sendo digna de especial menção a brilhante estratégia de, antecedendo qualquer ação armada de maiores dimensões que poderia resultar num banho de sangue, ordenar a tomada das principais estações de radiodifusão e de televisão.

Silenciou, assim, o regime e, simultaneamente, assegurou, numa altura em que ainda não se falava de telemóveis, um veículo eficaz e simples de comunicação com os revolucionários espalhados por todo o País. Isto, sem esquecer a excecional relevância da ativação de escutas das conversas dos governantes entre si por se haver assegurado, previamente, a colaboração da Escola Prática de Transmissões*).

Entretanto, sob o comando do Capitão Salgueiro Maia*), avançava sobre Lisboa uma gigantesca coluna armada até aos dentes que, num primeiro momento, não passava, afinal, de uma genial manobra de diversão destinada a desviar as atenções das outras e primordiais operações.

Otelo Saraiva de Carvalho
Sem prejuízo de o 25 de Abril, mais tarde ou mais cedo, sempre acabar por acontecer, no planeamento e, talvez sobretudo, no improviso - inevitável em qualquer operacionalização -, dificilmente alguém com menos chama, menos vivacidade, menos carisma teria sido tão eficaz como Saraiva de Carvalho, a quem se deve boa parte do retumbante e tanto quanto possível pacífico sucesso da Revolução - goste-se ou não do Major e da Revolução.

- x -

Já a atuação subsequente, não só pelo que fez, mas pelo que disse sem hesitação ou pudor, dúvidas não pode deixar quanto à certeza de que, quanto na Primavera de 74 fez de bom, lhe granjeou, para toda a vida e além dela, um estatuto que as qualidades pessoais manifestamente não mereciam e com o qual nunca soube lidar; e não deixa, também, dúvidas de que, na base de quanto fez, jaziam projetos e intenções dos quais custa até falar.

A evolução pela via democrática do "País que em 25 de Abril viu abertas com estrondo Pá as portas de uma esperança Pá enorme Pá no Futuro" acabaria por desiludir, profundamente, o Herói a quem arrepiava a "democracia representativa ocidental burguesa" e não escondia que “não viemos aqui para assaltar o poder. Mas queremos transformar o poder” - que, à data, já era democrático, algo que, na visão distorcida do Major, seria, sempre, de condenar.

Quaisquer incertezas que subsistissem relativamente ao que entendia por liberdade e democracia, ficaram definitiva e inequivocamente esclarecidas na sua frase “custa-me a admitir que, estando nós a fazer uma revolução decididamente no campo da esquerda, possamos admitir vozes de direita. Pessoalmente, isso repugna-me, mas, democraticamente, no âmbito da democracia ocidental burguesa, tenho de as acatar e respeitar*).

De outra forma dito: uma democracia em que todos votassem naquilo a que Saraiva de Carvalho chamava esquerda revolucionária - na qual, graças ao estatuto de heroico libertador, as suas modestas qualidades intelectuais de alguma forma pudessem brilhar - estava muito bem.

Mas, nada mais.

- x -

Apesar de toda a sua propensão para o mediatismo, demonstrou ignorar que, propositado, necessário ou acidental, o bem que se faz gera, em quem o pratica, inilidível responsabilidade pela perpétua dignificação da memória dos feitos junto de quem deles se apercebeu, pelo que nenhum ídolo, seja de quem for, tem o direito de boicotar a própria obra; e, em matérias, tão importantes e sensíveis como a Liberdade e a Democracia, não pode a tal ponto desiludir, quase renegar.

Dever Histórico de Agradecer
O dever histórico de agradecer ao competente Oficial pelo que fez para derrubar a ditadura rápida e implacavelmente cedeu perante todo o aberrante que, nascido deste enviesado conceito de democracia, se lhe haveria de seguir.

O que de bom possa ter feito, começou em Março de 74, e logo em Abril seguinte terminou.

O que depois disse e fez demonstra que, desde o início, agiu com propósitos de tal maneira inconfessáveis que obnubilam por completo o mérito residual pela organização e operacionalização do golpe militar, pelo qual muito mais devemos à abnegação e coragem daqueles que, ao longo do tempo, sempre se souberam comportar, e o 25 de Abril souberam dignificar.

