"(...) um primeiro-ministro sem dúvida hábil, mas essencialmente tático,
nunca
um estratega, que, lutando para evitar expor-se a coligações negativas
e
para repristinar antigas mas preciosas alianças,
mais vulnerável se
tornaria a um erro magistralmente provocado"
As razões subjacentes à limitação da quantidade de mandatos consecutivos no desempenho de um cargo imposta a quem a ele pretende candidatar-se sempre alimentarão um debate político mais ou menos acalorado, como não pode deixar de ser.
Parece, inversamente, consensual o facto de, seja qual for o cargo, a
impossibilidade de reeleição antes do interregno correspondente a, pelo menos,
o tempo de duração efetiva do seguinte, de alguma forma libertar o
recém-eleito para um derradeiro mandato para lhe imprimir um cunho pessoal,
mais consentâneo com a sua forma de pensar ou de ser.
Alternativamente, poderá
viabilizar, sem temor de consequências políticas negativas relevantes e em
benefício do partido da sua predileção, uma atuação de oposição mais ou menos
subtil a indivíduos de outra cor política que sejam titulares de outros órgãos
de soberania ou afins.
No caso da oposição política em benefício do partido ou da área política da
sua simpatia, convirá, apesar de tudo, cuidar de que a oposição não seja
frontal, declarada, sob pena de facilmente poder ser, pelo eleitorado,
imputada ao titular a responsabilidade por uma mais ou menos tácita declaração
de guerra aberta ou fria, qualquer delas assaz contraproducente face aos
objetivos que o pudessem nortear.
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Exemplificando, como poderia, por exemplo, um presidente da república de um
estado cuja constituição proibisse a eleição para um terceiro mandato
consecutivo quebrar, sem que a iniciativa lhe pudesse ser diretamente
associada, uma para ele monótona e sensaborona relação de solidariedade
institucional com o primeiro-ministro de um governo algo perdido, atarantado?
Como atrair, nos primeiros dias do mandato, a atenção generalizada? Como
garantir um protagonismo que lhe permitisse, ainda que informalmente,
governar em seara alheia, sabendo que o neutro nada significa mas que,
ao que vibra, ninguém fica indiferente?
Uma oportunidade caída do céu seria, entre tantas possíveis, o parlamento desse estado aprovar, em dada altura, contra a vontade do partido do governo e violando formalmente a Constituição por agravar a despesa global do Estado prevista no orçamento, legislação em benefício claro de uma parte da população*) particularmente fragilizada e debilitada pelo impacto de uma catástrofe ao tempo vivida e particularmente sentida.
Tal facto faria, quiçá, acorrer ao espírito de um omnipresente presidente uma original e brilhante - porquanto esguia - fundamentação para a decisão de, não obstante, promulgar os diplomas sem suscitar a fiscalização preventiva da respetiva constitucionalidade; ou não tivesse um outro presidente lembrado que “escrita em chinês, a palavra`crise´ é composta por dois caracteres: um deles, representa perigo, e o outro representa oportunidade” *).
O brilhantismo estaria, por sua vez, no facto de dificilmente o órgão fiscalizador poder deixar de se pronunciar pela inconstitucionalidade caso fosse o governo a levantar a dúvida*), uma vez que a este, e só a este, seria possível conhecer, de antemão, a intenção de apertar, ou não, o cinto no exercício em apreço - apesar de, estranhamente, após um discurso de afrontamento proferido pelo primeiro-ministro, o ministro das finanças até poder ter dito que a despesa seria acomodável.
Seria, então, de assumir que, no caso de pedir a fiscalização sucessiva, o faria o governo por estar a prever que o valor total não despendido seria inferior ao do acréscimo imposto à despesa pela nova medida aprovada, assim resultando aquela, inevitavelmente, agravada pela contestada decisão do parlamento, tomada em claro desrespeito pela norma-travão constitucional*).
Num tal cenário, sempre o presidente ficaria ilibado de qualquer
responsabilidade pela decisão de promulgar a legislação sem suscitar a
fiscalização preventiva, uma vez que não seria razoável alguém exigir-lhe que,
também de antemão, conhecesse, quanto à execução orçamental, as
intenções do governo, preferindo promulgar a nova medida perante a por ele
considerada efetiva constitucionalidade do cumprimento dos novos diplomas.
Se, contra todas as expetativas, a inconstitucionalidade não fosse declarada
em sede da fiscalização sucessiva pedida pelo governo, o presidente teria tido
razão ao promulgar, pelo que nada lhe poderia ser censurado – mormente no caso
de a execução orçamental ser a por ele antevista e o impacto das novas leis
acabado por ser insuficiente para violar o limite da despesa global.
O momento aparentemente menos feliz do presidente, por muitos apontado e
estranhado, não teria, desta forma, passado de um golpe de mestre desferido
sobre um talvez demasiado confiante primeiro-ministro de outro quadrante
político, com objetivos que até nem seriam difíceis de adivinhar.
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Na eventualidade de o presidente ser, também, um eminente jurista, sempre o
palanfrório de alguns entendidos - desses que, um pouco por toda a parte,
gravitam próximos de redações de revistas, de jornais e de estações
televisivas – não resistira a apontar-lhe o erro técnico da decisão de
promulgar. Mas, mesmo a
existência desse erro, seria muito discutível em presença da tal
fundamentação original e brilhante, para não falar do facto, que facilmente
poderia ter passado despercebido, de que o primeiro erro - o erro essencial, a
verdadeira inconstitucionalidade -, havia sido cometido por um presidente do
parlamento manifestamente à deriva até no quotidiano da condução dos
trabalhos, que tivesse caído na asneira de admitir à discussão e votação
projetos cuja mera apresentação a Constituição proibisse; tudo isto,
apenas no nosso exemplo, claro está.
Num tal caso, sempre o presidente da república poderia sustentar que não
estava sozinho no seu entendimento pela constitucionalidade, já que, fosse
diverso o do presidente do parlamento, não haveria, certamente, a legislação
sido admitida na câmara - mormente se, para cúmulo, se tratasse de um
presidente do parlamento da mesma cor política do governo contestatário…
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No entanto, porque todos somos humanos e a tentação é grande, por muito
louváveis que sejam as intenções e inquestionáveis a inteligência magnífica e
o espírito de missão do presidente da república, também em qualquer parte do
Mundo, outros episódios – talvez muitos outros - com motivações de afirmação
de protagonismo ou de simpatia política semelhantes às que associei à
historieta que acabo de inventar, até ao termo de qualquer derradeiro mandato
serão de esperar.
Ut flatus venti, sic transit gloria mundi.