sábado, 29 de maio de 2021


Podia Ter Sido Eu...

O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da proliferação de
situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor que se impõe, é, à boa maneira portuguesa,
passar uma esponja sobre o assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados,
porventura de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a administração da justiça deve ser.

Não posso queixar-me da minha infância.

Claro está que houve quem a tivesse mais alegre, mais ‘feliz’ do que eu, mas não terá sido esse o caso da grande maioria dos meus concidadãos. Posso, pois , considerar-me, sob esse aspeto, privilegiado, não me tendo tornado num daqueles infelizes que, por de uma infância falha de afetos terem tido que aprender a defender-se, durante toda a vida serão avessos às investidas do afeto de quem lho quiser dispensar.

Fui querido e acarinhado, bem nutrido, bem tratado e razoavelmente educado. Sempre tive quem de mim cuidasse com zelo e dedicação exemplares, em casas antigas já arrasadas ou em vias de o ser, e tive tempo para, além daquele que todos gastamos a, mais ou menos intensamente viver o dia a dia, refletir e recordar, com certa nostalgia, como é triste, quando uma casa morre, com todas as recordações que as suas paredes souberam guardar.

Quem me fez crescer sabia bem que não se educa crianças com jogadas táticas, mas com opções estratégicas, e que não se tem crianças por ter, para procriar como os bichos, para mostrar à família e à vizinhança ou seja lá para com que objetivo mais aberrante for, deixando-as depois, mesmo de tenra idade, à sorte delas, já que a vida de quem as fabricou não pode, evidentemente, ser prejudicada ou, sequer, molestada nas suas rotinas – sobretudo nas de lazer – pela necessidade de atender às mais elementares carências e anseios de quem os primeiros passos ainda estará, talvez, a aprender a dar.

Se, como terá dito um eminente estadista francês de há uns séculos atrás, “o destino de uma criança é,sempre, fruto do tratamento da mãe”, não poderemos surpreender-nos com a degradação crescente da qualidade humana de muitos que nos rodeiam, não tanto por culpa própria, mas, desde o berço, pela indiferença, pelo enfado, pelo descuido por vezes não apenas comprometedor da qualidade do futuro, mas, até, da existência dele.

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Ninguém escolhe, é verdade, o agregado familiar em que nasce – se em algum… -, ou o sítio, o ambiente, as condições económicas e sociais, enfim, tudo aquilo de que um ser humano necessita para se desenvolver e, quando acabado de nascer, para sobreviver. Mas todos temos, pelo menos, a obrigação legal de cuidar e de dar proporcionalmente àquilo de que podemos dispor, bem como a obrigação moral de, na mesma proporção, contribuir para que aqueles que nascem se tornem elementos válidos da sociedade, em lugar de parasitas sem escrúpulos, de corruptos despudorados - como alguns que enquanto convidados de comissões de inquérito por aí vemos -, de políticos sem causas e de outras aberrações que, de tantas, aqui não seria possível enumerar.

Quando leio que, em pleno século XXI e independentemente das razões e condições subjacentes, as autoridades depararam com cinco crianças com idades entre os um e os doze anos à guarda unicamente do irmão mais velho, sem quaisquer comodidades, cuidados ou condiçõesde asseio e higiene, o lixo espalhado pelo soalho da casa*), ainda se indignando algumas pessoas por a mãe ter sido indiciada por crime de abandono, não posso deixar de pensar que uma dessas crianças sem eira nem beira, deixadas à triste sorte por quem maior obrigação tinha de delas cuidar… podia ter sido eu.

Quando a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens dá conta de uma quantidade crescente, não apenas de crianças largadas à toa*), mas, lembrando a Roda dos Expostos*), de bebés, de diversas nacionalidades, enjeitados à nascença em Portugal, quer em ambiente doméstico, quer hospitalar, gerando níveis críticos de apreensão quanto à evolução de milhares de casos narrados quase diariamente, é impossível deixar de me comover e de pensar que um desses desgraçados… podia ter sido eu.

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Mesmo quando, na origem de uma tragédia, o dolo, ainda que eventual, inexiste; mesmo quando se trata de mais ou menos grave negligência decorrente de cansaço, de exaustão, de insónias recorrentes, de pressão profissional, de uma daquelas horas em que o tempo e o espaço parecem passar por nós sem que deles nos apercebamos, não deixa de ser evidente, por muito legítimas e até, naturais, que a explicação ou a justificação invocada possam ser, que a criança negligenciada o foi porque não estava a ser, na mente e no coração do cuidador, o principal objeto de atenção; e isto é válido mesmo que a tensão ou a exaustão tenham sido adquiridas em atividades em prol da própria criança ou dos seus irmãos.

Não é vergonha pedir ajuda, quando nos sentimos incapazes, especialmente se a tal ponto chegamos por razões legítimas e, até, louváveis. É, antes, vergonha não o fazer, dessa forma expondo a inevitáveis e desmesurados riscos quem não tem como deles se defender, vergonha tanto maior quanto maior for o grau de formação*)– e, desejavelmente, da correspondente educação - do responsável.

