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sexta-feira, 29 de março de 2024


Tripolarização

Tal como sucede com muitos supostos neologismos que não passam, em boa verdade, de mais ou menos graves degenerações da língua portuguesa, aqui o erro é crasso e evidente, embora ninguém pareça preocupar-se muito com o assunto.

"Polo" é cada uma das duas (únicas!) extremidades, necessariamente opostas, do eixo imaginário da Terra.

"Polo" pode também ser, extensivamente, cada uma das duas extremidades opostas de um magnete, ou, em sentido figurado, qualquer dos elementos de um conjunto de duas realidades opostas entre si.

Claro que "polo" também pode ser - vá-se lá saber porquê... - cada um dos terminais de um acumulador elétrico, um desporto, uma peça de vestuário ou um modelo de uma popular marca de automóveis: mas não no sentido em que os supostos criadores da "tripolarização" o entendem, que é o único que interessa aqui.

Do que antecede, extrai-se, antes de mais, que os polos são, sempre, dois, o que conduz a também duas conclusões:

  • primeira: o amplamente dicionarizado termo "bipolarização" contém evidente redundância, pois, sendo os polos sempre dois, bastaria falar de "polarização" para qua a dualidade ficasse perfeitamente estabelecida, assim se mostrando, no contexto, o prefixo "bi" absolutamente inoperante e, como tal, indesejável;
  • segunda: a felizmente ainda não dicionarizada "tripolarização", em sentido próprio, que aqui nos traz - ou seja, a existência de três extremos, supostamente opostos entre si - não passa de uma impossibilidade material inopinadamente introduzida pelo prefixo "tri".

Há que mencionar, no entanto, a existência do termo "tripolar", também impropriamente utilizado, por exemplo, em física ou em psicologia, referindo-se, não a uma verdadeira polaridade, mas à mera diversidade, à margem da ideia de oposição, o que tampouco é admissível.

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Esta infeliz ideia da "tripolarização" política teve origem no ganho de preponderância de um pequeno partido quando da eleição legislativa portuguesa de Março de 2024, a qual lhe deu algum peso efetivo na contabilidade parlamentar. Terá, desta forma, deixado de existir, como até então acontecia, um quadro com dois partidos dominantes, para, ainda que forçando um pouco as coisas, se passar a poder falar de um trio.

Todavia, nem no anterior cenário parlamentar português a utilização do termo "polarização" - ou "bipolarização", se insistirem na redundância - faria qualquer sentido, dado que os tais dois maiores partidos se posicionavam no centro do espetro político, e não nas extremidades, como é pressuposto de uma polarização.

Ponhamos, assim, um freio à criatividade destemperada, absurda, geradora de neologismos chabouqueiros que a mais não levam do que à inapropriada "evolução" do português, e fiquemo-nos pelo "bipartidarismo", ou pelo "tripartidarismo". Ou, até, pelo "tetrapartidarismo" e por aí fora, que, dominantes ou não, sempre poderá haver tantos partidos quantos quisermos em democracia.

Polos, extremos opostos, é que não.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


Das Galinhas Colocadeiras


A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "
colocar" não é,
de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular "pôr".

Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
pior fica, ainda, quando apimentado com a presunção.


Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.

Vivemos no mundo dos influencers e seus obedientes escravos seguidores, dos criadores de moda – da moda, que deveria ser o resultado de uma tendência simples e natural -, de gentes que abrem empresas na Internet em frações de segundo, apenas para se dizerem "empresários", e pouco depois as encerram por manifesta falta interesse ou de viabilidade; no mundo daqueles que querem sobressair pela forma, como única via supostamente eficaz para escamotear a endémica falta de substância, de conhecimento, de cultura.

Não espantará, assim, que alguns vejam os arrebiques da linguagem como uma forma fácil de sobressair socialmente, sem se darem conta da figura ridícula que fazem ao proferir palavras que pouco ou nada têm a ver com a suposta verdade que pretendem transmitir. Palavras que, de despropositadas, tornam o discurso rebuscado, barroco, inesperado; palavras que, em lugar de servir para comunicar, interrompem o fluxo das ideias, com evidente prejuízo para a ampla apreensão e para a plena compreensão.

Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura” demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para pior!

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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?

Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!

Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.

Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.

Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.

Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.

Admitamos que será, porventura, este caráter popular associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e, sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.

Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.

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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.

Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.

Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se colocaPôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la

Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.

Como vimos, e contrariando o que sustentam alguns dicionários, colocar não é sinónimo de pôr, mas sim uma especialização do termo, destinada a tornar a ideia mais específica: são palavras de significado relacionado, mas não igual.

A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.

Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda das colocações.

Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.

Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.

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Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.

Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que,  a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.

Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.

Com todo o cuidado e precisão.


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A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022


O Princípio da Incerteza


"Não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro,
mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado?
Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários
com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações? 
"

"Como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio
gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública
é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos? 
"

"A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma "

O Princípio da Incerteza
Terá a morfologia facial evoluído no sentido de permitir aos hipoteticamente superiores espíritos humanos comunicar entre si ou, inversamente, terão os ditos espíritos começado a comunicar verbalmente num aproveitamento da dita evolução?

Qualquer que seja a resposta, parece certo que a razão de ser e o objetivo da fala é a comunicação entre os humanos, tal como já sucedia com a expressão corporal e viria a acontecer com a  bem mais recentemente inventada escrita.