 

O Homem da Revolução

Como qualquer um pode ler nas entrelinhas da imprensa de agora e da de há mais de quarenta anos, a personalidade do Extinto era tudo menos complexa, antes de uma simplicidade atroz: tratava-se de um indivíduo intelectualmente pouco dotado, sanguíneo de carácter, sanguinário de temperamento e de educação e instrução assaz elementares no que não dissesse respeito ao combate e à ação militar.

O facto de ter sido um homem dito de esquerda radical que, apesar disso, dizem as más-línguas ter trabalhado para a Comissão de Censura - entre outras incoerências de percurso - não pressupõe qualquer complexidade, antes transmitindo uma ideia de confusão, de indecisão ou, mais simplesmente, de uma absoluta ausência de ideais além de, ora este, ora aquele que aqui ou ali ia apanhar.

De raciocínio e discurso mais que elementares, nele não sobressaía uma espinha dorsal, pessoal ou política: mais parecia um daqueles ditadores pantomineiros que se apoiam no que e em quem lhe vier à mão, só não tendo levado a bom porto os seus desgraçados intentos por ter sido travado a tempo por outros militares, pelas forças de segurança, pelos tribunais e, antes disso, pela clareza do voto popular.

Como ideal, Saraiva de Carvalho tinha, notoriamente, uma narcísica ânsia de protagonismo, anos depois bem patente no símbolo da Força de Unidade Popular (FUP)*)- e que, como caso de estudo, importaria, provavelmente, à investigação de alguma mais ou menos interessante patologia -, bem como uma sede de poder pessoal impossível de cercear.

Presidência da República
Não pode, é verdade, dizer-se que esta postura difira substancialmente da de certos governantes e outros políticos também sem conteúdo ideológico bem definido que em certos regimes ditos democráticos operam e não passam, afinal, de operacionais da luta pela própria imagem e pela saúde do respetivo património, em terras onde a corrupção continua, com o freio nos dentes, a cavalgar. Deve, no entanto, notar-se que, contrariamente a estes, Otelo Saraiva de Carvalho jamais quis assumir a liderança do Estado num quadro democrático, quando teve oportunidade para tal: apenas viria a candidatar-se à presidência da República, cereja no topo do bolo da imortalidade que sempre almejou ganhar.

Estaria, apesar de tudo, ciente de que, apesar da indiscutível competência no plano militar, não detinha qualificações mínimas para governar e que, aceite o poder e exercido este de forma incompetente, se iria a sua bem querida imagem, inexoravelmente, degradar?

- x -

Um patente e avassalador complexo de inferioridade relativamente àqueles a quem, num plano que não fosse o das armas, o Major jamais poderia surgir como igual estava, possivelmente, na origem do ódio mortal pelos opositores sentido por alguém que sempre achou que “se tivesse cultura livresca, podia ter sido o Fidel Castro da Europa”.

Bem, se não tinha, tivesse tratado disso, já que de tal nada nem ninguém o impediu, além da vontade própria de se dedicar a outras artes que conhecemos. Graças a estas, pode alimentar o desgraçado sonho da tomada do poder pela força e posterior instauração de um regime que nada tinha de democrático, antes passando por um Projeto Global dominado por um partido político radical e apoiado por um exército revolucionário que não olharia a meios para garantir a implementação das suas políticas governamentais, “visando a destruição, pelas armas, do regime democrático português*).

Ora, poderá o propósito de eliminação pura e simples de quem não se enquadrasse na tal definição muito própria de democracia - fuzilar os contrarrevolucionários no Campo Pequeno*), quem sabe se depois de os tourear - deixar de nos lembrar, salvas as devidas distâncias e proporções, um alucinado que, décadas antes e apoiado por fidelíssimas, hipnotizadas e poderosas forças armadas e de segurança implementou, não um projeto global, mas uma Solução Final igualmente pensada para a eliminação dos que, na sua doentia opinião, não eram dignos de respirar o mesmo ar que ele?

Será caso para se pensar...

 

O Lado Mais Negro
O Lado Mais Negro

Para vergonha imensa de todos nós, o Português que, com especial preponderância, organizou e operacionalizou o 25 de Abril de 1974 era adepto do terrorismo ideológico, e não tinha qualquer vergonha de considerar fascistas as democracias de tipo ocidental.