Claro está que a horrível morte por asfixia, ao longo de sete inimagináveis horas, de uma criança de tenra idade simplesmente esquecida no interior de um automóvel não pode, por muito que nos horrorize o facto em si, ser imediatamente imputada a culpa de quem dela se esqueceu, havendo que apurar, em sede de inquérito e, eventualmente, de julgamento, as circunstâncias exatas da ocorrência e as que a antecederam.

Especialmente tratando-se de uma mãe – admitindo, naturalmente, que se trate de alguém capaz de experimentar os sentimentos que consensualmente a sociedade considera naturais e saudáveis por parte de uma mãe -, tampouco pode esquecer-se ou ignorar-se o sofrimento imenso que poderá estar a sentir quem deixou de prestar a atenção e o cuidado necessários a uma menor cuja tenra idade de dois anos evidentemente tornava incapaz de se libertar da clausura e da inerente tortura por privação de ar para respirar.

Não obstante, oblivio signum negligentiae, não sendo verdade que a autora não deve ser investigada e, eventualmente, acusada e punida, se for julgada culpada, mais a mais tendo em conta, por um lado que existe um crime denominado homicídio por negligência e, por outro, que a tese do esquecimento não passa de uma suposição, de mera alegação.

O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da proliferação de situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor que se impõe, é, à boa maneira portuguesa, passar uma esponja sobre o assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados, porventura de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a administração da justiça deve ser*).

Não se trata apenas de ser justo para com uma mãe sofredora: há que ser justo para com a criança que morreu, para com o pai e os irmãos, e há, também, que, alertando para as consequências que advêm para quem negligencia o mais elementar, mas precioso, cuidado, defender a vida dos milhões de outras crianças que, um pouco por todo o Mundo, se encontram sujeitas a ser deixadas, estando fechadas as soturnas janelas de vidros fumados, nos automóveis dos respetivos progenitores.

Podia ter acontecido na infância de qualquer de nós, que já nascemos na era do automóvel.

Aquela criança que morreu e tanto sofreu, poderia ter sido o meu caro Leitor.

Podia ter sido eu.

sábado, 22 de maio de 2021


Seremos Todos Almas Penadas?

(Introdução à Secção 'Vida')

"Obstinar-se na defesa do impossível contrário não passa do paradoxo
de alguém pretender raciocinar além da razão, assim negando o primado da racionalidade"

Preocupamo-nos muito com as questões do de onde vimos e do para onde vamos, logo, com a questão da existência de uma Criação.  Mas, a menos que existamos realmente, refletir sobre a criação de algo que não existe ou sobre quem o criou seria uma atividade intrinsecamente inútil por absoluta falta de objeto, uma tontice, uma perda de tempo.  Importa então, antes de mais, saber se terão razão algumas vozes que por aí andam, as quais, porventura para evitar terem de se reconhecer incapazes de responder às velhas questões do quem fez isto tudo e do para quê, procuram desvalorizá-las argumentando que não faria sentido debruçarmo-nos sobre o tema da possível existência de um criador se nem a certeza temos de que existe uma criação, na qual estaríamos incluídos; ou não. 

Nas minhas parcas leituras e algumas conversas sobre o tema, ainda não encontrei uma argumentação estruturada, fundamentada, convincente, ainda que não definitiva, quanto a um motivo logicamente válido para que neguemos a existência de todos e de tudo quanto nos trazem os sentidos – ou, segundo alguns, do que apenas nos parece eles trazerem.  Penso, no entanto, que a melhor demonstração da existência do Universo – e de nós mesmos - se encontra no nexo de causalidade constatável entre os impactos acidentais mutuamente ocorridos com dois quaisquer blocos de matéria inorgânica e os respetivos efeitos.

Acontecendo tais impactos entre mais do que uma entidade não viva e de forma não provocada pela vontade dos sugestionáveis mortais que somos, se chegarmos à conclusão de que, em múltiplas repetições daqueles, os mesmos efeitos visíveis se devem a uma mesma não provocada e imprevista causa, haverá que concluir que esta não é produto da nossa imaginação, tão fértil para quase tudo e que, em tal caso, estaria, de forma entediante, a imaginar sempre um mesmo resultado para algo que, hipoteticamente, não passasse de uma mera e recorrente ilusão, já que, a despeito da nossa – pelo menos, da minha – quase total ignorância da matéria, percecionaríamos precisamente da mesma forma essa fantasmagórica visão, fenómeno que seria evidenciado pela troca de ideias entre os indivíduos presentes nos mesmos locais e nas mesmas ocasiões.

Por outras palavras, se sendo nós independentes uns dos outros e dotados de cérebros diferentes funcionando também independentemente, percecionamos de idêntica forma algo que não provocamos e de cuja ocorrência não tínhamos conhecimento antecipado, descrevendo depois, uns aos outros, da mesma forma o mesmo acontecimento e os seus eventuais efeitos, haverá que concluir que o facto ocorreu fora do nosso imaginário individual ou coletivo, independentemente dele e da forma de funcionamento dos cérebros capazes de o idealizar, os quais, sendo manifestamente diferentes entre si – mesmo na sua eventual virtualidade -, para um mesmo tipo de evento observam sempre resultados que podemos considerar globalmente iguais.