Sabemos também, à saciedade, que só quando prosseguida de forma rigorosa e contemplando a possível perfeição será qualquer atividade animal razoavelmente conseguida no seu propósito. A falta de caso, a preguiça, o facilitismo e vícios similares comprometem, seriamente, a eficácia e a eficiência da ação, a ponto de, em casos extremos, tornar contraproducente o resultado final.

Se, na infinidade de sinais a que poderia recorrer, a mera linguagem corporal era, inevitavelmente, pouco rigorosa, imprecisa, a linguagem verbal viria, decisivamente, complementá-la como uma forma eficaz de limitar a dispersa e caótica sinalética, assim tornando potencialmente muito mais precisa a correspondência entre a ideia e a mensagem que a veicula entre os espíritos.

Através da combinação, em palavras, de fonemas de correspondência sonora relativamente constante dentro de um mesmo idioma, apurou-se, pois, a transmissão e a captação da ideia contida na mensagem, drasticamente reduzindo a ambiguidade e a indefinição.

Na senda do mesmo objetivo, a evolução inteligente da utilização da palavra deveria, então, ser a da constante afinação e da cada vez mais rigorosa utilização do idioma: nunca a da sua deterioração, seja por via da desenfreada polissemia, seja pela do desprezo que cada vez mais vamos notando para com as mais elementares regras gramaticais.

Esta inversão de sentido, esta desvalorização da função elementar da linguagem verbal encontra-se, porém, de tal forma enraizada no tendencialmente permissivo espírito humano que qualquer norma é prontamente revogada à primeira violação pela pena de um escritor, como se, ao subverter, supostamente em benefício da manifestação artística, o edifício gramatical e a precisão vocabular, qualquer romance fosse, por natureza, um código, uma cartilha pela qual todos nós a língua portuguesa devêssemos estudar.

Bem pelo contrário, e como já aqui opinei, "um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar".

Daqui decorre que, seja quem for que, por indiferença ou em nome da criatividade, sistematicamente utilize de forma inadequada o vocabulário e viole as regras da gramática jamais poderá ser confundível com um teórico da língua.

Apenas patenteia, em tal matéria, inaceitável ignorância larvar.

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O princípio da incerteza, de Werner Heisenberg, sustenta que, observando uma determinada partícula de matéria, não é possível, com exatidão, determinar a posição e, simultaneamente, medir a velocidade daquela - algo que, cingindo-nos aos conhecimentos e aos métodos da física clássica, deveria ser possível fazer-se.

Segundo a física quântica, apresenta-se, assim, o dito princípio como mais uma forma de demonstrar que o Universo age mais misteriosamente do que aquilo que nos têm feito crer - embora a conclusão pela impossibilidade de apurar os valores com absoluta certeza se deva ao facto de serem utilizados, à falta de outros disponíveis, métodos invasivos para efetuar as medições.

Ora, instruídos que foram todos os atuais comentadores do programa da assim chamada CNN Portugal "O Princípio da Incerteza" na conjunto de áreas do conhecimento conhecida pela designação genérica de humanidades, será que foi o postulado de Heisenberg o inspirador do título adotado? Dificilmente, ou estaríamos perante uma provável demonstração de despudorada presunção, ou de  desmesurada cosmética mediática.

Será, então, que, no título do programa, princípio exprime a ideia de início, e não de lei geral da física, de parte da sua informação fundamental?

Mas, a assim ser, também aqui se manifesta insanável dúvida. Pois não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro, mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado? Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações?

Falar do início da incerteza seria, pois, refletir sobre as origens do Universo, ou seja, algo muito distante da linha editorial do programa televisivo de cujo título aqui se trata.

Considerada esta, poder-se-á, naturalmente, considerar a possibilidade de se tratar do início, não da incerteza absoluta, primária, mas, por exemplo, da incerteza ou insegurança na gestão política do Estado. Mas como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos?

Até que alguém que saiba a esclareça, a dúvida subsistirá, assim, quanto ao sentido em que, na escolha do título, o termo princípio foi selecionado: lei fundamental, ou início de algo? Neste caso, início de quê?

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Preferir, na circunstância, a utilização do termo início - ou começo - eliminaria qualquer dúvida quanto a ideia a transmitir: início exprime, sempre, o primeiro estágio, o lançamento. Isto, apesar de poder discutir-se a correção de atribuir-lhe, como alguns fazem, o significado de preliminar ou preambular, já que não parece seguro que pre não signifique que antecede o início da ação propriamente dita, a qual se destinaria a preparar ou enquadrar.

Em qualquer caso, o que importa reter é que a ambiguidade vocabular sempre será de evitar, sem prejuízo, naturalmente, da saudável criatividade, da originalidade que, desejavelmente, se procurará imprimir às manifestações do espírito, sob pena de, assim não sendo, tudo se resumir ao sensaborão, ao acinzentado de uma vida em que, praticamente, nos limitaríamos a respirar.

A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma, a par com o facilitismo gramatical que, em boa parte por via da importação de vocábulos e estruturas próprias de variantes do idioma desenvolvidas noutras partes do Mundo, mina, não apenas a clareza da ideia, o rigor da mensagem, a destreza do raciocínio, mas, com elas, a qualidade da interação do ser humano com os seus pares.

