quinta-feira, 28 de julho de 2022


"Alien"

Olham-me, quando por eles passo na rua.

Uns, com ar divertido, outros com ar trocista; uns com ar de pena, outros de censura, outros ainda com o olhar fugaz dos que se apressam a desviá-lo porque parece mal ficar a olhar.

O mesmo numa loja, num qualquer espaço público, ou quando me levanto, no restaurante, para ir lavar as mãos antes de começar.

Também eu não sei como os contemplar. Nem sei, mesmo, se devo desviar ou devolver o olhar.

Estão, claro, no pleno uso do seu direito à liberdade de ser, de estar, de observar, de uma opinião formar e de, a todo o tempo, a inverter ou renovar.

Sou eu o desenquadrado, o retrógrado, o pária de uma sociedade virada para a frente e para a ânsia de aproveitar ao máximo, enquanto isto da guerra não alastra, o ar que respira e aquilo que, da vida, vai podendo tirar.

Por que não? Por que não, afinal, se o mesmo parecem fazer quantos por aí vemos deambular?

Pouco importa. Faço o que faço, ajo como ajo, e continuarei a agir enquanto uma culpa minha puder pôr em risco o bem-estar comum, a economia do Estado e a estabilidade dos outros que por cá têm de andar.

Uso máscara, e continuarei a usar enquanto o bicho por aí andar.

Uso-a, por muito que uns e outros prefiram esquecer o assunto e assobiar para o ar.

terça-feira, 26 de julho de 2022


INATEL Oeiras


Para os que ainda são do tempo em que um motel era uma unidade de alojamento,
aqui fica um postal com algumas imagens do atual INATEL Oeiras
quando ainda se chamava
Motel Continental

Inatel Oeiras

"A pov. é muito antiga, mas não se sabe quando foi fundada, nem o nome do fundador, desconhecendo-se também a data em que se formou a parochia (...).

Oeiras era apenas uma aldeia, grande e muito bem situada. Em 6 de junho de 1759 D. José I, elevando o seu primeiro ministro, Sebastião José de Carvalho e Mello, a conde de Oeiras de juro e herdade, e seus irmãos a secretários de Estado, deu a esta povoação a categoria de villa, por um alvará passado logo no dia seguinte, 7 de junho. Desde então começou para a nova villa uma epoca de esplendor e desenvolvimento, mas por morte do seu primeiro conde, mais tarde marquez de Pombal, ficou estacionaria. O referido monarcha deu foral a Oeiras, no paço d'Ajuda, a 25 de setembro de 1760. Esta villa é das poucas terras portuguesas que têm foral novissimo, isto é, dado pelos successores d'el-rei D. Manuel(...).

A praia de Oeiras é bastante concorrida na estação balnear por familias de Lisboa e d'outras localidades. À beira mar formou-se ha poucos annos uma nova estancia balnear muito aprazivel, chamada Santo Amaro. Tem-se edificado ali ultimamente elegantes chalets, e tem estação na linha de caminho de ferro de Cascaes, que fica entre as de Paço d'Arcos e Oeiras (...).

El-rei D. José, no verão dos annos de 1775 e 1776, habitou com toda a côrte n'aquelle majestoso palacio [da quinta "que se prolonga do Norte ao Sul"] para poder fazer uso todos os dias dos banhos do Estoril, que ficavam próximos. O marquez de Pombal, titulo que já havia recebido em setembro de 1769, aproveitou a permanência do monarcha no seu palácio, ne epocha mencionada, para lhe offerecer um espectaculo, fazendo-lhe vêr os resultados praticos das sabias reformas empreendidas no seu reinado, e mostrar aos portugueses e aos estrangeiros os progressos que Portugal fizera e os recursos que a sus industria promettia, respondendo assim com factos demonstrativos da prosperidade publica ás accusações e calumnias dos inimigos. Determinou então que se fizesse em Oeiras uma grande feira, onde concorressem productos de todos os generos da industria fabril portugueza, e para este fim foram enviadas circulares ás autoridades de todas as provincias do reino, ordenando que intimassem os donos da fabricas a virem armar barracas em Oeiras, e n'ellas expuzessem á venda os diversos productos da sua industria. Ninguem faltou á intimação, e a feira teve um exito completo, que foi uma verdadeira exposição de tudo quanto se fabricava então em Portugal, e assim teve a villa d'Oeiras a honra de vêr dentro dos seus muros a primeira exposição industrial que se realisou em Portugal, e provavelmente a primeira que se effetuou na Europa".

Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues,
in "PORTUGAL - Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artistico" -
- vol.V, pág.182-184 - João Romano Torres & C.ª - Lisboa, 1911



sábado, 23 de julho de 2022


Festa do Avante 2022

À boa maneira da propaganda comunista, escrevia-se, em 2013, que "a Entrada Permanente (EP) para os três dias, é um título de solidariedade fundamental para o êxito da Festa do Avante! A sua aquisição antecipada é uma expressão concreta de solidariedade com a preparação e construção da Festa".

Nessa altura, não havia, ainda, invasão da Ucrânia pela Rússia, nem o Partido Comunista Português (PCP) estava ferido de morte pela estultícia das posições quanto a ela assumidas. Nessa altura, ainda uma parte dos Portugueses lia a cartilha comunista com idolatrada fé e devoção, como se de um dogma quase religioso se tratasse para aqueles que nenhuma religião professavam e nenhuma fé de natureza metafísica queriam assumir.

Solidariedade! Quem poderia resistir à abusiva e despudorada utilização de um termo que exprime o que de mais nobre poderá haver no ser humano face ao drama dos que dele necessitam, para levar os incautos e pouco esclarecidos militantes e simpatizantes a financiar a atividade de uma organização política cujos verdadeiros propósitos, não sendo, então, evidentes, hoje já não é possível escamotear?

"Já compraste a tua EP?" Valia a pena, sim.

A monolítica e anquilosada cúpula do Partido descobrira, na Quinta da Atalaia, a galinha dos ovos de oiro: a indiferença dos mais jovens para com as coisas da política, em benefício da irresistível oportunidade de assistir, ao vivo, a um espetáculo musical cuja qualidade os levava a precipitar-se, todos os anos, para a bilheteira física ou virtual, no tal ato de solidariedade que lhes permitisse, pelo menos por escassos três dias, esquecer um pouco o horizonte negro que temos vindo a tratar de lhes propor. Ou impor.

Debandavam, claro, quando chegava a altura de ouvir a monocórdica cassette ligada à língua dos crânios do PCP; ou, pelo menos, aproveitavam para beber uma mine ou uma jola com o pessoal até que a tivesse fim a estafada lenga-lenga.

Depois, música, e mais música, e viva o PCP!

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Já não é assim.

Os aficionados da Festa do Avante! não têm, agora, como assobiar para o lado, fazendo de conta que a "solidariedade com a preparação e construção da Festa" corresponde, em boa verdade, ao financiamento de uma estrutura que mais não visa do que minar, precisamente, os valores indelevelmente associados à solidariedade que diz promover.

A solidariedade para com as vítimas ucranianas é, manifestamente, algo que nem ao de leve perpassa o espírito daquela estranha gente para quem as receitas da Festa hoje aparecem como a forma possível de continuar a difundir a pérfida mensagem, e a financiar o punhado de zelotas que com o Partido ainda colaboram.

Adquirir bilhetes para aquilo mais não é, afinal, do que contribuir para a eternização de uma vergonha nacional que, com despudor e desplante sem par no mundo civilizado, entende que, independentemente da motivação de um e do outro, um estado invadido deve ceder perante o invasor.

Não será altura de os jovens e menos jovens amantes da música que por lá se toca terem a ombridade e a dignidade de dizer NÃO! ?

domingo, 17 de julho de 2022


Fernando Rolim: Ondas do Mar





Para quem aprecia a canção de Coimbra, aqui fica uma interpretação sentida e temperada pela idade, de um dos seus mais conhecidos intérpretes.





