(Introdução à Secção ‘Sociedade’)
"O que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade
consiste
em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe,
realmente, com
o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém,
por nossa causa,
acabar por perder"
Recebi há dias, na caixa de correio eletrónico, uma mensagem a informar de que
vinha a caminho “a encomenda da sua felicidade”, assim se designando,
pelos vistos, uma coisa qualquer indiferenciada e sem importância que, por
força do dever geral de recolhimento, me vi na contingência de ter de
encomendar em vez de, como habitualmente, ir à loja buscar.
Mas, a quem tem de estar fechado em casa, que espécie de felicidade é que uma banalidade daquelas poderia trazer? Por que razão há de um fornecedor entender que qualquer coisa que venda, mesmo meia dúzia de esferográficas, é suscetível de causar felicidade? O que é, para estas pessoas, essa tão ambicionada felicidade?
“Eu sou assim”, estou “muito bem resolvido” e, como consigo
irradiar toda essa felicidade, todos me amam, pelo que “estou muito orgulhoso de mim”; e, como tanto faço pelos outros, tudo quanto tenho “eu mereço”.
Balelas!
Tudo isto, herdado, porventura, do bem conhecido e mais subversivo dislate
publicitário que os meus olhos e ouvidos alguma vez captaram e, provavelmente,
captarão: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” - do qual me não
lembro de que as tão sensíveis consciências cívicas que por aí andam alguma
vez se tenham queixado; e, como o anúncio continuava a dar na
televisão, provavelmente até o cosmético embevecida e
obedientemente utilizavam e eram, até, capazes de elogiar.
Seja qual for a capacidade económica, muita desta gente que pensa unicamente
em si - e, pateticamente, se leva muito a sério - não se limita à
congratulação íntima e ao recatado usufruto daquilo que a carteira lhe permite
adquirir: obriga, antes, o egocentrismo desmesurado a que os assim chamados
sucessos sejam deliberada e pormenorizadamente esfregados na cara
daquilo que, aos seus olhos embaciados por uma espécie de glamour parolo, não passa de uma mole de adeptos tão medíocres que jamais conseguirão
imaginar quão pequena fração o pouco que têm representa do suculento bolo que
os bem sucedidos empanturra - por não terem sido ensinados a
digeri-lo.
Ao adquirir o bem não visam um prazer de uso ou qualquer outro tipo de vantagem que dele possam extrair: compram, simplesmente, a ideia de riqueza que subjaz à posse.
Por não saberem quanto a própria imagem é desoladora, estas autênticas marionetas animadas pelas mãos da vaidade cultivam-na obsessivamente, continuamente impondo, àqueles que não podem deixar de o ver, o desfile patético daquilo com que, raras vezes o dinheiro, muitas o crédito, algumas a troca de favores lhes permite obter, como as acessíveis e inevitáveis unhas de gel, o já não tão acessível conjunto da última moda que viram na revista da cabeleireira, a carripana das mais caras que o dinheiro pode comprar, um iate, um aviãozinho, a leiloada camisola transpirada pela prática desportiva de um notável qualquer.
Enfim, sendo a inconsciência o lar da verdadeira felicidade, a alguma dela
sempre acharão estes tacanhos e desamparados amigos e
seguidores que, embasbacando-se perante tamanha vulgaridade, lá
acabaram por aceder - ignorando ou preferindo ignorar que, para aqueles que,
com tanta luz, lhes queimam os olhos, cada um destes confrangedores basbaques
não passa de “uma pinta num melão verde”.
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Inesgotável manancial para um caricaturista, esta casta de salientes habita os
mais diversos lugares - e vive em todos os estratos económicos e sociais -,
mais não representando, todavia, do que o papel da sua própria personagem,
numa carência de substância total ou quase total. Apesar do efeito que sabem provocar nas suas plateias, domésticas ou
universais, estas estranhas e superficiais pessoas não passam de aprendizes de
ilusionistas, de desengraçados comediantes papagueando um mal-amanhado texto e
esquecendo-se de que, como acontece com tudo na vida, chamar a atenção para
nós mesmos, só é saudável até ao ponto preciso em que deixa de o ser.
