sexta-feira, 31 de dezembro de 2021


Lesados do BPN: A Grande Desilusão!


A vontade da maioria limita-se a espelhar a vontade da maioria, pouco ou nada tendo a ver com a razão ou a racionalidade da decisão.

Assim, o facto de cerca de 80% dos processos decididos pelos Tribunais da Relação*) terem sido decididos a favor dos lesados do BPN jamais poderá ser causa invocável para atacar o recente e douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que decidiu que "para estabelecer o nexo de causalidade entre a violação dos deveres de informação, por parte do intermediário financeiro, e o dano decorrente da decisão de investir, incumbe ao investidor provar que a prestação da informação devida o levaria a não tomar a decisão de investir".

O que deve, neste trecho, causar perplexidade é, antes, o facto de, enquanto consumidores como qualquer um de nós, parecerem ter-se esquecido os Venerandos Conselheiros que votaram favoravelmente a decisão de que aquilo que plasmaram no acórdão foi, afinal, nem mais nem menos do que a conclusão de não ser válido o princípio, subjacente a todas as transações comerciais - muito especialmente no que se refere a valores mobiliários (cf art.7º do Código dos Valores Mobiliários) -, de que a exigência de informação completa e exata se destina, precisamente, à formação da vontade de adquirir por parte do comprador; e que a exigência do fornecimento de toda a informação relevante pressupõe que toda ela é, presumivelmente, relevante para a formação dessa vontade. Logo, a contrario, se alguma ou algumas das características estiverem errada ou insuficientemente referidas, há que concluir que a transação se não efetuaria.

Ora, in claris non admittitur voluntatis quoestio, ou seja: naquilo que é claro, não se admite pergunta quanto à vontade, princípio jurídico que poderá ter sido claramente violado pela polémica decisão.

Aplicado ao caso concreto, teremos que, sendo clara a relevância da informação exigida no processo de formação de decisão de aquisição, não é exigível que, relacionada com ela, se formule - ou demonstre - qualquer outra questão.

- x -

Não obstante, e embora sem força obrigatória geral, encontramo-nos perante um acórdão que os tribunais de primeira ou de segunda instância apenas poderão contrariar apresentando extensa fundamentação - e dificilmente em casos análogos, já que se trata de um acórdão de uniformização. Acresce que, sendo tamanha a probabilidade de revogação, em sede de recurso, pelo STJ, poucos serão os magistrados que tal proeza ousarão.

Os princípios são sagrados, e deve ser intransigente e rigorosa a sua observação. No entanto, a apreciação ex cathedra de questões como esta pode levar - e, pelos vistos, leva - a algo tão simples e inacreditável como o que acaba de acontecer; é que, salvo melhor opinião, a decisão agora prolatada é aplicável, por analogia, a todo e qualquer produto ou serviço transacionado, o que significa que qualquer dos mesmos ilustres magistrados - e de todos nós - deixará de ter direito a exigir, no prazo contratual, a devolução de uma simples varinha mágica apenas alegando que não tem potência suficiente para triturar amêndoas, como era erradamente referido na publicidade: tem de demonstrar que, se soubesse que não servia para triturar amêndoas, não teria concretizado a transação.

Ou seja: na prática, fica completamente impossibilitado de ter sucesso na reclamação!

A possibilidade de existência de inconstitucionalidade material deve, assim, ser objeto de análise atenta, não apenas pela parte interessada como, oficiosamente, por quem de direito, já que impacta, direta e gravemente, na proteção dos direitos do consumidor contemplados no art.60º da Constituição.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021


Gilbert K. Chesterton

G K Cesterton e as Falácias

"
As falácias não deixam de ser falácias
por entrarem na moda 
"


"Fallacies do not cease to be fallacies because they become fashions"

G. K. Chesterton *)      

terça-feira, 28 de dezembro de 2021


Títulos que O não São


Concordará o caro Leitor com a minha interpretação de que, a um título bombástico como este, se seguiria uma notícia sobre uma queda em desgraça do Juiz, ou de uma ação disciplinar séria com suspensão à vista, ou qualquer outro evento digno de notícia, mormente antecedida de um título de tamanho impacto.

Desengane-se. Como poderá confirmar no link que antecede o asterisco acima, continuação da leitura logo esclareceria que se trata, apenas, de redistribuir processos a cargo de um outro juiz por estar este exclusivamente dedicado a dois outros de maior exigência; e, logicamente, um eventual sorteio que inclua os novos magistrados recentemente admitidos*) poderá "resultar na perda de processos que estão, neste momento, com Carlos Alexandre", o que não passará de uma consequência natural do facto de, no Tribunal Central de Instrução Criminal existirem agora mais juízes pelos quais repartir a carga de trabalho.

Não se trata, obviamente, de uma notícia falsa. Mas, será coisa tão insonsa realmente uma notícia?

Tampouco estamos perante um título falso. Mas não se tratará de um título que viola a mais elementar fronteira da racionalidade e, até, da legitimidade, da boa fé?

Se o objetivo de títulos sensacionalistas com este for levar pessoas a adquirir jornais impressos ou a aceder a conteúdos eletrónicos a fim de, por qualquer dos processos, gerar receitas, até que ponto será a atitude de quem, impune mas deliberadamente escolhe um destes títulos, diferente daquilo que é geralmente considerado publicidade enganosa?

Com uma agravante, claro: enquanto a publicidade relativa a produtos indiferenciados é da responsabilidade de empresas não vinculadas a qualquer nobre missão que não seja a de obter lucros para quem nelas investe - e não estão protegidas por qualquer estatuto especial ou estão vinculadas a qualquer código de ética além daquele que, mais ou menos intuitivamente, vincula cada um de nós -, os jornalistas estão, supostamente, incumbidos da nobre missão de informar objetivamente, com verdade, sendo estes pressupostos parte importante dos privilégios que o Estado lhes concede para que possam, em liberdade, desempenhar a sua função.

Até que ponto será, então, legítimo a um órgão de comunicação social estar no mercado com a mesma postura que qualquer indiferenciado fabricante de macarrão?

