“A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva
e fastidiosa,
em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em
que nenhuma luz consigo traz
que esclareça e nos ajude a viver em
paz”
“Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações
a quente
baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da
razão,
como a razão pobre de uma repetitiva, dogmática, confusa,
rebuscada
e nada convincente interpretação”
1. O Pomo da Discórdia
2. Como Interpretar?
2.1. Perspetiva Imediatista
2.2. Perspetiva Eclesial
2.3. Perspetiva Histórica
2.4. Perspetiva Teleológica
2.4.1. As Relações Sociais Como Objetivo
Primeiro das Cartas
2.4.2. A Motivação Escondida na Polémica
Passagem
2.4.3. Alquimia
2.4.4. Valorização
3. Prática Eclesiástica
3.1. Duas Questões de Legitimidade
3.2. A Questão da Utilidade
4. Conclusão
1. O Pomo da Discórdia
Era inevitável, como sempre o é quando, a cada três anos por esta mesma
altura, é lida nas celebrações eucarísticas o excerto da Epístola aos Efésios
que, literalmente, reza “As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a
cabeça da mulher (…)”*) (Ef 5:22), tal como em Colocenses 3:18 por outras palavras se diz o
mesmo.
Quando, por obra de Deus para uns, para cúmulo do azar para outros, manda o
calendário que este excerto seja lido numa conjuntura em que a questão da
submissão das mulheres domina a cena política e social em virtude da tomada do
poder pelos Talibãs no Afeganistão, inevitável se torna que múltiplas línguas
e penas venham manifestar-se sobre o assunto, embora os estafados argumentos
sejam os de sempre e as palavras pareçam, muitas vezes, provir de cérebros
cristalizados, seja em anquilosadas ideias de tempos há muito passados, seja
em reações emocionadas por parte de quem se sente ultrajado, seja, ainda, em
aproveitamentos políticos ou de mero exibicionismo de quem acha que sempre
fica bem dizer alguma coisa.
2. Como Interpretar?
Variadas são, necessariamente, as perspetivas com que deparamos, diversas as
motivações, embora praticamente inexistentes as fundamentações verdadeiras,
sérias, profundas, que permitam erradicar a emotividade recorrente e
descabida, e aliviar o patente embaraço de quem não consegue explicar.
Sintetizemos, antes de mais, as duas visões tradicionais,
debruçando-nos, então, sobre duas abordagens alternativas que procurarei
fundamentar.
2.1. Perspetiva Imediatista
Escusado será dizer que a primeira e, porventura, única reação natural, nos
dias que correm, à mera ideia de submissão será, inevitavelmente de rejeição,
quer se trate de mulheres, de homens ou de animais de estimação; e é natural
que assim aconteça, dada a profusão de escritos em linguagem críptica
elaborados muitos séculos atrás, de ideias que a forma rebuscada impede muitos
cérebros de encontrar, de manifestações radicais por parte de gente simples
mas de ânimos deliberadamente exaltados por terceiros empenhados em divulgar
mensagens de legitimidade duvidosa, associadas a causas mais ou menos
subversivas que escolheram fomentar e divulgar.
Não se trata, porém, de uma rejeição de origem racional, resultante de cuidada
análise da ideia, como seria de esperar de seres que se consideram superiores
aos restantes ou, pelo menos, deles diferenciados: tal como há
certos hábitos que parecem colar-se-nos à pele, encontramo-nos, neste caso, no polo oposto, perante uma espécie de reação
alérgica de substrato cultural; como que uma espécie de erupção cutânea, de
incontrolável brotoeja, perante a imagem clássica do tipo bronco que, enquanto
vê a bola na têvê, atira para a mulher um “Vai-me aí buscar uma cerveja! Bem fresquinha, hã? Héhéhé!” e fica todo acabrunhado quando ela, lhe responde “Vai lá tu!”, como,
em qualquer terra civilizada, sempre deveria acontecer.
Igualmente irrefletida é a postura daqueles que entendem que submissão
implica, em qualquer caso dominação por outrem, o que, como veremos, não é
inevitavelmente verdade.