                                            Imagem: Youtube/Coimbra Canal

quarta-feira, 13 de julho de 2022


Pois É, São outra Vez os Pirómanos, Coitados...

Neste triste caso, é inútil culpar os juízes.

Com a educação e formação de que beneficiaram, sobre a qual me dispenso de voltar a opinar, vêem à frente um desgraçado de aspeto miserável e ar alucinado, e tendem a aplicar-lhe a pena mínima. Suspensa, claro. Depois, apanha-se à solta e, o mais tardar, no ano seguinte volta ao mesmo, seja doente mental ou não.

Quem roubar, furtar, destruir propriedade alheia ou causar dano físico relevante a terceiro é, por via de regra, encarcerado, e por longos anos, especialmente se do ato resultar a morte.

Como entender, então, que a conduta de um criminoso que ateia um incêndio florestal seja punida com pena de prisão de um a oito anos*), sabendo-se que, tratando-se de réu primário, quase garantidamente será suspensa na sua execução por igual período? Ou seja, que o criminoso será libertado, ficando livre para reincidir, sempre na esperança de não voltar a ser apanhado?

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Um incêndio florestal causa muito mais dano às pessoas e às coisas do que um ato isolado. Causa, sobretudo, dano de uma forma descontrolada, de evolução imprevisível, como imprevisível é antever a dimensão dos estragos.  Mas é, invariavelmente, enorme.

Já que os sucessivos governos são patentemente inaptos para proceder a reformas estruturais - quaisquer que sejam, entre tantas absolutamente necessárias -, ao menos promovam uma minúscula alteração da lei, fixando a pena mínima nuns mais do que razoáveis seis anos, por forma a garantir que, provados os factos, o juiz manda, mesmo, prender, impedido que fica de aplicar pena mais branda, designadamente uma que viabilize a suspensão na execução.

Claro que ninguém pode prever que no ano tal ou tal as condições meteorológicas irão ser estas ou aquelas. Pois se nem os cientistas conseguem, quantas vezes, fazer previsões para o dia seguinte!

Existe, no entanto, uma colossal diferença entre prever uma ocorrência e precaver-se contra a respetiva eventualidade. Precaver é criar condições para evitar a ocorrência ou, na impossibilidade, para minorar os seus efeitos nocivos; e, isso, está muito mais ao alcance dos mortais do que adivinhar que vem aí uma onda de calor ou uma tempestade.

Ainda no campo da prevenção, tratar de tornar as matas públicas espaços seguros com largos aceiros*) a intervalos de alguns quilómetros, assim evitando a propagação dos incêndios, seria, seguramente, muito mais eficaz e menos dispendioso do que, todos os anos, condenar-nos a assistir, impotentes, à destruição de florestas e dos bens que nelas se encontram; à destruição de vidas e à degradação da saúde de bombeiros e de outros profissionais ligados ao combate aos incêndios.

Ora, em vez disso, continua o Estado a preferir manter-se inerte na única vertente em que, falhando tudo o resto, seria muito simples e rápido criar condições para reduzir as ignições dolosas por parte de pessoas perturbadas ou ao serviço de interesses económicos bem conhecidos.

Vamos continuar muito humanistas relativamente a um punhado de doidos ou de autênticos javardos ao serviço de quem lhes paga, permanecendo inaceitavelmente desumanos para com os milhares que, todos os anos, os incêndios espoliam nas suas vidas, saúde e propriedade?

A quantidade de ignições acidentais reduziu-se, de forma muito expressiva, nos últimos anos. Como admitir, então, que o fogo posto continue, em boa parte, a ser responsável por um descalabro destes?

De que serve rasgar aceiros e gastar milhões em meios de combate aos fogos, se os loucos e os criminosos continuam, impunemente, por aí à solta?

Ainda alguém se espanta por o pequeno Portugal ter tantos e tão grandes incêndios?