Aqui fica a questão...



segunda-feira, 27 de dezembro de 2021


Katherine Jenkins - Il Canto


Da autoria de Romano Musumarra e Luca Barbarossa, foi inicialmente gravada pela potente voz de Pavarotti, em 2003. Será difícil não considerar que a discreta e ternurenta interpretação de Katherine Jenkins se destaca da primeira pela suavidade, pela fluidez, por um notável controlo da intensidade da voz, 

Muito raramente me deixo tocar por segundas versões, por variações e outras que tais, mas tenho de admitir que não há regra sem exceção.

Esta é, seguramente, uma delas. Pode ouvir aqui.


Fonte da imagem: Wikipedia


La notte qui non torna più
Dal giorno che sei andata via
Ed il cielo ha smesso di giocare
Con le stelle e con la luna
E le nuvole sono ferme qui
Come lacrime che non cadono
Vedi come il tempo
Perde anche i ricordi
Resta solo il canto
Di un amore che non muore
Prendi la mia mano
Danza con il vento
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Vedi come il tempo
Perde anche i ricordi
Resta solo il canto
Di un amore che non muore
Prendi la mia mano
Danza con il vento
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Apro le mie ali
Posso solo amarti così
Vieni, vieni via con me
Con me
Con me

domingo, 26 de dezembro de 2021


Gouveia e Melo: Mais Um Daqueles?


"A palavra que reténs nos teus lábios é tua escrava;  a que dizes fora de propósito é tua senhora".

Ninguém conclua, das linhas que se seguem, que não estou, como qualquer português deve estar, grato ao, a partir de amanhã, ex-Vice-Almirante que, recentemente, desempenhou funções como coordenador da assim designada task force da vacinação anti-COVID. Claro que estou!

Tal não me obriga, porém, a deixar-me ofuscar pelo brilho do sucesso da reconhecidamente válida ação por ele desenvolvida enquanto executante do enunciado atual - que não encontro, se é que existe... - do Plano Nacional de Vacinação*) iniciado em 1965 com a aceitação, pelo Estado Português, de um donativo da Fundação Calouste Gulbenkian destinado à vacinação contra a poliomielite*), difteria*), tétano*) e tosse convulsa*) (Decreto-Lei n.º 46533, de 09 de Setembro de 1965)*), continuado  com a implementação do velhinho mas, então, indispensável Boletim Individual de Saúde (Decreto-Lei n.º 46621, de 27 de Outubro de 1965)*) (Decreto-Lei n.º 46628, de 11 de Novembro de 1965)*) e assim sucessivamente.

Não me ofusca, pelo menos, a ponto de evitar que fique perplexo, desagradado e apreensivo com o que leio nas entrelinhas das recentes respostas do amanhã promovido a Almirante, como "o futuro a Deus pertence", "não se deve dizer 'dessa água não beberei'" ou "até lá muita coisa pode acontecer", produzidas quando interpelado acerca de uma eventual candidatura futura à presidência da República.

A ter, de facto, sido proferido este chorrilho de lugares-comuns*), há que questionar, antes de mais, a capacidade para o desempenho de tão altas funções por parte de um cidadão que, ainda há poucos meses atrás - e, porventura, antes de o terem aconselhado a ter tento na língua - sobre o mesmo assunto dizia coisas de sentido contrário, tão claras e sem margem para dúvidas como "Não sou político", ou "vou tirar esta farda, mas é para vestir outra. Eu sou militar, não tenho jeito para político. Fecho essa porta*).

Tudo isto é muito estranho. Principalmente, tratando-se de um militar, de uma pessoa que pertence à elite de uma estrutura conhecida pela solidez da palavra dada. Enfim...

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Mas há mais.

Enquanto desempenhou as referidas funções, o Senhor Almirante notabilizou-se como executante privilegiado, como mero coordenador de esforços e de boas-vontades. Não como gestor; muito menos, como um velho sábio a exercer uma magistratura de influência presidencial. Nem me parece, dada a sua notória apetência pela ação, talhado para tal.

Como explicar, então, que alguém que se assume como não político, que desempenhou funções que em nada se assemelham àquelas que de um presidente da República será de esperar, abra agora uma porta, pelo próprio há pouco inequivocamente fechada para sempre, para, mais ano, menos ano, vir a candidatar-se ao lugar?

Já se sabe que, pelo menos até agora, ninguém, num dos partidos políticos do costume, se tem vindo a perfilar como candidato às mais altas funções do Estado. Já se sabe, também, que não se vislumbra quem poderá ter carisma suficiente para, sem fazer muito triste figura, as desempenhar na sombra do atual Presidente da República, o qual dificilmente alguém, num futuro mais ou menos próximo, poderá, no plano mediático, sequer sonhar em igualar. O que suscita, inevitavelmente, a pergunta: qual dos partidos estará a piscar o olho ao Almirante? Quem o estará a empurrar?

Além do mais, começa, como vimos, a dar a ideia de que o talvez putativo Candidato tem uma imagem bastante difusa de si próprio, o que não convém ao mais alto magistrado da nação: disse, em tempos de que já não parece lembrar-se, não ser um político, mas a recente inversão de marcha nos seus projetos futuros acaba de demonstrar que, embora inábil, afinal, o é.

No entanto, diz quem é sensato que a imortalidade, quando já está garantida, mais vale defender do que desbaratar. Por isso, a sério, alguém lhe diga que, mesmo quando movidos pelas melhores intenções, se não somos ou não nos sentimos competentes - ou alguma coisa nos diz que, mais ou menos suavemente, estão a passar-nos a mão pelo pelo -, bem melhor faremos, no interesse daqueles que, supostamente, iríamos servir, em em não insistir em avançar; em não nos tornarmos... mais um daqueles.

Honesta fama est alterum patrimonium

sábado, 25 de dezembro de 2021


A Cozer em Lume Brando... até à Morte

 

Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas sentimos como até
 sabemos
, sem necessidade de grande experimentação".

 

Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo muito ao de leve, num bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo, passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que, um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já aqui me insurgi. Bem, adiante...

De Tenra Idade aprendemos
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser, entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o bicharoco encolheu-se todo porque sentiu alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém se encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a experimentar um forte incómodo.

Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor. Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples possibilidade.

Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.

Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.

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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?

A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são, experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem gritar como os humanos.

Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma ordem.

O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal tratamento eivado de desumanidade *).

Ser humano de bom senso
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que experimentaria qualquer de nós?

Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido faria a carícia, se assim não fosse, afinal?

Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer? E, com eles, qualquer outro animal?

