quinta-feira, 31 de março de 2022


Resiliência ou Ignorância?

"Sou resistente
se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar.
Sou resiliente
se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar
"

"Se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa,
como designar a tal capacidade de recuperação?
"


Internet Popularucha
Encontramos frequentemente, por essa Internet, n sítios que dizem ensinar cultura, como tal parecendo entender a mera repetição, por vezes em tom desnecessariamente popularucho, daquilo que, noutros, facilmente se encontraria com substancialmente maior qualidade e, sobretudo, com a devida e consistente fundamentação.

Além de popularucha, a linguagem utilizada aparece, por vezes, de forma descaradamente evidente, como pensada para atrair leitores menos informados mas mais sensíveis aos apelos mediáticos - o que até poderia resultar num contributo válido para a formação de menos instruídas camadas da população, - bem como para a exaltação mais ou menos narcísica de quem por lá escreve e se não coíbe de pespegar, em dimensões particularmente generosas, a sua imagem em fotografias do tipo passe, obtidas, às tiras para recortar, nas máquina automáticas Photomaton.

Em lugar de prestar esse contributo válido, no caso dos textos em que dizem abordar questões da língua portuguesa, leva-os, bem pelo contrário, o mediatismo excessivo a evidenciar o erro em lugar da palavra ou expressão correta,  problemática que foi, recentemente, aflorada num texto, publicado pelo blog Cota Máxima*), cuja leitura recomendo.

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Ora, legítimo seria esperar que se ocupassem, pelo menos, estes n sítios - n, porque são muitos... -  de averiguar a exatidão dos significados que ensinam como sendo, numa classificação inaceitavelmente subjetiva, as 25, ou as 10, ou as 15 palavras mais qualquer coisa da língua portuguesa, em lugar de comprometer, de forma ainda mais séria do que aquela com que, a cada passo, nos defrontamos, o parco conhecimento da língua portuguesa detido pela generalidade da população.

A par da narrativa, da performance, das geografias, do elencar, do viral, do incontornável e dos restantes membros da vasta família, resiliência vem-se revelando como um dos termos cuja utilização  uma cada vez maior quantidade de pateticamente presumidos oradores e supostos escritores parece julgar que os eleva social e culturalmente, quando a torto, a direito, a despropósito e ad nauseam, a incluem nas mais elementares orações. 

Não será, assim, de estranhar que, no meio de algumas ou muitas outras coisas bizarras encontradas nesses n sítios de cultura, tenha, num deles, deparado, para o termo resiliência, com o significado de  lutar, não desistir, ser otimista e superar obstáculos e outras coisas que tais.

Em lugar de, como de um sítio dito 'de cultura' poderia esperar-se, limitam-se, assim, a papaguear, de forma absolutamente acrítica, o significado do termo originariamente utilizado pela física do qual, abusiva e erradamente, a psicologia se apropriou.

Como já, noutro texto aqui ironizei, resiliência, apenas ao de leve se parece com tal definição: resiliência é, antes, a capacidade de, após sofrer um impacto ou tensão, um material recuperar a sua forma original - como, no quotidiano, observamos, por exemplo, num elástico ou numa mola.

Aplicado à psicologia, o termo resiliência apenas poderia, assim, corresponder à capacidade de recuperação após um impacto ou tensão potencialmente nocivos da estabilidade emocional de uma pessoa. Não é, pois, confundível com resistência, que, essa sim, define a capacidade de um material resistir às tensões e impactos antes de começar a deteriorar-se ou a alterar a forma, ou de uma pessoa resistir antes de, baixando os braços perante os desafios se deixar afetar pela adversidade com que se depara ou lhe é imposta.

Clarificando: sou resistente se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar. Sou resiliente se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar.

Trata-se, inequivocamente, de conceitos e de situações bem diferentes, afigurando-se absolutamente descabido sustentar que, utilizar uma ou outra... tanto faz!

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Já aqui escrevi, a propósito do sexo e do género, sobre a apropriação, por parte das ciências sociais, de termos utilizados por outras ciências ou disciplinas, assim lançando nos espíritos uma enorme confusão. Trata-se, ao que tudo parece indicar, de um comodismo excessivo, de um aproveitar o que já existe sem muito pensar no assunto, de uma falta de exigência de rigor vocabular, de uma inaceitável displicência com a comunicação que muitos dizem ser tão cara e importante, a mesma comunicação que não param de enfeitar com palavras caras mas vazias de significação.

A apropriação, pela psicologia, do termo resiliência para exprimir algo que resistência muito bem exprime, não passa, assim, de mais uma tentativa de complicar o que é simples; de confundir o que é claro; de enfeitar o que é linear, exaltando a vaidade própria - e provavelmente negada... - de quem opta por uma expressão vocabular cada vez mais barroca e ridícula, em detrimento da qualidade do discurso, da propriedade da expressão, da precisão na compreensão, em suma, minando uma comunicação que se quer pura e exata; pelo menos, tanto quanto razoável e possível, no meio de toda esta indefinição.

Legítimo será, naturalmente, por que razão haverá alguém de, sobre este assunto, aceitar como bom o que aqui defendo, e não aquilo que os reputados linguistas e cientistas fazem e dizem.

Ora, a resposta é bem simples, e arrima-se em dois pilares essenciais:

  • o pilar linguístico, que assenta na imperiosa necessidade de, para nos entendermos e fazermos entender, não apenas procurar eliminar cada um dos múltiplos focos de ambiguidade que o idioma foi gerando e desenvolvendo, através da ignorância e do facilitismo, da indiferença por tudo quanto, como um idioma, não é visível, não rende euros ou votos, ou prestígio, ou - pensam alguns - status social;

  • o pilar lógico, que torna evidente ao mais distraído que, se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa, como designar a capacidade de recuperação?
Sem apresentar fundamentação que, literalmente, arrase qualquer destes alicerces, não será fácil convencer espíritos exigentes e mentes informadas da justeza da utilização da já estafada resiliência para, a propósito de tudo de nada, referir algo que resistência perfeitamente define, sem necessidade de elaborados estudos ou rebuscadas  e pomposas interpretações.

Resistência, qualquer aluno da instrução primária sabe o que é. Resiliência, pelo contrário, é um termo de cujo verdadeiro significado muitos que o utilizam nem desconfiam; e, falar sem saber o que se diz, não será, propriamente, a mais eficaz e fluída forma de comunicar.

Capacidade de RESISTIR Resistência Resistente
Capacidade de RECUPERAR Resiliência Resiliente
Ato ou efeito de RECUPERAR Recuperação -

Primeiro, procura-se resistir. Se não resistimos, mas somos resilientes, depois de quebrar, recuperamos. Uma vez recuperados, voltamos a procurar resistir a novos impactos, e assim sucessivamente.

Temos, assim, um dito PRR, um Plano de Ato ou Efeito de Recuperar e de Capacidade de Recuperar. Para aguentar tolices destas, é, de facto, necessária muita... resistência.

* *
Eis, pois, um bom exemplo de que, na língua portuguesa, como em tudo na vida, não é verdade aquilo que, pelas mais diversas razões, muitos querem fazer-nos crer: que "Tanto Faz"!