O comodismo ou a falta de coragem para modificar uma única norma desfasada e obsoleta será, provavelmente, uma das principais, se não a principal razão.


sábado, 9 de julho de 2022


Vila Verde

Vila Verde - Campo da Feira

Imagem: Wikipedia

"Villa Verde, a séde d'esta parochia, d'este concelho e d'esta comarca, é uma povoação muito antiga, alegre, vistosa, bem situada e bem servida por estradas a macadam de toda a ordem; tem um bom largo para as suas grandes feiras,— bons estabelecimentos commerciaes e bons edifícios entre os quaes avultam os seus novos e magestosos paços do concelho;— é finalmente uma povoação de muita vida e muito importante(...), e mais importante será em praso breve: mas toda a sua importância data de 1855, ou da creação d'este grande concelho pelo decreto de 24 d'outubro do dicto anno. 

Até áquella data esta villa pertenceu ao extincto e antiquíssimo concelho de Villa Chã, que soffreu diversas modificações desde a sua creação até que foi extincto pelo decreto de 24 d'outubro de 1855, passando para este de Villa Verde, com outras muitas, as 9 freguezias que o constituíam e eram as seguintes:— esta de Villa Verde e as de S. Miguel e S. Thiago de Carreiras, Doçãos, Nevogilde, Esqueiros, Travassos, Loureira e Barbudo, hoje extincta e annexa á de Parada. 

Em 1706 já Villa Verde tinha uma importante feira no dia 13 de cada mez e suppomos que era a séde do concelho de Villa Chã, villa e povoação antiquíssima, outr'ora muito honrada e privilegiada(...).

Feiras
1.a — Annual em Villa Verde, no dia de Santo Antonio, 13 de junho. 
2.a — Annual na mesma villa, a 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. 
3.a — Annual em Pico de Regalados nos dias 6, 7 e 8 de novembro. 
4.a — Annual em Prado, nos dias 20 e 21 de janeiro. 
5.a — Annual em Prado também, nas sextas feiras de quaresma. 

Para gado somente
6.a— Annual na freguezia de Duas Egrejas, nos dias 11 e 12 de dezembro, denominada feira de Santa Luzia de Penella. 

Para gado muar e cavallar somente
7.a — Bi-mensal ou de 15 em 15 dias, em Villa Verde, aos sabbados. 
8.a — Bi-mensal também aos sabbados e alternada com a feira supra, no Pico de Regalados, de 15 em 15 dias. 
9.a — Mercado de diversos géneros na freguezia de Rio Mau, em todos os domingos posteriores ás feiras de Villa Verde.

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Pela sua população e riqueza e pelas intimas relações que o prendem aos de Amares e Terras de Bouro, que formam a grande comarca de Villa Verde ou por assim dizer um todo, são estes tres concelhos os mais desordeiros e revolucionários de todo o nosso paiz.

Tem havido n'estes 3 concelhos grandes desordens, verdadeiras batalhas, muitas mortes e ferimentos, sendo necessário por vezes intervir a força armada, grandes destacamentos e batalhões inteiros! E não hesitam em reagir contra a mesma tropa os homens e as mulheres, como succedeu na revolução de 1846 a 1847, na qual as mulheres d'este districto de Braga, nomeadamente as d'estes tres concelhos e dos de Vieira e da Povoa de Lanhoso, tanto se distinguiram, que a dita revolução tomou o nome de Maria da Fonte, virago minhota, que se tornou lendária! 

Differentes concelhos e freguezias disputam a gloria de lhe terem dado o berço, mas já hoje não se sabe com ceríesa qual foi a sua terra natal (...).

São muito vivas n'estes povos do Minho as crenças religiosas, pelo que uma grande parte das maiores desordens a que se teem abalançado, expondo o sangue e a vida, provieram de bem ou mal entendidas affrontas ás suas crenças, por não lhes permittirem os enterramentos nas egrejas, obrigando-os a fazerem as inhumações em adros abertos, na falta de cemitérios locaes. 

