“Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca
demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é
conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas
sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação".
Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo
muito ao de leve, num
bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo,
passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer
isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que,
um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já
aqui*) me insurgi. Bem, adiante...
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser,
entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o
bicharoco encolheu-se todo porque sentiu
alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém
se
encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo
intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a
experimentar um forte incómodo.
Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação
sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse
associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor.
Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o
sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos
sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples
possibilidade.
Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo
sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e
acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto
pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve
toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.
Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já
longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem
sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se
aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.
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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre
determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de
seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação
vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas
de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo
que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se
enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?
A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos
à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são,
experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em
sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem
gritar como os humanos.
Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando
mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma
ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da
cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de
assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados
no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma
ordem.
O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que
os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal
tratamento eivado de desumanidade *).
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é
primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para
associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando
fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no
conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que
experimentaria qualquer de nós?
Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será
algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido
faria a carícia, se assim não fosse, afinal?
Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é
capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais
distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer?
E, com eles, qualquer outro animal?
Se, ao que dizem, até os
tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem,
se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de
criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero
quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil
atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres
animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de
estimulação?
Ao
cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no
nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá
bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem
necessidade de grande experimentação.
Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais
agradável e sofisticada degustação.
Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse
tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus
Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje
sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?
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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe
diga.
Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre
acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os
bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio
da maior aflição.
Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na
comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda:
os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo,
progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio
semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto
de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo
intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da
noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um
calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível
sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).
Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e
dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira
ou o
touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que
matam filhas com água a ferver*), ou com ela as
torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.
Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos
ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de
nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado
pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução
civilizacional?
Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente
maior *)”.
Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...
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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos
aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas
circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da
nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias
e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de
estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente
demonstração.
Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os
sentidos: para o bem, e para o mal.
Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de
uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como
reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir
como a sequência inevitável ou natural?
Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado,
nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede,
aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu
sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados
representantes do reino animal.
Sobretudo hoje, que é dia de Natal...
Feliz Natal!