Visando, entre outras coisas, alertar para o facto, "Tanto Faz!" é, precisamente, o título do primeiro artigo publicado aqui no Mosaicos em Português.



Não perca, no correspondente separador no topo desta página,
outros artigos polémicos sobre diversos temas relacionados com a

LÍNGUA PORTUGUESA

quarta-feira, 30 de março de 2022


Robert Sarnoff


"A finança é a arte de fazer o
dinheiro passar de mão em mão até desaparecer"


"Finance is the art of passing currency from hand to hand until it finally disappears"

Atribuída a Robert Sarnoff *)

Uma realidade a ter em conta pelo nosso recém-nomeado-sem-alguma-vez-ter-esperado-que-tal-lhe-acontecesse-e-sexto-na-hierarquia-do-governo ministro das finanças*)

Pois, nós, também não esperávamos. Ou melhor: esperávamos que não. Que não fosse, para lugar de tamanha responsabilidade e num momento tão difícil como o que atravessamos, nomeado alguém aparentemente sem preencher requisitos mínimos para ocupar o lugar, e com um histórico de avanços e retrocessos, de atitudes polémicas, de pusilanimidade manifesta enquanto presidente da câmara em Lisboa.

A escolha pode significar muita coisa, como, entre tantas, mais ninguém ter aceitado o lugar ou haver dívidas políticas a pagar. Do que não podem restar dúvidas, é de que quem o nomeou considera as comemorações da vitória do Sporting, a fuga de informação para a Rússia e tantas outras contas do rosário de disparates como governação legítima, eficaz, absolutamente... normal.

Como já cansa ouvir arautos da desgraça dizer que só esperam estar enganados, direi que não o espero, que não o creio e que quase o não desejo, quanto mais não seja para permitir, finalmente, pôr a nu o que para aí vai de falta de competência, de gestão das aparências, indo-se ao ponto de anunciar ministérios criados à pressa para, talvez em nome da alardeada e artificialmente criada paridade, acomodar uma ou outra militante agora inevitavelmente candidata a qualquer coisa, mas que, ouvindo-a vezes e mais vezes em programas de debate, pouca coisa, além daquilo que toda a gente diz, parece ter para nos contar.

Já nem falo, porque não vale a pena, das outras não-surpresas do novo Governo como o tonitroante e abrutalhado barbudo, ou a educadora de jardim de infância hoje investida em tão altas funções; das tremuras e suores frios que me assolam quando me lembro da COVID, da invasão da Ucrânia e da fenomenal equipa designada para dos respetivos impactos nos proteger de outras vicissitudes, perversões, corrupções.

Fica-me, seja como for, a sensação de que o Senhor Primeiro-Ministro pouco tempo terá dedicado a pensar, seriamente, na composição do novo Governo; que terá pagado uns favores a uns, e que, ficando ou entrando, outros lhe terão feito favores; e que, como sempre, as cobaias de todas estas trocas e baldrocas serão... as de sempre.

Uma vez mais, teremos de pagar para ver. Como no poker em que a política, cada vez mais, se transformou.

terça-feira, 29 de março de 2022


Médicos sem Fronteiras à Moda Tuga

Desde pequeno que me ensinaram a nada esconder do meu médico, pois só assim poderia ele garantir, dentro daquilo que é humanamente possível, um diagnóstico correto e uma terapêutica eficaz. Esta necessidade de uma comunicação plena e perfeita é tão importante na relação entre médico e paciente, que, para que flua sem barreiras de qualquer espécie,  se tornou necessário instituir a figura do segredo profissional, indispensável ao exercício da profissão.

Como explicar, neste quadro, a recente decisão da Ordem dos Médicos de permitir que clínicos ucranianos refugiados em Portugal aqui exerçam medicina sem um razoável domínio da língua portuguesa? *) Num tal cenário, que comunicação irá, efetivamente, acontecer?

Constituída que é por médicos, com quem se encontra, antes de mais, comprometida a Ordem? Qual a sua missão? O que se espera, primeiro, da Ordem dos Médicos: que se ocupe do acolhimento dos refugiados ucranianos, ou que cuide de assegurar a qualidade do exercício da medicina em Portugal?

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Será legítimo esperar que o inglês da esmagadora maioria dos utentes dos hospitais e centros de saúde portugueses - para não falar da boa parte da população mais idosa ainda analfabeta... - lhes permita, com um mínimo de fiabilidade, informar um médico ucraniano dos males que o afligem?

Serão, unicamente, os males físicos os que um médico trata? Apontando para o pescoço, talvez o paciente dê a entender que lhe dói a garganta... ou será uma bem mais grave dificuldade em engolir? Neste caso, como saberá o clínico se se trata de uma consequência de tensão emocional e quais os fatores que poderão estar a provocá-la, ou de algo bem pior? Passar-se-á a fazer exames por tudo e por nada? Será isto que a Ordem quer para a medicina em Portugal?

Esta autorização popularucha, demagógica e deletéria da Ordem não encontra justificação minimamente aceitável na vontade de acolher e integrar as vítimas da guerra, antes inevitavelmente deteriora a qualidade dos cuidados de saúde enquanto os médicos ucranianos "vão aprendendo português", nas palavras do Senhor Bastonário que nada mais exemplificam do que a lastimável propensão bem portuguesa de pôr o carro à frente dos bois.

Que justificação poderá, ademais, encontrar-se para desafiar o Estado, "através dos professores, a organizar cursos de português para estes médicos ucranianos"? Através dos professores, ou através dos doentes, assim trespassados por uma formidável espada no seu direito a ser devidamente tratados em segurança?

Quanto tempo levarão estas acções de formação? Entretanto, transforma-se em vítimas os pacientes?

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Mesmo que a ideia seja trabalharem junto a colegas portugueses, sempre acabarão aqueles médicos por empecilhar e atrasar o trabalho destes, agora arvorados em tradutores - partindo do princípio de que, numa área tão sensível, ucranianos e portugueses se entendem na perfeição num idioma que não é o deles.

Além das consultas, haverá, por certo, na medicina tarefas que estas vítimas dos desmandos de um alucinado e narcísico ditador possam desempenhar sem comprometer a qualidade da prestação médica do Serviço Nacional de Saúde. Se não houver, que tal o mesmo Estado que irá promover o ensino da língua portuguesa pensar em subsidiar essa formação e assegurar o sustento dos médicos a quem a formação se destina?

Meritório é, sem dúvida, o esforço benévolo de integração de refugiados de um tão desgraçado conflito, mas jamais à custa da saúde dos que cá vivem, incluindo dos imigrantes ucranianos por cá há muito estabelecidos. Todavia, e independentemente da elevação dos ideais que possam ter estado na génese da disparatada decisão anunciada pela Ordem, nada, mas nada, deverá permitir que estes possam intervir, negativamente, naquilo que é sagrado em tão nobre ocupação.