Provou-se que cometeu e mandou cometer crimes - não apenas "excessos" -, e o facto de a condenação inicial ter sido revertida por decisão do Tribunal Constitucional*), amnistia ou indulto e ter sido dispensado da pena ainda não cumprida em nada diminui a forte e dolosa culpa ou contamina a decisão relativa à prova dos factos.

Assim, dúvidas não restam de que o posterior sucesso do Major Saraiva de Carvalho na agregação de vontades de uns quantos visionários radicais como ele - que culminaria na formação das Forças Populares 25 de Abril (FP-25) de má memória - apenas serviu para espalhar, nos espíritos da população, o medo; nos corpos a mesma morte que, de forma bem mais pacífica, agora o veio chamar.

Pela força, procurou implementar um reinado de autêntico terror que, sucesso tivesse tido, não hesitaria, como a tentativa não hesitou, em recorrer à banalização do homicídio com dolo direto puro e simples*); à detonação de engenhos explosivos em representações diplomáticas e instalações militares, com o intuito de outras vidas tirar; ao roubo à mão armada a inúmeros bancos para se financiar, e a instalações do Estado para de se apropriar de impressos que permitissem às FP-25 diversos documentos falsificar; à emissão de mandados de captura em branco para mais facilmente ser perseguido quem ao caminho se lhe viesse atravessar.

Não me lembro, em contrapartida, de ter ouvido falar de sequestros: as FP-25 não faziam prisioneiros. A ordem era, sempre, para matar.

Uma antiga piada de gosto duvidoso dizia que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço, o que não era, evidentemente, verdade; mas era verdade que, sem piedade e pelas mãos das FP-25, Otelo mandava matar-lhes os pais*).

- x -

Quem não acreditar neste rosário de crimes dados como provados, que ataque específica, lúcida e fundamentadamente a prova produzida e validada em juízo, ou para sempre há de se calar: bramar à toa contra uma sentença apenas causa alarde e ofende o sistema judiciário que garante a segurança e a paz social, inclusivamente a esses mesmos que o atacam apenas quando à defesa da memória dos seus pouco merecedores heróis isso convém.

Chocam-se, e ajudam à festa do vexame público, quando agora algum outro assassino é condenado - especialmente se tiver vitimado alguém das relações deles. Nesses casos, não se preocupam em criticar as decisões judiciais. Já no caso do Major Saraiva de Carvalho, indignam-se quando se belisca a imerecida e distorcida imagem que o próprio a tantos trabalhos se deu para criar e fazer admirar.

FP-25 Forças Populares 25 de Abril
Chamar romântico e idealista a quem, sem remorso, por um difuso ideal manda matar, apenas fará sentido aos olhos dos que consideram o caminho do roubo e do assassinato como uma mera escolha infeliz, e entendem que algo tão inqualificável como as FP-25 faz parte da inenarrável utopia com que gostam de sonhar.

Diz-se, com verdade, que o 25 de Abril é historicamente mais importante do que as FP-25, que lhe são marginais. Mas Saraiva de Carvalho foi protagonista também nessa Frente terrorista que tentou subverter os ideais da Revolução dos Cravos; e, ao contrário da maior parte dos outros heróis de Abril, fez parte da gente que não soube nem sabe estar.

Anedotário Politicamente Correto

De mortuis nihil nisi bonum *) está muito bem, mas não apaga a memória individual ou coletiva, e apenas é de seguir desde que algo de fundamentalmente, de estruturalmente bom haja a dizer de quem morreu, e não apenas de um ou outro feito mais ou menos sensacional se possa falar.

Não sendo esse, propriamente, aqui o caso, o chavão da personalidade complexa foi a forma elegante que lá encontraram políticos proeminentes e comentadores já não muito incipientes para definir o popular Defunto, assim procurando fugir a acusações de maledicência comezinha e esquivando-se a, sobre ele, ter de dizer algumas coisas necessariamente embaraçosas tratando-se de quem se trata, fossem elas “boas” ou “más”.

Não passam, pois, no quadro aqui descrito, de desengraçadas anedotas as que saem da boca ou da pena de quem pretende estarmos perante de um "enfant térrible" com uma "história empolgante e apaixonante para contar", e uma "personalidade complexa" e dominada por um intrigante "lado lunar".