No quadro das reações primárias, encontramos, por fim, aqueles que, ignorantes
do facto de as leituras das celebrações eucarísticas estarem, pela Igreja
Católica, há muito, definidas para datas precisas em ciclos que,
de forma automática, se renovam a cada três anos, reagem tolamente,
pretendendo que
a Igreja não deixou de aproveitar os acontecimentos que, no Afeganistão,
ocorreram dias antes para veicular uma mensagem retrógrada e machista,ou
que, pelo menos, a coincidência não evitou*).
Parece, assim, generalizada a tendência para uns e outros reagirem
a quente relativamente a um tema delicado, que se quer tratado com o
distanciamento e a lucidez essenciais à evolução de uma ideia até patamares de
sustentação que a permitam credibilizar e sedimentar.
A discussão é boa e saudável apenas até ao ponto em que se torna repetitiva e
fastidiosa, em que se transforma em gritaria que já se não ouve, em que
nenhuma luz consigo traz que esclareça e nos ajude a viver em paz.
2.2. Perspetiva Eclesial
Na Igreja Católica há quem diga que a polémica passagem bíblica pretende
significar que a mulher e o homem são um só, pelo que ninguém é superior a
quem quer que seja. Mas, como é hábito na Igreja, não fundamenta, não
esclarece a razão pela qual, no seu entendimento, haveremos de interpretar as
Escrituras precisamente ao contrário do
inequívoco sentido das palavras que nelas lemos ou nos chegam aos ouvidos
quando lidas no ambão*).
Os bispos portugueses remetem, por sua vez, para o contexto do direito
familiar romano que punha em relevo o papel do marido como
pater familias, não se apercebendo, porventura, Suas Excelências
Reverendíssimas do gritante contrassenso em que tropeça quem sustentar que uma
carta dirigida a indivíduos perseguidos pelos Romanos se baseava,
precisamente, no direito e na prática impostos pelos mesmos perseguidores: “Tal como os opressores privilegiam o papel do marido fazei-o vós também”?
Como poderia, com tal argumento, um autor pretender pregar eficazmente a
libertação pela Fé a partir de uma visão que acabava por, implicitamente,
legitimar e, até, advogar a medonha realidade então vivida? (v. 2.3.)
Notoriamente enervado e pouco à vontade num debate televisivo vazio de novos
argumentos ou ideias, diz um simpático e jovial ancião jesuíta que a Igreja
está a mudar na sua forma de encarar as mulheres, mas que muito caminho há,
ainda, a percorrer, limitando-se a sorrir quando confrontado, por exemplo, com
a impossibilidade de ordenação de sacerdotizas. Sustenta, também que no texto
em grego, se lê subordinação, e que o conceito de
submissão agora referido se degradou na nossa cultura.
Mas, em que enriquece isto a discussão?
Não é verdade que subordinação, submissão, o que queiram chamar-lhe, é, e
será sempre, razão mais do que suficiente para pôr os cabelos das mulheres
de hoje em pé - e não apenas os das radicais que se dizem feministas?*)
O jogo de palavras é aqui inane, baseia-se em suposta erudição, na opinião, no
dogma, atitude tão querida da Igreja e que, uma vez mais apenas evidencia a
falência da patrística e a sua fragilidade perante a manifesta dificuldade de
chegar à verdade das coisas pela via da razão, a única capaz de frutificar no
seio de uma assembleia cada vez mais exigente no que se refere à clareza e à
racionalidade da pregação.
Fala, também, a Igreja do papel preponderante de Saulo de Tarso, chamado São
Paulo na promoção da igualdade entre todos os seres humanos, designadamente
entre mulheres e homens.
Mas, como pode defender-se tal tese se, no mesmo texto e apesar daquilo que
reza a saudação, se afirma que não foi o dito Saulo que redigiu a Carta aos
Efésios?*) A ser assim, a que propósito vem a associação dessa defesa da igualdade
a alguém que, por não ser o autor da Epístola aos Efésios, com tal defesa nada
tem a ver?
A capacidade inventiva da Igreja Católica reconhece-se nas muitas e variadas
tentativas de suposta clarificação de algo que parece bem claro, por muito que
a ela possa doer; mas, em lugar de esclarecer o que quer que seja, todas elas
parecem já desesperadas na evidente ineficácia comprovada pelo facto de não
terem, ao longo dos tempos, sido capazes de encerrar a discussão; de, em lugar
de ser convincentes, cada vez mais descolarem da realidade, de nada, afinal,
nos fazerem entender.
