sábado, 22 de outubro de 2022


INTERVALO

i n t e r v a l o . . .

domingo, 28 de agosto de 2022


Ponta Delgada: Campo de São Francisco

 

Campo de São Francisco - Ponta Delgada


Ponta Delgada - Campo de São Francisco
Imagem: Google                                   


Ponta Delgada "está situada ao longo da costa, em terreno plano e aprazivel, nas margens d’uma enseada formada por dois cabos chamados Ponta da Galé e Ponta Delgada, que deu o nome á cidade. A este segundo cabo lhe chamam também Ponta de Santa Clara, por causa d'uma ermida d’esta invocação, que se edificou ali ha muitos annos (...).

O seu porto, muito desabrigado dos ventos do quadrante do sul, é defendido pela fortaleza de S. Braz, construida em 1552, e pelos fortes de S. Pedro e de Rosto do Cão. A ilha começou a povoar-se, por ordem e diligencias do infante D. Henrique, em 1445. N’essa epoca. Ponta Delgada não passava d'um simples logar, sujeito á jurisdicção de Villa Franca do Campo, que era a capital da ilha, porém, pelas vantagens da sua posição, começou a desenvolver-se e a ampliar-se, principalmente depois do anuno de 1480 e os seus habitantes, em vista d’esta prosperidade, revoltaram se contra a tutela, que lhes impunham, dando origem a successivos conflictos com os habitantes da capital. Para acabar com esses conflictos, el rei D. Manuel resolveu attender as suppiicas que lhe dirigiam os habitantes de Ponta Delgada, que pretendiam a sua independencia, e no anno de 1499 erigiu a povoação em villa.

Houve na ilha de S. Miguel um grande terremoto em 1522, que sepultou a maior parte de Villa Franca do Campo debaixo dos montes do Rabaçal e Louriçal, sendo até transferida a alfandega para Ponta Delgada, que também soffreu grande ruina. N’essa catastrophe morreram perto de 5:000 pessoas. Ponta Delgada restaurou se depressa, graças aos esforços dos seus moradores, e novamente começou a prosperar, no obstante as representações da camara municipal do Villa Franca do Campo, que durante
algum tempo reclamaram contra esta alteração, vendo que aquella villa ia caindo em grande decadência. El rei D. João Ili, por carta regia de 2 de abril de 1546, a elevou á categoria de cidade e de capital da ilha. Os vulcões de João Ramos e do Paio, que rebentaram em 1552, e o do Pico do Sapateiro, que rebentou em 1563, vomitando por muitas vezes torrentes de lavas abrazadoras, produziram abalos de terra, que prejudicaram, mais ou menos, todas as povoações da ilha (...).

Em 1839 padeceu a cidade de Ponta Delgada um fiagello de outro genero, mas não menos horroroso e devastador. O mar, agitando-se e crescendo de improviso, arremessou-se contra a cidade com tal fúria, que derrubou o paredão que abrigava o porto do areal de S. Francisco, e a praça da feira do gado; fez consideráveis estragos no castello de S.Braz e n’outras fortificações, na alfandega e caes contiguo, arruinando também muitas casas e armazéns particulares (...).

A entrada na praça do Município, indo ao lado do mar, é formada por tres arcos contíguos, tendo na frente a egreja matriz, consagrada a S. Sebastião, a qual é um templo vasto, que sem ser majestoso, não é, comtudo, uma egreja vulgar, antes se recommenda pelos bellos ornatos das suas portas manuelinas, e pela sua torre quadrangular, erguida á direita e terminando em eirado, como se nota em quasi todas as egrejas da ilha de S. Miguel. N’essa torre existe um relogio, que é considerado um verdadeiro padrão pela importância dos seus machinismos. Foi legado pelo negociante Nunes da Silva, que entre as disposições umanitarias que o tornaram benemerito de Ponta Delgada, destinou 10 contos de réis para a egreja matriz ser dotada com o referido relogio(...).