Bem pelo contrário, das públicas palavras proferidas após a morte - e dos não menos públicos e eloquentes quase silêncios - por quem a seu lado lutou ou nele acreditou, apenas pode concluir-se que o agora Tenente-Coronel não passou de um alucinado sem qualquer vontade de liberdade que não fosse a dele, sem sentido de responsabilidade democrática, sem qualquer competência além da inerente à conceção e operacionalização da preferencialmente violenta ação – sem prejuízo, naturalmente, do derramamento de sangue que, em 25 de Abril, a sua notável capacidade de organização permitiu evitar.

Para muitos, um grande incómodo político enquanto viveu. O mesmo incómodo agora, que morreu sem que alguém que queira ficar bem na fotografia dele aceite dizer alguma coisa: mal, não pode, por causa do dever histórico de agradecer o bem, ainda que acidental; bem, também não, já que dispensar encómios a quem demonstrou ser o que a História sabe que era acarreta um custo político que se não pode desconsiderar.

Verdadeira Liberdade
Saraiva de Carvalho era corajoso, sem dúvida; temerário, até. Foi o comandante da operação, o responsável máximo, o que mais arriscou.

Mas arriscou por ele mesmo, por aquela que, do que mais tarde fez e das palavras que proferiu, emerge como a sua verdadeira e inconfessável causa. Outros, muitos outros, arriscariam tudo lutando por todos nós, pela verdadeira Liberdade. Como entender que um seja mais falado e louvado do que os outros?

Luto nacional? Discorde-se do Governo no que se quiser, mas aqui não é possível deixar de acompanhar.

No entanto, lá conseguiu a sua homenagem: embora em Julho, não em Abril, morreu a 25, distinção que lhe fez, quem sabe, um Além capaz de descortinar para lá dos atos cujas motivações perversas e distorcidas as nossas limitadas e imperfeitas mentes não sabem aceitar; e os nossos corações sangram por não poder negar.

 

Cuidar do Futuro

Não se ouve muito a gente mais nova falar de Otelo Saraiva de Carvalho, mas é pena: como os jovens não viveram as emoções de Abril, estão, talvez, mais habilitados a julgar com objetividade a pureza, a crueza dos factos, sem preocupação com a memória e com o politicamente correto, e sem receio de derrubar de um esboroado pedestal de barro quem há muito lá não deveria estar.

Gratidão aos corajosos Capitães por tudo aquilo que o 25 de Abril significou e significa para cada um de nós, todos a sentimos; em alguma medida, mesmo quem a data faz questão de, estupidamente, continuar a invetivar.

Mas a data tem suficientes heróis, verdadeiros heróis, para que, presa da emoção excessiva e da memória curta, a sua lembrança fique excessivamente dependente de um protagonista que, além da atuação naquele incomparável e decisivo mês de Abril, pouco deixou para louvar.

Nada há de mais natural do que cada um de nós povoar o imaginário com os seus ídolos, e quase os endeusar na exata medida em que a nossa endémica insegurança o recomendar: sentimo-nos mais seguros, sentimos que fazemos parte, que somos importantes ao projetar neles as qualidades que gostaríamos de ter.

Ficamos felizes quando os tais ídolos nos entram em casa pela televisão, quando dizem bem deles, quando têm sucessos, quando marcam um golo. Pelo contrário, ai de que diga mal deles e, se algum não defende um remate ou, pior, a equipa perde, pobres de nós e, sobretudo, daqueles que levam com os despejos mais ou menos explosivos das nossas emoções.

Cromos da Bola
Aos cromos da bola tudo é permitido; e, afinal, pouco importa, já que nos seus pés apenas uma bola está em jogo: nada que a Humanidade possa, verdadeiramente, afetar. Mas a apreciação da pessoa e o julgamento dos atos do então Major Saraiva de Carvalho não pode fazer-se com a ligeireza e o fanatismo inconsequente de quem comenta um desafio de futebol: louvar, apaixonadamente esta sem dúvida importante pessoa é defender e enaltecer os seus feitos, todos os seus feitos, e subscrever, não apenas todos estes, mas a forma de estar na sociedade e na vida a que, com boa parte deles, nos quis condenar.

O que gostaríamos de ver amanhã em Portugal? Será, mesmo, o jugo terrorista de uma ditadura popular? Será a imagem do agora Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho o ideal de Cidadão que  aos nossos jovens queremos passar?