A riqueza vocabular reside na diversidade da utilização de termos com significados semelhantes, próximos, sem deixar de respeitar a particularidade de cada um deles: não no empanturrar das palavras com significados, levando a que, um dia, qualquer coisa querer dizer uma coisa qualquer, e deixemos de conseguir captar a ideia precisa ou, sequer, uma aproximada da que pretende exprimir quem escreveu ou está a falar.

Generalizada muito para além da mais ampla razoabilidade e longe de corresponder ao enriquecimento da língua, antes à degradação da sua beleza e da sua utilidade, a desenfreada polissemia apenas torna mais difícil a já de si difícil arte de comunicar.

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica, e não pela utilização
mais ou menos própria que, aqui ou ali, um ou outro escritor dela fará.

A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada hipercorreção
qualquer tentativa de resistência à degeneração.

terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

sábado, 11 de junho de 2022


Milhazes, Galamba e... o Cesto da Gávea


"Mandar alguém para o cesto da gávea tornou-se uma forma de exprimir desejo de distanciamento do autor
face ao destinatário da expressão, tendo a expressão "vai p'ró cesto da gávea" evoluído, na forma sintética,
para a expressão genérica de desagrado que se conhece, utilizada a torto e a direito por pessoas de pouco esmerada educação
"

"Não colhe aqui a estafada cantilena da origem humilde, da infância infeliz, da subida a pulso e todas as outras atenuantes
que possa invocar-se para procurar minorar o impacto desastroso provocado por quem solta, em direto e sem 
piiiii
, um palavrão daqueles"

"Noutro tempo, e independentemente da opinião que se tiver do Primeiro-Ministro de então, um membro do Gabinete
foi sumariamente convidado a afastar-se do governo por ter simulado um par de chifres na direção de um deputado da oposição
"

Vem este texto a propósito da indesejável propensão para, em nome daquilo a que, benevolamente, agora fica bem chamar genuinidade e frontalidade, não apenas se tolerar mas, até, aplaudir, em intervenções de figuras públicas, aquilo que jamais permitiríamos a um filho nosso - partindo, naturalmente, do pressuposto de que alguma atenção os progenitores ainda dedicam à nobre tarefa de educar.

Essencial ao progresso e à paz social, a verdade manifesta é que a hercúlea missão dos familiares com responsabilidades educativas não vem conseguindo evitar a propagação descontrolada do hábito ordinário e facilmente constatável sobretudo nas camadas mais jovens da população, de, a torto e a direito, proferir palavrões dos mais pesados como se se tratasse de inócuas interjeições; ou de mandar para aqui e para acolá aqueles cuja presença ou discurso em algum momento lhes esteja a desagradar.

Independentemente do sexo e da inserção social, parecem estes poetas do calão acreditar que o facto de assim se exprimirem lhes confere uma áurea de independência, de maturidade, de liberdade, de originalidade, até. Puro engano, claro, já que se limitam, afinal, a seguir uma desgraçada moda que, como qualquer moda, os torna iguais a quantos outros a seguem, e prisioneiros da obrigação de a adotar, sob pena de virem a ser marginalizados como retrógrados, démodés, pelos seus pouco educados pares.

Sendo consensualmente aceite que o exemplo vem de cima, catalizador nefasto desta tendência não deixará de ser o facto de, aqui e ali, se depararem os ditos jovens - e não só... - com a utilização dos mesmos palavrões na escrita e na fala de jornalistas e de governantes.

Lastimável, de facto. Sobretudo quando, de uns e de outros, seria de esperar que estivessem bem cientes do impacto mediático dos respetivos desempenhos sobre o processo educativo e formativo daqueles que, apesar de muita coisa que aqui não vale a pena esmiuçar, ainda contemplam aquilo que representam com algum respeito e admiração.

Fala-se aos quatro ventos dos direitos da criança, e da imperiosa necessidade de os assegurar e observar. Não terão as crianças direito à educação? Direito a, dos outros, dos crescidos, também esperar educação?

Talvez não menos do que dos direitos da criança nos enchem os ouvidos com a herança histórica e cultural disto e daquilo, com capitais europeias não sei de que mais, com património da Humanidade, com uma extensa lista de slogans destinados a salientar, e bem, o legado dos nossos antepassados.

Mas será que o património histórico e cultural exclui a elegância e a civilidade? Ou de tão escanzeladas que estão, delas já nem vale a pena falar?

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Um jornalista licenciado em História da Rússia, profundamente conhecedor do idioma, da política e da sociedade desse país, com acesso a fontes locais privilegiadas, que, por alguma razão, ganhe inusitado protagonismo noticioso terá, seguramente, direito a um lugar de destaque numa redação; mas, se não consegue disfarçar a manifesta dificuldade comunicacional ao vivo, dificilmente deverá ser convidado a participar em serviços informativos no horário nobre, quando toda a gente está de olhos postos na televisão.

Não colhe aqui a estafada cantilena da origem humilde, da infância infeliz, da subida a pulso e todas as outras atenuantes que possa invocar-se para procurar minorar o impacto desastroso provocado por quem solta, em direto e sem piiiii, um palavrão daqueles: se qualquer pessoa menos favorecida e com uma sofrida vida passada pudesse, impunemente, soltar imprecações na televisão perante centenas de milhar de espetadores, tal corresponderia, aos ouvidos de quem assistisse, à institucionalização da ordinarice, à legitimação da deselegância no léxico e na vivência quotidiana.