Se, ao que dizem, até os tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem, se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de estimulação?

Ao cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação.

Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais agradável e sofisticada degustação.

Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?

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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe diga.

Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio da maior aflição.

Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda: os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo, progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).

Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira ou o touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que matam filhas com água a ferver*), ou com ela as torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.

Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução civilizacional?

Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior *)”.

Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...

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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente demonstração.

Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os sentidos: para o bem, e para o mal.

Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir como a sequência inevitável ou natural?

Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado, nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede, aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados representantes do reino animal.

Sobretudo hoje, que é dia de Natal...

Feliz Natal!

Caso se interesse por
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Mosaicos em Português

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021


Viseu: Porta do Soar

Viseu: Porta do Soar

 "(...) d'uma inscripção, que (refere-se ao anno de 1857) mal se divisa escripta em caracteres allemães minúsculos, junto da Porta do Soar, consta que D.Affonso V mandára cingir de muros esta cidade, e que a obra se concluirá no anno de 1472. Mais tarde, crescendo a povoação, estenderam-se as ruas para fóra dos muros, a ponto de que hoje (1857) conta por aqui quasi tantos fogos, como os que outrora contivera dentro"

Pinho Leal, in 'Portugal Antigo e Moderno'  - Tavares Cardoso & Irmão - Lisboa, 1890 - vol,XII p.1707


Outro tema que poderá interessar-lhe no Mosaicos em Português:
- O viseense Aquilino sobre o janotismo indelevelmente associado à futilidade e ao facilitismo Leia AQUI

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021


Gente que Morre antes de Começar a Viver


A tortura é abominável seja qual for o tempo, o local, o quadro, a pretensa explicação, a impossível justificação. Inegável e grave ofensa à integridade e à dignidade da pessoa humana, é punível criminalmente, independentemente da identidade e da qualidade da vítima e do agressor.

Tudo isto é pacífico, inevitável e estruturante de qualquer sistema jurídico de qualquer sociedade que se preze de o ser. Das outras, por certas forças políticas defendidas muito além do limite do absurdo*), nem vale a pena falar, já que não passam de aberrações, de produtos da ganância individual, da por vezes ingénua credulidade ou de timorata subserviência de um punhado de sequazes que mantem a população subjugada pela ação obediente das forças militares e militarizadas.

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O que dizer, então, quando, num país supostamente civilizado e à beira-mar plantado, que se diz evoluído e atento aos direitos humanos e aos das minorias, que exporta talentos, que promete segurança a imigrantes e a magotes de turistas vitais para a sobrevivência da economia, são agentes das próprias forças militarizadas ou de segurança que, impiedosamente, sadicamente, psicológica e fisicamente torturam quem esse país demanda em busca de condições minimamente dignas para viver?

Às mãos de agentes da autoridade, nesse país alguns migrantes sofrem humilhações, bofetadas, murros na cabeça, ameaças de espingarda encostada ao rosto, sequestro, reguadas nas mãos, inalação de gás pimenta e negação do desesperado pedido de socorro. Uma acusação com trinta e três crimes*) praticados perante gargalhadas de outros operacionais, nenhum dos quais terá mexido uma palha para pôr cobro a tais desmandos, três vezes repetidos ao longo de seis meses - e, se não fossem os agressores desmascarados, sabe-se lá durante quantos mais meses e por quantas vezes mais.

Como admitir que apenas dois militares suspeitos se encontrem suspensos, enquanto outros aguardam a conclusão de um moroso inquérito? Quantas mais vítimas irão estes homens fardados torturar?

Abyssus abyssum invocat *). Tudo isto não passou, na verdade, da repetição, agora talvez com maior requinte daquilo que, meses antes, se passara no mesmo posto da Guarda Nacional Republicana (GNR), em Odemira, e culminou na condenação dos autores a penas de prisão*).

Duas vezes no mesmo posto? Que controlo e que autoridade disciplinar tem, então, a GNR sobre os seus homens? Como garantir então, desta vez, que, num futuro mais ou menos próximo, outras bestas fardadas tais atos não praticarão?

Qual, também, o nível de arbitrariedade de bestialidade, de boçalidade daqueles que, não se contentando com o sofrimento infligido, se deleitaram a filmar*), para perverso gozo próprio e de espetadores a eles em tudo equiparáveis, cenas escabrosas de atropelo dos direitos humanos dos mesmos cidadãos? Cenas que, afinal, mais não exprimem do que o que de mais lamentável e degradante em si tem quem apenas se sente superior, realizado, importante ao subjugar e espezinhar quem, com o coração cheio de esperança, já vem fugido ao jugo de outro alguém*)? Gente que morre antes de começar a viver, e que nunca sabe onde o dia seguinte irá passar.

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Esquece-se, até, a estúpida e patega gentinha que os usa e agride de que as gravações e a respetiva partilha, voluntária ou não, se têm revelado bastante eficazes na investigação de crimes e posterior detenção dos criminosos. Esquece-se disto, apesar de, dada a função que desempenha na manutenção da ordem, melhor do que ninguém o devesse saber. Ou não se esquecerá, antes cedendo à prosápia da ignomínia, à inconsciência da maldade, ao que de mais baixo um ser humano em si traz, indiferente à vergonha e ao sofrimento a que a própria família estará a condenar?

Ao caso do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e da morte de Ihor Homeniuk seguiu-se a decisão, agora adiada*), de extinguir o SEF - não, pasme-se, sem antes o condecorar*). Ao caso de que aqui falo, da GNR de Vila Nova de Milfontes e dos imigrantes de Odemira, o que se seguirá? A extinção da Guarda... não sem antes o Estado Português a condecorar?

Dir-se-á que as corporações são muito maiores do que a meia dúzia de energúmenos que avilta o seu bom nome e contamina a imagem e a confiança nos restantes elementos.

Talvez. Mas não pode deixar de nos ocorrer ao espírito a velha ideia da ponta do iceberg. Nem da ínfima percentagem de condutores apanhada nas malhas dos radares, face às largas dezenas de milhar que, diariamente, excedem a velocidade máxima permitida. Entre aqueles, quem aqui escreve e, aqui e ali, até o prezado Leitor.

Quantos não detetados operacionais da Guarda, do SEF, seja de que força for se deliciarão com estes prazeres perversos? Quantos acabará a justiça por apanhar?