A distinção entre o deliberado e o acidental apresenta-se-me, pois, essencial para fundamentar a rejeição da ideia da inexistência do Mundo tal como todos o vemos e descrevemos – mais coisa, menos coisa, já se sabe.

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Cérebros diferentes, de pessoas educadas de maneiras diferentes não poderiam chegar à mesma conclusão quanto aos danos causados por impactos de determinada natureza; e, a tal não chegando, não seria possível desenvolver teoria quanto à forma de reparar, muito menos de proceder, em equipa, à necessária reparação.

Mesmo que se insista em admitir como possível a ilusão quanto à identidade na aparência dos factos ou dos seus efeitos, não parece razoável considerar que o remédio dado, num local onde não estivemos e por um terceiro que não vimos atuar, seja eficaz se não tiver obedecido a um conhecimento teórico adequado à reparação de danos idênticos causados por idênticos factos.  Se o meu automóvel parece ter o radiador furado e, na sequência da aparente intervenção, numa oficina a que não tive acesso, por parte de alguém que jamais vi e cuja identidade absolutamente desconheço, o popó vem de lá como novo, é porque a intervenção não foi assim tão aparente e seguiu o procedimento técnico adequado, definido pelas especificações do fabricante e pela anterior experiência do mesmo mecânico no decurso de intervenções diversas relativas a bem reais avarias do mesmo tipo.

A questão de tudo quanto julgamos ver ser irreal, enquanto mera hipótese, é legítima.  Perante qualquer simples facto, continua a sê-lo.  Mas soçobra, irremediavelmente, quando um terceiro se apercebe, de forma idêntica à nossa, do efeito provocado; e, sobretudo, quando pelo mesmo procedimento por nós totalmente desconhecido, o dano é inegável e eficazmente reparado, sabendo-se que apenas por milagre seria possível o carro avariado ou danificado, por si só, voltar a andar; e quem tanto insiste em exercitar a mioleira com sandices que insultam a própria razão não acredita em milagres, pelo que, quanto a este ponto, nada haverá a acrescentar.

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Também no plano da perceção individual a distinção entre o deliberado e o acidental é importante:  ao picar, deliberadamente, um dedo com uma agulha para fazer sair uma gota de sangue, poderei estar a iludir-me, quer quanto à existência do dedo – e do resto de mim, já agora -, quer quanto ao ato de picar, quer quanto à existência da agulha, quer, ainda, quanto à pequena hemorragia resultante.  Numa picadela acidental, em contrapartida, só ao ver o meu dedo começar a sangrar irei investigar a causa do sangramento para, então, concluir que ele se deveu, por exemplo, ao corte por um espinho ou farpa qualquer.  Trata-se, assim, de um acontecimento do qual me apercebo apenas através dos seus efeitos, um acontecimento que não observei nem pude imaginar.  Quanto aos efeitos, podem dizer que a dor é ilusória, mas, nesse caso, quando lhes acontecer uma dessas ilusões, não desatem a gemer ou a gritar.

Quando me estatelo no passeio devido a uma falha na calçada de que me não apercebi, muito há de alguém transpirar para me convencer de que, tal como a dolorosa e inibidora fratura de um osso da perna, a queda foi meramente ilusória, e de que essa ilusão foi provocada por um buraco que nem vi.

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A repetição dos mesmos efeitos devidos à mesma causa diz bem da efetiva existência das duas entidades – os dois blocos de matéria inorgânica, ou o dedo e o espinho – mutuamente independentes antes do facto e depois dele também e que, ao interagir, revelam a respetiva existência. No caso de um impacto acidental, estaremos, indubitavelmente perante a constatação de um efeito inesperado, que acabamos por concluir ter sido originado por uma causa independente da experimentação ou de qualquer outra manifestação da vontade – logo, de qualquer humana elucubração.

Dito isto, resta constatar a existência da realidade, que, na definição dada pelos humanos que talvez não existam, se opõe à ilusão.

A uns outros que sustentam que as coisas só existem quando nos apercebemos delas*), que "a realidade só se materializa quando alguém a observa" pedirei que me expliquem quando aconteceu, quanto existiu, por exemplo, a extinção do Cretáceo-Paleógeno*): há perto de sessenta e seis milhões de anos atrás, quando nem seres humanos havia, ou há uns anitos atrás, quando os cientistas assim concluíram?  Ou, como não a viram, nem terá existido, até?  Quando o gato do meu vizinho come um gafanhoto sem assistirmos ao repasto, significa isso que o gafanhoto continua vivo?  Ou a visão pelo gato – e a deglutição, já agora - também serve para fazer as coisas e os factos existir, para os tornar reais?

Se, ao passar com uma ferramenta na mão, inadvertidamente risco a pintura de um automóvel, quando ocorreu o dano?  No momento em que, sem alguma vez chegar a do facto me aperceber, provoquei o risco ou quando, horas depois, o proprietário da viatura constatou a sua existência?

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Como acontece relativamente a tudo quanto nesta porventura inexistente página e nas que, na secção “Vida”, se lhe seguirão irei escrevendo, posso, naturalmente, estar enganado; mas, como temos, sempre, de partir de algo para conseguir chegar a alguma parte, considerarei que estou certo até alguém me demonstrar que o não estou, desde que o faça de forma fundamentada, racionalmente credível e logicamente sustentada.