Que a boçalidade e a insensibilidade nada têm a ver com a origem social bem o demonstram conhecidos empresários portugueses e presidentes de organizações patronais cujo trato fino e fala apurada são eloquentes quanto ao facto de o seu passado operário não ser, de modo algum, obstáculo a que se saiba estar como se deve estar, onde se deve estar e sem os ouvidos alheios ofender. Mesmo sem formação académica de nível superior, em História da Rússia ou seja no que for...

Também não se pode justificar a ordinarice com o propósito de traduzir à letra - absolutamente dispensável em tais circunstâncias -, já que existem muitas maneiras de dizer a mesma coisa evitando a deselegância na expressão. "Vai para aquilo que a gente sabe" seria uma delas, e ninguém se queixaria, por certo, da ligeira ambiguidade da opção.

Tampouco são admissíveis recorrentes referências depreciativas ao Secretário-Geral do Partido Comunista Português - como "aqui vemos o Jerónimo de Sousa lá do sítio a tirar macacos do nariz" -, por maioria de razão quando este, que também foi operário, não vocifera, não hostiliza acintosamente, não fala mal ou é indelicado com quem quer que seja.

Independentemente das atenuantes, qualquer profissional da comunicação que não entenda a responsabilidade de uma intervenção em direto deve ser mais bem aproveitado em oportunidades adequadas às suas capacidades e formação.

Uma pessoa que, para cúmulo, tem um discurso nada fluído, muito entrecortado e, em desespero de causa, bastas vezes complementado pelo pivot e por outro comentador, não tem, seguramente, lugar em diretos na televisão.

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Da mesma forma, jamais deveria ter sido convidado para novo mandato no governo um mal amado secretário de estado com sobejas demonstrações acumuladas de quase genética falta de educação, desde o chamar estrume a um programa de um órgão de comunicação social a insultar interlocutores em redes sociais com os piores dos palavrões*), passando por, devido a divergências de caráter técnico, apodar um professor jubilado do Instituto Superior Técnico de "aldrabão e um mentiroso do pior"*).

Que lugar tem este indivíduo na governação de uma democracia, de um país que se pretende livre e plural?

Que peso político avassalador não deverá tal indivíduo ter no aparelho do, pelo menos outrora, tão respeitável Partido Socialista para, a despeito da lastimável e notória incapacidade de relacionamento pessoal com os seus governados*), ser recorrentemente convidado a integrar a equipa do atual Primeiro-Ministro? Ou que habilidade ou competência muito especial e não aparente lhe será reconhecida para justificar a escolha?

Noutro tempo, e independentemente da opinião que se tiver do Primeiro-Ministro de então, um membro do Gabinete foi sumariamente convidado a afastar-se do governo por ter simulado um par de chifres na direção de um deputado da oposição*).

Também in illo tempore um ministro da cultura se demitiu do governo*) por ter, metaforicamente, ameaçado com um par de bofetadas outros cidadãos.

O que mudou, então, em Portugal, para melhor ou para pior, desde então?

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À falta de melhores razões, o jornalista e o governante deram, recentemente, brado na comunicação social. O primeiro, por ter traduzido à letra o que, contra a guerra, bramavam, em russo, os espetadores de um festival*). O segundo, por se ter passado numa rede social com um interlocutor a quem mandou para o... cesto da gávea *).

Cesto da gávea é um termo náutico muito português utilizado para designar aquela espécie de cesta profunda fixada junto ao topo dos mastros das antigas embarcações, onde um vigia varria, com o olhar e um óculo, o horizonte visando detetar a proximidade de outros navios ou de "terra à vista!".

Na generalidade das línguas europeias ocidentais, o referido cesto é designado por ninho do corvo: nido de cuervo, nid de corbeau, nido de corvo, crow's nestKrähennest, e não consta que, excetuando o alemão, em qualquer delas, exista, com o mesmo significado, um termo, digamos, simplificado.

Sempre inventivo, original e amante da simplificação, lá inventou o português uma palavra só para substituir a mais longa expressão cesto da gávea; e a palavra é, nem mais, nem menos, do que a proferida, em diferentes contextos, pelos já referidos jornalista e governante dos destinos da Nação.

Ora, o cesto da gávea era, indubitavelmente, um lugar inóspito e de difícil acesso. Instável, sujeito à inclemência das intempéries, tornou-se, por excelência, o local de castigo dos marinheiros considerados culpados de faltas menores. A distância a que se encontrava do convés superior servia, ainda, para garantir que o assim punido não teria como incomodar o resto da tripulação.

Mandar alguém para o cesto da gávea tornou-se, assim, uma forma de exprimir desejo de distanciamento do autor face ao destinatário da expressão, tendo, dadas as características do local, a expressão "vai p'ró cesto da gávea" evoluído, na forma sintética, para a expressão genérica de desagrado, utilizada a torto e a direito por pessoas de pouco esmerada educação.

Atualmente, utiliza-se, ainda, como expressão de desagrado - "é feio com'ó cesto da gávea" - e, degenerando e invertendo completamente o sentido, de admiração - "é linda com'ó cesto da gávea".

Nada de mal, como vemos, até começar a ser a mesma palavra utilizada para designar o órgão sexual masculino, na forma de ordinarice, de palavrão.

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Foi nesse sentido e com esse intuito manifesto, o de dizer um palavrão, que cesto da gávea foi utilizado pelos espetadores do festival musical na Rússia condenando a abominável invasão e destruição parcial da Ucrânia. Foi nesse sentido e com esse intuito manifesto que o senhor Secretário de Estado o terá utilizado numa rede social dirigindo-se alguém por ele governado, a um concidadão.