Continua a fundamentação a limitar-se ao magíster dixit dirigido
a uma audiência que a Igreja parece ainda não ter entendido que, para o bem ou
para o mal, a explosão mediática já tirou daquele nível primário em que a
palavra dos mestres era aceite sem discussão, e para a qual alguém dizer por
dizer que é assim porque é assim, leva a nada, explica nada, convence nada.
Absolutamente nada.
2.3. Perspetiva Histórica
Non probandum factum notorium, pelo que, globalmente falando,
desnecessário se torna demonstrar a superioridade da capacidade física do
homem relativamente à da mulher. É, também, sabido que
Gutenberg*) viveu no século XV, só bastante tempo depois tendo o Ocidente começado
a saber o que era a impressão em série e o livro de aspeto e divulgação de
alguma forma semelhantes aos atuais.
Não será, pois, de admirar que, à data e nas paragens em que, no século I
d.C., terá sido escrita a Carta aos Efésios, o ganha-pão da grande maior parte
das famílias fosse o trabalho braçal, para o qual o homem estava
incomparavelmente mais bem equipado, e que o trabalho intelectual não passasse
de algo tão remoto para a quase totalidade dos mortais, que dele mal se ouvia,
sequer, falar.
O homem andava a trabalhar por fora, confraternizando e trocando impressões -
não apenas no decurso da atividade laboral propriamente dita mas, para muitos
pequenos agricultores e operários por conta própria, ao negociar a compra das
matérias primas e dos utensílios e, mais tarde, a venda do fruto do seu
esforço. À fisicamente menos possante mulher cabia ficar a cuidar da casa e da
prole, limitando, provavelmente, os seus contactos com outras gentes à
tagarelice nas raras vezes em que ia até ao mercado buscar aquilo com que a
terra, o curral ou o galinheiro não abasteciam diretamente a despensa.
O imediato e inevitável efeito desta diferença de papéis ditada pela estrutura
física de cada um, terá, assim, sido a aquisição de mais amplos conhecimentos
pelo homem do que pela mulher, por isso entendendo o autor da Carta aos
Efésios que “o homem é a cabeça da mulher”; e isso, por uma questão das
mais elementares lógica e sensatez, acabaria por legitimar que a palavra dele
fosse mais considerada e prevalente do que a dela, que detinha um ainda muito
mais reduzido acervo de informação que servisse de base às decisões a
tomar.
Por muito que hoje nos possa chocar, não há como negar que,
in illo tempore, a realidade era esta, e seria tolo e descabido alguém
pregar, na altura, que a mulher deveria ser ouvida em pé de igualdade com o –
pouco – mais instruído marido, sem prejuízo, naturalmente, de o “maridos, amai as vossas mulheres” inevitavelmente conter a mensagem de que a opinião dela deveria ser
considerada – até porque, em circunstâncias normais, ela uma parte da
informação assimilada pelo homem através dele viria a conhecer e, por seu
turno, a processar também.
Esta última parte, meramente em tese, já que tampouco será difícil imaginar os
abusos e desmandos a que um tal quadro não deixaria de convidar pessoas mal
formadas e de instintos descontrolados e perversos. Não obstante, e para o que
aqui nos interessa, esta perspetiva histórica não deverá ser esquecida quando
polémicos trechos textos bíblicos se trata de procurar interpretar.
2.4. Perspetiva Teleológica
Os textos sagrados tendem a ser encarados unicamente como mais ou menos
dogmáticas exortações à Fé absoluta e inabalável em Alguém que é porque é, e
cuja existência não carece de demonstração – contrariamente ao que
aqui já defendi quando procurei, à margem da Fé, tal existência demonstrar.
