A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "colocar" não é,
Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível
com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.
Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura”
demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob
o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela
pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução
da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para
pior!
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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?
Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!
Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.
Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.
Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.
Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.
Admitamos que será, porventura, este caráter popular
associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e,
sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.
Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.
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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.
Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.
Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se coloca. Pôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la.
Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.
A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.
Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda
das colocações.
Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam
questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.
Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.
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Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.
Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que, a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.
Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.
Com todo o cuidado e precisão.
Seja muito bem regressado, Sr. Ladrilhador!
ResponderEliminarQuem é vivo sempre aparece, não é verdade?
Todos esses presunçosos que resolveram virar de pernas para o ar a forma como se expressam, cá por mim, podem colocar e recolocar o que bem entenderem, mas nunca, jamais, em tempo algum, conseguirão das galinhas poedeiras que passem a colocar os ovos ao invés de os pôr onde e como elas querem. Sabe porquê? Porque o cu, ( ou devo colocar, perdão, pôr, o acento agudo no cú?) é delas e só delas... : )
Um abraço de boas-vindas.
Muito obrigado, Senhora D.Janita, pela sua mensagem de boas-vindas.
EliminarSerá um regresso gradual, mas conto passar por aqui com alguma regularidade.
Quanto ao mais, sinto-me, por vezes, tentado a concordar consigo, e a desistir de ir chamando a atenção, aqui e ali, para os vícios de uma linguagem cada vez mais difusa e falha de identidade, tal como a sociedade em que nos inserimos. No entanto, algo cá muito no fundo me diz que temos, todos, o dever de continuar a tentar conservar o que resta.
Um abraço