Por vezes não foi necessário mais nada para immediatamente subirem aos campanários dos sinos da paroehia, onde se dava o conflicto, e tocarem a rebate. O mesmo toque se repetia instantaneamente nas parochias circumvisinhas, por serem muito próximas e não haver entre ellas as grandes distancias que se notam em outras provincias, nomeadamente na do Alemtejo. 

O povo — homens e mulheres, — acudia logo em chusma e armado; as mulheres tomavam sempre a iniciativa e, — mesmo na presença das auctoridades— tractavam de sepultar o cadáver na egreja. As auctoridades reclamavam força; — intervinham então os homens — e por vezes a tropa e as auctoridades foram de vencida na lucta; mas por vezes também a tropa, quando se achava em força superior, obrigava o povo a ceder, sendo porém raro terminar o conflicto sem fogo, pancadaria, ferimentos e mortes — em ambos os campos !..."

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno" - Vol.11 pág.1103-1107
Livraria Editora de Tavares, Cardoso & Irmão - Lisboa, 1886

quarta-feira, 6 de julho de 2022


Aborto: 'Nim' ou Não?


"Uma anquilosada Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos
como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada"

"A norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação"

"Há que ter presente que o ruído é, sempre, consequente,
e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição"


Aborto nos 'States'
Aparentemente, tratou-se de um balde de água fria, ideal para reanimar as hostes mediáticas quando o assunto do dia parece serem, já, as férias: quando até a guerra na Ucrânia se encontra, para alguns menos atentos, a marcar passo, quando, enfim, já pouca gente liga ao que quer que seja, além, naturalmente, dos episódios mais ou menos folclóricos, mais ou menos ridículos protagonizados pelos políticos que nos governam e por aqueles que gostariam de estar a governar-nos.

O assunto aqui vertido rendeu rios de dinheiro, páginas de anúncios, horas de publicidade televisionada intercalando comentários mais ou menos inflamados de ativistas, de juristas, dos autodenominados politólogos, de sociólogos, até de simples e mais ou menos bem pagos curiosos.

A verdade, porém, é que tudo não passou de uma decisão há muito esperada de um estrutural e conjunturalmente politizado Supremo Tribunal dos Estados Unidos, recentemente tornado conservador graças aos bons ofícios dessa inenarrável e inclassificável criatura de ascendência europeia denominada Donald Trump que, manipulações de resultados à parte, preenche o ideário de metade dos nativos daquela grossa fatia do norte do continente americano da qual todos, de alguma forma, dependemos e a cujos caprichos e desígnios prestamos e continuaremos a prestar respeitosa vassalagem.

No entanto, e para lá do significado político e social que é bastante fácil e quase inevitável atribuir-lhe, o efeito prático do aresto será, possivelmente, pouco expressivo.

Mal andam pois, a assim ser, aqueles que, na ânsia de agitar bandeiras, o fazem quase como se a polémica conclusão tivesse ido no sentido de proibir a interrupção voluntária da gravidez nos E.U.A.  Mas não foi, seguramente, disso que se tratou.

Estão, assim, estas bem intencionadas pessoas, que aos quatro ventos bramam a sua indignação, apenas a abrir alas àqueles que defendem a polémica decisão sustentando que se trata, meramente, da assunção de uma postura mais democrática e mais liberal por parte do Tribunal, na boa tradição americana que nos prezamos de adotar, também, em Portugal.

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Ocorre, porém, goste-se ou não e concorde-se ou não, que o entendimento de que o julgamento proferido dota a sociedade norte-americana de uma maior democraticidade e de uma maior liberalidade tem, do ponto de vista formal e jurídico, a sua razão de ser.

Ao contrário de Portugal, estado único, independente, dividido em regiões e autarquias dotadas de autonomia meramente administrativa, os Estados Unidos são isso mesmo que o nome diz: estados, independentes em quanto não está regulado pela demasiado genérica e hoje patentemente obsoleta Constituição comum à qual, em tempos há muito idos, todos eles acederam sujeitar-se; e, como se sabe, em direito, a norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação.