Assim encarados os textos, não causará espanto a cada vez menor adesão
efetiva de fiéis: uma coisa é declarar-se “católico” aos
Censos do Instituto Nacional de Estatística(INE)*), enquanto outra, bem diferente, é acreditar; e, sobretudo, praticar, já que,
enquanto acreditar tem a ver com Fé, a religião é a prática,
assim não passando a declaração de “católico” ao INE, na maior parte
dos casos, de uma rematada mentira por parte de quem não pratica o que quer
que seja; ou, vá lá, de uma
imprecisão motivada por uma generalizada incapacidade de destrinçar conceitos
entre católico por vontade própria e o bem mais prosaico
batizado por vontade dos progenitores.
Tenha-se a coragem de acrescentar aos inquéritos a pergunta “Participa ou, pelo menos, assiste regularmente a atividades da confissão
religiosa a que pertence” e rapidamente os números cairão para escassos dez ou vinte por cento… se
tanto. Tal como “são muitos os chamados, mas poucos os escolhidos”,
haverá muitos que se dizem crentes, mas muito poucos os que uma
religião acabem, efetivamente, por professar e praticar.
Ora, como facilmente se extrai da leitura dos primeiros capítulos, não foge a
Carta aos Efésios ao tal objetivo primordial de exortar à Fé. Não é, no
entanto, esta a motivação única, sendo possível encontrar numa outra uma
possível explicação para a infeliz expressão cuja discussão aqui nos ocupa:
“As mulheres submentam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a
cabeça da mulher (…)”.
2.4.1. As Relações Sociais como
Objetivo Primeiro das Cartas
As Epístolas destinavam-se a ser lidas perante a assembleia durante atos de
culto evidentemente destinados a adultos e jovens a caminho da independência.
Não é, na verdade, concebível esperar que mensagens como “Filhos, obedecei a vossos pais” (Ef 6-1) se destinassem a crianças ou a adolescentes de tenra idade
inevitavelmente ausentes do ato de verdadeira temeridade que, em ambiente
fortemente adverso, era a participação nessas proibidas reuniões; e que, além
do mais, não teriam, ainda, maturidade para entender e apreender a essência
daquilo que as Cartas pretenderiam transmitir.
Cumpre, assim, concluir que a dita exortação à obediência filial não visava,
propriamente, a obediência de crianças no ambiente do lar onde, encorajadas
por oportuno corretivo, seriam facilmente impedidas de se portar mal: a
exortação à obediência – essencial à manutenção de um bom ordenamento social
ao qual sempre será essencial o conselho dos mais velhos - tinha como
destinatários os filhos menos jovens e os já adultos, cujo respeito e
obediência não poderiam ser impostos, apenas
promovidos pelo convite e pela
persuasão.
Na mesma linha, se tornaria desnecessária e inane a exortação à submissão das
mulheres se fosse entendido – como agora parece haver quem queira supor – que
ela poderia ser imposta pela força física no seio da família:
àquilo que é imposto pela força, será estúpido e inútil continuar a
convidar.
Aparece, assim, a referência à submissão mais como um convite a um ato maduro,
voluntário e unilateral, por parte da mulher, de aceitação da orientação do
marido, baseada no reconhecimento de um mais lato conhecimento da vida por
parte dele, do que como um supérfluo e inútil convite ao conformismo submisso
com uma situação consumada à qual as consortes não pudessem escapar
Tal como no caso dos conselhos aos filhos mais velhos, essa atitude
recomendada às esposas extravasaria, naturalmente, o comportamento nas
quatro paredes do lar, assim assumindo relevante papel na génese da nova
sociedade que se pretenderia edificar.
Estaríamos, desta forma, na Carta aos Efésios muito mais perante um código de conduta social do que a tratar de normas de
relacionamento estritamente familiar.
2.4.2. A Motivação Escondida
na Polémica Passagem
Nenhum país, por mais tirânico, por mais numerosas equipadas e treinadas que
sejam as suas forças militares e de segurança, alguma vez conseguirá fazer
cumprir a lei e manter a ordem a não ser, antes de mais, graças ao temor do
castigo que, numa vida depois da morte - que poucos se atrevem a,
absolutamente, negar - sobre cada um poderá cair no caso de passar a vida
terrena a prevaricar.