Obstinar-se na defesa do impossível contrário não passa do paradoxo de alguém pretender raciocinar além da razão, assim negando o primado da racionalidade.  Claro que nada é apodítico, a certeza é impossível, desde logo porque, sendo questionável a própria existência da lógica, questionáveis serão fatalmente as suas conclusões.  À falta de argumentação contrária - também ela talvez apenas aparente... -, resta-nos, porém, dá-las como boas, sabendo embora que talvez estejamos a viver aquilo que parece ser o ideal de muitos:  uma ilusão.

Já todos sabemos que a vida é uma sucessão interminável de incontroláveis fatalidades cujos efeitos gastamos a maior parte do tempo a tentar mitigar.  Mas, depois de tudo por quanto temos de passar, seria demasiado mau não passarmos de almas penadas, assim constituindo um excesso claro, improdutivo e condenável o facto de, para parecer diferente, alguém decidir ocupar-se da exaltação do distópico, fingindo que são diferentes as verdades imutáveis às quais, em última análise, uns e outros acabamos por nos arrimar.  Àqueles que, graças a um processo mental cuja existência sou eu que não consigo idealizar, insistem na cómoda presunção da existência de nada, sem ter, sequer, um ponto de partida que lhes permita caminhar até ao próprio e inexorável ponto de chegada, apenas posso sugerir que, porque, se nada existe, nada vale a pena e nada há do que falar, se mantenham silentes na sua nesse caso inexistente zona de conforto, em lugar de se consumirem e à nossa paciência a discursar sobre…  nada.  Pelo menos, sobre nada de que valha a pena falar

Toda esta história acerca da nossa não existência ilustra, assim, muito bem a diferença entre uma ideia boa e uma, como essa, que não passa de uma ideia…  original; como tantas outras que acorrem ao espírito de quem, por ter pouca graça, se esforça por ser, pelo menos…  original.



Afinal, Deus existe mesmo, ou não passa de pura invenção de um ser humano que desespera com a efemeridade da sua existência?

NÃO PERCA uma reflexão lógica, fundamentada, sobre o tema porventura mais elementar e decisivo da vida humana.





A existir um deus, será ele o representado
no teto da Capela Sistina? Jeová? Alá? Manitou?
Ou nenhum destes?

sábado, 15 de maio de 2021


Limpo ou Limpado?

"Não encontrei um único caso em que a forma do
assim chamado particípio passado irregular diferisse
da forma do correspondente adjetivo qualificativo, o que, desde logo,
poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância
consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são,
sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma"

   
   1. A Regra Comummente Aceite
   2. Onde a Lógica Parece Falhar
   3. As Exceções da Mudança


Glossário

Na reflexão que se segue, referir-me-ei a:

 *) particípio passado como uma forma verbal terminada em -ado ou em -ido, declinável em género e número, que se refere a uma ação empreendida no passado pelo sujeito;

*) objeto como a pessoa ou a coisa relativamente à qual foi empreendida essa ação;

Coberto ou cobrido
*) verbo abundante como aquele para o qual se diz coexistirem duas formas de particípio passado, uma delas chamada particípio passado longo, regular ou fraco, e a outra designada por particípio passado curto, irregular ou forte;

*) adjetivo qualificativo como uma palavra declinável em género e em número que indica a natureza ou condição permanente (qualidade) de alguém ou de algo, ou a sua condição temporária (estado);

*) tornar como um verbo que significa transformar ou modificar alguém ou algo, imprimindo-lhe determinado estado ou qualidade diferente do que apresentava antes da ocorrência.

1. A Regra Comummente Aceite

Uma questão das que me parece mais facilmente poderem conduzir, por um lado, à hesitação na escrita ou na fala e, por outro, à ambiguidade na interpretação é a inexistência de uma norma gramatical precisa - e fundamentada em lógica clara e consolidada - quanto à adequada utilização do particípio passado.

Alguma pesquisa empreendida levou-me a concluir que uma regra mais ou menos consensual poderá ser formulada assim:

a)    na voz ativa, isto é, nos casos em que é referida a intervenção do sujeito, enquanto agente, como causadora da alteração da qualidade ou do estado do objeto, emprega-se o chamado particípio passado irregular – como em “depois de eu o ter limpado” -, habitualmente antecedido por uma forma de um dos verbos auxiliares ter ou haver;

b)   na voz passiva, ou seja, nos casos em que é, simplesmente, referida a alteração do estado ou da qualidade do objeto, mas desta vez sendo este o sujeito e indeterminado o agente, emprega-se o designado por particípio passado regular – como em “foi limpo” -, normalmente antecedido por uma forma de um dos verbos ser ou estar, aqui utilizados como auxiliares;

Limpo ou limpado
c)  nos casos em que não existe qualquer ação ou alteração da condição do objeto, mas apenas a informação quanto à mesma, independentemente do tempo - e seja ela temporária ou permanente mas não atribuível a um terceiro - não se emprega qualquer das chamadas formas do particípio passado, mas sim o adjetivo qualificativo – como em “ele é limpo” (ele é uma pessoa limpa), “ele foi limpo” (ele foi, em tempos, uma pessoa limpa), “ele era limpo” (ele era, em tempos, uma pessoa limpa) ou “ele está limpo” (hoje, ele está limpo, embora possa não o estar habitualmente) - também antecedido, habitualmente, de uma forma de um dos verbos ser ou estar, embora aqui atuando como verbo principal, já que, não sendo referida qualquer ação externa que, no passado, haja provocado uma alteração da qualidade ou do estado do objeto, não há lugar à utilização de um particípio passado antecedido por um verbo auxiliar.