Até lá, quantos mais migrantes recordarão as suas terras ao viver, em Portugal, a reedição do horror?

* *

Todos sabemos, porém, que, a par dos dramas humanos intensos relacionados com imigrantes e, sobretudo, com refugiados, nos chegam histórias bem diferentes de refugiados algo... diferentes, também.

[encontrará aqui a sequência deste texto]

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021


João Lobo Antunes


João Lobo Antunes sobre a liberdade

"É mais fácil aprender as regras da democracia do que aprender a viver em liberdade"

João Lobo Antunes*)              
(Entrevista ao programa ´Por Outro Lado´ (RTP 1)

terça-feira, 21 de dezembro de 2021


Liberalismo ou Encapotado Negacionismo?

De entre tantos outros defeitos herdados da educação que recebi, ressalta o da convicção de que a nossa liberdade termina precisamente onde começa a dos outros. Ou, como já aqui citei, que "a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um".

Corolário inevitável deste facilmente compreensível pressuposto, é que o liberalismo que extravasa a fronteira precisa em que entramos no domínio do interesse social legítimo dos nossos concidadãos não passa de incitamento à mais abjeta e caótica anarquia, ao primado do egoísmo e do egocentrismo, à irracionalidade de quem pretende, à viva força, que a liberdade individual de qualquer um - ao que quer que seja e por mais doentia e desvairada que ela seja - se sobrepõe, sempre e incondicionalmente, a qualquer esforço sério e socialmente legítimo do Estado de direito na defesa dos interesses da população.

Esquece-se, porventura, quem o defende de que, se ele e os outros acérrimos defensores circulam em segurança pela via pública e se sentem seguros nos seus lares, tal se deve à ação do Estado na perseguição, detenção, julgamento, condenação e - quando não os deixa fugir... - detenção de quem comete crimes, designadamente contra as pessoas e contra a propriedade, em tais atividades estando o mesmo Estado, afinal, a fazer precisamente aquilo que dele se espera e que é, ao fim e ao cabo, parte importante da sua razão de ser.

Olvidam, também, essas pessoas que, tal como a lei penal considera criminoso quem mata, quem fere, quem, de alguma forma, causa prejuízo grave a outrem, criminoso é, também, quem causa ou se arrisca a causar-lhe sério dano à saúde. Isto, seja o agente um mal intencionado e mal formado ser humano  ou um virus na sua atividade legítima e habitual.

Pretender, mesmo sem assumir contornos negacionistas, que cada indivíduo tem a liberdade de escolher ser vacinado ou não quando estão em causa a eficácia, a eficiência e, mesmo, a sobrevivência do Sistema Nacional de Saúde - não apenas no tratamento de doentes com COVID-19 mas no dos que padecem de qualquer outra doença - é ultrapassar todas as linhas encarnadas do que é natural, legítimo, razoável; é ultrapassar o mais liberal limite da própria definição de humanidade.

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Dar eco, como há dias deu o jornal Observador, a um arrazoado de infindáveis aberrações*) por parte de uma representante da assim chamada Oficina da Liberdade*) que sustenta que se torna cidadão de segunda quem vive em países que, à falta de alternativa, se vêem constrangidos, para evitar a propagação da pandemia, a decretar a vacinação obrigatória não estará, propriamente, a agir no exercício da liberdade de imprensa, antes talvez a propagar ideias perigosas, bem próximas de um acéfalo e parolo negacionismo e que, numa altura tão crítica para estas andanças como é a do Natal, se arriscam a prejudicar gravemente o mais legítimo e sagrado interesse nacional.

Pretender, por exemplo, que "por toda a Europa, parece renascida a ideia de que quaisquer medidas adotadas pelo poder político, em nome da saúde pública, são legítimas, mesmo que sejam absurdas, como é o caso da irónica divulgação de dados pessoais de saúde para aceder a um restaurante de fast food" diz bem da verdadeira natureza das ideias expressas, quando é certo e sabido que, para aceder a qualquer restaurante, basta apresentar um certificado digital a uma aplicação que apenas responde "Válido", sem especificar se o é por a pessoa ter contraído anteriormente a doença, por ter sido vacinada ou por qualquer outra razão admissível. Ou seja: sem revelar qualquer dado pessoal de saúde, mas apenas o estado de conformidade ou de inconformidade perante uma lei que vai de encontro ao mais básico e universal interesse nacional.

Como pode, de facto, alguém pretender que é do interesse ou do bem-estar de qualquer indivíduo estar permanentemente sujeito a uma contaminação potencial?  Como pode alguém de boa-fé alegar que a administração de uma vacina viola a dignidade humana? Ou que está a ser discriminado alguém impedido de entrar num restaurante por não apresentar a prova possível de que tudo fez para não contaminar outros?

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O apodado "certificado digital da discriminação" não passa de um "certificado digital da diferenciação", apenas condenável por aqueles que defendem a liberdade de tudo e a qualquer preço, não hesitando em, a contrario, violar a própria Constituição que dizem defender, já que insistem em considerar tudo igual a tudo. Mesmo ao que, manifestamente, por natureza ou por estado é tudo menos igual.

A manipulação da comunicação com os espíritos de leitores menos críticos ou menos preparados a troco de algo que, num tal quadro, poderá ser facilmente confundido como ânsia de protagonismo ou de promoção social ou profissional parece pouco prudente, nada profícua e, até, contraproducente para a imagem própria de alguém que ciosamente se possa estar a procurar promover ou socialmente alardear.

A defesa dos interesses e direitos de cada cidadão é fundamental para evitar abusos e desmandos como aqueles que durante décadas conhecemos em Portugal. Mas é pernicioso e atenta contra os mais elementares e nobres propósitos de qualquer organização societária insurgirmo-nos contra aquilo que, objetiva e fundamentadamente, a Ciência e os seus representantes consideram uma precaução essencial.

ª ª

No âmbito da defesa dos interesses e direitos, até que ponto será lícito o Estado conceder gratuitidade de tratamentos a pessoas que, simplesmente, se recusam a tomar as precauções consideradas essenciais a limitar a propagação da doença?

(continua aqui)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021


Viana do Castelo: Avenida dos Combatentes

 

Viana do Castelo: Avenida dos Combatentes

Uma pacata imagem de outrora daquela que é a principal artéria*) da bonita cidade de Viana do Castelo.