Isto, sejam os ditos poderosos políticos, funcionários corruptos,
aldrabões profissionais, milionários feitos à pressa, medalhados da treta ou
apresentadores arvorados em acionistas de canais de televisão sem particular
apetência pelo cumprimento das suas contratuais obrigações, todos eles talvez
nem sempre animados das mais nobres intenções e valendo-se da facilidade com
que, fazendo-se servir dos mais modernos artifícios comunicacionais, mesmo à
distância conseguem ir ganhando injustificada afeição, mormente junto das
camadas menos instruídas e educadas da população.
Ou poderá tratar-se daqueles multimilionários que aprenderam a dar uns toques na bola, alguns deles de couro pouco cabeludo mas cheio de pinceladas surrealistas; daqueles que têm, ganham e não cessam de exibir centenas de milhões, evitam, por desconhecimento, as obrigações fiscais, e vêm de longe a longe, alardear na imprensa donativos de parcas centenas de milhar a uns bombeiros, a um hospital ou a um lar. Não é por terem tido sucesso e conseguido molhar o pão na sopa que, uns ou outros, passaram a fazer parte dela, da mesma forma que uma mosca que aterra numa sopa de legumes não passa a ser um legume: continua a ser uma ridícula e indesejável mosca no meio da gamela.
Fariam bem os teóricos e os politicamente corretos em ter em conta, nos seus
comentários, recomendações e decisões, que há muita gente assim; e que muitos
deles querem ser felizes, à maneira deles, comprando, ostentando,
fazendo mal, ora ourados com a glória assegurada pela simples posse, ora
transidos de medo de que lhes reduzam o agasalho ou lhes penhorem os
brinquedos que tanto gostam de assoalhar.
Toda esta oca palermice de acenar com muitos bens, com muito eu, aos
muitos fans – em inglês, que é mais chic -, aos muitos amigos
das armadilhas (perdão: redes!) sociais, não passa da eterna busca pela
felicidade; mas é uma busca enviesada e vã, já que os que mais se esforçam por
mostrar o quanto são amados, são, quase sempre, os mais infelizes, também:
apesar da aura de infuencers, de orientadores espirituais da gulodice
dos outros, estes lastimáveis seres, ao mesmo tempo que explodem em simulada
alegria, muitas vezes implodem em profunda dor no mais íntimo dos seus
corações.
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Mal ou bem, ensinaram-me que ser respeitável não é ter direito ao respeito dos outros, mas sim merecê-lo - coisa que em certos espíritos parece ter grande dificuldade em entrar, já que, seja qual for o nível de vida ou a dimensão da bolha de empréstimos, toda a atividade do cérebro empobrecido de quem se maravilha com a sua pessoa parece focar-se na incontrolável necessidade de causar inveja junto dos atentos e obrigados veneradores que se esgorjam por mostrar que conhecem todos os seus importantes segredos para, pressurosamente, depois os bichanar ao ouvido do vizinho.
Quando a montanha de notas não tem cume, não deixam estes alpinistas de ter
alguma razão, na medida em que estão mesmo a pedi-las aqueles que, tão longe
da realidade dos seus ídolos, nem inveja deles e das coisas deles conseguem
sentir, já que não é possível invejar algo de nós tão distante que nem
logramos vislumbrar sua real dimensão.
Já quando, pelo contrário, as poucas notas que há em casa pertencem todas ao
banco ou nem dão para aconchegar a carteira, as canseiras a que os mais
pequenos se dão para imitar os poderosos apenas os fazem parecer
ainda mais pequeninos, pobretes, mais ridículas, e desproporcionadas as suas
pretensões.