"Estamos de acordo que esses médicos tenham integração enquanto estão a aprender a língua, justamente depois de terem os seus cursos reconhecidos pelas faculdades de medicina, e que possam, com a ajuda dos seus tutores, contribuir para o Serviço Nacional de Saúde" não passa, pois, da expressão, por parte do Senhor Bastonário, de uma permissividade, de um facilitismo, até de uma certa ignorância que, através da Ordem, ao exercício da medicina nada de bom prometem trazer.

segunda-feira, 28 de março de 2022


Ericeira: A Praia dos Ouriços

Ericeira, praia dos ouriços

"Seu nome provem-lhe de muitos ouriços do mar que ha na sua costa, aos quaes antigamente se chamava eyriço. Até as suas armas são um ouriço do mar, em campo de prata. Mas no chafariz que fica ao S. da villa, e que foi construído no melado do XV século, reconstruído em 1828, estão como armas da villa — um caranguejo em campo branco. (Talvez fosse ignorância do canteiro fa- zendo um caranguejo cm logar de um ouriço.) Outros dizem que antigamente se dava o nome de eyriço ao earangueijo)(...).

Foi senhor d'eta villa, D. Antonio I, prior do Crato (...). Foi praça d'armas marítima e tem um forte, hoje desguarnecido.

Este forte foi mandado construir por D. Pedro 11, pelos annos de 1700. Está bem conservado. A qui desembarcou, em 1589. D. Antonio I, com parte das tropas inglezas que lhe deu a rainha Isabel (desembarcando o resto em Peniche) para arrancar das garras do matreiro Philippe II o reino de Portugal, que este havia usurpado. Tendo porem D. Antonio feito um vergonhoso tratado com aquella rainha, pelo qual Portugal ficava sendo uma colónia ingleza, o povo (que sabia isto) não se moveu a favor d'este pnncipe infeliz, que teve de abandonar a empreza, reembarcando em Cascaes, e não tornando a tentar fortuna, para recuperar a coroa.

Ainda que a Ericeira seja, como é, uma povoação muito antiga, não ha noticia da sua origem, nem tem vestígio algum d'anti- guidades. Posto que esta villa seja pequena, é muito aceiada, as ruas são muito bem calçadas, as casas muito bem caiadas e interiormente muito limpas. É muito farta de géneros alimentícios, óptima fructa, excelleate e muito peixe, e tudo barato. A agua é que não é lá muito boa, e a gente riea d'aqui, a manda buscar á Tapada de Mafra (a 100 réis cada cântaro)".

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno"
Livraria Editora de Matos Moreira & Companhia - Lisboa, 1874 - vol.3, pág 43

sábado, 26 de março de 2022


Chamo-lhe, ou Chamo-o de?

"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'

"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar
"


Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português

O Predicado

Assim, e como quase sempre acontece nestas coisas da língua pátria, nenhuma fundamentação válida é apresentada para uma ou para outra posição, resumindo-se cada uma à mera e inane, embora legítima, expressão da opinião subjetiva dos respetivos defensores ou detratores.

O raciocínio lógico que, de seguida, aqui se desenvolve, leva a perfilhar a conclusão segundo a qual a forma “chamou-o de tonto” não passa, em boa verdade, da deturpação brasileira da expressão “chamou-lhe tonto, corretamente utilizada na mesma língua portuguesa que, mau grado os tratos de polé que lhe infligem, os brasileiros dizem falar.

- x –

Iniciemos o raciocínio referindo aquilo que é evidente: independentemente das circunstâncias em que o ato é praticado, no caso de que aqui tratamos chama-se, sempre, algo a alguém.

Temos, assim:

  • o predicado composto pela forma do verbo chamar,
  • o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
  • e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.


A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem for e em que lugar do Globo o vier a fazer.

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Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?

Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:

1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”. 

Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.

No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.

2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.

Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”. 

No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".

3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.

Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.

Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não rege a preposição de.

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Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.

Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser, obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.

De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser introduzidos pela preposição “de”.

Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”, sendo diversas as possíveis variantes.

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A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos nesse sentido, não regem preposição, tais como dizercomunicartransmitirpedir e oferecer, entre outros.

·         Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava

·         Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição

·         Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação

·         Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda

·         Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos

·         Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto

Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.

Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.

Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que " mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.

Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.

Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.

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Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.

Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.

Não há que enganar.

* *

Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


sexta-feira, 25 de março de 2022


Vladimir Putin Morreu. Leva-nos com Ele?

Em memória da extinta cidade mártir de Mariopol

Aquilo que o Presidente da Federação Russa pretendia representar aos olhos do Mundo esboroou-se nuns poucos dias de indizível e gélida barbárie: de indiferença perante o sofrimento causado a milhões de inocentes em nome da exaltação do ego de um psicopata formado nas hostes do KGB*), e da multiplicação dos proventos económicos da sua coorte, militar ou não militar.

Refém de um ror de operações plásticas pensadas para lhe permitir parecer quem não é; refém de incontáveis mansões, iates e do mais que comprar lhe aprouver; refém de grandiosos e parolos cenários em que exibe a agora depauperada imagem que, décadas a fio, julgou cultivar - quando, no íntimo, todos escarneciam dele e inventavam manobras arriscadas para a fera amansar -, é este o execrável tirano que ordenou o martírio dos ucranianos e que, com ele, se recusa a parar.

Demonstrado que está, à saciedade, que o rei vai nu, que aquela figurinha que nem andar sabe, ridícula, desengonçada, mesquinha, sem planta, cometeu erros tão inesperados e inacreditáveis numa operação arrastada mas que, em toda a sua maldade, deveria ter sido simples e fulminante, nada resta da personagem que ele julgava estar a criar. O respeitado, sofisticado e admirado Vladimir Vladimirovitch que, nos seus sonhos mais loucos, Putin imaginou e idealizou, simplesmente morreu, e não sabe já como fazer-se ressuscitar.

O atual Presidente da Federação Russa não passa, assim, de um indivíduo básico, mal formado, sádico e, quanto a sofisticação, ao nível rasteiro de um daqueles craques da bola que gastam, em mansões e mais mansões, em iates e mais iates e no mais que lhes aprouver comprar, os milhões amealhados à custa de submissos basbaques que vivem do magro salário ao fim do mês. Craques que, com totais desplante e frieza, se não coíbem de continuar a exibir, na Internet, a faustosa riqueza*), os óculos caros da mamã, os hábitos espalhafatosos da irmã, enquanto outros são bombardeados ou metralhados, são desalojados, espoliados dos seus bens, e morrem; e sofrem; e choram, quantas vezes sem um ombro amigo onde se amparar.

Como se tal não bastasse, a longevidade física do dito Presidente poderá agora estar, também ela, seriamente comprometida, a fazer fé no que pode ler-se sobre o seu periclitante estado de saúde, não apenas mental, mas físico.

Ora, isto, é sério, muito sério. Não apenas para ele - que, como pessoa, interessa menos que nada -, mas para toda a Humanidade que, imprudentemente, caiu nas mãos de um maníaco do poder já mais do que ciente do irreparável trambolhão que acaba de dar, queda da qual jamais poderá, por meios legítimos, recuperar. De um maníaco que sabe muitíssimo bem que a única forma de se tornar inesquecível não é o mero recurso a armas químicas, ou lançar a III Guerra Mundial: será estender a mão e premir o botão nuclear!

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Desfasado no tempo, cada vez mais só, hirto, irredutível, doente, escarnecido, ostracizado, ridicularizado, o que tem, afinal, a perder Vladimir Putin a perder com uma guerra nuclear? Nada. Da forma como o este aramamento está partilhado entre o Leste e o Oeste, quem premir o botão mata, é certo; mas, não menos certo é que comete, ao mesmo tempo, suicídio inevitável - a menos que o faça do avião presidencial, teoricamente imune a impactos de deflagrações de ogivas nucleares.