"A principal artéria da cidade de Viana do Castelo, a Avenida dos Combatentes da Grande Guerra (o nome é grande, mas é conhecida apenas como Avenida dos Combatentes), começou a ser construída no ano de 1917, tendo a sua conclusão ocorrido em 1920. Tem início na Estação dos Caminhos de Ferro e termina na Praça do Eixo Atlântico. 

O seu carácter central, a grande movimentação de tráfego e pessoas e as diversas empresas e lojas que possui, fazem dela uma das "salas de visitas" da cidade. No seu topo norte encontra-se o belo edifício da Estação dos Caminhos de Ferro, começado a construir no ano de 1878, aberto ao público em 1882 e inaugurado em 25 de Março de 1887".(Blog Olhar Viana do Castelo *)).

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021


Mark Twain


Mark Twain - Opinião Petrificada


"
A lealdade a uma opinião petrificada nunca quebrou uma cadeia ou libertou uma alma humana"


   "Loyalty to petrified opinion never yet broke a chain or freed a human soul"     

in "Consistency"  


Por certo algo em que os nacionalistas na extrema-direita e os comunistas na extrema-esquerda bem fariam em ter presente nas suas mentes cristalizadas e empedernidas, esquecendo as ânsias de protagonismo e a sobrevivência política a todo o custo, contra quase tudo e contra quase todos, e pensando, por uma vez, no interesse da população, bem como na democracia como, apesar de tudo, um regime menos mau...

Visto, como está, que esta coisa de extremos leva a nada, resta questionarmo-nos quanto à verdadeira motivação dita altruísta de quem a eles se agarra... para não desaparecer politicamente.

domingo, 12 de dezembro de 2021


E que tal Fazê-los Pagar a Continha?

Da pusilanimidade e falta de objetividade do Governo de Portugal na gestão da crise pandémica, muito especialmente na altura do Natal, já aqui falei após o descalabro vivido no início deste ano de 2021.

A par de algumas medidas que, na época festiva que se avizinha, se afiguram, à partida, mais avisadas e fundamentadas do que no ano anterior, assistimos, no entanto, a nova demonstração de timidez e omissão governativas, eventualmente devidas à proximidade de mais um ato eleitoral.

Tem isto ao ver com a conclusão expressa em estudos recentemente divulgados segundo os quais, juntamente com os imunodeprimidos, os não vacinados constituem a grande maioria dos internados com COVID-19 em Portugal*); e no Brasil também*), e não é de agora.

Ora, como é sobejamente sabido, a todos os portugueses com idade e nas condições clínicas adequadas, foi, gratuitamente, dada a oportunidade de serem atempadamente vacinados, não apenas no interesse da comunidade, mas no interesse próprio, tão querido a quem tende a pouco querer saber dos outros.

Esquecem-se aqueles que recusaram a vacina de que oportunidade implica responsabilidade, designadamente a responsabilidade económica pela recusa da vacina.

Não parece, assim, fazer qualquer sentido que continue o Estado para o qual economicamente todos somos obrigados a contribuir a suportar os custos com o internamento de indivíduos egocêntricos, medrosos ou apenas ansiosos de protagonismo a qualquer preço, que recusarem vacinar-se, assim acabando, quase inevitavelmente, por apanhar o sempre incómodo, dispendioso e, por vezes, letal bicharoco.

Que o Serviço Nacional de Saúde os trate, acho muito bem. Agora, que todos tenhamos de pagar a continha de uns quantos idiotas que, ainda por cima, comprometem a eficiência e eficácia do Serviço que, desnecessariamente, solicitam já me parece muito além daquele razoável que um governo, por muito pouco razoável, deverá tolerar.

- x -

Em democracia, e por uma elementar questão de justiça, não é lícito tratar igualmente o que não é igual.

Todos fomos postos em pé de igualdade no processo de vacinação. Agora, os benefícios devem ser, também, iguais para quantos foram vacinados, mas bem diferentes para quem recusou a inoculação.


PS: Como já espero reações apatetadas ao texto, aqui transcrevo um elevadíssimo comentário afixado no artigo "Juiz Negacionista ou Advogado Oportunista, que diz bem do que vai na cabeça de alguma desta gente:

    "Prepara-te para um contra ataque em breve do https://forasteiro.net
    Vão ser todos abatidos, tu e o Scimed e mais uns quantos, prometemos.
    A bem ou a força irão ser todos expostos, como vieste ao mundo nú asism o serás em breve.
    Aguarda".

sábado, 11 de dezembro de 2021


Originais à Viva Força

"A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo"


Ao assistir a certas atitudes e ao ouvir certos comentários, convenço-me de que existe uma quase generalizada incapacidade para separar duas realidades absolutamente distintas: moda e originalidade.

Confusão
A confusão não faz, evidentemente, qualquer sentido, já que os conceitos são, não apenas distintos, mas antagónicos: originalidade é a qualidade daquilo que é diferente, próprio, inovador, enquanto moda*) corresponde ao conceito estatístico daquilo que constitui a tendência dominante, a classe com maior representatividade em determinado universo. Ou, no plano social e para utilizar uma linguagem mais terra-a-terra, a propensão de um conjunto alargado de pessoas para copiar, para adotar uma ideia que crêem original, ou sensacional, ou espampanante a ponto de, de certezinha absoluta, ir embasbacar outros invejosos que se irão maravilhar - ou roer todos por dentro... - ao olhar para nós.

Mesmo que o motivo do encantamento não seja original, mas apenas supostamente original...

- x -

Vem este supostamente a propósito, não da eticamente condenável prática do plágio - mais ou menos bem disfarçada, mas sempre correspondente à admissão íntima, por quem plagia, da incapacidade de se igualar ou, pelo menos, aproximar das capacidades e do mérito do original autor -, mas a propósito da deriva do conceito de original, ou da própria compreensão do significado efetivo do mesmo.

Dos relatos da História e daquilo que, nas últimas décadas presenciámos, extrai-se que jamais se assistiu a tamanho desfilar de criadores, de criativos, de entendidos criativos, de construtores de ideias, de promotores de ateliers de ideias, enfim, de toda a espécie de idiotas que, a par de um punhado dos que são, verdadeiramente, originais, verdadeiramente autores, o marketing atual vai associando a indivíduos que mais não fazem, afinal, do que deteriorar, estragar, adulterar o que de bom outros antes deles realmente criaram.