2. Onde a Lógica Parece Falhar

O que sintetizei em 1. c) quanto à utilização do adjetivo qualificativo parece pacífico entre as pessoas que, na Internet, se pronunciam sobre este assunto.

Gasto ou gastado
Há, no entanto, que salientar que não encontrei um único caso em que a forma do assim chamado particípio passado irregular referido em 1. b) diferisse da forma do correspondente adjetivo qualificativo – limpo e limpo -, o que, desde logo, poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são, sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma.

Mas o que significa, na verdade, dizer que algo “foi limpo”?  Em que consiste este particípio passado irregular?

Salvo melhor opinião, entendo que “foi limpo” significa que algo “foi tornado limpo”, "foi-lhe dada a qualidade ou estado de limpo", apenas acontecendo que, abreviando por comodidade de expressão, acabamos por omitir a forma do verbo tornar - como em "viu-se (tornado) envolto em polémica".

O particípio passado de “foi limpo” não será, pois, limpo, mas tornado, do que resulta que limpo não é um particípio passado, mas o adjetivo qualificativo que exprime a nova condição – estática - que o objeto passa a apresentar uma vez concluída a ação de em algo diferente o tornar.

Haverá, assim, que reconhecer que o particípio passado do verbo tornar ou de um equivalente se encontra sempre presente, embora omisso, nas frases que exprimem, na voz passiva, uma alteração da qualidade ou do estado de um objeto – que aqui atua como sujeito -, independentemente da forma como é conjugado o verbo auxiliar, sendo, então, forçoso concluir pela inexistência de verbos abundantes com dois particípios passados, um regular e o outro irregular.

Extinto ou extinguido
Com este enunciado bem mais simples e fácil de aplicar, estaremos perante um único particípio passado – terminado em -ado ou -ido (v. 3. infra) correspondente ao atualmente chamado irregular -, que será, na voz ativa, o do verbo principal e, na voz passiva, o do verbo tornar ou, pontualmente, o de uma expressão de significado idêntico, como, por exemplo, mudar para ou transformar em.

Um bom exemplo disso é a expressão, corrente nos tribunais, "foi presente ao juiz de instrução", na qual se não afigura possível negar a presença implícita de tornado, no sentido de "foi-lhe conferido o estado de presente perante o juiz".

Na voz passiva, o particípio passado – elidido – do verbo tornar será, então, seguido pelo adjetivo qualificativo que escolhermos aplicar, atualmente chamado particípio passado regular

Isto, porque, embora omisso, estando na voz passiva o particípio passado de tornar sempre presente, se o limpo que se lhe segue fosse, também ele, classificado como particípio passado - como a atual regra pretende - teríamos dois particípios passados seguidos, algo que me parece que a língua portuguesa não iria suportar.

Note-se, por fim, que, quanto à estrutura da oração no que se refere aos nomes predicativos, quer do sujeito, quer do complemento direto, a nova regra aqui proposta nada vem alterar.

3. As Exceções da Mudança

Falta dizer que, como é sabido, a linguagem corrente se vem encarregando de suprimir alguns dos mais comuns particípios passados terminados em -ado e -ido, metamorfoseando-os em ditas exceções que mais não representam, afinal, do que a cómoda adoção, como particípio passado, da forma tendencialmente mais breve do adjetivo qualificativo (entre outros, feito por fazido, dito por dizido, escrito por escrevido), para já não falar daqueles particípios passados ditos regulares que talvez jamais tenham existido, como os correspondentes a posto, vindo e visto.

Impresso ou Imprimido
Sem prejuízo de ainda ser, porventura, possível fazê-lo, não se afigura razoável pretender que, tanto tempo decorrido a falar e a escrever assim, se deva, agora, reverter esta situação.

Deveremos considerar, também, casos menos claros, como os de internado e interno, cuja utilização caótica e ambígua dificulta o enquadramento numa regra perfeitamente enunciada.

Não obstante, a adoção do que acima proponho poderá levar a que, em nome e na salvaguarda da clareza na expressão, se logre suster a degeneração na ambiguidade a que, inexoravelmente, conduzirá a eliminação das formas ainda resistentes de particípio passado em -ido e -ado, particularmente daquelas que, como no exemplo limpado - e, com ele, em tantos outros como acendido, cobrido, descobrido, dispersado, enchidoganhado, gastado, imprimido, matadoocultado, pagado, prescrevido (surpreendentemente, já que contém “escrevido”), salvado ou sujado -, também se encontram em vias de extinção em benefício da forma do adjetivo qualificativo – a que a regra atual chama “particípio passado regular”.