Se é duvidoso que a intenção de dizer um palavrão, de ser ordinário, estivesse no espírito do jornalista que fez a tradução, não deixa de ser certo que a palavra, nas circunstâncias em que foi proferida, deveria ter sido, pelo menos, objeto de comentário e de reprovação pelos responsáveis pela estação, em clara demarcação.

Da mesma forma, deveria o Governo - ou, pelo menos, o Partido Socialista - ter, publicamente, repudiado a atitude do governante e militante, banindo-o do Governo, a exemplo do que aconteceu no caso dos chifres em direção de um bancada da oposição.

A menos que o Governo e o Partido se sintam confortáveis com este tipo de atuação e que, a despeito dos merecidos e respeitados pergaminhos, a SIC e a SIC Notícias queiram começar a parecer-se com certos outros canais de televisão.


Por falar em falta de educação:
lembra-se do Herman Enciclopédia?

NÃO PERCA a sátira,
protagonizada por José Pedro Gomes
às maneiras desastrosas dos portugueses à mesa...
e não só.


Veja AQUI, no Mosaicos em Português





   

sábado, 4 de junho de 2022


Em Defesa do Idioma

Vale o que vale, mas não deve passar em claro a tentativa da França no sentido de expurgar o idioma da enxurrada de anglicismos*) importados mormente através dos canais associados à informática e às redes sociais - aos quais haverá que juntar, a desenfreada proliferação de emojis e, no caso português, de brasileirismos atirados a esmo.

Não será, propriamente, animadora a previsão de acolhimento pela restante população da imposição, aos funcionários públicos, da utilização de expressões como joueur professionel em lugar de pro-gamer, ou de joueur-animateur en direct para substituir o bem mais simples streamer. Pode, até, dizer-se com propriedade que a coisa é pouco prática, que gasta mais tinta, que demora muito tempo a dizer e uma infinidade de argumentos contrários absolutamente razoáveis.

A iniciativa é, não obstante, meritória, quanto mais não seja por procurar quebrar a incompreensível inércia cúmplice por parte daqueles a quem cumpriria zelar pela preservação dos idiomas, e que a todas estas agressões vão, passivamente, assistindo, chegando ao ponto de adotar o indesejável, de defender o indefensável, de aplaudir uma deturpação que nada mais favorece do que a ambiguidade, a perda de identidade cultural e linguística, enfim, uma descontrolada e cada vez mais criticada globalização.

Ainda que provavelmente condenada ao insucesso, seria bom que, por cá, a iniciativa levasse a alguma calma, ponderada e séria reflexão...


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LÍNGUA PORTUGUESA

quinta-feira, 21 de abril de 2022


20 Palavras em Latim que Usamos Frequentemente

Após este título, lista aqui um sítio dito de cultura: Ad aeternum; Agnus Dei; Alibi; a priori; a posteriori; a fortiori; ad hoc; Curriculum Vitae; Cogito, ergo sum; Carpe diem; Ex libris; Errare humanum est; Ex nihilo nihil fit; in extremis; In loco; Ipsis verbis; Quid pro quo; Sine Qua Non; Sine die; Veni, vidi, vici.

Há que dizer, antes de mais, que a ideia de divulgar, junto da população menos atenta a estas coisas, temas da língua portuguesa em linguagem que se esforça por facilitar a compreensão e a aprendizagem, aparece como uma iniciativa sem dúvida louvável, faceta que seria injusto não salientar. Isto, apesar de essa linguagem se afastar, por vezes, tanto de algum cuidado na escrita que acaba por redundar em erros gramaticais ou, pelo menos, num facilitismo excessivo, numa ausência de rigor e de precisão na utilização do mesmo idioma que, supostamente, estariam a ensinar - como é o caso, por exemplo, da utilização, no referido título, de usamos em lugar do quiçá mais apropriado utilizamos, uma vez que utilizar de palavras as não torna usadas ou desgastadas, assim sendo aqui preferível o verbo utilizar.

Mas como aceitar que o à-vontade seja tal que nem se trate de cuidar que o título corresponda ao que é apresentado? Vejamos.

Palavras diferentes, não são vinte: são mais de quarenta; e, se se referem a artigos da lista compostos por uma única palavra, resumem-se a um: Alibi. Tudo o resto são locuções, conjuntos de mais de uma palavra.

Além do mais, tem o caro Leitor por hábito utilizar frequentemente a expressão Ex nihilo nihil fit? Sabe, pelo menos, o que significa? Ou Agnus Dei, comum na missa em latim que há muito tempo praticamente acabou? Quid pro quo? Carpe diem? "Frequentemente" utilizadas?

Mas, por quem, afinal?

E o alibi? Por que estranha razão estaremos, a proferi-lo, a utilizar a forma latina, quando, também em português, se encontra dicionarizada? Será que quando dizemos vida estamos, também, a proferir ou escrever uma palavra espanhola que, em português, é frequentemente utilizada?

Mesmo as restantes, serão elas "frequentemente" utilizadas pelos destinatários do artigo? Ou, de outra forma visto, que interesse terá um artigo como este para as pessoas que tais "palavras" utilizam "frequentemente"?

