"Não é possível voltar a criar o que é verdadeiramente bom e original"
Muito característica do ser humano e, em boa parte parte potenciada pelo
impiedoso marketing, a ânsia de ser ou parecer original tende a
culminar em produções e produtos artificiosos, sem qualquer correspondência,
quer com a realidade, quer, pelo menos, com o mais belo imaginário que, no
meio da desgraça, mantém vivos aqueles a quem tais produtos se destinam; e o
que se imagina é, invariavelmente, melhor do que aquilo que se vê.
Tudo acaba, quantas vezes, por se resumir a um infindável desfilar de coisas
diferentes apenas porque o são, mas que nada têm a ver, na substância
ou, mesmo, na forma, com algo remotamente confundível com a tão
desejada originalidade.
Como alguém escreveu, "todo o escritor que é original é diferente. Mas nem todo o que é
diferente é original. A originalidade vem de dentro para fora. A diferença
é ao contrário. A diferença vê-se, a originalidade sente-se. Assim, uma é
fácil e a outra é difícil"*).
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Naqueles anos de que se lembram só os mais velhinhos, pura, verdadeira, e
despida de artefactos entrou a originalidade em nossas casas quando a então
Radiotelevisão Portuguesa *) (RTP) exibiu, ainda a preto e branco, uma sequência de três séries
policiais da NBC*) iniciada com McCloud*) (Dennis Weaver), continuada com Columbo*) (Peter Falk) e concluída por
McMillan and Wife*) (Rock Hudson e Susan Saint James).
Em muito semelhantes a tantas outras, da primeira e da última destas séries já
pouca gente ou ninguém se lembrará, que isto da memória tem muito a ver com o
interesse da coisa e com o bem que nos faz à alma - bem mais difícil de
contentar do que um corpo que, ainda que momentaneamente, com qualquer
petisco, roupinha, perfume e coisas que tais se satisfaz.
Columbo, porém, ficou e perdurará na memória de quantos, ainda
sem box ou gravador de video, sem computador e mp4,
para não perder pitada do episódio apressavam o jantar; e era, mesmo,
importante não perder o início, no qual residia uma das originalidades da
série, cujas histórias começavam revelando a identidade do homicida, ao
contrário do que é hábito encontrar.
A atenção do espetador era, desta forma, atraída pela dúvida, não quanto a
quem era o mau da fita, mas quanto ao processo mental utilizado por um
detetive completamente despretensioso, embalado naquela eterna
gabardine mais do que gasta que, tal como todas as outras peças de roupa,
integrava o guarda-roupa pessoal do Ator.
Por este caracterizada como alguém que parecia acabar de ter sido vitimado por
uma inundação, a personagem conduzia um Peugeot 403 descapotável, decrépito e
barulhento - o que não o impedia de, constantemente, lhe enaltecer os méritos
dizendo que era um automóvel francês.
Peter Falk era, o tenente Columbo cujo nome próprio nunca chegámos a
conhecer - há quem refira Frank... -, o mesmo tendo acontecido com a
mulher e o sobrinho, dos quais tanto falava mas jamais nos deixou, sequer,
vislumbrar. A quase clonagem entre ator e personagem resultou numa criação
inimitável, impossível de qualquer outro intérprete replicar sem desmerecer -
o que faz pensar na atual moda dos remakes que, quantas vezes, não
passam de fabricações destinadas a exibir meios de produção bem mais
sofisticados e dispendiosos do que os da obra original, mas sem a qualidade
daquela, sem a veracidade, a consistência, a expressão, despertando muito
menos interesse ou emoção.
Columbo não era um ilustre jurisconsulto, ou um detetive particular ao serviço
de elites abastadas. Não era "um pedante seco com toda a poeira das bibliotecas, numa camada espessa, a
envolver-lhe o coração": apenas um polícia de aspeto pouco cuidado, que, graças a evidentes
inteligência, dedicação e tenacidade muito acima da média - e, também, segundo
o próprio, à custa de muito ter observado o que os outros faziam e de muito
ter lido e aprendido -, não sossegava enquanto não derrotava, pela lógica, os
quase sempre elegantes criminosos que, induzidos, primeiro, numa sensação de
falsa segurança e, depois, abruptamente desmascarados, acabavam por se render
e admitir a autoria do ato.
Para o sucesso da investigação - e da série - não contribuíam rocambolescas
perseguições automóveis pela noite de Los Angeles, ou cenas de sexo ou de
violência daquelas que no canto superior direito do écran fazem
pôr a bolinha. Columbo era o primado da substância, do conteúdo e da mente,
sobre o supérfluo, sobre a forma, sobre o vazio hábito de fazer não importa o
quê ao serviço da bilheteira da espetacularidade.
Beneficiando, em vários episódios, do talento de Steven Bochco*) - também autor do guião da Balada de Hill Street - nem o estrondoso
sucesso do modelo da série levou alguma outra produtora a tentar replicá-la, a
aventurar-se num remake cujo fracasso seria inevitável: não é possível
voltar a criar o que é, verdadeiramente, bom e original.
Nada é eterno, no entanto, e, com o avançar dos anos, a qualidade dos textos
foi-se deteriorando visivelmente nos fim dos primeiros trinta e oito episódios
- os únicos exibidos em Portugal -, o que erá levado a que o protagonista se
recusasse a continuar, assim terminando a série. Uns dez anos mais tarde - e
"porque a mulher já não podia vê-lo andar ali por casa" -, Peter Falk
regressaria para cerca de trinta novos episódios; mas, com um Columbo
envelhecido e uma série com um sabor a requentado que Portugal nada perdeu por
não ter chegado a conhecer.
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Completar-se-ão, em 2023, cinquenta anos sobre a data em que, por cá, Columbo
começou a ser exibido. Tenho pena de que, apesar de tantos anos terem passado,
os direitos de autor ainda estejam, aparentemente, ainda a inibir a
publicação, na Internet, dos episódios da série.
Fica, a título de compensação, uma
pequena parte de um episódio*) em que, num restaurante, apresentam ao tenente uma conta, que ele considera
exorbitante, de seis dólares por um chili e um iced tea, ao
que, depois de a alterar para seis dólares e setenta e cinco cêntimos, o
empregado responde "I forgot to add the iced tea".
Fica, também, a ligação para o bem humorado e pouco convencional
discurso de Peter Falk*) quando da aceitação, em 1974, do Emmy que lhe foi
atribuído.
Fica, sobretudo, a recordação de uma personagem a lembrar, porque,
simplesmente, se não pode deixar esquecer.
(leia
aqui
a sequência do tema)
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