No sentido inverso, não parece existirem exceções, apenas situações em que a ação não gera alteração da qualidade ou do estado.  É o que acontece, por exemplo, com os particípios passados assassinado, chegado, enganadoobrigado/desobrigado, molhado trazido, para o qual não existe adjetivo qualificativo diferenciado correspondente, numa forma sintética, uma vez que, por exemplo, pelo simples facto de um objeto ser trazido, não fica treito, ou coisa que o valha, mas sim na mesma condição anterior ao facto de ser trazido, a menos que tenha ela sido alterada por qualquer incidente no percurso devido a causa não diretamente inerente ao ato de trazer, logo, irrelevante para o assunto que aqui nos traz.

Pelo que a nova regra agora proposta possa valer, aqui fica ela, para o caso de alguém autorizado a querer considerar, por entender não ser verdade que, para a gente comunicar… “Tanto faz !”.

* *

Este tema dos particípios, do limpo ou limpado é, talvez, um dos mais polémicos e interessantes da gramática portuguesa, ocorrendo a dúvida muito frequentemente e nas mais variadas situações do dia-a-dia.

No entanto, não menos importante e suscetível de gerar dúvidas a cada passo é a velha questão do "aluga-se quartos" ou "alugam-se quartos", "vende-se casas", ou "vendem-se casas".

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


Casos de Particípio Passado "em Risco"

(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista informando no espaço "Comentários")

aberto ou abrido
aceite ou aceitado
aceso ou acendido
assente ou assentado
ativo ou ativado
bento ou benzido
cheio ou enchido
coberto ou cobrido
completado ou completo
concluso ou concluído
corto (regionalismo alentejano) ou cortado
descoberto ou descobrido
disperso ou dispersado
eleito ou elegido
empregue ou empregado
entregue ou entregado
envolto ou envolvido (ex: no crime)
expresso ou expressado
expulso ou expulsado
extinto ou extinguido
enxuto ou enxugado
expulso ou expulsado
farto ou fartado
findo ou findado
frito ou fritado (frigido)
ganho ou ganhado
gasto ou gastado
imerso ou imergido
impresso ou imprimido
incluso ou incluído
isento ou isentado
inserto ou inserido
isento ou isentado
junto ou juntado
liberto ou libertado
limpo ou limpado
morto ou matado
oculto ou ocultado
omisso ou omitido
pago ou pagado
preso ou prendido
prescrito ou prescrevido
revolto ou revolvido
roto ou rompido
salvo ou salvado
seco ou secado
seguro ou segurado
solto ou soltado
submerso ou submergido    
sujo ou sujado
suspenso ou suspendido
tinto ou tingido
vago ou vagado

A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.


sábado, 8 de maio de 2021


As Irresistíveis Tentações do Derradeiro Mandato

"(...) um primeiro-ministro sem dúvida hábil, mas essencialmente tático,
nunca um estratega, que, lutando para evitar expor-se a coligações negativas
e para repristinar antigas mas preciosas alianças,
mais vulnerável se tornaria a um erro magistralmente provocado"

As razões subjacentes à limitação da quantidade de mandatos consecutivos no desempenho de um cargo imposta a quem a ele pretende candidatar-se sempre alimentarão um debate político mais ou menos acalorado, como não pode deixar de ser.

Parece, inversamente, consensual o facto de, seja qual for o cargo, a impossibilidade de reeleição antes do interregno correspondente a, pelo menos, o tempo de duração efetiva do seguinte, de alguma forma libertar o recém-eleito para um derradeiro mandato para lhe imprimir um cunho pessoal, mais consentâneo com a sua forma de pensar ou de ser.  Alternativamente, poderá viabilizar, sem temor de consequências políticas negativas relevantes e em benefício do partido da sua predileção, uma atuação de oposição mais ou menos subtil a indivíduos de outra cor política que sejam titulares de outros órgãos de soberania ou afins.

Esta libertação da necessidade de assegurar a reeleição torna-se particularmente sensível em pessoas mais próximas do termo da carreira política, que já não considerem razoável ou desejável, após o jejum obrigatório, recandidatar-se a novo mandato.

No caso da oposição política em benefício do partido ou da área política da sua simpatia, convirá, apesar de tudo, cuidar de que a oposição não seja frontal, declarada, sob pena de facilmente poder ser, pelo eleitorado, imputada ao titular a responsabilidade por uma mais ou menos tácita declaração de guerra aberta ou fria, qualquer delas assaz contraproducente face aos objetivos que o pudessem nortear.

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Exemplificando, como poderia, por exemplo, um presidente da república de um estado cuja constituição proibisse a eleição para um terceiro mandato consecutivo quebrar, sem que a iniciativa lhe pudesse ser diretamente associada, uma para ele monótona e sensaborona relação de solidariedade institucional com o primeiro-ministro de um governo algo perdido, atarantado? Como atrair, nos primeiros dias do mandato, a atenção generalizada? Como garantir um protagonismo que lhe permitisse, ainda que informalmente, governar em seara alheia, sabendo que o neutro nada significa mas que, ao que vibra, ninguém fica indiferente?