Nem vou gastar o meu tempo e a paciência do caro leitor a referir-me aos numerosos artigos dos dez mais isto ou dos trinta mais aquilo, tudo de acordo com critérios absolutamente subjetivos e sem a mais pequena parcela de fiabilidade, a não ser para quem os escreve.

Lamentavelmente, estas coisas são ad nauseam - esqueceram-se desta, que é, pelo menos, mais utilizada do que Ex nihilo nihil fit... - pespegadas naquela coisa chamada Discovery da Google, que me aparece cada vez que alguma coisa no motor de busca vou procurar.

Desta forma lamentável se desvaloriza, se subverte uma ideia com inegável potencial, sacrificando-a à vontade ou à necessidade de publicar à viva força, "frequentemente"; de manter as audiências e o interesse da Google e dos anunciantes que, no meio de muito disparate, as coisas mais incríveis e desinteressantes vêm divulgar.

Pobre língua portuguesa, e pobre de quem ainda pensa que, a páginas dessas, alguma coisa de verdadeiramente válido ainda irá buscar...


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LÍNGUA PORTUGUESA

quinta-feira, 31 de março de 2022


Resiliência ou Ignorância?

"Sou resistente
se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar.
Sou resiliente
se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar
"

"Se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa,
como designar a tal capacidade de recuperação?
"


Internet Popularucha
Encontramos frequentemente, por essa Internet, n sítios que dizem ensinar cultura, como tal parecendo entender a mera repetição, por vezes em tom desnecessariamente popularucho, daquilo que, noutros, facilmente se encontraria com substancialmente maior qualidade e, sobretudo, com a devida e consistente fundamentação.

Além de popularucha, a linguagem utilizada aparece, por vezes, de forma descaradamente evidente, como pensada para atrair leitores menos informados mas mais sensíveis aos apelos mediáticos - o que até poderia resultar num contributo válido para a formação de menos instruídas camadas da população, - bem como para a exaltação mais ou menos narcísica de quem por lá escreve e se não coíbe de pespegar, em dimensões particularmente generosas, a sua imagem em fotografias do tipo passe, obtidas, às tiras para recortar, nas máquina automáticas Photomaton.

Em lugar de prestar esse contributo válido, no caso dos textos em que dizem abordar questões da língua portuguesa, leva-os, bem pelo contrário, o mediatismo excessivo a evidenciar o erro em lugar da palavra ou expressão correta,  problemática que foi, recentemente, aflorada num texto, publicado pelo blog Cota Máxima*), cuja leitura recomendo.

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Ora, legítimo seria esperar que se ocupassem, pelo menos, estes n sítios - n, porque são muitos... -  de averiguar a exatidão dos significados que ensinam como sendo, numa classificação inaceitavelmente subjetiva, as 25, ou as 10, ou as 15 palavras mais qualquer coisa da língua portuguesa, em lugar de comprometer, de forma ainda mais séria do que aquela com que, a cada passo, nos defrontamos, o parco conhecimento da língua portuguesa detido pela generalidade da população.

A par da narrativa, da performance, das geografias, do elencar, do viral, do incontornável e dos restantes membros da vasta família, resiliência vem-se revelando como um dos termos cuja utilização  uma cada vez maior quantidade de pateticamente presumidos oradores e supostos escritores parece julgar que os eleva social e culturalmente, quando a torto, a direito, a despropósito e ad nauseam, a incluem nas mais elementares orações. 

Não será, assim, de estranhar que, no meio de algumas ou muitas outras coisas bizarras encontradas nesses n sítios de cultura, tenha, num deles, deparado, para o termo resiliência, com o significado de  lutar, não desistir, ser otimista e superar obstáculos e outras coisas que tais.

Em lugar de, como de um sítio dito 'de cultura' poderia esperar-se, limitam-se, assim, a papaguear, de forma absolutamente acrítica, o significado do termo originariamente utilizado pela física do qual, abusiva e erradamente, a psicologia se apropriou.

Como já, noutro texto aqui ironizei, resiliência, apenas ao de leve se parece com tal definição: resiliência é, antes, a capacidade de, após sofrer um impacto ou tensão, um material recuperar a sua forma original - como, no quotidiano, observamos, por exemplo, num elástico ou numa mola.

Aplicado à psicologia, o termo resiliência apenas poderia, assim, corresponder à capacidade de recuperação após um impacto ou tensão potencialmente nocivos da estabilidade emocional de uma pessoa. Não é, pois, confundível com resistência, que, essa sim, define a capacidade de um material resistir às tensões e impactos antes de começar a deteriorar-se ou a alterar a forma, ou de uma pessoa resistir antes de, baixando os braços perante os desafios se deixar afetar pela adversidade com que se depara ou lhe é imposta.

Clarificando: sou resistente se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar. Sou resiliente se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar.

Trata-se, inequivocamente, de conceitos e de situações bem diferentes, afigurando-se absolutamente descabido sustentar que, utilizar uma ou outra... tanto faz!

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Já aqui escrevi, a propósito do sexo e do género, sobre a apropriação, por parte das ciências sociais, de termos utilizados por outras ciências ou disciplinas, assim lançando nos espíritos uma enorme confusão. Trata-se, ao que tudo parece indicar, de um comodismo excessivo, de um aproveitar o que já existe sem muito pensar no assunto, de uma falta de exigência de rigor vocabular, de uma inaceitável displicência com a comunicação que muitos dizem ser tão cara e importante, a mesma comunicação que não param de enfeitar com palavras caras mas vazias de significação.