Podendo, embora, admitir-se que, nas suas mais diversas vertentes, o campo da arte se encontra especialmente sujeito a tais desmandos, dá a ideia de que o virus da falsa originalidade alastrou, em incontáveis e cada vez mais contagiosas variantes, a praticamente todas as áreas de atuação humana onde o principal objeto e valor resida na capacidade de gerar ideias dignas desse nome; ou seja, de ideias com as condições necessárias a, caracterizando-se pela diferença mas respeitando, ao mesmo tempo, a indispensável estabilidade da construção social vigente, resultar numa melhoria das condições materiais ou espirituais de vida do nosso semelhante.

Já nos habituámos a pagar para assistir a espetáculos de onde se sai nauseado com o vazio ou aberrante original que por lá se vê; a contemplar originais obras ditas de arte que não passam de rabiscos e borrões cuspidos numa tela - incompreensíveis a menos que o autor esclareça o que lhe terá perpassado o espírito quando as espirrou -, ou mamarrachos escultóricos que facilmente passariam despercebidos, quais calhaus para ali caídos, se os não tivessem plantado numa galeria de exposições, no meio de uma rotunda ou em lugar de destaque num jardim ou parque qualquer.

Manifestações artísticas
Todavia, a par destas manifestações artísticas, os meios de comunicação social dão destaque a uma cada vez maior quantidade de indivíduos à cata de factos que lhes proporcionem oportunidades de se evidenciar, de aparentemente debater, interminavelmente, os mesmos assuntos em tom pomposo e palrar barroco.

Embasbacam as gentes menos educadas ou cultivadas com janelas de oportunidade, com temas abordados em textos sem qualquer densidade e que, no final do dia, convocam muitas dúvidas sobre icónicas, apelativas e estratosféricas personalidades que aparecem linkadas a temas públicos e notórios que interessam apenas e só aos instagramáveis cuja mundivivência se integra no ADN daquelas pessoas top que publicam posts que se tornam virais e altamente rentáveis, ou comentam desconstruindo raciocínios que geram narrativas talvez pouco rentáveis mas incontornáveis, que rentabilizam delas se demarcando proativamente, ainda que com as mesmas possam concordar.

A empáfia*) desta gente, a incrustada apetência por esvaziados mas economicamente compensadores excursos destinados ao consumo de telespectadores desolados e abúlicos, são evidente epifenómeno da explosiva multiplicação de canais televisivos que, por esse processo, ficaram limitados a noticiar o que os restantes noticiam, a comentar o que os outros comentam, a publicitar os mesmos produtos, a simular mudanças profundas, originalidades não originais que copiam de televisões de outros mundos, de outros canais.

Contratam faladores que, ora copiam o que, na véspera, de outros leram ou lhes ouviram, ora buscam, desesperadamente, onde não existem, teorias supostamente originais quanto às causas disto ou daquilo, ora se limitam a seguir a moda das opiniões por muitos outros já expressas sobre os mesmos acontecimentos; em boa verdade, quase sempre algo que, de tão evidente, ao espírito de qualquer um imediatamente ocorre, tornando-se absolutamente dispensável sequer verbalizar.

Nós vemos e ouvimos porque nos habituámos.. àquilo que há.

- x -

Parecem, certas pessoas - falhas de conteúdo mas ávidas de dinheiro, de fama, de protagonismo, daquele poder que nem sabem o que, realmente, é - empenhadas em explorar o inesgotável filão da ignorância e da estupidez alheia para idealizar, não produtos materiais ou espirituais benéficos e propícios ao desenvolvimento do seu semelhante, antes ao que de mais chocante, de mais aberrante, de mais impactante acorrer aos seus pobres espíritos que seja suscetível de causar sobressaltos morais ou intelectuais quase sempre úteis aos interesses do suposto criativo, mas quase nunca aos daqueles a quem ele a dita criação impinge ou impõe.

Experiência própria ou alheia
Há muito tempo sabe toda essa gente, por experiência própria ou alheia, que sempre encontrará mercado fiel e disposto a pagar seja o que for ou quanto for por coisa nenhuma, por qualquer diferença indiferente, por algo tão impossível como uma moda original, na certeza quase absoluta de que irá, mediante tão obnóxio expediente, brilhar no cinzento meio da pobreza espiritual em que evolui e na qual de outra gente como ela se faz rodear.

Esquecem-se essas pessoas, ou fazem por se esquecer, de que, quem é bem sucedido, apenas foge às regras porque teve uma inspiração, uma ideia, um impulso espontâneo, legítimo e bem intencionado.

Esquecem-se de que jamais se consegue ser original - ou criativo, como agora gostam de dizer ser - apenas porque, deliberadamente, sem uma ideia própria válida e com propósitos inconfessáveis, se escolhe fugir às regras: não é essa opção forçada e tomada a qualquer preço e com indiferença perante a qualidade dos efeitos que faz alguém ser bem sucedido. Pelo menos, junto de quem seja verdadeiramente livre, independente, socialmente válido e consciente.

- x -

Em qualquer ambiente em que se respire, de facto, liberdade e civilização, as regras existem por serem, reconhecidamente e dentro daquilo que se sabe e conhece, a forma mais eficiente, mais eficaz e mais segura de obter determinado resultado; e, económico ou não, a obtenção de qualquer resultado positivo, socialmente legítimo e saudável, resulta numa mais-valia com impacto direto no habitat de  quem o produz, e indireto na transmissão que o efeito multiplicador lhe não deixará de imprimir.

A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo.

Não vale a pena elaborar rebuscadas explicações políticas, científicas, mais ou menos criativas, não faz sentido nem é bonito explorar a ingenuidade, a ignorância ou a credulidade alheias, ou lançar a dúvida, a suspeita, o mistério, o suspense quanto à verdadeira razão, à causa profunda de ter sido encontrada uma maçã caída debaixo da copa de um pinheiro.

Não, não acabámos de descobrir um pinheiro que maçãs.

A maçã estava debaixo do pinheiro porque alguém para lá a atirou, ou a deixou cair. Ou, mais prosaicamente, dela lá se esqueceu.