Indiferente ao homicídio e à tortura, que lhe importa o suicídio? A personagem Vladimir, o Grande que criou, morreu. O corpo estará, quiçá, prestes a segui-la. Até agora, apenas conseguiu que, por uns tempos, todos falem dele. Resta-lhe, para ficar na História de um planeta morto, ser, dessa morte, simultaneamente o orgulhoso agente e o causador.

Esquecer-se-á de que, para que o botão nuclear seja ativado, outros tarados terão de concordar com ele; e que nem todos estes terão assento no avião presidencial?

Poderão ser, assim, estes corruptos autómatos acenadores de cabeças a nossa única esperança? Ou estarão os sequazes  do Presidente também prontos, não apenas a assassinar os seus, mas a suicidar-se em nome da sacrossanta imagem de um perigoso e egocêntrico vaidoso que, diz-se, deixaram de olhar como um indiscutível patrão?

As próximas semanas ou meses, se existirem, o dirão... Dirão se chegou, afinal, o momento em que até os crimes de guerra deixam de interessar, por deixar de haver quem os irá julgar.

* *

Do lado ucraniano, nem tudo parece serem rosas, também...

(continua aqui)

quinta-feira, 24 de março de 2022


Mário Machado e a Juíza de Instrução Criminal

Corre por aí uma onda de indignação pelo facto de, no quadro da aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência com apresentações quinzenais à autoridade policial, uma juíza de instrução criminal haver dispensado do dever de apresentação às autoridades o arguido num processo criminal por posse de arma proibida*).

Pondo de parte qualquer consideração de ordem subjetiva relativa à pessoa do arguido - e com a ressalva de que desconheço os textos completos, quer do requerimento, quer da oposição, quer decisão -, parece-me improvável que a agora mediatizada magistrada pudesse haver decidido de outra forma.

Antes de mais, não estando aqui em causa uma autorização para se ausentar do país - note-se bem que jamais foi exigida a entrega do passaporte... -, o único efeito prático da dispensa de apresentação às autoridades foi, salvo melhor opinião, o de permitir uma estada no estrangeiro por um período superior a duas semanas.

Apenas isto; e apenas isto relativamente a um indivíduo que, independentemente das desgraçadas ideias que alardeia e das pesadas condenações anteriores por atos com elas relacionadas, já pagou a dívida à sociedade mediante o cumprimento das penas em que foi condenado, apenas sendo, agora, arguido relativamente à eventual prática de um crime de baixa gravidade, como o é o de posse de arma proibida, punível, nos termos do art.86º do Código Penal Português, com prisão até três anos ou multa até 360 dias..

Neste quadro, com que fundamento poderia a juíza ter recusado um pedido, não para se deslocar à Ucrânia ou onde quer que fosse fora de Portugal, mas apenas para por lá permanecer mais do que os quinze dias de intervalo que lhe foram fixados?

Para lá da emotividade de uma sociedade e da exploração por uma comunicação social ávida de notícias, a verdade é que:

  • para todos os efeitos legais, o arguido é presumível inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória;

  • sair de Portugal, sempre pode: o pedido visa, unicamente, a possibilidade de permanência além de duas semanas em missão humanitária junto de um país invadido ao qual Portugal presta auxílio e apoio;

  • risco de fuga nunca entenderam os tribunais que existisse, ou outra teria sido a medida de coação aplicada - e a decisão ora criticada tal risco, decididamente, não gerou;

  • da prática dos dois outros crimes que lhe são atribuídos - de incitamento ao ódio racial e à violência - era, à data do despacho, um mero suspeito.

Ora, a juíza de instrução fundamentou o despacho dizendo que dada “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão, o arguido poderá deixar de cumprir a referida medida de coação enquanto estiver ausente no estrangeiro”, o que é consentâneo com os pontos acima enumerados: negar o pedido mais não seria, ao que tudo parece indicar, do que uma decisão arbitrária, subjetiva, politicamente motivada e, do ponto de vista estritamente técnico, notoriamente violadora, pelo menos, do princípio constitucional da proporcionalidade.

Mostra-se, assim, absolutamente ridículo, falso e manipulatório da opinião pública que estejamos perante uma "decisão que autoriza Mário Machado a ir lutar para a Ucrânia"*), ou que o assumido neonazi foi "autorizado pelo tribunal a combater na Ucrânia"*), ou que se pergunte por que razão Mário Machado foi autorizado a sair do país, ou qualquer outra mais ou menos insidiosa patacoada do género, aparentemente apenas destinada a vender assinaturas de jornais ou minutos de publicidade nas televisões, ou devida ao simples facto de, quem a escreveu, nem a parte relevante da fundamentação do despacho se ter dado ao cuidado de ler.

- x -

Mais do que quem aqui escreve, ninguém é mais crítico daquilo que, em crescendo, a magistratura judicial portuguesa de si tem vindo a dar a conhecer, bem como das aberrantes e desumanas ideias defendidas pelas extremas mais extremas da política nacional ou internacional.

Mas, no momento em que começamos, impiedosamente, a crucificar inocentes servidores públicos pelo simples facto de terem proferido decisões acertadas, apenas como forma de exaltar os ânimos ou de desviar as atenções dos leitores e espetadores de coisas bem mais graves e preocupantes que se passam nos meandros da política portuguesa - como, por exemplo, as relacionadas com a formação do próximo governo constitucional; no momento em que tomamos conhecimento de perplexidades relacionadas com o despacho da juíza de instrução por parte de mediáticos juristas de quem se espera uma análise objetiva e fria das disposições da lei, não há como calar mais uma muito séria palavra de alerta para os perigos da prosápia e da excessiva e, por vezes, enviesada mediatização.



quarta-feira, 23 de março de 2022


Paulo Portas

Paulo Portas

"
Quando se pretende ser tudo e o contrário de tudo,
não se acredita em nada.
É essa falta de fé no mais pequeno valor
que faz a miséria moral de muitas democracias modernas
"

Paulo Portas*)              
(O Independente)                  


A crescente tendência para navegar sem carta, sem bússola, sem planear, ao sabor do vento, das conveniências, da popularidade, da notoriedade e do desenfreado culto do eu conduziu a Humanidade ao beco sem saída à vista em que todos nos encontramos, situação em que a maior parte continua a preferir não pensar ou, em estado de negação, rejeita encarar com a coragem necessária a procurar reverter.

Os governos e os políticos que os integram limitam-se a fugir para a frente, para um destino desconhecido*), ou adivinhado e temido, que pouco ou nada fazem para evitar ou para dele nos defender. Cada vez mais, vamos ficando nas mãos de meros e anódinos administradores do inevitável, do que tem de ser, que pelos corredores do poder deambulam ao ritmo das aparições na televisão e dos posts nas redes sociais, promovendo-se o melhor que podem para que, pelo menos, quando saem desta mirabolante confusão algo de seu ou para contar ainda possam vir a ter.

Por seu turno, o iludido, manipulado, pouco instruído e mal educado eleitor lá vai votando*), a esmo, em quem lhe parece mais espetacular, quem faz mais barulho, mais promessas, na esperança de que quem hoje vota delas amanhã se irá esquecer.