Para estes e para aqueles que, apesar de afortunados, são menos dados a essas
coisas da inveja e da ostentação, a felicidade não passa da animalesca
maximização do usufruto dos bens efémeros a que conseguem aceder, muitos dos
quais acabam por ficar na posse de quem, para eles os poderem comprar, caiu na
asneira de o dinheiro emprestar. Também há, é claro, as cirurgias plásticas sem fim, as dependências do mesmo
género, os casos dramáticos, as histórias que acabam mal, que toda a gente
conhece e de que, por isso mesmo, nem vale a pena aqui falar.
"Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas; então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade do dever cumprido".
No entanto, o que pouco parece haver é quem pense que a verdadeira felicidade consiste em conseguir fazer o que se tem de fazer, e se importe, realmente, com o facto de, quando ganhamos, quase sempre alguém, por nossa causa, acabar por perder: perdem os que não ganham, os que são roubados, os enganados, os que pasmam embevecidos ou embasbacados, os que passam a vida infelizes, à espera de acabar.
Nestes conturbados tempos, alguém mais exposto ou vulnerável também perde
quando outro alguém fica feliz por ter conseguido uma não planeada picadela de
seringa, e alguns inocentes perdem quando outro alguém consegue trazer, como
sobra de uma jantarada fora com amigos ou de um bacanal, um microscópico
bicharoco cheio de perninhas, da família dos Covid Portugal, seus primos
brasileiros, africanos ou ingleses, que, generosamente, esse inocente irá
partilhar com quem ao caminho se lhe cruzar, durante ou depois do tal
jantar.
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Não vale, também, a pena tentar compensar com o dinheiro e com o corpo a debilidade do espírito: só é especial quem o é para os outros, quem busca a felicidade procurando fazer do mundo que o rodeia uma feliz cidade.
Ser especial para si mesmo é nada. Ser especial é darmo-nos; e darmo-nos não é fazer pelos outros aquilo que nos apetece, se e quando nos apetece – mesmo que não apeteça a eles.
Quando não ligamos aos outros, não podemos legitimamente esperar que liguem a nós.
Esta indiferença faz com que, cada vez mais, experimentemos o medo, o pânico próprios de um ser frágil e dependente como o humano, muito especialmente quando, por ignorarmos os outros, acabamos por nos sentir cada vez mais... sós.
Boa noite,
ResponderEliminarum ensaio bem esgalhado com o qual tenho que concordar na sua generalidade, faltando a especialidade.
Como diz a felicidade é dificílimo de definir, Quiçá para uma criança de África um conjunto de canetas possa ser a suprema felicidade, enquanto para outros seja aquele carro ultimo grito de tecnologia. Mas vou falar da minha ideia de felicidade. Tendo em conta o que já passei acordar todos os dias já é uma vitória, depois poder ver mesmo que seja só com uma vista, ouvir só com um ouvido, poder abraçar a família, poder ajudar quem de mim necessita... tudo isto faz de mim um homem feliz. Ah! Escrever é outrossim um prémio de felicidade.
Sou feliz porque sou, existo, vivo com todas as maleitas que me acompanham, com algumas situações menos boas.
Para se ser feliz não é obrigatoriamente necessário ter-se... basta ser-se! Quanto â questão do estar-se bem resolvido até concordo que seja um boa forma de chegar à felicidade. Haverá outras obviamente mas as pessoas não conhecem! Ou não querem conhecer!
Forte abraço.
PS - Este blogue na plataforma SAPO seria um sucesso!
Possivelmente, meu Caro, terá mesmo encontrado a verdadeira felicidade.
ResponderEliminarSe tal se deve àquilo que já passou - em boa parte, pelo menos, já que sempre há aquela coisinha dentro de nós que diferencia -, não sei dizer. Mas concordo inteiramente em que a felicidade é a que temos, e não a dos outros ou a daquilo que nos podem dar.
Fico muito grato pelas suas palavras de apreciação pelo meu esforço.
Um grande abraço, e dê-me o gosto de continuar a por aqui aparecer. E comentar.
Não consegui ler tudo desculpe me a intromissão mas parece-me que a sua felicidade foi concretizada!! Vejo regozijo na maneira como articula as suas palavras! Parabéns!
ResponderEliminarObrigado pela sua participação.
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