Se não é, vamos lá arrefecer um pouco o ânimo e selecionar com alguma objetividade e critério aqueles que queremos e devemos elogiar…

 

Requiescat

Desenganem-se os que ainda pensam que há dias morreu o alguém de "pouca cabeça e muito coração" de que o recente anúncio de cerveja nos vem falar: quem, há dias, morreu foi um ídolo de pés de barro, o implacável comandante do COPCON, o rosto da FUP, o homicida por detrás das FP-25, o autor e promotor da aberração que, a exemplo de outros ditadores, queria impor a todos nós: o muito seu Projeto Global de imposição, pela força dos explosivos e das armas e ordenando a aniquilação dos adversários, daquilo a que chamava verdadeira democracia, mas não passava de um reinado de terror.

A América Latina teve Guevara. Por cá, e à nossa maneira incuravelmente tuga, tivemos um aluado que nem lhe chegava aos calcanhares e tudo fez para aniquilar, subvertendo-o, o regime democrático que dizia defender e que, por ser instrumental na senda de um objetivo pessoal, com inegável coragem e dedicação num curto e muito feliz momento acabaria por ajudar a implantar.

No dia 25 de Julho de 2021 morreu um duro e rude, mas muito competente,   operacional e estratega, a quem, em vida, a maior parte dos políticos viraria a cara, se pudesse, e agora, morto, reza para que dele lhe não venham falar.

Para os radicais de esquerda que se não podem dar ao luxo de deixar de o idolatrar e para os verdadeiros e valorosos Capitães de Abril, de nobres propósitos a que se mantiveram fiéis, e que souberam, cada um, ocupar na vida posterior o respetivo lugar, o Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho foi, será sempre, o espinho que nem a morte soube arrancar.

O quam cito transit gloria mundi!


Outros artigos polémicos sobre
POLÍTICA
estão disponíveis no correspondente separador no topo desta página.
NÃO PERCA!

quarta-feira, 28 de julho de 2021


Agatha Christie

Agatha Christie
"Atravessamos a vida como um comboio,
precipitando-nos na noite, rumo a um destino desconhecido"

"We go through life like a train
rushing through the darkness to an unknown destination"

Agatha Christie *)       
(The Red Signal*)               



Se os temas da
VIDA
são um mistério para si, leia os artigos indexados no correspondente separador no topo desta página,
Serão um ponto de partida para refletir...

segunda-feira, 26 de julho de 2021


As Nove Sinfonias de Beethoven, por René Leibowitz

Estátua de Beethoven a preto e branco
Porventura a mais conseguida gravação integral das Nove Sinfonias de Beethoven*), dirigida pelo maestro René Leibowitz*) para a etiqueta DECCA*), em 1961, procurando seguir, rigorosamente, as marcações de tempo originais do Compositor.

Merece especial destaque o segundo andamento da "Sétima", sabendo embora que tal distinção é injusta para com tudo o mais que, durante cinco horas, deleita o ouvido do mais empedernido rapper.


sábado, 24 de julho de 2021


Coisas que Se Nos Colam à Pele

As viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente
e do Primeiro-Ministro andam para aí
a abrir que nem loucas nas autoestradas,
descarregando alguns dos mui ilustres transportados, a culpa para cima de motoristas que,
agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao
patrão agradar


    1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados
    2. “Não Me Comprometa
    3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz
    4. A Cultura da Indiferença

  

Toxicodependência Droga
1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente Condenados

Quando um bem conhecido norte-americano escreveu que “uma vez adquirido um hábito, ninguém deve lançá-lo pela janela, mas ampará-lo na descida, degrau a degrau *)” referia-se, por certo, àquelas coisas a que o nosso cérebro ou o nosso organismo se habituam a consumir sem qualquer benefício conhecido para eles.

Acontece com o álcool, com o tabaco e com uma infinidade de outros mais ou menos nocivos estupefacientes, causando aos ditos cérebro e organismo danos por vezes irreparáveis em proveito exclusivo de quantos fazem transbordar as respetivas bolsas graças à exploração do trabalho mal pago de largos milhares de desgraçados que dependem, para sobreviver, dos proventos de um trabalho quase escravo a que se sujeitam sabendo, embora, quão nocivo o resultado será para o chamado consumidor final daquilo que colhem, destilam ou refinam para sobreviver.