Acontece, também, que, por inevitável e sensato princípio, as constituições se limitam à enunciação de princípios, resultando omissas quanto à aplicabilidade específica dos mesmos à miríade de situações concretas com que os diversos intérpretes se irão defrontar. Cumpre, assim, aos mais ou menos políticos e politizados órgãos investidos de atribuições de fiscalização do cumprimento da Lei Fundamental interpretar a respetiva letra e preencher, por decisão definitiva e irrecorrível irrecorrível, as lacunas que a cada passo não deixam de se manifestar. Sobretudo, numa Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos, como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada, como há quem diga que somos nós.

Ora, sem deixar de ser verdade que, do ponto de vista técnico-jurídico se inverteu uma posição hermenêutica aceite durante o mais recente meio século, a verdade insofismável é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos não veio impor o que quer que fosse. Bem pelo contrário: veio devolver a cada estado o direito de decidir por si quanto a tão sensível matéria.

Esta é a verdade objetiva, que, por muito que possa doer, não há como contrariar.

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Já aquela dúzia de estados que, pressurosamente, correu a anunciar leis mais repressivas na matéria apenas se está a colocar na mesmíssima posição que o nosso Torrão Natal antes da Revolução de 1974, quando a prática do aborto era genericamente proibida.

Ao tempo, efeito inevitável foi, como se sabe o do florescimento de clínicas especializadas ao longo da raia, às quais recorriam as portuguesas suficientemente abastadas para percorrer a distância e suportar os custos da intervenção; e, por cá, a proliferação de parteiras não encartadas, procuradas por quem não tinha meios para se dar a outros luxos, e abortava em circunstâncias que, mesmo quando não documentadas, são bem fáceis de imaginar. A verdade, aliás, é que, ainda hoje uma boa parte atravessa a fronteira para o efeito*), dado o regime mais benévolo da lei espanhola que está a vigorar.

Poderemos, no entanto, comparar o nível económico das portuguesas de então - e de parte considerável das de agora... - ao das americanas dos dias de hoje? Claro que não.

Poderemos, outrossim, comparar o grau de esclarecimento da população mundial quanto à matéria - nomeadamente quanto à existência e disponibilidade de contracetivos - na América do Norte ou onde quer que seja no mundo dito civilizado dos nossos dias, com a situação cultural, social e politicamente estagnada dos lusitanos de então? Claro que também não.

Assim, nos estados americanos que optarem por endurecer as restrições a consequência mais provável e imediata da decisão será, provavelmente, a vantagem económica dos restantes estados, que irão acolher quem pretender interromper a gravidez. É que, independentemente do estado de origem, é o local do 'crime' que determina a jurisdição, pelo que essas pessoas que abortam além fronteiras estaduais não poderão ser punidas no estado onde estão domiciliadas. Tal como, noutros tempos, não podiam ser legalmente perseguidas em Portugal as portuguesas que abortavam em Badajoz.

Fala-se, segundo se diz, da criminalização, por parte de certos estados radicais, da mera deslocação para interromper a gravidez noutras paragens; mas isso, a acontecer, não passará de uma medida extrema, de uma verdadeira aberração suscetível de firmar, indelevelmente, do espírito das restantes nações a noção de que, no tão amado e admirado País dos norte-americanos, a liberdade e a democracia não passam de uma nada democrática ilusão.

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Bem, e antes da polémica decisão?

Em sociedades como aquelas que elegeram, para os governar, os políticos que a nova legislação restritiva irão impor, será que, já então, se poderia abortar sem imediatamente se adquirir um sério estigma social, mesmo junto de familiares e de amigos?

Ousaria a generalidade das cidadãs por lá interromper a gravidez, ou já demandaria outras paragens para o fazer? Quantas clínicas de Badajoz não haverá para lá dessas fronteiras estaduais americanas? Quantas não irão, a partir de agora, surgir como cogumelos ou florescer mais ainda? Com um nível económico tão diferente do nosso, bem poucas serão decerto as norte-americanas que não terão meios para se deslocar a um estado liberto de tão severa legislação.

