"Se a educação é a matéria-prima da democracia, o voto é a estrutura, o
que lhe dá forma. Quando a maior parte dos cidadãos com capacidade
eleitoral repudia o direito ao voto, deixamos de estar numa democracia,
deixamos de ser, efetivamente, governados pela vontade popular"
"Não ir votar, podendo fazê-lo, é um claro sinal, não apenas de egoísmo,
mas de estupidez, de boçalidade, de iliteracia. Não importa
quantos canudos em casa se tenha, nem quantas loas se cante ao
sublime ideal da democracia"
No momento em que rabisco estas linhas que vêm na sequência do texto do
passado Sábado
*), reza a Wikipedia que "
Democracia *) é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam
igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta,
no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação
através do sufrágio universal".
Goste-se ou não da Wikipedia, olhemos, ou não, para ela como um referencial
com algum rigor e a possível validação, será difícil negar que a definição é
admirável em toda a sua simplicidade, clareza e precisão.
Aplicada ao caso português, onde vigora uma democracia representativa,
significa ela que o regime, o Estado, as pessoas, nós, todos esperam que
decidamos, através do voto popular universal, a quem iremos conferir mandato
para tão importantes funções.
Voto universal, mas não de todos. Dantes, porque nem todos tinham o direito de
votar, agora, porque apenas o exercem aqueles que se levantam da poltrona para
o fazer; e são cada vez menos, como insistem em fazer-nos ver os números da
abstenção. A COVID não é desculpa, a partir do momento em que quase todos
fazem a sua vida normal, e tanta gente por aí anda em grandes eventos
desportivos e outros de muita animação.
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Embora as circunstâncias e a legislação de então fossem outras, comparando
os
16,7% da taxa de abstenção nas eleições de 1976 com os 51,4% das mais
recentes, em 2019*), poucas dúvidas podem restar quanto à atual falta de empenhamento da maior
parte dos possíveis votantes em cumprir o dever cívico que sobre eles impende.
Paradoxalmente, nada impede quem não vota de não parar de reclamar, depois. É
vê-los, por tudo e por nada, lastimar-se de violações de direitos, liberdades
e garantias que, num regime político não democrático, muito dificilmente
veriam reconhecidos, mas que nem mereceram o imenso incómodo de uma
deslocação a uma assembleia de voto. Mesmo agora, que nem é época de passeatas
ou de mergulhos no mar.
Nada disto é novo e, se nada for feito - mas, o quê?... -, chegaremos a um
ponto em que não haverá retrocesso, já que a situação não parará de se
agravar.
Mesmo antes de chegar esse dia, não custará ao mais desatento ou
intelectualmente menos provido entender que, com tanta gente a demitir-se
daquilo que, por qualquer concidadão, lhe é legitimamente exigível para que o
sistema funcione - o tal sistema de que todos se queixam... -, os resultados
eleitorais se tornam cada vez mais vazios de conteúdo: cada vez mais não
correspondem à efetiva vontade coletiva da população, sendo a cada dia maior o
risco, ou a certeza já, de que, se a taxa de abstenção voltasse aos tais
16,7%, a composição da Assembleia da República seria bem diferente, e até o
governo poderia, à direita ou à esquerda, ficar em diferentes mãos.
Se a educação é a matéria-prima da democracia, o voto é a estrutura, o que
lhe dá forma. Quando a maior parte dos cidadãos com capacidade eleitoral
repudia o direito ao voto, deixamos de estar numa democracia, deixamos de
ser, efetivamente, governados pela vontade popular.
Cada vez mais, os chamados eleitores, não o são, não votam: preferem
ficar em casa a ver, na televisão, o que resultou do voto dos que, por
eles, assumiram a responsabilidade por uma escolha que os primeiros olham,
afinal, com a mesma importância, interesse e dignidade que a votação de um
festival da canção ou evento similar.
Esquecem-se de que não ir votar, podendo fazê-lo, é um claro sinal, não
apenas de egoísmo, mas de estupidez, de boçalidade, de iliteracia. Não
importa quantos canudos em casa se tenha, nem quantas loas se cante
ao sublime ideal da democracia.
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Assentemos, pois, em que a maior parte dos cidadãos portugueses não gosta da
democracia; ou, pelo menos, não respeita a democracia. De que gosta, então?
O Partido Chega! sabe-o bem, como bem o sabe o seu Chefe Máximo. Os
portugueses gostam, de facto, é daquilo que os faz transferir a escolha
diretamente de decadentes e não democráticos partidos de extrema-esquerda ou de partidos maiores e ainda ditos democráticos mas minados por uma
imparável tendência para a corrupção -, para incipientes e não democráticos
partidos de extrema-direita. Assim, de repente, de uma vez só,
como há dois anos aconteceu*) e se prepara para, ainda com maior e mais preocupante expressão, voltar a
acontecer.
Não será despropositado lembrar as sábias palavras de quem disse que "um governo seria eterno com a condição, de todos os dias, oferecer ao povo
um fogo de artifício, e à burguesia um processo escandaloso".
Qualquer político português que prefira esta receita às tradicionais
longas e sofisticadas parlengas que ninguém ouve ficará cada vez mais
próximo de ganhar uma eleição.
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Mas há mais quem saiba do que gostam os eleitores portugueses: o presidente do
partido em que o chefe do Chega! anteriormente militou.
