Corolário inevitável deste facilmente compreensível pressuposto, é que o liberalismo que extravasa a fronteira precisa em que entramos no domínio do interesse social legítimo dos nossos concidadãos não passa de incitamento à mais abjeta e caótica anarquia, ao primado do egoísmo e do egocentrismo, à irracionalidade de quem pretende, à viva força, que a liberdade individual de qualquer um - ao que quer que seja e por mais doentia e desvairada que ela seja - se sobrepõe, sempre e incondicionalmente, a qualquer esforço sério e socialmente legítimo do Estado de direito na defesa dos interesses da população.
Esquece-se, porventura, quem o defende de que, se ele e os outros acérrimos defensores circulam em segurança pela via pública e se sentem seguros nos seus lares, tal se deve à ação do Estado na perseguição, detenção, julgamento, condenação e - quando não os deixa fugir... - detenção de quem comete crimes, designadamente contra as pessoas e contra a propriedade, em tais atividades estando o mesmo Estado, afinal, a fazer precisamente aquilo que dele se espera e que é, ao fim e ao cabo, parte importante da sua razão de ser.
Olvidam, também, essas pessoas que, tal como a lei penal considera criminoso quem mata, quem fere, quem, de alguma forma, causa prejuízo grave a outrem, criminoso é, também, quem causa ou se arrisca a causar-lhe sério dano à saúde. Isto, seja o agente um mal intencionado e mal formado ser humano ou um virus na sua atividade legítima e habitual.
Pretender, mesmo sem assumir contornos negacionistas, que cada indivíduo tem a liberdade de escolher ser vacinado ou não quando estão em causa a eficácia, a eficiência e, mesmo, a sobrevivência do Sistema Nacional de Saúde - não apenas no tratamento de doentes com COVID-19 mas no dos que padecem de qualquer outra doença - é ultrapassar todas as linhas encarnadas do que é natural, legítimo, razoável; é ultrapassar o mais liberal limite da própria definição de humanidade.
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Dar eco, como há dias deu o jornal Observador, a um arrazoado de infindáveis aberrações*) por parte de uma representante da assim chamada Oficina da Liberdade*) que sustenta que se torna cidadão de segunda quem vive em países que, à falta de alternativa, se vêem constrangidos, para evitar a propagação da pandemia, a decretar a vacinação obrigatória não estará, propriamente, a agir no exercício da liberdade de imprensa, antes talvez a propagar ideias perigosas, bem próximas de um acéfalo e parolo negacionismo e que, numa altura tão crítica para estas andanças como é a do Natal, se arriscam a prejudicar gravemente o mais legítimo e sagrado interesse nacional.
Pretender, por exemplo, que "por toda a Europa, parece renascida a ideia de que quaisquer medidas adotadas pelo poder político, em nome da saúde pública, são legítimas, mesmo que sejam absurdas, como é o caso da irónica divulgação de dados pessoais de saúde para aceder a um restaurante de fast food" diz bem da verdadeira natureza das ideias expressas, quando é certo e sabido que, para aceder a qualquer restaurante, basta apresentar um certificado digital a uma aplicação que apenas responde "Válido", sem especificar se o é por a pessoa ter contraído anteriormente a doença, por ter sido vacinada ou por qualquer outra razão admissível. Ou seja: sem revelar qualquer dado pessoal de saúde, mas apenas o estado de conformidade ou de inconformidade perante uma lei que vai de encontro ao mais básico e universal interesse nacional.
Como pode, de facto, alguém pretender que é do interesse ou do bem-estar de qualquer indivíduo estar permanentemente sujeito a uma contaminação potencial? Como pode alguém de boa-fé alegar que a administração de uma vacina viola a dignidade humana? Ou que está a ser discriminado alguém impedido de entrar num restaurante por não apresentar a prova possível de que tudo fez para não contaminar outros?
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O apodado "certificado digital da discriminação" não passa de um "certificado digital da diferenciação", apenas condenável por aqueles que defendem a liberdade de tudo e a qualquer preço, não hesitando em, a contrario, violar a própria Constituição que dizem defender, já que insistem em considerar tudo igual a tudo. Mesmo ao que, manifestamente, por natureza ou por estado é tudo menos igual.
A manipulação da comunicação com os espíritos de leitores menos críticos ou menos preparados a troco de algo que, num tal quadro, poderá ser facilmente confundido como ânsia de protagonismo ou de promoção social ou profissional parece pouco prudente, nada profícua e, até, contraproducente para a imagem própria de alguém que ciosamente se possa estar a procurar promover ou socialmente alardear.
A defesa dos interesses e direitos de cada cidadão é fundamental para evitar abusos e desmandos como aqueles que durante décadas conhecemos em Portugal. Mas é pernicioso e atenta contra os mais elementares e nobres propósitos de qualquer organização societária insurgirmo-nos contra aquilo que, objetiva e fundamentadamente, a Ciência e os seus representantes consideram uma precaução essencial.
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No âmbito da defesa dos interesses e direitos, até que ponto será lícito o Estado conceder gratuitidade de tratamentos a pessoas que, simplesmente, se recusam a tomar as precauções consideradas essenciais a limitar a propagação da doença?