As igrejas – por isso mesmo habitualmente ajudadas financeiramente pelos
estados - são, pois, indispensáveis como garante primeiro da estabilidade e da
paz, atuando as referidas forças da ordem como instrumentos de natureza
complementar, já que, sem o temor do que poderá vir depois da morte, não
haveria quem controlasse as forças da ordem nem orçamento do Estado para, em
quantidade suficiente de efetivos, as contratar.
Exceção a esta regra não é, decididamente, a Igreja Católica, mesmo nos seus
primeiros tempos, não sendo imaginável que fosse possível implementar os seus
ditames e princípios no quadro caótico de dissolução de costumes de que Roma
era, à época, apanágio.
Ora, é, precisamente, do combate a essa dissolução de costumes que a
Carta aos Efésios vem ocupar-se, não sendo aceitável a lacuna hermenêutica de
qualquer abordagem que a não contemple, sobretudo quando é o próprio Autor que
expressamente o declara (Ef 1, 14-19), seja ele quem for.
Juntando a isto o que em 2.4.1 foi dito quanto a serem as relações sociais
aquilo que, com as epistolares exortações, se pretendia normalizar, a ideia de
as mulheres se submeterem às orientações dos maridos e de, como corolário,
estes amarem as suas mulheres parece muito mais provavelmente associada
a uma intenção inequívoca, porquanto tácita, de apelar à fidelidade de
umas e de outros, fidelidade essa já então, como hoje, obviamente
basilar na construção e preservação do modelo estável de sociedade sem o qual
a mensagem cristã será, em qualquer tempo, impossível de vivenciar.
Também a ideia de fidelidade estará na base do pedido de que os maridos
amem as suas mulheres, pedido que faz, aliás, tão pouco sentido como a
promessa de uns e outros se amarem, mutuamente, que é pedida a quem nos nossos
dias se casa. É que, sendo o amor um sentimento, e não um ato de
vontade, não é algo que se possa impor ou pedir, antes uma emanação do
espírito com a qual nenhum humano alguma vez se poderá comprometer: ama-se e
deixa de se amar, sem que tal possa ser entendido como quebra de uma promessa
de cumprimento à partida humanamente impossível de assegurar.
Submetei-vos, amai-vos, ou melhor, sede fiéis no interesse da sociedade
que procuramos construir, parece, assim, ser tudo quanto, na rebuscada
linguagem litúrgica, Saulo de Tarso ou alguém por ele pretendia transmitir; e
vós, todos, “sede submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5,
21), ou depressa não vai haver quem tenha mão nisto - como, nos nossos dias,
cada vez mais parece que já não há.
2.4.3. Alquimia
O problema que subjaz a toda esta discussão é o de que, como escreveu um
filósofo, psicanalista e sociólogo contemporâneo, “a maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o
problema de ser amado, e não o problema da própria capacidade de amar”.
Por outras palavras, as pessoas juntam-se, casam-se como um meio para alcançar a própria felicidade, e não para, por amor, tudo fazerem para
proporcionar a do outro. Não é que não queiram ver o outro feliz – sobretudo
porque é um grande frete viver com alguém que o não é… -, mas querem
ver o outro feliz apenas se não tiverem de mexer uma palha para o conseguir.
Será isto o chamado amor? Sem submissão – sim, lido hoje, o termo não é
feliz -, sem entrega mútua e voluntária, como lá chegar, à tal felicidade, ou
amor, ou o que queiram chamar-lhe? Como construir algo em conjunto se o que
importa, antes de mais, é cada um usufruir, curtir? O impacto social
desta distorcida visão mede-se, facilmente pela absurda quantidade de
divórcios - quantos por infidelidade.. - que, excluindo os anos da pandemia,
não para de aumentar…
A alquimia do amor é, bem pelo contrário, a entrega mútua; e é, muito
provavelmente, à submissão, à entrega voluntária de cada um no que diz
especificamente respeito aos sacrifícios, por vezes enormes, a fazer para, em
todas as ocasiões nos mantermos fiéis - como tanto importa ao conjunto
de todos nós - que o autor da Carta aos Efésios se refere ao falar do amor dos
maridos e da submissão das mulheres.
Tudo o mais que se diga poderá fazer tão pouco sentido como pretender que a
Carta diz que uma mulher se deve submeter a um marido que, pela força bruta, a
domina – ou vice-versa… -, ou que alguma igreja ou estado tem o direito de
exigir, a quem quer que seja, que prometa, para sempre, amar alguém.
