“Mesmo tendo a retratação pública sido imposta, não bastaria dizer que,
afinal,
a família injuriada não era composta por bandidos,
impondo-se que o
Presidente do Chega! perentória e expressamente reconhecesse o erro
moral,
a censurabilidade social da conduta e do pensamento e da
ideologia a ela subjacentes”
A inevitável subjetividade inerente ao modo como a retratação pública é
realizada apenas é comparável à subjetividade da avaliação da eficácia da
mesma por aqueles a quem ela compete, designadamente no que se refere à
proteção do bem jurídico da honra do ofendido, sem esquecer o valor que a
ampla divulgação da execução da sentença deverá representar para a prevenção
da proliferação de condutas do mesmo tipo.
A despeito da maior ou menor carga subjetiva que comporte, o cumprimento de
qualquer obrigação deve ser pautado pelo princípio da idoneidade, da adequação
ao bem jurídico e social prosseguido, não sendo, pois, admissíveis, quer a
retratação equívoca ou incompleta, quer a que se revista de falsidade ou
hipocrisia.
Para que seja plenamente eficaz, bastará a uma retratação equívoca ou
incompleta ser clarificada ou complementada com os elementos indispensáveis à
perfeita compreensão, não apenas do sentido, mas também da sinceridade da
intenção.
Já uma retratação falsa, hipócrita, expressamente manifestada como mero
cumprimento da obrigação imposta e
acompanhada do esclarecimento de que se está a proferir palavras meramente
formais, sem qualquer substância - naquilo que, numa visão desfocada e distorcida do
direito e do conceito de reparação, o ofensor considera o estrito mas eficaz
cumprimento da sentença condenatória - não resulta, de facto, no menor
desagravo da ofensa feita ao merecimento social do ofendido, tampouco em nada
desculpando as injúrias proferidas,
antes as agravando na medida em que afasta qualquer resquício de dúvida
que, quanto à firmeza da intenção de ofender, pudesse ainda persistir nos
mais benevolentes espíritos.
Constitui, além do mais, intolerável ofensa aos tribunais e aos demais agentes
judiciários intervenientes no processo, escarnecendo, não apenas das doutas
decisões proferidas, mas também do frágil significado e do débil conteúdo
intrínseco aparentemente subjacentes à execução deste tipo de penas e, por via
deles, ao muito relativo impacto social da própria condenação.
No topo da desfaçatez estará, necessariamente, uma eventual e acintosa menção
ao facto de que as ocas palavras de retratação
apenas terão sido proferidas ou escritas a fim de evitar a ruína económica
do condenado, decorrente da hemorragia de multas que diariamente seriam
devidas por força do aresto condenatório, sanção pecuniária que apenas poderia considerar-se objetivamente cumprida
uma vez material e liquidadas aquelas.
Se é verdade que, ao concluir pelo carácter equívoco de uma retratação,
estaremos mais próximos de uma ponderação subjetiva da proporcionalidade, a
retratação falsa ou hipócrita é facilmente identificável e objetiva, na medida
em corresponde à inversão do sentido, da própria razão de ser da decisão, uma
vez que
o condenado, não só a não cumpre de forma efetiva, como acaba por
fazer exatamente o contrário daquilo que, espontaneamente, deveria ter feito
ou lhe fora determinado.
Não há, por outro lado, como considerar que, quer a falsidade, quer a
hipocrisia, não excluem a presença da componente fundamental de qualquer
retratação: o arrependimento. Se é verdade que a mera reparação
material e objetiva - mediante a execução de penas de prisão ou de multa, por
exemplo – o dispensa, o mesmo não se aplica à retratação, da qual ele deverá,
afinal, constituir a própria essência.
O mesmo é dizer que a retratação inexiste sem claro e manifesto
arrependimento, o que é incompatível com uma eventual declaração, no momento
em que é proferida ou escrita ou em data próxima posterior, de que
os pressupostos da injúria se mantêm intactos, apenas se retratando o
ofensor a fim de, para si, evitar males maiores.