Nada tendo, decididamente, a ver com qualquer coisa que se pareça com a
extrema-direita, o Presidente do PSD há muito aprendeu que aquilo que, noutras
terras, se exprime pelo equivalente à palavra portuguesa
demagogia corresponde ao muito nosso conceito de
democracia. Essa democracia desiludida, trôpega, quase inerte, que se
arrasta sob a alçada de políticos de missão indefinida que procuram, a todo o
custo, manter-se alcandorados num poder que de competência e de autoridade
pouco ou nada já tem.
Bem o sabendo, optou o dito Presidente por um estilo de linguagem
popularucho, por fazer comentários e observações de cariz quase
populista com uma ou outra gafe à mistura; por apresentar, ainda ontem, o
programa eleitoral falando em estilo informal, espontaneamente, apenas com
recurso pontual a tópicos; por recorrer à insinuação, por procurar estimular
de qualquer forma as mentes atrofiadas dos tugas mais ávidos de
escândalos e de fogos de artifício. É neles, e não nos eruditos e sofisticados
-ólogos que, pouco sabendo do que vale a pena saber e nada sabendo
do como chegar às massas, ganham rios de dinheiro para mutuamente se copiarem,
comentando tudo e mais alguma coisa baseados, unicamente, na sua supostamente
erudita mas raramente fundamentada opinião.
"The history of the World is the history of the triumph of the hartless over
the mindless" e, neste cantinho da Europa, quem quiser, efetivamente, subir nas urnas há
de cuidar de comprazer as hordas de medíocres que se deleitam com a desgraça
dos outros. Há de tratar de cativar, sobretudo, essa gentinha inconsciente,
oca, falha de ideais, de vontade, de interesse até pela identidade de quem
decide o seu destino: essa gente do diz-que-disse e dos cochichos, que passa o
tempo a criar formas de sujar o mais possível a roupa que o vizinho acabou de
pôr a secar.
A educação e o ensino ministram-se em sede própria, e não em campanha
eleitoral. Não é, assim, eficaz nem política ou economicamente razoável
insistir em fazer uma campanha elaborada, sofisticada; deve, antes, ser vazia
e barulhenta, vocacionada para uma mole humana que outra coisa não sabe
apreender ou apreciar.
Isto, o Presidente do Chega! não tardou a entender e, dessa forma, lá vai,
apesar da indisfarçável cacofonia e dos inconfessáveis ideais que as suas
vibrantes palavras escondem, conseguindo algum ascendente num ou outro debate
eleitoral.
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A propósito da insinuação há uma dúzia de dias feita pelo Presidente do PSD,
de que a captura de
João Rendeiro*) na África do Sul estaria, de alguma forma relacionada com a proximidade do
ato eleitoral que se avizinha e, implicitamente, com a necessidade de o
Governo apresentar resultados que facilitem a reeleição, contra o dito
Presidente muita gente se insurgiu; e com razão, já que a insinuação não tinha
em que, racionalmente, se sustentar. Mesmo que tivesse, seria praticamente
impossível de provar - apesar de, se a juntarmos ao mais recente e tão
oportuno sucesso na aprovação do plano de recuperação da eterna
TAP, alguns maldizentes poderem começar por aí a sussurrar...
Houve, no entanto, quem chegasse ao ponto de vaticinar que, com essa atitude,
teria o Presidente condenado o PSD à derrota no ato eleitoral.
Não sei como: pois não são, precisamente, as insinuações torpes e escandalosas
que fazem viver, que fazem vibrar as hostes eleitorais portuguesas? Não é a
trampolinice, a acrobacia fácil, a desfaçatez além do admissível que granjeia
simpatias? Que as atrai muito mais facilmente do que belas promessas que todos
sabem falsas, pouco sinceras e muito provavelmente inexequíveis?
Quem acredita, ainda em programas políticos jamais cumpridos, em promessas vãs
papagueadas ao vento, em palavras de ordem sem sentido, desordenadas,
desconchavadas? Pois não são os sound bytes, as bocas muito
mais giras, muito mais engraçadas? O tipo até tem piada, aquele é que
sabe! Chegou para eles! Este é que vai lá! Vamos votar nele.
Bora lá!
Acaso não é o folclore político que enche os noticiários, as páginas dos
jornais? Quantas ideias dignas desse nome fazem ir às urnas aquela massa
caótica e inerte de espetadores passivos e maldicentes apenas ansiosos por ler
ou ouvir destratar ou maldizer?
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Não, o PSD não perdeu, naquele dia, as eleições. As pouco
elegantes charlas do seu dirigente máximo, o seu quiçá enganador
à-vontade, o seu premeditado estilo popularucho, alternando com uma ou
outra pose mais formal, são a receita ideal - para não dizer a única exequível
- para garantir uma vitória eleitoral nesta terra de eleitores ignorantes,
sós, desiludidos, tristes e macambúzios que dão tudo por uma por uma vitória,
mesmo pírrica, do clube, do partido, seja lá do que for. Até, por uma piada
ordinária, sem graça, partilhada numa rede social qualquer, que, por uns
segundos, pelo menos, os faça sorrir.
Se o Partido não ganhar, será por pouco. Talvez, até, por muito pouco. Os
votos que perder não serão, seguramente, por inabilidade política, já que a
habilidade dos outros, mesmo a do mais habilidoso, é isto que se vê.
Serão, quando muito, esses votos perdidos os daquela meia dúzia que ainda
reage mal à demagogia.
Serão, enfim, os dos cada vez menos portugueses que com a vacuidade se
arrepiam, e que verdadeiramente, respeitam e honram a democracia que todos
dizem defender.
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