domingo, 5 de junho de 2022


Sentido de Estado

"No momento em que é eleito para o importante cargo de presidente da República,
um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente,
do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional
e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos
"

"Num mundo civilizado, será, assim, impensável que um outrora presidente da República venha, do nada,
desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado
"

"Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico,
menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar
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Sentido de Estado
Se o significado de sentido de estado é tão evidente como qualquer outro, não menos certo é que a definição de sentido de estado é tão difícil como qualquer outra. Se não quanto à substância, pelo menos quanto ao grau, ou seja, à fronteira além da qual, do ponto de vista da legalidade, da decência, da probidade, da mais elementar educação, cada um considera que seria ilegítimo comportar-se no desempenho das funções públicas que lhe foram confiadas.

Resta, naturalmente, o caso daquelas figuras públicas que, sem reserva ou pudor, desvalorizam o dever de se comportar de forma responsável e cívica, reféns que estão do próprio umbigo, do incomensurável ego que terá determinado, desde a génese, a decisão de enveredar por uma carreira política orientada, não para o serviço da coisa pública, mas do engrandecimento e glorificação de coisa própria, mormente património, imagem ou poder.

Ora, casos de manifesta falta de sentido de estado não têm faltado.

Quem não se lembra das trapalhadas do Ministério da Justiça no processo de nomeação de um procurador europeu?*) Ou do Presidente da Assembleia da República que, em plena crise pandémica, convidou todos os portugueses a deslocar-se a Sevilha para assistir a uma partida de futebol?*)

Por mais que estejamos cientes de que por aí anda muita gente mal formada, pouco educada, insensata, insensível, quase todos os dias os mais diversos canais informativos nos confrontam com demonstrações de boçalidade pessoal e política, de inabilidade social, que em nada beneficiam, cá dentro como lá fora, a imagem de Portugal.

O que dizer do ministro da economia - hoje arguido num processo-crime - que, em plena sessão parlamentar, dirigiu, a um deputado da oposição, o conhecido gesto representativo de um par de chifres?*) Ou do secretário de estado que entendeu que, a nível internacional, Portugal saiu beneficiado com a pandemia?*) Ou do outro que apodou de estrume e de coisa asquerosa um programa televisivo de informação?*) Mesmo assim, mantém-se no poder, embora em pasta diferente, o que bem diz do sentido de estado de quem, não obstante, o convidou...

A par da deficiente formação e educação, a incompetência endémica que grassa, descontrolada, pela cena política nacional leva certos indivíduos a personalizar o impessoal, a esquecer-se de que, em prol da inviolabilidade da missão que desempenha, devem ser tratadas na esfera privada e pessoal as disputas privadas e pessoais do titular de um cargo institucional.

Tampouco poderemos esquecer-nos das indecorosas declarações de uma bastonária*) – agora também a contas com a justiça por alegada falsificação de contas – segundo a qual “(…) a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!”; ou que chama esterco a um jornalista*) e envia cumprimentos ao respetivo pai, já falecido.

Ser frontal e, até, polémico é um direito; mas esse exercício elementar da liberdade não pode ser, em instância alguma, confundido com vulgaridade, com ordinarice, com baixeza.

Só ataca o autor quem não tem como atacar a ideia.  Significa isto que, ou o atacante é incompetente, ou o autor tem razão. Seja qual for o caso, a forma ordinária do discurso sempre acabará por ofuscar o brilho do conteúdo, por muito que o autor possa estar com a razão.

Perdurarão na memória coletiva a frieza do escandaloso e degradante desempenho de um certo ministro da administração interna em diversos momentos do seu mandato, e a despudorada exoneração de um chefe do estado-maior da armada em benefício de um popular herói da vacinação. As trampolinices com graus académicos não são novidade, e os recorrentes episódios de excessos de velocidade ao volante de viaturas oficiais sem justificação plausível e aceitável tendem a ser olhados com naturalidade, se não com respeitosa admiração.

O mesmo acontece com a apresentação e promoção, por parte dos diversos partidos políticos, de candidatos autárquicos elementares, manifestamente inaptos para a função, ineptos, até; incapazes de alinhavar duas frases e de articular duas ideias, exemplares emergências do país profundo cuja existência, invocando as estatísticas da frequência escolar que zelosamente alimentam, os poderes instituídos insistem em negar.

