terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


Das Galinhas Colocadeiras


A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "
colocar" não é,
de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular "pôr".

Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
pior fica, ainda, quando apimentado com a presunção.


Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.

Vivemos no mundo dos influencers e seus obedientes escravos seguidores, dos criadores de moda – da moda, que deveria ser o resultado de uma tendência simples e natural -, de gentes que abrem empresas na Internet em frações de segundo, apenas para se dizerem "empresários", e pouco depois as encerram por manifesta falta interesse ou de viabilidade; no mundo daqueles que querem sobressair pela forma, como única via supostamente eficaz para escamotear a endémica falta de substância, de conhecimento, de cultura.

Não espantará, assim, que alguns vejam os arrebiques da linguagem como uma forma fácil de sobressair socialmente, sem se darem conta da figura ridícula que fazem ao proferir palavras que pouco ou nada têm a ver com a suposta verdade que pretendem transmitir. Palavras que, de despropositadas, tornam o discurso rebuscado, barroco, inesperado; palavras que, em lugar de servir para comunicar, interrompem o fluxo das ideias, com evidente prejuízo para a ampla apreensão e para a plena compreensão.

Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura” demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para pior!

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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?

Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!

Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.

Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.

Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.

Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.

Admitamos que será, porventura, este caráter popular associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e, sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.

Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.

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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.

Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.

Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se colocaPôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la

Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.

Como vimos, e contrariando o que sustentam alguns dicionários, colocar não é sinónimo de pôr, mas sim uma especialização do termo, destinada a tornar a ideia mais específica: são palavras de significado relacionado, mas não igual.

A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.

Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda das colocações.

Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.

Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.

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Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.

Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que,  a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.

Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.

Com todo o cuidado e precisão.


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A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.

2 comentários:
  1. Seja muito bem regressado, Sr. Ladrilhador!
    Quem é vivo sempre aparece, não é verdade?
    Todos esses presunçosos que resolveram virar de pernas para o ar a forma como se expressam, cá por mim, podem colocar e recolocar o que bem entenderem, mas nunca, jamais, em tempo algum, conseguirão das galinhas poedeiras que passem a colocar os ovos ao invés de os pôr onde e como elas querem. Sabe porquê? Porque o cu, ( ou devo colocar, perdão, pôr, o acento agudo no cú?) é delas e só delas... : )

    Um abraço de boas-vindas.

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    1. Muito obrigado, Senhora D.Janita, pela sua mensagem de boas-vindas.
      Será um regresso gradual, mas conto passar por aqui com alguma regularidade.
      Quanto ao mais, sinto-me, por vezes, tentado a concordar consigo, e a desistir de ir chamando a atenção, aqui e ali, para os vícios de uma linguagem cada vez mais difusa e falha de identidade, tal como a sociedade em que nos inserimos. No entanto, algo cá muito no fundo me diz que temos, todos, o dever de continuar a tentar conservar o que resta.
      Um abraço

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