Uma oportunidade caída do céu seria, entre tantas possíveis, o parlamento desse estado aprovar, em dada altura, contra a vontade do partido do governo e violando formalmente a Constituição por agravar a despesa global do Estado prevista no orçamento, legislação em benefício claro de uma parte da população*) particularmente fragilizada e debilitada pelo impacto de uma catástrofe ao tempo vivida e particularmente sentida.

Tal facto faria, quiçá, acorrer ao espírito de um omnipresente presidente uma original e brilhante - porquanto esguia - fundamentação para a decisão de, não obstante, promulgar os diplomas sem suscitar a fiscalização preventiva da respetiva constitucionalidade; ou não tivesse um outro presidente lembrado que “escrita em chinês, a palavra`crise´ é composta por dois caracteres: um deles, representa perigo, e o outro representa oportunidade” *).

A originalidade poderia, no nosso exemplo, residir na invocação de uma possível prática reiterada, por parte do governo de, em todos os anteriores exercícios, haver assegurado que o montante total da despesa autorizado pelo parlamento nos correspondentes orçamentos gerais do estado não seria atingido*), assim permitindo ao presidente, em presença da oportunidade de iniciar hostilidades, alegar que, dado o valor irrisório das migalhas a distribuir quando comparado com a montanha do orçamento – da qual, porventura, nem um por cento representaria -, dificilmente aquele excederia o das quase certas poupanças que estariam para vir, assim não havendo razão para acreditar que, nas contas finais, viria, de facto, a exceder-se o montante global da despesa orçamentada.

O brilhantismo estaria, por sua vez, no facto de dificilmente o órgão fiscalizador poder deixar de se pronunciar pela inconstitucionalidade caso fosse o governo a levantar a dúvida*), uma vez que a este, e só a este, seria possível conhecer, de antemão, a intenção de apertar, ou não, o cinto no exercício em apreço - apesar de, estranhamente, após um discurso de afrontamento proferido pelo primeiro-ministro, o ministro das finanças até poder ter dito que a despesa seria acomodável.

Seria, então, de assumir que, no caso de pedir a fiscalização sucessiva, o faria o governo por estar a prever que o valor total não despendido seria inferior ao do acréscimo imposto à despesa pela nova medida aprovada, assim resultando aquela, inevitavelmente, agravada pela contestada decisão do parlamento, tomada em claro desrespeito pela norma-travão constitucional*).

Num tal cenário, sempre o presidente ficaria ilibado de qualquer responsabilidade pela decisão de promulgar a legislação sem suscitar a fiscalização preventiva, uma vez que não seria razoável alguém exigir-lhe que, também de antemão, conhecesse, quanto à execução orçamental, as intenções do governo, preferindo promulgar a nova medida perante a por ele considerada efetiva constitucionalidade do cumprimento dos novos diplomas.

Se, contra todas as expetativas, a inconstitucionalidade não fosse declarada em sede da fiscalização sucessiva pedida pelo governo, o presidente teria tido razão ao promulgar, pelo que nada lhe poderia ser censurado – mormente no caso de a execução orçamental ser a por ele antevista e o impacto das novas leis acabado por ser insuficiente para violar o limite da despesa global.

Por outro lado, se, como o presidente esperaria, fossem chumbadas as novas leis, os dividendos políticos seriam, para ele, bem evidentes: no caso de a decisão ser conhecida antes de se dar início à distribuição do dinheiro, nunca poderiam os desiludidos potenciais beneficiários – e eleitores – recriminá-lo pelo facto de, afinal, esta nem ter chegado a acontecer; no caso melhor ainda de a distribuição já haver começado, seria o primeiro-ministro o responsável por uma eventual, porquanto improvável, obrigatoriedade de devolução de algo que já tinha sido dado e, depois, viria a ser tirado sem que a maior parte dos lesados chegasse a compreender bem porquê; ouro sobre azul seria coincidir com este segundo cenário a proximidade de eleições em que o dirigente no zigamocho da estrutura hierárquica do partido apoiante do presidente enfrentasse a aniquilação política no caso de um desaire eleitoral em eleições já bem próximas no tempo*). Qualquer político ou cidadão dito comum bem sabe que, como sabiamente cantavam os Abba... "the winner takes it all".

O momento aparentemente menos feliz do presidente, por muitos apontado e estranhado, não teria, desta forma, passado de um golpe de mestre desferido sobre um talvez demasiado confiante primeiro-ministro de outro quadrante político, com objetivos que até nem seriam difíceis de adivinhar.

Sobretudo se se tratasse de um primeiro-ministro sem dúvida hábil, mas essencialmente tático, nunca um estratega, que, lutando para evitar expor-se a coligações negativas e para repristinar antigas mas preciosas alianças, mais vulnerável se tornaria a um erro magistralmente provocado*).

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Na eventualidade de o presidente ser, também, um eminente jurista, sempre o palanfrório de alguns entendidos - desses que, um pouco por toda a parte, gravitam próximos de redações de revistas, de jornais e de estações televisivas – não resistira a apontar-lhe o erro técnico da decisão de promulgar.  Mas, mesmo a existência desse erro, seria muito discutível em presença da tal fundamentação original e brilhante, para não falar do facto, que facilmente poderia ter passado despercebido, de que o primeiro erro - o erro essencial, a verdadeira inconstitucionalidade -, havia sido cometido por um presidente do parlamento manifestamente à deriva até no quotidiano da condução dos trabalhos, que tivesse caído na asneira de admitir à discussão e votação projetos cuja mera apresentação a Constituição proibisse; tudo isto, apenas no nosso exemplo, claro está.