2.4.4. Valorização
Independentemente do sexo, a valorização do ser humano enquanto tal nasce e
desenvolve-se, não a partir dos atributos físicos, como acontecia com os
maridos ao tempo em que foram escritas as Epístolas, mas do estudo, da
reflexão, do massajar das meninges, seja qual for a área de interesse da
predileção de cada um.
Isto é válido no século XXI, tal como era válido então.
Por tal razão, há que entender que a força bruta dos maridos de então
valorizava-os tanto quanto atualmente mulheres e homens são valorizados pela
exibição patega da riqueza material, da supremacia corporal, dos bíceps
trabalhados, dos glúteos tonificados, dos seios enchumaçados, da última moda
de panos e berloques e da superior capacidade de enfiar uma bola minúscula
numa baliza enorme, à custa de muita pisadela, de muita canelada, de muito
palavrão.
Todos estes atributos e outros como eles não despertam o amor
verdadeiro, apenas paixões levianas e efémeras em pessoas a eles sensíveis,
depois à infidelidade, à separação, ao divórcio e, no fim da lista, à ainda
mais indesejável desestabilização social.
Quem tem falta de espírito enfeita o corpo, e tem todo o direito, pois claro.
Não venham é, depois, dizer que umas e outros se sentem aviltados ou
desconsiderados por trechos saídos da pena de quem viveu num tempo em que, tal
como agora, quase só o corpo contava, mas porque, então, o conhecimento e as
ideias não tinham veículo capaz de amplamente os disseminar.
Esses veículos existem nos nossos dias - livros, televisões, redes sociais -,
mas o que por lá se vê tem interesse muitíssimo reduzido ou nenhum para o que,
verdadeiramente, poderá contribuir para as clivagens culturais e os distúrbios
sociais atenuar, num ambiente de dissolução de costumes comparável ao da
antiga Roma.
Coisas estranhas afixadas por cabeças ocas, para as quais apenas conta o que
se vê e o que se compra; gente que inunda as redes sociais com historietas das
suas também ocas vidas, as quais intelecto e espiritualidade lhes faltam para
preencher.
Era o corpo pela força bruta, antigamente; é, agora, o corpo por aquilo que
tem para exibir e que, em lugar de granjear respeito e admiração, apenas serve
para rebaixar quem na montra social diariamente se vai pavonear.
3. Prática Eclesiástica
3.1.
Duas Questões de Legitimidade
Toda esta trapalhada foi motivada, recorde-se, por uma leitura feita no
decorrer de uma celebração eucarística transmitida pela Radiotelevisão
Portuguesa (RTP) – ou a televisão do Estado, como alguns gostam de lhe
chamar.
Não faltou, assim, quem aproveitasse a embalagem para voltar a suscitar a
questão da legitimidade dessas transmissões alegando que são pagas pelos
impostos de todos nós, ao que as vozes da Igreja retorquiram, como
habitualmente, que, sendo a maioria da população católica, existe todo o
direito e, até, o dever de a comprazer.
Sabendo-se, porém, que esta maioria é tão verdadeira como é verdadeira a
declaração de “católico” aos Censos, a argumentação cai pela base, até
porque as igrejas vão estando cada vez mais vazias, e não parece que seja
porque os católicos resolveram ficar em casa a ver a missa pela televisão, em
vez de nela participa - não obstante as audiências que dizem ser relativamente
expressivas, tendo em conta que se trata de Domingo pela manhã.
Seja pelo mais elementar receio do que estará para vir - por parte daqueles
poucos que ainda se vão lembrando de que um dia irão morrer… -, seja porque
foram batizados quase à nascença e, por isso, acham que são
“católicos”, a verdade é que a governação do Estado e das suas
empresas, como a RTP, deve basear-se em números, na estatística, ou tudo
acabaria por fazer ainda menos sentido do que faz; e, sendo os números
relativos a ditos católicos o que são, está a posição da Igreja
quanto a estas transmissões plenamente segura e legitimada.
