quinta-feira, 25 de agosto de 2022


O Rio de Nós

Vemos os outros como quem olha o rio.

Contemplamos, letárgicos, o vago tremular uniforme das águas e os lampejos do Sol que elas refletem, como gentes que se movem sem se mexer e nos atiram à cara a diferença que julgam ter.

Excitamo-nos quando, fugaz, um peixe salta a espreitar o Mundo que lhe tira a vida, deleitamo-nos com os círculos efémeros que deixa no espelho tranquilo e se esbatem até ao infinito. Vibramos com novas chocantes, mas logo esquecidas, que nos dizem do podre de nós que mora nos outros, da dor da morte, da pungente desgraça, de coisas de arrepiar. De espíritos esmagados pela torrente de notícias sem novidade, pasmamos ante as lágrimas choradas por quem a desdita fere, ao longo de uma vida para si ou para os seus jamais sonhada, imaginada, sequer.

Arrepiamo-nos quando a pedra atirada ao rio nos salpica; mas não quando a atiramos nós e arrepia outros como nós, que nem vimos que por ali também andavam como nós. 

Afinal, quem os mandou lá estar?

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O rio é lindo; é calmo, e pacífico. Pelo menos, é lindo, calmo e pacífico o que dele vemos .

Mas o que vemos do rio não passa de uma ridícula porção dele.

O rio não é superfície: é massa. Uma gigantesca mole de líquido que a gravidade impele, prenhe de vivos e de mortos, de peixes que nadam e daqueles que iremos almoçar, dos que não foram pescados e apodrecem na lama do leito do rio que corre para o mar, com os ramos, os escolhos e os despojos que para lá não paramos de atirar.

O rio é lindo, mas brutal. É corrente que, à passagem, tudo amassa, moi, tritura, mata, destrói, sem, ao menos, parar para pensar.

A molécula de água é fonte da vida. O rio, é fonte da morte. Também nós, fonte de vida, unidos para ser firmes na defesa, acabamos fonte de morte, sempre a atacar; ou, bem pior, a ignorar.

A riqueza que gostamos de acreditar que em nós habita, dilui-se, fenece à vista de alheias virtudes. Ao fatal anonimato, resistimos tolamente num infindável e frenético vai-vem de imagens e frases que pespegamos na montra social para sobressair, quantas vezes pisando outros para, humilhando-os, o  nosso protagonismo assegurar.

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Somos lindos, desde que não olhemos o espelho de nós nas águas calmas. Nas do lago que nos é próximo, ou nas do imenso rio que passa e continuará a passar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022


Tróia - Travessias de Ontem e de Hoje

 

Tróia - Ferry de Antigamente

"Quando uma povoação perde a sua remota origem na, noite dos tempos, é não só difficil, mas impossível, marcar-lhe a época da sua fundação, e o nome do seu fundador, pois tudo se acha envolvido em hypotheses e opiniões, mais ou menos fundamentadas, e em fabulas, qual d'ellas mais absurda. Est circumstancia se dá em Setúbal, assim como em Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Santarém, Villa Nova de Portimão, Faro, e outras muitas cidades e villas, como temos visto em muitos logares d'esta obra. 

Estou porem persuadido que a actual cidade de. Setúbal, não é tão antiga como muitos escriptores pretendem; porque — a cidade a que Cláudio Ptolomeu Alexandrino dá o nome de Caetobrix — Antonio Augusto, Catobriga — Marciano Heracleota, Castobrix — e o anonymo Ravenate, Cetobrica — era indisputavelmente na margem esquerda do Sádo, em frente da actual Setúbal, e no sitio hoje chamado Tróia. Esta sim, que era antiquíssima, e, com toda a probabilidade, fundação dos phenicios".

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno" - Vol.9 pág.205
Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia - Lisboa, 1880


Tróia - Ferry Boat
Imagem: Atlantic Ferries