Não se referia, seguramente, o tal norte-americano a hábitos socialmente bem mais perniciosos, daqueles que não apenas prejudicam quem os adquire e uma ou outra vítima inocente do fumo do tabaco, de uma criminosa agressão que, por muito grave e condenável, nem por isso deixa de ser pontual ou, pelo menos, limitada no alvo e nos eventuais lesados por arrastamento ou proximidade. Isto, sabendo, como bem se sabe, que a proliferação de certos comportamentos ocasionais agressivos e de consequências inenarráveis, acabam por se tornar chagas sociais que cumpre e urge erradicar, sob pena de acabar completamente subvertida a ordem social.

Todos estes hábitos que são causa direta ou indireta de tão nefastos efeitos não deixam de gerar na comunidade a descontraída sensação – ou, pelo menos, a ilusão – de que sempre haverá como os desencorajar, como os controlar ou como os seus efeitos mitigar a ponto de o coletivo se não sentir ameaçado a menos que conheça um caso próximo ou lhe tenha sofrido os efeitos na pele.

Fora isso, não apenas são tais vícios tolerados, como até há quem tudo faça para tornar alguns deles socialmente naturais ou, no mínimo, considerados como devidos a doenças ditas comportamentais - embora nascidas de comportamentos censuráveis e evitáveis desde a génese -, por este processo meramente cosmético passando a ter a dignidade de patologias e tornando-se, pelo facto, os seus ditos portadores a merecer epítetos próprios de quem padece de verdadeiras e inevitáveis enfermidades, genéticas ou contraídas.

Passou, desta forma, a louvar-se o que é objetivamente condenável; e a promover-se, também.

 

2. “Não Me Comprometa

PIDE/DGS Existe, no entanto, algo bem mais grave que não tem raízes nos genes, ou na vontade de experimentar sentida por um adolescente desacompanhado, num inultrapassável desgosto de amor, no desespero de alguém que pensa que apenas lhe resta “dar de beber à dor”.

São coisas que se nos colam à pele, que estão culturalmente enraizadas e disseminadas por toda uma população habituada, durante décadas a fio, a ser governada e gerida por incompetentes e corruptos caciques numa ditadura plenamente assumida pelos seus protagonistas num pensamento lapidar: “Aqueles que concordarem com o programa da Ditadura praticam ato patriótico colaborando; os que não concordam são livres de proclamar a sua discordância mas, no que respeita a atuação política efetiva, evitaremos que nos incomodem demasiadamente”.

Colam-se à pele dessa população que, banida a ditadura, se foi, também há décadas a fio, habituando a ser governada e gerida, entre outros, por alguns incompetentes e corruptos caciques que só agora, graças à coragem e ousadia de uns quantos e a um agora mais apurado sentido de oportunidade política de outros, vão sendo desmascarados e, até, aqui e ali, efetivamente, confinados atrás de grades que nada têm a ver com as de uma pandemia.

A dependência do caciquismo labrego e bacoco dos tempos da famigerada PIDE/DGS continua, não obstante, a correr pelos caminhos portugueses, a correr da pena dos portugueses, a correr nas artérias e veias dos portugueses.

A miúfa endémica - eufemisticamente chamada temor ou respeito - por uma hierarquia superior que jamais o soube ser, continua a condicionar, a ditar a forma como os portugueses pensam, decidem, agem ou omitem, tentam alijar responsabilidades na crença que esperam não seja vã de que nada lhes aconteça e ninguém, pelo seu silêncio, os arrelie.

Um conhecido programa de humor de um País irmão incluía uma personagem que passava o tempo a dizer “Eu não fiz nada, meu Amigo, não sei nada, se disser que eu fiz eu nego, ene, é, gê, ô, n-e-g-oooo. Não me comprometa! *)”. Retratava esta convicção de que, não agindo, não nos manifestando, não tomando partido, não denunciando condutas que a lei proíbe, podemos levar, tranquilos, a nossa vidinha e há-dem continuar a tratar de nós e a zelar por nós aqueles que são eleitos e pagos para isso; e que nada fazer não faz mal, porque quem se tramou foi sempre quem fez alguma coisa.

Como, sabe-se lá porquê, nesta nossa terrinha o indispensável Direito não é ensinado nos níveis escolares mais básicos nem nos assim-assim, a maior parte das gentes continua convencida de que o que dá cadeia é fazer o que não se pode, não lhes passando pela cabeça que quem não faz o que pode por quem se encontra em estado de necessidade é igualmente punível ou, na linguagem que melhor entendem, pode ir dentro.