Tudo isto é feio, tudo isto é triste, tudo isto é fado, a fatalidade quotidiana e comezinha da política nacional, que, de tão degradada que está, já não consegue recrutar pessoas de qualidade pessoal e técnica para nos dirigir ou governar.

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Constitucionalmente situado num patamar muito acima de qualquer outro cidadão e, supostamente, ao serviço de todos eles, eleva-se, desejavelmente intocável, a imagem dos sucessivos Presidentes da República Portuguesa, supremos magistrados da Nação, garantes da estabilidade, da liberdade e da igualdade, para os quais todos quereremos poder olhar com respeito e admiração.

No momento em que é eleito para tão importante cargo, um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente, do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos.

Este dever de salvaguarda não resulta, longe disso, de propósitos de engrandecimento ou exaltação pessoais, antes da necessidade de preservação da dignidade do cargo, independentemente de quem, em cada momento, o ocupar, preservação essa essencial ao exercício, quer da magistratura de influência, quer dos poderes efetivos de supervisão da atividade governativa de que estará investido e lhe competirá exercer.

O momento em que assumir tão altas funções deverá, por tudo isto, ofuscar, quase apagar, quaisquer reminiscências do passado em funções hierarquicamente inferiores que, ao longo da carreira política, o novo titular possa ter desempenhado.

Jamais deverá, assim, o próprio vir a campo defender, sobretudo a despropósito ou com motivação forçada e sem provocação, o seu anterior desempenho no governo, ou desafiar a fazer melhor quem, imediatamente ou não, o tiver sucedido no mesmo cargo. Fazê-lo, seria, não apenas ridicularizar-se, mostrar de si uma essência eticamente pouco estruturada e uma forma indizivelmente elementar, como minimizar o estatuto de tão alto magistério, dessa forma comprometendo, ingloriamente, o desempenho dos que nele lhe viessem a suceder: a imagem do cargo oscilaria no pedestal que, à eficácia no desempenho, é tão essencial.

Já de si, e em quaisquer circunstâncias, o combate político vazio de ideias, comezinho, rasteiro é, a todos os títulos, um espetáculo degradante. Que a tal nível pudesse, alguma vez, descer um outrora presidente da República seria uma inequívoca demonstração, não apenas da incapacidade genérica e inata para o desempenho do cargo, como do erro histórico em má hora cometido pelos votantes quando da eleição.

Num mundo civilizado, será, pois, impensável que um outrora presidente da República alguma vez venha, do nada, desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado. Será impensável que, numa espécie de carta aberta eivada de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa do singular, publique um monótono e entediante cardápio dos seus feitos no exercício de um pretérito poder executivo, numa aparente tentativa egocêntrica de atrair para si a atenção de uma comunicação social que já pouco ou nada lhe ligue por, sobre ele, já pouco ou nada de interesse haver a noticiar.

Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico, menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar.

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Os Presidentes da República que já não estão entre nós sempre assim o entenderam e agiram em conformidade. O primeiro Presidente da República eleito no atual regime, também.

O atual Presidente da República tem manifestado igual entendimento.

O elevado sentido de estado de todos estes sempre, respeitosamente, poderemos louvar.

* *

Como o exemplo vem de cima - seja lá, no presente caso, este cima o que for... -, não admira que diversos atores políticos continuem a fazer figuras tristes, supostamente em defesa de... de quê?

(continua aqui)

2 comentários:
  1. Bom dia.

    Em primeiro lugar, as minhas felicitações pela qualidade de escrita.

    Os males que refere estendem-se por todo o espectro político, infelizmente. Quanto ao erro histórico de votar em pessoa inapta , o "bom povo português" bem pode reflectir sobre como o repetiu .

    Cordiais saudações.

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    1. Agradeço, penhorado, as suas palavras, e tomo a liberdade de, sobre o mesmo tema, lhe sugerir o pequeno video que acabo de afixar.
      Reminiscências do Contra-Informação, das quais poucos ou ninguém se lembra já, mas que, neste caso, conservam toda a atualidade.
      Espero poder vê-la mais vezes por aqui.
      Cordialmente
      AL

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