A assim ser, o que veio, então, esta decisão do Supremo mudar? Como contrariar os tais que dizem que ela apenas veio ainda mais liberalizar, democratizar?

Como, enfim, agitar bandeiras contra ela, sem as suas formalmente inatacáveis posições estar, paradoxalmente, a divulgar?

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O pouco imparcial Supremo Tribunal norte-americano efetuou uma manobra propagandística de cujo impacto social e mediático sempre esteve bem ciente. Não resistiu a uma acintosa e, bem vistas as coisas, na prática pouco impactante provocação, bem ao estilo do seu arquiteto Donald Trump-

A esta provocação, talvez tivesse sido bem melhor não terem os opositores de aquém e além fronteiras dado tanto tempo de antena, o qual apenas terá servido para evidenciar, contra o que era propósito dos mesmos, que, de facto, o acórdão confere, individualmente, a cada estado uma maior liberdade de decisão.

As causas, todas as causas, há que as defender com entusiasmo, com militância, com mediatização. Com tudo isso e o mais que as possa dar a conhecer, e motivar quantos a elas quiseram aderir.

Há, no entanto, que ter presente que o ruído é, sempre, consequente, e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição.

*  *

Por cá, estas decisões cabem, exclusivamente, ao Tribunal Constitucional, também não isento de polémica nas nomeações dos seus conselheiros, felizmente não vitalícios, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos.

terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

sábado, 2 de julho de 2022


José Sócrates em Perigo!


"O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga,
considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar
que o acusado se apresentará à Justiça!
"

"Apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar,
já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana
ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear
"


Em perigo de fuga, claro. Como acontece com todos aqueles presumíveis inocentes que, apesar da proteção necessária e constitucionalmente garantida, a dada altura, ou desde sempre a Justiça considera não serem de, como tal, considerar.

Mas, não: devo ter lido mal a notícia. Será, talvez, a idade que já me não deixa ver as coisas como as vêem os atentos e expeditos olhos destes novos e esforçados magistrados, por certo saídos de escolas de ensino e da vida muito mais sofisticadas e exigentes do que aquelas que, no meu tempo, havia por aí.

Vejamos: reza a notícia do Expresso*) que a Meritíssima Juíza, no mesmo despacho em que quanto a José Sócrates, considerou que, "quando se vir confrontado com a possibilidade de ser julgado pela prática dos crimes pelos quais se encontra pronunciado, o arguido pode decidir eximir-se à ação da justiça (...)" - ou seja, baldar-se... -, conclui o Tribunal que "atentos os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, afigura-se suficiente, para afastar o perigo de fuga que no caso se verifica, sujeitar o mesmo à obrigação de apresentação periódica".

De outra forma dito, e se bem entendi - o que espero bem que não seja o caso -, entende o douto despacho que, para afastar o perigo de que, perante uma cada vez maior proximidade do julgamento, o indivíduo em causa entenda deixar-se ficar lá pelo Brasil onde, agora, tanto parece gostar de estar, é suficiente obrigá-lo a apresentar-se no posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Ericeira a cada quinze dias para garantir que, quando chamado pela autoridade judiciária, não deixará de se apresentar.

Entende o caro leitor a fina sagacidade da decisão? Eu explico...

Em menino, José Sócrates olhou, um belo dia, para um militar da GNR muito alto, muito forte, com um grande e ameaçador bigode e, desde então, treme à simples vista de um dos companheiros de corporação do dito Adamastor, assim bastando entrar, a espaços, num posto cheio deles para nem pensar em falhar a obrigação, transido que fica de puro pavor.

Não? Bem, nesse caso, talvez tenha visto ou ouvido, ao passar por uma esquadra ou posto de uma força policial lusitana ou estrangeira, os gritos desesperados de um qualquer desgraçado a ser, selvaticamente, agredido por se ter portado mal. Bom, talvez mais no estrangeiro, já que coisas dessas não há em Portugal.