 

SEF Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
3. O Hábito que o Português Partilha com a Avestruz

Um emigrante ucraniano encontrou a morte em circunstâncias nada humilhantes para ele, mas que o são profundamente para cada um de nós.

Havia indícios quase insofismáveis de que, naquele dia no Aeroporto Humberto Delgado, vários cidadãos alistados nas fileiras do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou ao serviço de entidades externas por ele contratadas tinham estado em situação de ter intervindo ou, pelo menos, de ter pedido ajuda para aquilo que, pelos gritos do infeliz, era impossível não desconfiar que estaria a acontecer.

Pois, apesar disso e vá lá saber-se porquê – talvez por estarem os seus funcionários ainda imbuídos do tal temor do caciquismo que inquina quer ditaduras, quer supostas democracias como a nossa -, optou o Ministério Público por não acusar esses portugueses pelo menos por omissão de auxílio, crime punível com pena de prisão até um ano nos termos do n.º 1 do art.200º do Código Penal Português, já para não falar de eventuais cumplicidades ou conluios, passíveis de bem mais pesada sanção.

Teve, assim, de ser o tribunal que, em primeira instância, julgou e condenou os agressores diretos e por ele condenados de deixar claro que "há um conjunto de pessoas cuja atuação não fica isenta de reparos *)" e determinado a extração das correspondentes certidões e subsequente remessa ao Ministério Público para que contra elas os cabíveis inquéritos-crime instaurasse.

Vem, então, agora a imprensa anunciar, com fanfarra e bandeira, que “o Ministério Público (MP) está a dar passos no sentido de vir a sentar no banco dos réus mais pessoas pela morte de Ihor Homenyuk no Aeroporto de Lisboa *)”, como se o Órgão Judiciário o houvesse feito espontaneamente, adequadamente, como lhe competia, sem esperar, do tribunal, o implícito e nada elogioso reparo.

Que razões estarão na base daquilo que poderá não ter passado de uma tentativa de resolver rapidamente e com o menor prejuízo para um certo e já desacreditado governante a questão?

 

4. A Cultura da Indiferença

Ihor Homenyuk Se o problema for encarado de um ponto de vista meramente casuístico, o Tribunal fez, do ponto de vista técnico-jurídico, o que lhe competia fazer, ao determinar a extração de certidões.

Poderemos, porém, acalentar alguma esperança de que episódios pontuais e isolados como este contribuam, ainda que só um pouco, para uma mudança de mentalidades cada vez mais indispensável num país desgovernado por desgovernados autoproclamados governantes que, magistralmente aproveitando a velhinha cultura social herdada da ditadura, continuam a permitir que coisas com esta aconteçam, que a cultura da indiferença se sobreponha, quase sempre, à cultura humanista pela qual que o Partido Socialista diz pugnar e que, se a memória me não falha, noutros tempos, era apanágio de quantos nele escolhiam militar?

Que chegou ao Partido, ao Governo, ao Parlamento a indiferença pelas pessoas, por tudo quanto não seja ganhar a próxima eleição já todos sabemos. Disso tivemos, uma vez mais, a confirmação quando, num curto espaço de tempo, soubemos que as viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do Ambiente e do Primeiro-Ministro andam para aí a abrir que nem loucas nas autoestradas – só? – em situações que a lei está longe de contemplar, descarregando alguns dos mui ilustres transportados, quando apertados pelos jornalistas, a culpa para cima de motoristas que, agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao patrão agradar, para manter o lugar: tal como alguns inspetores e seguranças do SEF ficaram calados ao ouvir o grito de morte de Ihor Homenyuk para aos superiores não desagradar, para o emprego não arriscar.

Quando a impunidade e a indiferença servem que nem uma luva a quem governa e delas não parece ter capacidade ou vontade para se livrar, quanto à tal indispensável e urgente mudança de mentalidades, o que podemos, efetivamente, esperar?

Mas como estas penas se ouvem tantas vezes e nunca se veem,
são tão mal cridas, como nós estamos experimentando

* *

Tudo isto radica, naturalmente, na clamorosa falta de sentido de estado de que enferma boa parte da chamada classe política portuguesa.

(continua aqui)