Caso se interesse por
QUESTÕES SOCIAIS
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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021


Tomar: Santa Maria dos Olivais

 

Igreja de Santa Maria dos Olivais

"Actualmente a única freguezia da cidade de Thomar. E' pois comarca, concelho, e prelazia d'esta cidade, no districto administrativo de Santarém, e está annexa, no ecclesiastico, ao patriarchado. Dista de Lisboa 130 kilometros ae N. Tem 1000 fogos.

(...) A egreja de Santa Maria do Olival, está fóra da cidade, e na margem opposta do Nabão, e foi cabeça da ordem dos templários, primeiro, e desde 1319, da ordem de Christo. O templo é de arehiteetura gothica, mas de singela construcção. Alli estão sepultados os mestres das duas ordens acima referidas, em uma capella do corpo da egreja. Até aos reinados de D. Manuel e D. João I1J, cada um dos sepultados tinha tumulo especial, sendo alguns de boa construcção, mas com o pretexto de desobstruir a egreja de tantos mausoléus, praticou-se o vandalismo de os desmoronar, fazendo se a trasladação para uma só capella como dissemos.

Perderam se assim os epitaphios que estavam gravados nos sepulchros de tantos mortos illustres, ficando apenas os de Gualdim Paes e Lourenço Martins.

Na capella-mór ainda se vé a inscripção sepnlchral de D. Gil Martins, primeiro mestre da ordem de Christo".

Pinho Leal, in 'Portugal Antigo e Moderno'
Tavares Cardoso & Irmão - Lisboa, 1875 - vol,VI p.249-250      

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021


Joacina Katar Moreira e o Elogio da Oligofrenia

"Razões fortes, compromissos claros".

Esta mensagem num cartaz do Bloco de Esquerda terá provocado na rede social Twiter, a mensagem "A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava*).

Salvo o devido respeito, a imbecilidade da coisa apenas é comparável à manifesta ignorância vocabular de quem a produziu, bem como à pobreza gramatical evidenciada pela construção frásica pseudo-moderna e pseudo-progressista do  seguido do pretérito imperfeito do indicativo pretendendo significar que já se poderia isto ou aquilo (neste caso, já mudava, em lugar da expressão correta já se poderia mudar. Ou, na forma popular, já se podia mudar).

Claro, significando evidente, preciso nada tem, em sentido estrito, a ver com claro, no sentido de luminoso, pouco escuro. O adjetivo é o mesmo, mas a utilização que dele é feita num e noutro caso quase as torna palavras homónimas, apenas o não sendo na medida em que a classificação gramatical é a mesma.

Não há, assim, como considerar que se trata de um ataque aos ideais anti-racistas, mais a mais vindo de quem vem. Não passa de uma patetice, de uma alarvidade, da tentativa desesperada de quem politicamente se arrisca a desaparecer para manter um protagonismo que não merece, se é que alguma vez mereceu.

- x -

O aproveitamento abusivo de tudo quanto cai ao alcance dos nossos olhos para o distorcer, para o enviesar à medida da conveniência de uma causa ou argumentação a ele completamente alheia apenas tem como resultado imediato a evidenciação do vazio daquilo que se defende e da fundamentação de suporte que temos para lhe oferecer. No presente incidente, apenas serve para menorizar a nobre causa do racismo, que, é caso para dizer, bem melhores defensores poderia merecer.

Alguém me dizia, há tempos, que para se obter um grau de mestre ou de doutor é mais necessária capacidade de trabalho do que inteligência. Dir-se-ia que alguns parecem profundamente empenhados em o demonstrar...

Se certos doutorados que por aí há trabalharam ou não, jamais saberei. Mas da oligofrenia que caracteriza algumas das suas afirmações não será difícil convencer.

Outros artigos polémicos sobre
POLÍTICA
estão disponíveis no correspondente separador no topo desta página.
NÃO PERCA!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021


Jorge Baptista



Jorge Baptista sobre os jogadores de futebol

"O futebol é a
 única indústria no Mundo em que os patrões estão na miséria e os empregados estão multimilionários"

Jorge Baptista*)
(SIC Notícias)  


Isto, claro, no tempo em que ainda se não sabia daquilo que, cada vez mais, se vai sabendo agora, na época da Operação Cartão Vermelho*), da Operação Prolongamento*) e de outras que, provavelmente, aí virão.

Interessante, a utilização do termo indústria para designar o que, ingenuamente, durante algum tempo pensei que se tratasse de um desporto.

Não cessa, de facto, de nos surpreender, este importante fenómeno social que é o futebol.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021


Santarém: Hotel Central

Santarém - Hotel Central





Fica na rua Guilherme de Azevedo.


Desenhado pelos arquitetos Amílcar Pinto*) e José Augusto Rodrigues e inaugurado em 1916, o velhinho Hotel Central não passa, hoje, de uma recordação do passado da Cidade.


Com a reabilitação do edifício, o rés-do-chão transformado num espaço comercial, salva-se o facto de ter sido inventariado - mas, ao que parece, não 'protegido' - como monumento.*)

sábado, 4 de dezembro de 2021


Motorista de Cabrita: Negligência ou Dolo Eventual?


   "Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante deveria,
pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia, a coisa parece deplorável,
feia, inqualificável. Demitiu-se do cargo, e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer.
Só pecou por tardar e por, na declaração da saída, tergiversar
"


Cabrita
Deixando à margem os comentários inflamados e subjetivos que por aí andam sobre a atitude do Ministro da Administração interna ao declarar-se um mero passageiro na viatura que, há meses, atropelou um trabalhador da Brisa, vamos lá tentar, em abstrato, arrumar as ideias e por um pouco de ordem nisto tudo.

Faz toda a diferença cometer um crime por negligência ou com dolo eventual.

Quando um condutor amador como a maior parte de nós circula, a 166 km/h, numa auto-estrada em zona não sinalizada como nela decorrendo trabalhos de manutenção, e acaba por, inadvertidamente, colher e matar um peão, estamos perante um crime por negligência, com mera culpa. Ou seja: o condutor distraiu-se, ia a pensar que não tinha dado de comer ao gato antes de sair de casa, ou vinha aborrecido com alguma coisa, acelerou e não viu que um maluco qualquer ia a atravessar a faixa de rodagem numa zona onde ninguém deveria estar.