A apropriação, pela psicologia, do termo resiliência para exprimir algo que resistência muito bem exprime, não passa, assim, de mais uma tentativa de complicar o que é simples; de confundir o que é claro; de enfeitar o que é linear, exaltando a vaidade própria - e provavelmente negada... - de quem opta por uma expressão vocabular cada vez mais barroca e ridícula, em detrimento da qualidade do discurso, da propriedade da expressão, da precisão na compreensão, em suma, minando uma comunicação que se quer pura e exata; pelo menos, tanto quanto razoável e possível, no meio de toda esta indefinição.

Legítimo será, naturalmente, por que razão haverá alguém de, sobre este assunto, aceitar como bom o que aqui defendo, e não aquilo que os reputados linguistas e cientistas fazem e dizem.

Ora, a resposta é bem simples, e arrima-se em dois pilares essenciais:

  • o pilar linguístico, que assenta na imperiosa necessidade de, para nos entendermos e fazermos entender, não apenas procurar eliminar cada um dos múltiplos focos de ambiguidade que o idioma foi gerando e desenvolvendo, através da ignorância e do facilitismo, da indiferença por tudo quanto, como um idioma, não é visível, não rende euros ou votos, ou prestígio, ou - pensam alguns - status social;

  • o pilar lógico, que torna evidente ao mais distraído que, se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa, como designar a capacidade de recuperação?
Sem apresentar fundamentação que, literalmente, arrase qualquer destes alicerces, não será fácil convencer espíritos exigentes e mentes informadas da justeza da utilização da já estafada resiliência para, a propósito de tudo de nada, referir algo que resistência perfeitamente define, sem necessidade de elaborados estudos ou rebuscadas  e pomposas interpretações.

Resistência, qualquer aluno da instrução primária sabe o que é. Resiliência, pelo contrário, é um termo de cujo verdadeiro significado muitos que o utilizam nem desconfiam; e, falar sem saber o que se diz, não será, propriamente, a mais eficaz e fluída forma de comunicar.

Capacidade de RESISTIR Resistência Resistente
Capacidade de RECUPERAR Resiliência Resiliente
Ato ou efeito de RECUPERAR Recuperação -

Primeiro, procura-se resistir. Se não resistimos, mas somos resilientes, depois de quebrar, recuperamos. Uma vez recuperados, voltamos a procurar resistir a novos impactos, e assim sucessivamente.

Temos, assim, um dito PRR, um Plano de Ato ou Efeito de Recuperar e de Capacidade de Recuperar. Para aguentar tolices destas, é, de facto, necessária muita... resistência.

* *
Eis, pois, um bom exemplo de que, na língua portuguesa, como em tudo na vida, não é verdade aquilo que, pelas mais diversas razões, muitos querem fazer-nos crer: que "Tanto Faz"!

Visando, entre outras coisas, alertar para o facto, "Tanto Faz!" é, precisamente, o título do primeiro artigo publicado aqui no Mosaicos em Português.



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LÍNGUA PORTUGUESA

sábado, 5 de fevereiro de 2022


Acerca da Língua que Falam no Brasil

"Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro,
aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura,
também ela muito própria, de um País Irmão
"

"O português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais"


Nestes tempos em que, por tudo e por nada, se fala de igualdade – mesmo a despropósito, mesmo quando aquilo com que se acena chamando-lhe igualdade, com igualdade pouco ou nada tem a ver -, cada vez mais se procura disfarçar com uniformizadas e supostamente identitárias roupagens as diferenças estruturais entre os seres.

Situações com normalização

A moda aparece, naturalmente, como a manifestação por excelência desta prática, como uma tentativa de parecermos o que não somos, mas gostaríamos de ser. Nomeadamente iguais àqueles que cada um idolatra ou admira ou, mais simplesmente, que este novo exército de assim chamados influencers as mais fracas personalidades manipula, em mais ou menos chorudo proveito próprio e a seu bel-prazer.

Situações há, naturalmente, em que a normalização das roupagens é válida, indispensável até, como no caso das forças armadas ou de segurança e de outras organizações orientadas por um, legítimo ou não, objetivo comum. A farda surge, nestes casos, como uma forma de facilmente identificarmos as pessoas nelas filiadas e, também, como a manifestação de uma identidade de missão, de partilha de objetivos, de proximidade cultural, enfim, do que quer que seja que, uns com os outros, nos possa fazer parecer.

Será, assim, absolutamente descabido, patético, até, que, num esforço à partida vão de aparentar identidades que não têm, elementos de grupos distintos, pessoas de diferentes organizações, com diferentes missões, objetivos ou, até, credos vistam a mesma farda ou ostentem os mesmos símbolos. Tal opção, em nada contribuirá, evidentemente, para convencer quem quer que seja da efetiva existência de uma igualdade ou proximidade apenas desejada ou sonhada, apenas servindo, bem pelo contrário, para lançar uma indesejável, mas inevitável, confusão junto de quantos em tais preparos os verão.

Trata-se de uma questão do mais elementar bom senso, tão evidente e pacífica, que não necessitará de ulterior desenvolvimento ou discussão.

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O idioma que falamos é a farda, a roupagem cultural e civilizacional que envergamos.

Com mais ou menos pronúncia daqui ou dali, a língua mãe constitui, não apenas um identificador da nossa provável origem geográfica, como da cultura no seio da qual viemos ao Mundo e, pelo menos em determinada fase da vida, continuámos a viver.