O cenário está montado para que emerja desta amálgama, deste caos, mais um ditador de pantomina, ávido de riqueza pessoal e de poder, envolto numa aura de respeitabilidade e de resplandecente fulgor que, de início, os pacóvios que somos irá deslumbrar, para, mais tarde e como sempre, amargar num regime autocrático de sofrimento, de pobreza, de tirania, de insuperável torpor, de excruciante dor.

* *

As portas para a entrada da ditadura estão escancaradas, dados o desnorte e a inabilidade política por parte da maior parte dos partidos que nos deveriam representar.

(leia aqui o desenvolvimento)



terça-feira, 22 de março de 2022


Angela Merkel: Onde Pára, agora, a Chanceler?

Por muitos apontada como a grande responsável por um considerável aumento da dependência da Alemanha e de boa parte da Europa dos combustíveis produzidos na Rússia - logo, pela manifesta dificuldade sentida pela União em aplicar, à oligarquia presidida pelo implacável torcionário cultivado no viveiro do KGB, ainda mais severas e eficazes sanções -, não deixa de ser surpreendente ou, pelo menos, inesperado o persistente quase silêncio da anterior Chanceler durante semanas após o eclodir da assim chamada guerra.

Surpreendente ou não, o que parece inegável é que, a despeito daquilo que cada vez mais se revela um clamoroso erro estratégico, terá sido ela o último grande estadista que o notoriamente perturbado e fortemente comprometido Presidente da Federação Russa respeitava numa Europa atualmente nas mãos de governantes pusilânimes como, ao mesmo tempo, jamais se viu: uns, fracos e dependentes; outros, esgrouviados, de cabelos ao vento; outros ainda, habilidosos, mas pouco mais do que isso. Todos eles, enfim, como que catalépticos, estáticos, desnorteados, embrutecidos perante os horrores da invasão da Ucrânia, contrastando fortemente com o lépido, algo gárrulo, mas inegavelmente intrépido Presidente dessa martirizada Nação.

Talvez por isso mesmo, pela postura, pelo carisma, pela bem patente estrutura e solidez do carácter de quem sabia bem por que ali estava e ao que ia, mereceria ela, por parte do ora agressor, uma espécie de respeito, de temor, que, o terá levado a abster-se de enveredar pelo caminho da mais abjeta maldade enquanto o mandato da Chanceler durou.

Claro está que, a essa contenção, não terão sido alheias as sucessivas concessões da Alemanha nas trocas comerciais com a Rússia, na vá esperança de manter a fera amansada, as quais a besta transtornada terá, despudoradamente, aproveitado para aceitar enquanto, pela calada, preparava o seu supostamente grandioso mas de facto lastimável e frustrado ato de saída de cena: a invasão. Da Ucrânia, de mais alguma coisa, ou de tudo e mais alguma coisa e sabe-se lá mais do quê.

Tirando uma ou outra aparição pontual e quase esquiva, onde pára, agora a Chanceler? A que papel poderia, porventura, ser chamada na tentativa de resolver o que parece irresolúvel?

A nenhum, talvez.

Acabaria, provavelmente, destratada e confrontada com o logro que prováveis boa-fé e ingenuidade viabilizaram; com a pouco invejável situação negocial de uma União manietada pela dependência; com considerável culpa pelo arrastar de uma agressão, de uma destruição maciça de pessoas e bens por parte de quem, afinal, controla e controlará os combustíveis tornados indispensáveis à economia dos estados que o agressor poderiam deter.

* *

Entretanto, na Ucrânia, o notório excesso de mediatização da ação do presidente Zelensky tem vindo a lançar sérias dúvidas acerca daquilo que verdadeiramente o move.

[encontrará aqui a sequência deste artigo]



segunda-feira, 21 de março de 2022


Rússia: Qual é a Novidade, afinal?

Imaginemos um agente da PIDE.

Não um daqueles básicos, broncos, bestializados, subservientes indivíduos que, tudo quanto sabiam dizer, era um mal pronunciado 'Sim, Chefe!', ou coisa que o valha.

Pensemos, antes, num daqueles indivíduos de maldade mais refinada, intrínseca e estruturalmente sádicos, mestres na tortura, no pôr e dispôr da liberdade e da vida de quem lhes caísse nas malhas da rede.

Pensemos, também, nos seus superiores hierárquicos, nos decisores, que, igualmente indiferentes ao sofrimento alheio e absolutos desconhecedores ou detratores de ideais como o da liberdade que não fosse a deles, ordenavam atos da maior barbárie dirigidos àqueles por quem o Regime se dizia ameaçado, ou que, mais simplesmente, não concordavam com ele.

Imaginemos, pois, o que seria um desses decisores ou graduados da Polícia Internacional e de Defesa do Estado hoje guindado ao mais alto cargo executivo do dito, antes tendo tido o cuidado de se rodear de gente da sua confiança, de antigos sequazes, igualmente frios, igualmente duros, gananciosos, indiferentes. Sobretudo, ignorantes, parolos, exibicionistas, complexados, sociopatas, narcísicos, gente sem estrutura, sem planta, sem conteúdo, sem coisa alguma que valha a pena referir, porque nada teriam que os abonasse.

Pensando e imaginando tudo isto, como poderemos admirar-nos com uma agressão que não passa, afinal, da consequência natural da ascensão ao topo do poder por parte de um réptil destes?

O que mais se poderia, verdadeiramente, esperar de alguém que, pouco passava das vinte primaveras, ingressou na PIDE russa, rapidamente alcançando considerável estatuto na Organização e, mais tarde, passando, já na cena política, a manobrar com habilidade e maestria, lugares de grande destaque no famigerado Kremlin?

Destruir cidades inteiras, indiferente à inevitável perda de vidas, ou visar, simplesmente, a destruição dessas vidas alegando a inevitabilidade inerente à destruição das cidades ou de alvos militares não passará de um jogo de palavras.

Uma e outra formulação representarão a mesmíssima coisa aos olhos de quem, ao que tudo indica, se encontra reduzido à absoluta necessidade de ir até ao horrendo e inenarrável fim, apenas para disfarçar um erro de cálculo monstruoso por si cometido. Um erro devido, não apenas à inesperada resistência das forças armadas e dos cidadãos ucranianos, ou à também algo inesperada ajuda militar maciça oriunda até dos mais inesperados países, mas, provavelmente, também a recorrentes desvios, diretamente para as contas bancárias do punhado de oligarcas que pôs e mantém no poder o antigo major da KGB, de verdadeiras fortunas destinadas à compra de armamento para um supostamente invencível exército, que, como cada vez mais se torna evidente, logo nos primeiros dias do ataque em toda a sua relativa fragilidade se mostrou.

Por tudo isto, o Presidente da Federação Russa só irá parar quando puder, de forma inequívoca, salvar a face; ou quando perder, definitivamente, a paciência a plêiade de oligarcas corruptos que, em tempos, a sua outrora inegável e malévola competência recompensou.