Neste caso, a culpa do condutor não reside no facto de ter atropelado quem, inopinadamente, apareceu a caminhar na auto-estrada, o que ninguém poderia prever.  A culpa estaria no facto de não ter podido parar a tempo por circular com um excesso de velocidade de 46 km/h relativamente aos 120 km/h permitidos. Apenas isto; e, por se tratar apenas disto, estaríamos perante um homicídio por negligência, como tantos outros que, por essas estradas, acontecem e continuarão a acontecer.

Bem diferente é a situação de um motorista profissional que conduz na auto-estrada a 166 km/h e, sem abrandar, irrompe por uma zona de trabalhos devidamente assinalada, caso em que a velocidade máxima sinalizada seria, possivelmente, de 80 km/h. O excesso já não seria de 46 km/h, mas de 86 km/h, o que faz uma diferença muito grande. Mas, mais diferença faz ainda o facto de, ao contrário do primeiro exemplo, em que a presença do peão seria absolutamente inesperada, numa zona de trabalhos ser natural e expetável encontrar pessoas!

Quanto mais não fosse, apenas por isto, não se trataria, neste caso, de uma excesso de velocidade meramente negligente que teria tido como efeito dificultar o controlo do automóvel, mas de uma vontade de prevaricar estando plenamente consciente da fortíssima probabilidade de encontrar pessoas cujas vidas seriam postas em sério risco.

De outra forma dito, o motorista ter-se-ia conformado com o resultado mais do que previsível: causar danos irreparáveis à integridade física de terceiros ou, mesmo, tirar-lhes a vida.

Avenida Almirante Reis - Lisboa
Esta evidente conformação com o resultado nefasto previsível define a existência de dolo eventual, que, aos olhos da lei, transforma um homicídio por negligência, punível com uma pena máxima de três anos de prisão nos termos do art.137º do Código Penal, num homicídio simples, ao qual corresponde uma pena máxima de dezasseis anos de prisão, conforme dispõe o art.131º do mesmo Código. Falta dizer que, enquanto no primeiro caso a pena pode ser suspensa nos termos do art.50º e seguintes, no segundo o condenado vai ter mesmo de a cumprir.

"Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada
como consequência possível da conduta,
há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização
"

Código Penal Português, art.14º n.º 3 (Dolo Eventual)

Se me der para conduzir a cem à hora em Lisboa, na Almirante Reis, não tenho a certeza de ir atropelar alguém, mas é muitíssimo provável que tal aconteça. Se, sabendo-o, insistir na ideia, me puser para ali a acelerar e acabar por atropelar alguém, terei agido com dolo eventual, pensado talvez não aconteça, mas pode muito bem acontecer. Paciência. Tanto pior para quem ao meu caminho aparecer.

Lá fora, existe a expressão depraved indiference. Indiferença depravada diz, de facto, muito mais da monstruosa dimensão da atitude assumida por estes criminosos perante o próximo que, aos seus objetivos, não hesitam em sacrificar.

Mesmo em marcha de urgência, uma ambulância abranda ao aproximar-se de uma zona de obras.
Ao que parece, o motorista do Ministro não abrandou!

- x -

Daqui de longe, a única razão plausível para que, no caso do motorista profissional do Ministro da Administração Interna, agora acusado de homicídio por negligência, este tipo de crime tivesse sido escolhido pelo Ministério Público em lugar do de homicídio simples - com dolo eventual - seria a eventualidade de os trabalhos não terem sido devidamente sinalizados pela equipa que os executava*), o que a concessionária da auto-estrada prontamente desmentiu*).

Terá a omissão acontecido? Será isto plausível? Ou possível, até?

É que não estamos a falar daqueles empreiteiros de beira de estrada com raquetas encarnadas de um lado e verdes do outro, que quanto utilizam semáforos nem sincronizá-los devidamente sabem; que deixam os sinais de máxima trinta na berma da estrada durante todo o fim de semana sem que lá estejam máquinas ou quem quer que seja a trabalhar, ou os mantêm em vigor ao longo de uns bons cinco ou dez quilómetros para andarem por ali a aparar umas ervinhas enquanto, quilómetros atrás ou à frente, por vontade deles uma interminável fila de automóveis andaria, inutilmente, a pastelar.

Não. Estamos a falar de uma grande empresa, concessionária da maior parte das auto-estradas nacionais e com códigos de conduta e manuais de procedimentos estritos e completos, e com rotinas executadas por diversos elementos e controladas por diversos outros, todos eles com exigentes qualificações profissionais.

Mais simplesmente: alguma vez o Leitor passou por obras ou trabalhos numa auto-estrada portuguesa que não estivessem devidamente sinalizados largas centenas de metros atrás?

Eu, não.

- x -

Muito se diz e escreve, hoje, por aí sobre a atitude do Ministro ao declarar que era um mero passageiro *).

Sim. Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante deveria, pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia, a coisa parece deplorável, feia, inqualificável. Demitiu-se do cargo*), e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer. Só pecou por tardar e por, na declaração da saída, tergiversar.

Mas, por muito que nos doa, legalmente, o Ministro tem razão: era, de facto, um mero passageiro, cabendo ao motorista toda a responsabilidade pela condução do automóvel, como acontece, por exemplo, quando viajamos de avião. No avião, há o comandante, e nós todos, os outros: bloggers, políticos, governantes, sejamos quem formos, não passamos de passageiros nem mandamos o que quer que seja na pilotagem (e ainda bem...).

O mesmo acontecia no carro do Ministro, com a condução. A menos que... ele tenha sugerido ao motorista que estava com pressa, que fizesse o favor de se despachar, caso em que poderia ser acusado de cumplicidade ou de incitamento - coisa que, em qualquer caso, sem uma improvável confissão seria sempre difícil de provar.

- x -

Seja o que for que tenha, de facto, acontecido, cabe agora aos tribunais averiguar.

Mas fica sempre aquele cheirinho a poder - perdão, a podre, que ser escreve de maneira quase igual.

Fica aquela suspeitazinha no ar...

Como quase sempre, em Portugal

"Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto criminoso.

Existe dolo necessário quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta.

No dolo eventual cabem os casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, leva a cabo tal conduta, conformando-se com o respectivo resultado*)

Acórdão de 12.03.2009 (Processo 08P3781)
do Supremo Tribunal de Justiça