Jamais se poderá, num tal caso, dar por encerrado o processo ou considerar
extinta a punibilidade do crime, antes se tornando evidente ao menos
juridicamente instruído dos homens médios que
uma sentença executada num tal contexto continuará por cumprir, com todas
as legais consequências, entre as quais a acumulação da multa diária
alternativa eventualmente imposta.
- x –
Por “ofensas ao direito à honra e ao direito à imagem” nas pessoas
de membros de uma família residente no Seixal*), foi o presidente do partido Chega! sentenciado, em Maio de 2021, a delas se retratar publicamente, tal como o Partido*).
Porém, à semelhança do que recentemente aconteceu com uma
retratação pública imposta ao Presidente da República Federativa do
Brasil*), o alegado cumprimento da sentença consistiu em pouco mais do que uma firme
declaração de manutenção dos pressupostos das ofensas pelas quais fora
condenado.
Não pode, é verdade, legitimamente esperar-se que, acontecendo a retratação na
sequência da prolação de sentença judicial, alguma vez possa ela corresponder
a um impulso genuíno e espontâneo do ofensor.
Mas não pode ela também, mesmo nessas circunstâncias, ser despudoradamente
desvalorizada e ridicularizada,
sobretudo na imediata sequência do próprio ato em que se materializa a
suposta execução do decidido pelo tribunal*).
De facto, e embora possa não ser, neste caso, de afastar completamente a
presença de hipocrisia, encontramo-nos, sobretudo, perante uma retratação
confessadamente vazia, falsa, como não pode deixar de se extrair de um texto
em que é dito que, com ela, apenas pretende o Réu, por receio de um inevitável
impacto económico negativo, dar cumprimento formal ao que foi exigido,
mantendo-se, não obstante, a essência das ofensivas declarações.
Especificando, mesmo tendo a retratação pública sido imposta, não bastaria
dizer que, afinal, a família injuriada não era composta por bandidos,
impondo-se que o Presidente do Chega! perentória e expressamente reconhecesse
o erro moral, a censurabilidade social da conduta e do pensamento e da
ideologia a ela subjacentes.
A situação parece, assim, corresponder a um
cumprimento aberrante e, até, pernicioso da medida imposta*), atendendo a que, a não ser a retratação dada como inexistente e sancionado
o Réu por desrespeito, se estará, provavelmente, a criar condições muito
favoráveis à futura invocação do episódio como precedente, arriscando-se a
completa desvalorização da figura da retratação pública, que passará a ser
contemplada como mera retórica ineficaz, que, afinal, nada reverte e nada
resolve, ganhando as futuras decisões que a outros a imponham o
estatuto de atos meramente decorativos.
Será, em conclusão, de esperar que o Tribunal declare inexistente o
cumprimento da obrigação pelo Presidente do Chega! e mande contabilizar as
multas diárias vencidas e vincendas até que aconteça uma efetiva retratação.
Não podemos, além do mais, deixar de, com toda a legitimidade, nos questionar
da validade do discurso de alguém que, sem aparentes constrangimento ou pudor,
afirme que falou por falar, inexistindo qualquer correspondência, entre as
palavras que proferiu e aquilo que, efetivamente, entende.
- x -
Não está aqui em causa qualquer característica intrínseca da pessoa ou da
organização condenadas, já que apenas a Deus é dado avaliar objetivamente as
pessoas por aquilo que são, cabendo aos tribunais julgá-las, unicamente, por
aquilo que fazem. Também, já que nem queixa houve, tampouco será legítimo
afirmar que um crime foi cometido, como por essa blogosfera há
quem sustente..
No entanto, e independentemente do que venha a acontecer à decisão – ainda não
transitada em julgado -, bem poderá a Justiça considerar-se ofendida pela
forma como àquela foi, alegadamente, dado cumprimento, forma que em nada
dignifica, quer os ofendidos, quer a sociedade, de um modo geral.
Não podem, pois, aqueles a quem compete fiscalizar a execução das sentenças
ficar indiferentes a estes factos, já que, como alguém disse, “o padrão de uma sociedade civilizada é a qualidade da sua justiça”.
Ou não?
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