(pode ler aqui a sequência do tema)



sábado, 19 de março de 2022


O Ímpeto Reformador do Pentavirato Socialista


"Para crescer em votos, um partido necessita de bons políticos; para ser eficaz, um governo necessita de bons gestores"

"A confiança na ação governativa assenta na suposta competência técnica, e a falta desta não é suprível, nem com um milhão de filhos, sobrinhos, compadres e outros potencialmente incompetentes assessores que, a expensas nossas, os governantes aproveitem para contratar"

"Ao nível da governação, Portugal não pode continuar nas mãos de amadores mais ou menos bem-intencionados,
mas escandalosamente impreparados para ocupar tais lugares
"

"Parecem apenas cinco indiferenciados portugueses que andam, há décadas, a brincar aos políticos e que, ainda por cima, cedo acabarão a esgadanhar-se mutuamente numa acesa luta pela ascensão à liderança do Partido"


Maioria absoluta assegurada nas urnas, seria de esperar um governo realmente novo para Portugal, livre da carga política associada à necessidade de agradar a gregos e a troianos que caracterizou o lastimável período da chamada geringonça - a qual, em boa verdade, nem aos dois agora insignificantes penduricalhos de extrema-esquerda serviram, no médio prazo, para o que quer que fosse, como bem o demonstrou o recente descalabro eleitoral.

Outrora tido por descobridor, por empreendedor, Portugal é, há muito tempo, um mero seguidor dos mais crescidos que bajula e admira, refastelado no Sol e na gastronomia, salvo um ou outro rebento que lá vai frutificando na área empresarial, logo pressurosamente louvado e alardeado por governantes sem substância que se veja, e por meios de comunicação muito felizes por, além das já muito gastas imagens da guerra e das balbuciadas opiniões de também mais ou menos gastos comentadores, lá irem tendo alguma notícia positiva, ainda que minúscula, para dar.

Certo parece, porém, que gestão económica, pouco ou nada tem a ver com socialismo, como bem demonstram inúmeras experiências falhadas, aqui e noutras paragens, mau grado o persistente estado de negação de certas forças partidárias que continuam a admirá-las. Apesar, claro, de o Partido dito Socialista, de socialista já pouco ou nada ter, limitando-se, no que à dita doutrina diz respeito, a acolher alguns elementos que melhor fariam em aconchegar-se em partidos mais à esquerda; e são estes, bem conhecidos mas não assumidos elementos extremistas, que mais preocupam quando os vemos guindados a postos ministeriais, a par de outros que apenas se parecem com a esquerda quando mais lhes convém.

A verdade é que, em seis anos perdidos num oceano de demagogia, sem uma carta náutica claramente traçada, sem rumo definido para um navio amolecido, apodrecido e minado de gente que apenas quer ser alguém na vida, praticamente se limitou o Governo a navegar à vista, numa cabotagem incapaz de desenvolver um trajeto de longo curso que, de alguma forma, contribuísse para nos tirar da cauda da Europa. Uma Europa cujas palmadinhas nas costas, beijos e abraços não passam, ao fim e ao cabo, de estafadas demonstrações de enfadada condescendência para com um paupérrimo país cuja improdutiva economia não passa de uma desengraçada anedota, e que, décadas a fio, sempre tem demonstrado que pouco ou nada mais do que isso quer continuar a ser.

Perdida que parece, para sempre, a desculpa do espartilho dos sócios extremistas da geringonça, poderão alguns crentes ter esperado vir, num cenário de maioria absoluta, a contar com um governo, não só mais compacto e eficiente, mas realmente eficaz, dinâmico, renovado, competente. Esqueceram-se esses ingénuos da fragilidade, da insegurança e, até, de uma certa incompetência que a simples habilidade não disfarça, as quais fazem, sempre fizeram, com que o Primeiro-Ministro não abra mão de ter, a seu lado, o conforto dos seus mais fiéis de entre os que se não cobriram de ridículo a ponto de terem mesmo de ser afastados à pressa, ainda que a seu pedido, antes das eleições.

- x -

O Estado não é, afinal, mais do que uma enorme organização sem fins lucrativos - pelo menos, para ela própria... - que, como convém a qualquer organização, deve fazer pela vida, sob pena de a passar a depender de mecenas e daqueles que, como mais ou menos arte e engenho, lá por fora conseguir  continuar a cravar.

Todavia, no espíritos dos políticos eleitos, uma grande confusão sempre existe entre quem apenas seve para fazer política e quem é, de facto, necessário e competente para governar. Para crescer em votos, um partido necessita de bons políticos; para ser eficaz, um governo necessita de bons gestores. Quanto a isto, não há que duvidar.

Ora, a qualquer eleitor é legítimo esperar que o partido vencedor defina as opções políticas em consonância com as promessas eleitorais, e entregue a execução daquelas a ministros que, antes de mais, sejam verdadeiros, encartados e experientes gestores profissionais. É que a confiança na ação governativa assenta na suposta competência técnica, e a falta desta não é suprível, nem com um milhão de filhos, sobrinhos, compadres e outros potencialmente incompetentes assessores que, a expensas nossas, os governantes aproveitem para contratar.

A oportunidade única agora proporcionada pelos fundos que, da Europa, começam a jorrar - embora não seja claro onde estão a ir parar... >- não pode ficar comprometida às mãos de uma gestão casuística dos impactos daqui e dali, como eram as frequentes exigências dos parceiros da geringonça; nem pode ser essa gestão assegurada, antes de mais, por fiéis satélites de um manifestamente exaurido e saturado Primeiro-Ministro, porventura acolitados localmente por aqueles elementos de distritais ou de concelhias do Partido que, por terem acesso privilegiado ao dito governante, embandeiravam em arco na campanha eleitoral autárquica.

Não se entende, assim, como, a fazer fé no que por aí se diz, poderá o núcleo duro do novo Governo ser constituído pelos zelotas do costume, políticos de profissão e com poucas ou nenhumas competências na área da gestão, seja do Estado, seja empresarial, exceção feita ao recentemente derrotado candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, agora talvez arvorado a ministro das finanças, após uma brevíssima e mal notada passagem por uma prateleira do anterior emprego, à espera de nova oportunidade na política - que, felizmente (para ele), não tardou a chegar.

Será verdade que os frequentes e ridículos casos ocorridos durante o mandato autárquico não terão tido a gravidade de alguns do entretanto arredado ministro do interior; mas o desnorte na governação camarária, a pusilanimidade e a muito falada submissão ao então vereador dominante - que agora se encontra a contas com a justiça, tal como outros da sua bem temperada família... - dificultam bastante a já de si árdua tarefa de encontrar mérito que justifique uma possível nomeação para o tão falado novo lugar.

O mesmo se diga do outrora número dois na Câmara, altivo e sisudo, cujos préstimos como arquitecto da maioria absoluta conseguida agora serão, provavelmente, recompensados. Mas que competência demonstrou, até agora, a dita pessoa para gerir o que quer que fosse, além da Juventude Socialista, de uma secretaria de estado eminentemente política e da máquina do Partido em campanha eleitoral? Será, mesmo, verdade que lhe irá ser dada uma pasta ministerial?

Idêntica objeção se aplica a outro provavelmente indigitado e já ministro, oriundo da Juventude do Partido, a quem outros méritos não são conhecidos além de uma voz algo tonitroante e uma razoável eficácia em negociações, sem que, no entanto, lhe subjaza qualquer brilhantismo e subsequente capacidade de planeamento, atributos indispensáveis para um ministro em tempos de crescimento do País - ou, pelo menos, de recuperação.