Pelo menos, até que a exatidão das declarações aos Censos sejam averiguadas e
estes cristãos comecem a ser novamente lançados aos leões, desta
vez por prestarem falsas declarações.
- x –
Uma outra questão de legitimidade não pode deixar de ser aqui abordada, mais
propriamente a da legitimidade de, nos dias de hoje, passar a mensagem que
incita à submissão voluntária e espontânea da mulher perante o marido – o que
é substancialmente diferente de incitar ao domínio arbitrário e imposto do
marido sobre a mulher.
Quanto a este ponto, o que primeiro há a salientar é que, tratando-se de uma
atitude voluntária, apenas interessaria à lei na medida em que pudesse,
eventualmente, ser contrária aos bons costumes por aquela protegidos. Não
sendo, como não é, o caso, nada obsta a que a Igreja se exprima, quanto a esta
matéria como mais lhe agradar.
Do que aqui se trata é da polémica decisão de passar uma mensagem incómoda,
maioritariamente condenável na aparência se aplicada à atualidade e não aos
tempos da Carta aos Efésios, mas
que se encontra no âmbito do mais legítimo direito de qualquer organização
definir os pressupostos da sua existência e as normas de conduta que
preconiza ou exige para os seus aderentes.
Estamos, também, muito longe da situação resultante de um forte incómodo
causado ao cidadão pelo Estado, face ao qual o único recurso fosse a decisão
de emigrar, com todo o transtorno que isso implicaria, quantas vezes não
apenas para o próprio, mas também para os seus mais diretos familiares.
No caso de uma igreja, quem não estiver satisfeito com o conteúdo da pregação
ou com a prática pode, num instante, abandoná-la sem qualquer incómodo
semelhante, ainda que remotamente, ao de emigrar.
Resta, pois, concluir que nada obsta, na lei ou na prática social, a que a
Igreja continue a mandar ler o tal trecho socialmente proscrito da Epístola,
tal como nada obsta a que, quem no seio daquela se não sentir bem, sem
qualquer inconveniente vá ouvir outros pregar.
3.2. A Questão da Utilidade
Falta, para terminar, refletir um pouco sobre a utilidade – e sobre a
verdadeira intenção - de ler, perante as assembleias de fieis, algo tão
polémico e retrógrado como estas passagens das Cartas aos Efésios, aos
Colocenses e mais uma ou outra que conste do tal calendário dos três em três
anos que, independente da conjuntura de cada momento, ninguém parece ter poder
para adaptar.
Diga-se, desde já, que a posição episcopal de que “os textos não se mudam, mas educam-se os leitores a entendê-los e a
atualizá-los”*) mais não plasma do que o incompreensível desconhecimento – apenas
aparente, claro – por parte da hierarquia da Igreja Católica do baixíssimo
nível intelectual, cultural e, sobretudo, do inexistente dom da palavra por
parte de grande parte dos sacerdotes por isso mesmo colocados em pontos
remotos, em paróquias de aldeia – e não só… -, alongando-se em homilias
desmesuradas e desconexas, que já ninguém ouve, chegando a pontos de, quando o
sacerdote começa a perorar, alguns fiéis saírem para fumar um cigarrito ou
apanhar um pouco de ar, voltando depois.
Serão oradores deste calibre que irão educar os ouvintes ou os
leitores?
Tal pretensão apenas colheria se existisse, na pregação, um nível
uniformemente elevado dos educadores, o que não acontece, como bem se
sabe, assim não fazendo qualquer sentido – para não ir mais longe… - a
referida réplica episcopal.
Por outro lado, a ser o “educam-se” corretamente aplicado na
forma reflexa, que capacidade terão para se educar-se, aos próprios, universitários cuja
única e remota semelhança com os frutos da universidade pré-Bolonha e pré-
outras coisas também parece ser o facto de usarem aquelas vestes negras sem
significado que tanto gostam de exibir enquanto aprendem unicamente a empinar
e a copiar, relegando os governantes do pelouro da educação para um plano mais
do que secundário a vertente educacional e formativa de quem, na maior parte
dos casos, em casa a não encontra? De quem nem interpretar sabe nem quer saber
o “Filhos, obedecei a vossos pais”?