Ou terá sido um sonho mau que tenha contado durante um interrogatório cuja ata a Juíza tenha lido? Ou alguma particular e recente alergia do Arguido a esquadras da Polícia e a postos da Guarda que o ponha em sentido apenas por lá entrar?

Não, não parece; sobretudo atendendo ao pouco caso que o Exmº Arguido parece fazer da autoridade, desde logo pelo manifesto desrespeito por aqueles a quem cada deslocação ao estrangeiro ficou por comunicar.

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Ora, a probabilidade de se furtar ao julgamento e suas consequências existe, como sustenta o despacho, e é gigantesca, como qualquer de nós poderá acrescentar atendendo a que o aplicado Estudante se desloca, com frequência, ao longínquo País Irmão no âmbito do desenvolvimento do doutoramento em que se inscreveu por lá.

Que melhor desfecho, então, para toda esta sórdida história do que acabar por lá fixar residência e a ficar, tranquilamente, a leccionar, baralhando e manipulando, ao seu belo estilo e até mais não poder, o acordo de extradição*) e dando aqui e ali uns certeiros apertos de mão a quem considerar mais apto e disponível para o ajudar?

Depois, se a coisa começar a correr mal, inesperadamente - para o Tribunal, leia-se - bastará resolver, na esteira do recentemente sucedido com um malogrado banqueiro, dar um saltinho até um paraíso qualquer ali bem perto para tratar da saúde e fazer, depois, saber que não tenciona voltar a Portugal - talvez aconselhado por alguém mais competente do que quem, no outro caso, terá entendido que a distante África do Sul seria inexpugnável refúgio para quem um fugitivo tentasse apanhar.

Cumpre deixar bem claro que, apesar do inominável que representaria, jamais aqui estaria em causa uma eventual conclusão de sentido contrário a esta da Exmª Magistrada quanto à real existência do perigo de fuga. Tal conclusão de que o perigo não existiria também seria, na verdade, legítima, por se encontrar no âmbito do poder discricionário do Tribunal e resultar do julgamento livremente realizado no íntimo do quem a questão tivesse apreciado.

Não. O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga, considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar que o acusado se apresentará à Justiça!

Será a opção por tão tíbia e inoperante medida uma simples e tosca tentativa de enterrar o incómodo assunto, obnubilando um eventual e inconfessado e, necessariamente, inconfessável temor pela distinta personalidade em causa, a exemplo do que poderá ter acontecido perante o importante, rico e poderoso João Rendeiro, um punhado de meses atrás? Dada a recente postura da Juíza, tal não parece de acreditar.

Ou será que esta boa gente não aprende, mesmo os rudimentos indispensáveis àqueles a quem cumpre decidir, julgar? Que, o que lhes ensinaram quanto à arte de julgar, foi insuficiente para tornar evidente que, apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar, já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear?

Mas será que, coisas destas, é preciso ensinar?

Dever-se-á, antes, a manifesta pusilanimidade da medida ora decidida a um manifesto défice de noção do tempo cronológico? A não entender a douta Magistrada que apenas a apreensão do passaporte poderia, em alguma medida, a fuga contribuir para evitar?

Ah! Não! Claro! Coitado! Como pude não me lembrar?

Sem passaporte, José Sócrates ficaria impossibilitado de ir ao Brasil, e o tal doutoramento, tão importante para todos nós e para a Justiça, ficaria por acabar. Seria uma ignomínia, uma ingratidão sem igual, uma tal patifaria fazer a quem, pela brilhante ação política e governativa desenvolvida, Portugal tanto tem a agradecer e a pagar.

* *

Por estas e por outras, a cada vez mais desacreditada magistratura judicial portuguesa, não cessa de nos desencantar com histórias de pasmar!...

A mais recente - lembram-se? - foi mesmo coisa de arrepiar...

(continua aqui)