Não será, por certo, a tímida e desnorteada apresentadora das conferências de imprensa da Diretora-Geral da Saúde que, possivelmente em nova pasta ministerial, irá trazer grandes rasgos de genialidade à gestão da coisa pública. Ela que, apesar da genealogia partidária, profissionalmente não terá, como experiência profissional ou política, passado de adjunta de um secretário de estado também adjunto, até lhe ter sido dado um ministério também eminentemente político. Além da confiança pessoal e de ser filha de quem é, que mais-valia efetiva pensará o Primeiro-Ministro que uma tal pessoa poderá trazer à gestão do Estado?

Fala-se, também, da eterna deputada desde tenra idade, outrora chefe da Concelhia de Almada do Partido, outrora chefe da Federação Distrital de Setúbal do Partido, outrora secretária-geral adjunta do Partido, outrora líder parlamentar, a quem nenhuma aptidão é conhecida para gerir ou coordenar o que quer que seja além, talvez, do aparelho partidário, e cujas débeis e muito forçadas e parciais intervenções num programa de debate televisivo - que, a ir para o Governo, agora terá de deixar - nada de bom quando a um possível desempenho governativo nos permitem augurar.

Vá lá, livramo-nos, ao que parece, do desajeitado e malquisto Secretário de Estado do Lítio, que apenas impopularidade ao Governo haveria de acrescentar.

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Todos apreciamos e queremos a liberdade, e muitos lutaram e sofreram para que a ela pudéssemos almejar. Mas, jamais teremos essa liberdade, enquanto não estiverem razoavelmente seguros do que fazem aqueles que nos governam, enquanto a coisa pública não puder contar com uma gestão transparente, minimamente sensata e eficaz.

O mal de Portugal não é a política. Essa, não nos falta, e até temos para dar. O nosso mal é, sempre foi, uma economia, que não vai lá com habilidades e golpes de rins: ao nível da governação, Portugal não pode continuar nas mãos de amadores mais ou menos bem-intencionados, mas escandalosamente impreparados para ocupar tais lugares.

A serem mantidos ou chamados como por aí se diz, o que farão, no Governo, estas cinco mais ou menos jovens pessoas? Que capacidade efetiva tem qualquer um deles para planear, para organizar e, sobretudo, para liderar?

Parecem, apenas, cinco indiferenciados portugueses que andam, há décadas, a brincar aos políticos e que, ainda por cima, cedo acabarão a esgadanhar-se mutuamente numa acesa luta pela ascensão à liderança do Partido.

Será que, ao menos, a economia da própria casa sabem gerir? A confirmar-se a inclusão no novo governo, uma tal task force governamental será, uma vez mais, eminentemente tática, eivada dos vícios próprios de uma luta intestina partidária permanente e aguerrida, sem aptidão relevante para gerir, e que facilmente confundirá fazer coisas com... governar, estrategicamente, um país.

Numa conjuntura internacional tão crítica, perante uma oportunidade única na vida de uma nação, o que poderemos deles esperar? No momento em que resolver escolhê-los, em que estará o Primeiro-Ministro indigitado a pensar?

O resto do governo não passará, provavelmente, de subserviente paisagem, como costuma acontecer: além do Primeiro-Ministro, será, unicamente, neste preocupante e pouco qualificado pentavirato *) - este, de mulheres e homens - que residirá toda a nossa talvez última e vã esperança de sacudir a tão pesada e pegajosa poeira nacional...

Que ímpeto reformador dele poderemos esperar? Como irá a sua ação beneficiar uma administração pública há tanto e tão necessitada de uma verdadeira e exaustiva reestruturação?

- x -

Uma vez o primeiro-ministro derrotado nas urnas, ninguém na Europa o quereria, a não ser para contar as caixas de sardinhas pescadas na zona exclusiva.

Agora, ser-lhe-á fácil guindar-se, em breve, a um lugar de grande prestígio internacional.

Nessa altura, qual dos cinco satélites ficará a fingir que governa Portugal?

* *
Perante o calamitoso desempenho recente - ou falta dele... -, a dúvida quanto a um deles parece estar prestes a deixar de existir.

quarta-feira, 16 de março de 2022


Teixeira de Pascoaes


"Somos a nossa casa
e todas as velhas sombras que a povoam"

Teixeira de Pascoaes*)              
(in "O Bailado")                             


Sombras que povoam, não apenas os espíritos dos indivíduos, mas a memória das nações.

Alguma vez conseguiremos livrar-nos da endémica propensão para o compadrio, para o nepotismo, para a cunha e para o chicoespertismo, tão incrustados na memória cultural do nosso Portugal?



Outros temas que poderão interessar-lhe no Mosaicos em Português:
- Camilo, acerca da vida nas cidades Leia AQUI
- O que é inevitável no futuro de Portugal... Leia AQUI

terça-feira, 15 de março de 2022


Tempos Novos, Mentiras Velhas


"Como não entende o Presidente da Ucrânia que a definição de uma zona de exclusão aérea significaria,
ao primeiro sobrevoo por uma aeronave russa, o imediato desencadear das hostilidades
entre a Aliança Atlântica e o implacável e tirânico agressor?

Por outras palavras, a inevitável eclosão da III Guerra Mundial, num banho generalizado de sangue e de terror?"

"Por cá, apenas 100.000€ do PRR terão chegado a contas bancárias de empresas.
Será que os oligarcas tugas já boa parte dos fundos do PRR andam a arrecadar?
"


"Depois disto, nada será como dantes", não nos cansamos de ouvir dizer.

Se nos esforçarmos, porém, por olhar com alguma objetividade e lucidez para esta questão da operação militar especial russa, seremos levados a acreditar que não será exatamente assim: a mentira e a hipocrisia, designadamente políticas, continuam e, quase seguramente, continuarão a ser as mesmas, e nada nos permite esperar que algo de substantivo mude nessas desgraçadas práticas que, em última análise, poderão estar a alimentar uma guerra da qual poderemos estar a experimentar apenas o início.

Poderão, até, estar essas mentiras e hipocrisias a aproximá-la, perigosamente, do irreversível e irracional extremo que ninguém quer nomear.

Vejamos...

- x -

Independentemente da maior ou menor perversidade e desumanidade das suas verdadeiras e por todos nós desconhecidas intenções, ninguém livra, já, o Presidente da Federação Russa*) do labéu de aldrabão.

As reiteradas garantias iniciais de que todo aquele aparato militar na fronteira não passaria de uma movimentação legítima de tropas em exercícios - no que, diga-se de passagem, só alguém muito, mas mesmo muito, ingénuo conseguiria acreditar... -, desvalorizaram qualquer verdade que as suas subsequentes afirmações e protestos possam conter, nomeadamente naquilo que se refere à questão vital de estar ele com pretensões expansionistas ou, muito mais simplesmente, apenas a querer arrasar, na Ucrânia, toda e qualquer instalação militar.