Perante a notória e quase absoluta incapacidade de uns interpretarem
corretamente e de outros terem quem os eduque na interpretação
das escrituras – fenómenos que não podemos, honestamente, pretender que a
Igreja Católica continue a ignorar -, haverá que concluir que a insistência em
manter na liturgia estes textos aparente crípticos é deliberada, e corresponde
à verdadeira convicção social dos sacerdotes e de quem os superintende na
Igreja Católica.
Ou, mais simplesmente, como alguém num destes debates que por aí houve
sintetizou, que “a Igreja olhapara as mulheres como mãe ou virgem”*), revelando-se fundamentais os polémicos trechos de interpretação dúbia
Efésios 5:22 e Colocenses 3:18 para, sub-repticiamente, esse entendimento nos
levarem a, submissamente, aceitar e defender.
4. Conclusão
Em questões socialmente melindrosas, tão imprudentes se revelam as reações a
quente baseadas em afloramentos interpretativos à revelia da razão, como a
razão pobre de uma repetitiva, oficial, dogmática, confusa, rebuscada e nada
convincente interpretação.
Não basta, também, deixar as supostas explicações pela rama, invocando,
simplesmente, o desfasamento no tempo e nos hábitos sociais, sem procurar
exaustivamente explanar, sem apresentar hipóteses credíveis para a
identificação desses hábitos e das razões na
sua génese: deve, pelo contrário, procurar-se assegurar a consistência
hermenêutica e a fundamentação racional e objetiva, não repousando enquanto se
não encontrar, além do imediato, do óbvio, contributos interpretativos
fornecidos pelo autor na introdução e no enquadramento do texto.
A preponderância do conhecimento por parte do marido decorrente da maior
atividade social de quem, pela força bruta, mais apto se encontrava, naquele
tempo, a assegurar o sustento do lar e a necessidade urgente de normalizar,
designadamente no campo da fidelidade conjugal, os hábitos sociais degradados
da Roma de então poderão servir os referidos requisitos da fundamentação a
ponto de satisfazer intelectualmente boa parte daqueles que sobre o assunto se
questionam. Sobretudo numa sociedade hoje supostamente evoluída mas para a
qual amar cada mais parece ser amar-se, e não ao outro, a quem,
desgraçadamente, até ao divórcio muita coisa ainda se irá ter de aturar.
Da mesma forma que, sem grande incómodo, cada um é livre de decidir se e a que
igreja pretende associar-se, cada confissão religiosa é, necessariamente,
livre de pregar o que muito bem entender e como muito bem entender, desde que
tais ações, ou o seu resultado, ao foro criminal não acabem por
interessar.
Fica, não obstante, por explicar a razão verdadeira para a insistência da
Igreja Católica em manter no calendário litúrgico leituras que repugnam logo
ao primeiro contacto, a maior parte dos ouvintes, fiéis ou não, sabendo-se que
a maior parte dessa maior parte ninguém alguma vez conseguirá, de forma
convincente, educar, procurando fazer crer que é tudo a fingir, e que a
Igreja acredita em algo bem diferente daquilo em que, manifestamente, mais até
do que naquele tempo continua a acreditar.
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Passamos por seres inteligentes, sábios, sensatos, superiores?
Mandam, então, hoje como em qualquer tempo, essa inteligência, essa sabedoria,
essa sensatez, essa superioridade, que cada um acate e siga a opinião do
outro, mulher ou homem, nas áreas que melhor conhece, que melhor domina, nas
áreas em que está mais apto a contribuir para um bom resultado, em lugar de
procurar fazer prevalecer a decisão absurda de quem do assunto menos sabe ou
nem desconfia, apenas porque é assim, porque um livro para alguns sagrado
manda, porque uma religião que poucos praticam insiste em impor.
No casal, na família, na escola, no emprego, em qualquer manifestação social,
seja onde for.
Afinal, Deus existe mesmo, ou não passa de pura invenção de um ser
humano que desespera com a efemeridade da sua existência?
NÃO PERCA uma reflexão lógica, fundamentada, sobre o tema
porventura mais elementar e decisivo da vida humana.
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A existir um deus, será ele o representado no teto da Capela
Sistina? Jeová? Alá? Manitou? Ou nenhum destes?
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