Num tal caso, sempre o presidente da república poderia sustentar que não estava sozinho no seu entendimento pela constitucionalidade, já que, fosse diverso o do presidente do parlamento, não haveria, certamente, a legislação sido admitida na câmara - mormente se, para cúmulo, se tratasse de um presidente do parlamento da mesma cor política do governo contestatário…

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Tratei aqui, como disse, de um exemplo unicamente destinado a ilustrar esta pequena reflexão, pelo que qualquer semelhança com pessoas ou factos reais em qualquer parte do Mundo não passará de mera coincidência.

No entanto, porque todos somos humanos e a tentação é grande, por muito louváveis que sejam as intenções e inquestionáveis a inteligência magnífica e o espírito de missão do presidente da república, também em qualquer parte do Mundo, outros episódios – talvez muitos outros - com motivações de afirmação de protagonismo ou de simpatia política semelhantes às que associei à historieta que acabo de inventar, até ao termo de qualquer derradeiro mandato serão de esperar.

Ut flatus venti, sic transit gloria mundi.

sábado, 1 de maio de 2021


Os Factos e os Seus Atos

"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"


   1. O Descrédito Crescente dos Dicionários
   2. Polissemia que Degenera em Confusão
   3. Confusão no Tribunal
   4. Notas Finais


1. Descrédito Crescente dos Dicionários

O que é um dicionário?

As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas, bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.

Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e rigorosos.

Isto, era dantes.

No século XXI, o significado de dicionário parece ter-se alterado substancialmente, por vezes mais não parecendo agora muitos deles do que róis de palavras seguidas da indicação, não apenas de significados reais, como, muito além da há muito estabelecida polissemia, também daqueles que, quase a esmo, vão elas vendo ser-lhes arbitrariamente acrescentados a um ritmo que os formatos digitais tornam cada vez mais alucinante, assim bem evidenciando o crescente primado da quantidade sobre a qualidade, como se o melhor dicionário fosse aquele que atinge uma maior média na quantidade de significados propostos por palavra. Não tardará que alguém invente um critério objetivo, uma norma europeia, para os classificar como, talvez, uma MSPP, com isto significando média de significados possíveis por palavra, independentemente do rigor, da objetividade e da fiabilidade da enumeração.

O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.


2. Polissemia que Degenera em Confusão

A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet, mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.

Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado.  [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.

Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.

Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.

Já aos outros, que querem lá saber, que propalam a anomia linguística ou se limitam a, de forma mais ou menos subserviente, continuar a confiar cegamente no que dizem dicionários de pouco crédito - para os quais, não obstante, olham com os mesmos maravilhados olhos com que mirávamos os rechonchudos e valiosos dicionários em papel do meu tempo de escola - bastará neles lerem que “Tanto faz! uma coisa como outra para não hesitarem em, por sua vez, atirar para o ar ou para o papel a primeira que lhes vier à cabeça, ou a que lhes parecer mais bonita, ou mais rebuscada – para parecer bem –, ou seja qual for e por que for.

Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente acontecimento (facto) não existe confusão possível: o segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas, desses naturais acontecimentos.

Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.

Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.

Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.

Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.

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Qual é, então, a função de um dicionário?

Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?

Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá que, além da vintena de significados que já lhe atribuem, rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora é uso dizer-se nas redes supostamente sociais.  Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém descobriu como rasgar.

Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.


3. Confusão no Tribunal

Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como escrita, em que substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém, a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.

Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.

O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados.  Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.

Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião, facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito previamente existente.  Já por ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que, se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou meramente culposo.

Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis. 

Consequentemente, ninguém pode ser responsabilizado pela mera ocorrência de um facto, mas,  unicamente, pela eventual autoria de um ato que, direta ou indiretamente, o haja provocado: pratica-se atos, comete-se crimes ou contravenções, enquanto os factos ocorrem, espontâneos ou provocados.

Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)

Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?

Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?

Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?

Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa, porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a perder.

No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).

Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real, decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito pelas regras gramaticais.

Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.

Como acontece com a generalidade das peças jurídicas, a decisão judicial apenas é credível – logo, respeitável - se arrimada na análise rigorosa dos atos e dos factos, bem como, naturalmente, do direito a que eles possam ser subsumidos. Esta fundamentação precisa e objetiva é essencial e incompatível com qualquer tipo de indiferença ou de facilitismo, designadamente o lexical, assim não se afigurando possível olhar como boa uma decisão baseada em conceitos que, na mente do julgador, são, patentemente, vagos e confusos: como poderá levar a cabo uma judiciosa análise da prova – dos factos e dos atos na respetiva origem - e decidir qual o Direito aplicável, alguém que até uma distinção tão elementar como a que existe entre facto e ato demonstra ser incapaz de entender?

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4. Notas Finais

Não é verdade que Tanto Faz! 

A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.

Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.

Não basta saber:  é preciso saber dizer.

* *

Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.

Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.