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sábado, 25 de dezembro de 2021


A Cozer em Lume Brando... até à Morte

 

Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas sentimos como até
 sabemos
, sem necessidade de grande experimentação".

 

Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo muito ao de leve, num bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo, passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que, um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já aqui me insurgi. Bem, adiante...

De Tenra Idade aprendemos
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser, entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o bicharoco encolheu-se todo porque sentiu alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém se encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a experimentar um forte incómodo.

Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor. Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples possibilidade.

Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.

Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.

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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?

A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são, experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem gritar como os humanos.

Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma ordem.

O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal tratamento eivado de desumanidade *).

Ser humano de bom senso
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que experimentaria qualquer de nós?

Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido faria a carícia, se assim não fosse, afinal?

Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer? E, com eles, qualquer outro animal?

Se, ao que dizem, até os tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem, se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de estimulação?

Ao cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação.

Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais agradável e sofisticada degustação.

Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?

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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe diga.

Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio da maior aflição.

Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda: os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo, progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).

Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira ou o touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que matam filhas com água a ferver*), ou com ela as torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.

Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução civilizacional?

Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior *)”.

Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...

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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente demonstração.

Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os sentidos: para o bem, e para o mal.

Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir como a sequência inevitável ou natural?

Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado, nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede, aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados representantes do reino animal.

Sobretudo hoje, que é dia de Natal...

Feliz Natal!

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