Fenómenos de aculturação
Não é por, em determinada idade ou etapa da existência, aprendermos a falar, também, inglês que passamos a ser ingleses; isto, sem prejuízo de, com o correr do tempo, podermos acabar por absorver aspetos da cultura própria dos países onde se fala algum idioma que formos aprendendo, mormente se, simultaneamente ou não, acabarmos por lá passar algum tempo.

Fenómenos de mais ou menos acentuada aculturação, num e noutro sentido, inevitavelmente ocorrem, também, entre os países responsáveis pelos primórdios da diáspora europeia*), por um lado, e as colónias, de agora ou de outrora, por outro.

Dada a considerável distância que as separava dos países colonizadores e por serem as viagens tão difíceis e demoradas e, durante séculos, assim terem permanecido, novas culturas, substancialmente diferentes das autóctones e das europeias, emergiram dessas colónias inicialmente subjugadas aos ditames e costumes do invasor.

Após conturbados tempos de confronto e, por fim, de forçada harmonização, natural se torna que hajam culminado, na maior parte dos casos, em anseios de independência e na sua concretização.

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Um dos aspetos essenciais desta diferenciação cultural terá sido a degeneração ou imperfeita aprendizagem locais da língua materna dos colonizadores, a pontos de, não raramente, já pouco ter ela a ver com a que continua a falar-se na Europa, seja em parte significativa do vocabulário, seja na construção frásica ou na generalidade daquilo que à gramática possa interessar.

Tal é o caso inequívoco do idioma atualmente falado no Brasil, caracterizado por um liberalismo quase caótico relativamente aos mais elementares cânones da língua falada e escrita em Portugal.

As rotas seguidas por um outro idioma – porque de dois bem distintos já se trata - mostram-se a tal ponto divergentes que, praticamente, fazem secar, na América, as raízes portuguesas do idioma, não apenas por força da distância geográfica entre o Brasil e Portugal, como da significativa dispersão geográfica e diversidade cultural da República Federativa, que tornam praticamente impossível evitar, a nível linguístico e entre os seus diversos Estados, a propagação de cada vez maiores arbitrariedades e deturpações.

O idioma falado no Brasil encontra-se, assim, num particularmente intenso processo de formação baseado na degenerescência da língua portuguesa que lhe serviu de base, enquanto o português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais, o qual, finalmente, vai sendo objeto de algumas, embora pontuais e tímidas, chamadas de atenção*).

As próprias matérias de jornais brasileiros*) que, dando conta do facto*), referem que uma das causas residirá na “influência de youtubers brasileiros, os mais assistidos pelos miúdos portuguesesdemonstra bem, num só parágrafo, que ponto atingiu, já, a diferenciação.

Não é verdade, porém, que só entre os jovens o fenómeno se verifique, nem que tenha começado agora esta evolução. Assim entender, seria olvidar o efeito dramático produzido, décadas atrás, pela transmissão, quase em contínuo, de telenovelas brasileiras nos principais canais generalistas da televisão portuguesa, que, desta forma, deram azo a que muita gente começasse, com toda a naturalidade, a dizer que o personagem virou isto ou aquilo, que é impossível não adorá-la ou que é muito péssima, e já não saiba, sequer, ao certo onde por o se numa oração.

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Esta modesta amostra não passa de uma ínfima fração do problema que vivemos no dia a dia, e que não resulta, unicamente, de uma patega excrescência da ação de um governante mais exibicionista ou que tenha querido deixar a sua marca através da celebração de um suposto acordo ortográfico desconexo, arbitrário e elaborado ao arrepio da mais elementar lógica.

Um acordo que os brasileiros nem cumpriram… e para quê? Acaso iriam passar a escrever electrónico em lugar de eletrônico? Para quê, então, fingir que, quanto a esta ideia parva de homogeneizar o que não pode ser homogeneizado, alguma coisa de válido alguém, de facto, pretende ou alguma vez pretendeu fazer?

Arbitrário até na estrutura, o Acordo não passou, em boa verdade, de uma também arbitrária tentativa de impor a diversos países uma das tais fardas, uma roupagem que nos convencesse da existência de uma razoável homogeneidade cultural única entre todos países cujos idiomas nasceram do português. Como se fosse verdade tal besteira.

Dizer que existem traços comuns estruturais, evidentes, entre culturas do Brasil, dos PALOP, de Timor e de Portugal não passa de um discurso politicamente correto, mas vazio; de um despudorado atirar de poeira aos olhos - mas, apenas, de quem os tiver fechados, já que, ainda que, entreabrindo-os, inevitavelmente o contrário constatará.

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Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro, aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura, também ela muito própria, do País Irmão, porque, indelevelmente ligados pela História, Brasil e Portugal são e serão países irmãos.

Mas, gémeos, não são: jamais serão. Sobretudo tendo em conta quem, para os governar, livre e democraticamente os brasileiros escolheram na mais recente eleição*).

* *

Sempre há, no entanto, que reconhecer que, acordo ortográfico à parte, a degeneração vocabular e a propensão fácil à descontrolada polissemia não é, exclusivamente, importada, nomeadamente do Brasil.

Por cá, e sem ajuda externa, vamo-nos aproximando, a passos largos, do dia em que qualquer palavra significa qualquer coisa, a ponto de quase deixarmos de nos fazer entender.

(siga aqui a continuação)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


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