O que, em qualquer caso, parece certo, é que, seja devido a chã incompetência, seja por também por lá andarem habilidosos como os que por cá temos ou tivemos no Arsenal do Alfeite*) - e, talvez, uns quantos outros dos quais não se fala ou deixou de se falar... -, as forças militares russas estão bem longe dos níveis de eficácia que se lhes atribuía, em boa parte devido à obsolescência e à fraca qualidade do seu equipamento militar, cuja substituição por outro mais moderno jamais terá sido concretizada devido a possíveis desvios de verbas destinadas à instituição militar.

Que grossa fatia das fabulosas fortunas dos oligarcas não terá escorrido, diretamente, dessas supostas aquisições de armamento? Quantos salões dos luxuosos iates não terá o povo russo pagado através de impostos destinados ao esforço de guerra ou patacoada similar?

- x -

Por muito que não possam deixar de nos comover a destruição maciça do edificado e, sobretudo, a quantidade considerável de inocentes vítimas cujas vidas se perderam ou ficaram, para sempre, despedaçadas, tampouco é transparente e cristalina a intenção do mediático Presidente da República Popular da Ucrânia*) - não sei porquê, causa-me sempre arrepios, esta designação república popular.

Não deixando de ser verdade que o homem é um político amador, um ator de profissão, de olhos duros e desapaixonados, não pode, de modo algum, admitir-se que alguém que ocupa tão proeminente posição na hierarquia de um estado se não haja rodeado de assessores que, oportunamente, lhe chamem a atenção para as graves e, até, terríveis consequências daquilo que propõe ou pede, caso seja posto em prática.

Certo é que, por cá, também temos uma atriz de profissão, também ela de olhos duros e desapaixonados, que, em lugar de conversar ou discursar normalmente, declama monocórdicas e circulares diatribes, supostamente em defesa de causas de que o Movimento que, supostamente, coordena se apropriou como desejáveis - mas cada vez menos eficazes - tábuas de salvação de uma organização mortalmente ferida pela mais recente manifestação da mesma vontade popular que diz proclamar.

Mas, contrariamente ao que sucede com a lusitana e pouco relevante atriz e com a débil mas bem conhecida força política em que ainda milita, o Presidente da Ucrânia representa, de facto, que ideologia? Quem, na sua retaguarda, cavalgará, incógnito, a oportunidade única proporcionada por uma guerra que, admitamos, talvez ele não tenha provocado, mas a cuja génese poderá não ser totalmente alheio, apesar das suas enfáticas e ásperas palavras que a televisão nos traz a casa e que seria politicamente incorreto não apoiar?

Além das manifestamente abusivas pretensões iniciais de imediata admissão à NATO e à União Europeia, as quais pediu, exigiu, até se cansar, como não entende o Presidente da Ucrânia que a definição de uma zona de exclusão aérea significaria, ao primeiro sobrevoo por uma aeronave russa, o imediato desencadear das hostilidades entre a Aliança Atlântica e o implacável e tirânico agressor?

Por outras palavras, a inevitável eclosão da III Guerra Mundial, num banho generalizado de sangue e de terror?

Num tal cenário, potencialmente dantesco dado o risco da confrontação com armas nucleares, o foco da atenção do aparentemente depauperado exército russo seria, inevitavelmente, desviado para outras paragens, assim atenuando, ou desistindo, de uma possível intenção de invadir a Ucrânia. Mas, a que custo incomensurável para todo o Mundo e, por arrasto, também para a própria Ucrânia?

O que anda este homem a pedir? O que anda o Presidente da Ucrânia, efetivamente, a fazer?

A defender a Europa, como apregoa? Certamente não. O quê, então?

Ou será de dar razão a quem pensa que tudo isto não passa de uma disputa entre dois frios, ambiciosos e intransigentes Vladimiros, que não hesitam em, um pela força, outro pela sedução, pela persuasão, tudo e todos sacrificar aos respetivos desígnios de notoriedade e glorificação?

A História tirará a sua conclusão...

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Por cá, vamos assistindo a uma sucessão de iniciativas solidárias promovidas pelas autarquias ou por elas patrocinadas, consistindo, mormente, no envio de camiões e mais camiões repletos sabe-se lá de que roupas velhas e consumíveis em fim de prazo, além, naturalmente, de dádivas genuínas de uns quantos bem-intencionados e daquele punhado que continua a pensar que será esta uma boa forma de eliminar umas quantas teias de aranha das mais ou menos pesadas consciências.

Mas, digam-me lá? Será necessário todo este aparato televisivo?

Se o que se pretende é, efetivamente, dar, ajudar, não seria bem mais eficiente, económico, mais civilizado, mais discreto, mais genuíno, centralizar a recolha e encaminhamento das dádivas, em lugar de agir como se de rasteira propaganda autárquica se tratasse, alimentada, já se sabe, por aquele patego clubismo de poder dizer que aquele camião cheio de tralha foi enviado pela gente cá da terra?

A menos, claro, que legitimamente desconfiem da bondade dessa centralização, e do mais do que provável descaminho de bens em que, em menor ou maior escala, ela redundasse. O que pensar, porém, da intervenção de autarquias no processo, órgãos quantas vezes já eivados de beneméritos processados e, até, condenados por corrupção e desvios de fundos relacionados com catástrofes para nós tão relevantes como, por exemplo, os fogos de Pedrógão, em toda a sua força devastadora?

Será por isso que alguns dos próprios promotores genuinamente empenhados dessas iniciativas se sentam ao volante dos camiões e os donativos lá vão, diretamente, entregar? Para terem a certeza de que lá irão chegar?

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Ainda por cá, mas lá mais acima, também tudo na mesma, a fazer fé nos dados supostamente fidedignos que nos trouxe o comentador social-democrata de telejornal de Domingo num canal generalista - e que no próprio Partido lá vai espetando uma ou outra farpa, quanto mais não seja para disfarçar.

Ao que parece, de cerca de 16.600.000.000€ que o Plano de Recuperação e Resiliência*) ao nosso Torrão Natal terá atribuído, apenas 4.600.000.000€ foram, até agora, aprovados e, destes, apenas 400.000.000€ (reparem na redução de zeros...) terão sido destinados a particulares e empresas portuguesas, tendo a fatia do Obélix cabido, como seria de esperar, ao faminto Estado.

Será que os oligarcas tugas já boa parte dos fundos andam a arrecadar?

O caso poderá ser particularmente gritante, se acreditarmos ser verdade que, dos tais 400.000.000€, apenas 100.000€ do PRR (outra vez esta coisa dos zeros...) terão chegado a contas bancárias de empresas: as mesmas empresas às quais continuadamente o Governo apela para que assegurem a recuperação e a dinamização da nossa rastejante economia, para que, com o sucesso delas - das empresas - possam, ufanos, os nossos políticos lá por fora acenar.

A guerra, a cruel e desnecessária, guerra, muita coisa, é certo, irá mudar.

Mas, com a mentira, com a dissimulação, com a hipocrisia, não irá, seguramente, acabar.

* *

O assunto da eventual possibilidade de adesão da Ucrânia à Comunidade Europeia é cada vez mais polémico. Traz, entretanto, à balha questões estruturais da União que importa, antes de mais, abertamente discutir e resolver.

Tal é o caso, por exemplo, da obsoleta e contraproducente exigência da unanimidade nas mais importantes decisões.

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