O Theatro Micbaelense é um vasto edifício de boa apparencia, situado na parte oceidental da cidade, no local da antiga parochia de S. José. Foi construido por algumas pessoas influentes que constituiram uma sociedade por acções na importância de 40 contos de réis. Tem bella sala com 52 camarotes, galeria, platéas e fauteuils; café e salões de passeio. Inaugurou-se em 2 de junho de 1864 com um concerto, sendo enorme a concorrência, que enchia completamente o theatro. No anno seguinte, a 25 de março, estreou-se uma companhia dramatica, que deu uma serie de recitas. Aquelle theatro tem sido explorado por diversas companhias dramaticas e liricas, portuguezas e italianas, hespanbolas, etc. O Club Michaelense é também um vasto edifício, situado no bairro central da cidade, sendo os seus elegantes salões sempre muito frequentados pelas pessoas da primeira sociedade michaelense(...).

O principal commercio do concelho é álcool, ananazes, assucar, cereaes, chá, laranja e gado. A cultura do chá na ilha de S. Miguel foi um importante serviço prestado à agricultura. Na cidade de Ponta Delgada está estabelecida a Sociedade Promotora da Agricultura Michaelense. Esta sociedade, no seu louvável empenho de desenvolver a industria local, procurando a exploração de qualquer produto que fizesse florescer nos Açores, pensou em janeiro de 1843 na cultura e fabricação do chá, que tem sido uma das riquezas do império chinez. Na ilha de S. Miguel julga-se ter sido introduzida esta planta em 1833, anno em que foi trazida do jardim botânico do Rio de Janeiro. E’ de presumir, porém, que já antes se cultivava na ilha; pelo menos, nos Açores, a sua cultura data de 1801, em que o governador das ilhas mandou ao governo algumas plantas d’aquelle arbusto, que vegetava admiravelmente na ilha Terceira. Iniciada a idéa de explorar o chá na ilha de S. Miguel, e vencidos os embaraços pelo lado de meios pecuniários, foram contratados em Macau, a 13 de novembro de 1877, em nome do presidente da referida sociedade agricola, o fallecido conde da Praia da Victoria, dois chinas para irem á ilha ensaiar e ensinar a fabricação e cultura do chá. O enthusiasmo foi tal, que os michaelenses promoveram entre si uma subscripção para auxiliar as despezas a cargo da prestante e emprehendedora collectividade. Os chinas chegaram a Lisboa no transporte portuguez África, seguindo d'aqui para a ilha de S. Miguel no paquete Luso, chegando a Ponta Delgada a 5 de março de 1878. A sociedade já tinha montado convenientemente uma fabrica para a exploração do chá, começando os ensaios logo a 15 do referido mez de março. A apanhada folha para as primeiras experiencias fez-se em arbustos existentes na villa da Ribeira Grande, e nos logares do Pico da Pedra, Porto Formoso, Capellas e outros. O producto de toda a fabricação considerada como ensaio, foi de 8 k. de chá verde e 10 de chá preto. A sociedade agricola encarregou um seu empregado de estudar o fabrico do chá, e nomeou uma commissão para dirigir estes trabalhos. A sociedade agricola e o seu empregado fizeram executar vários processos descriptos por autores, taes como: Fr. Leandro do Sacramento, que publicou em 1824 uma memória no Rio de Janeiro, impressa na ilha em 1879, e os escriptores inglezes: Samuel Ball e Money. A conselho dos chinas, a sociedade mandou vir em 1878 plantas para aromatizar o chá verde; vieram do Macau a Jasminum grandiflorum ou Vambac, e malva vaccionides. Não chegaram, porém, a ser utilisadas na labricação. Na primavera de 1879, em que continuaram os ensaios, fabricou-se cerca de 70 k. de chá, na sua maioria preto. A variedade era: preto, verde, ponta branca e o chamado do povo. Sobre as primeiras experiencias publicou um relatorio a commissão encarregada de as dirigir, e nomeada pela Sociedade Promotora da AgricuBura Michaelense, em 5 de fevereiro de 1879. As experiencias a que depois se procedeu, deram sempre os melhores resultados, e hoje o fabrico do chá é uma das industrias mais importantes da ilha de S. Miguel".

Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues,
in "PORTUGAL - Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artistico" -
- vol.V, pág.862-868 - João Romano Torres & C.ª - Lisboa, 1911

quinta-feira, 25 de agosto de 2022


O Rio de Nós

Vemos os outros como quem olha o rio.

Contemplamos, letárgicos, o vago tremular uniforme das águas e os lampejos do Sol que elas refletem, como gentes que se movem sem se mexer e nos atiram à cara a diferença que julgam ter.

Excitamo-nos quando, fugaz, um peixe salta a espreitar o Mundo que lhe tira a vida, deleitamo-nos com os círculos efémeros que deixa no espelho tranquilo e se esbatem até ao infinito. Vibramos com novas chocantes, mas logo esquecidas, que nos dizem do podre de nós que mora nos outros, da dor da morte, da pungente desgraça, de coisas de arrepiar. De espíritos esmagados pela torrente de notícias sem novidade, pasmamos ante as lágrimas choradas por quem a desdita fere, ao longo de uma vida para si ou para os seus jamais sonhada, imaginada, sequer.

Arrepiamo-nos quando a pedra atirada ao rio nos salpica; mas não quando a atiramos nós e arrepia outros como nós, que nem vimos que por ali também andavam como nós. 

Afinal, quem os mandou lá estar?

- x -

O rio é lindo; é calmo, e pacífico. Pelo menos, é lindo, calmo e pacífico o que dele vemos .

Mas o que vemos do rio não passa de uma ridícula porção dele.

O rio não é superfície: é massa. Uma gigantesca mole de líquido que a gravidade impele, prenhe de vivos e de mortos, de peixes que nadam e daqueles que iremos almoçar, dos que não foram pescados e apodrecem na lama do leito do rio que corre para o mar, com os ramos, os escolhos e os despojos que para lá não paramos de atirar.

O rio é lindo, mas brutal. É corrente que, à passagem, tudo amassa, moi, tritura, mata, destrói, sem, ao menos, parar para pensar.

A molécula de água é fonte da vida. O rio, é fonte da morte. Também nós, fonte de vida, unidos para ser firmes na defesa, acabamos fonte de morte, sempre a atacar; ou, bem pior, a ignorar.

A riqueza que gostamos de acreditar que em nós habita, dilui-se, fenece à vista de alheias virtudes. Ao fatal anonimato, resistimos tolamente num infindável e frenético vai-vem de imagens e frases que pespegamos na montra social para sobressair, quantas vezes pisando outros para, humilhando-os, o  nosso protagonismo assegurar.

- x -.

Somos lindos, desde que não olhemos o espelho de nós nas águas calmas. Nas do lago que nos é próximo, ou nas do imenso rio que passa e continuará a passar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022


Tróia - Travessias de Ontem e de Hoje

 

Tróia - Ferry de Antigamente

"Quando uma povoação perde a sua remota origem na, noite dos tempos, é não só difficil, mas impossível, marcar-lhe a época da sua fundação, e o nome do seu fundador, pois tudo se acha envolvido em hypotheses e opiniões, mais ou menos fundamentadas, e em fabulas, qual d'ellas mais absurda. Est circumstancia se dá em Setúbal, assim como em Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Santarém, Villa Nova de Portimão, Faro, e outras muitas cidades e villas, como temos visto em muitos logares d'esta obra. 

Estou porem persuadido que a actual cidade de. Setúbal, não é tão antiga como muitos escriptores pretendem; porque — a cidade a que Cláudio Ptolomeu Alexandrino dá o nome de Caetobrix — Antonio Augusto, Catobriga — Marciano Heracleota, Castobrix — e o anonymo Ravenate, Cetobrica — era indisputavelmente na margem esquerda do Sádo, em frente da actual Setúbal, e no sitio hoje chamado Tróia. Esta sim, que era antiquíssima, e, com toda a probabilidade, fundação dos phenicios".

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno" - Vol.9 pág.205
Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia - Lisboa, 1880


Tróia - Ferry Boat
Imagem: Atlantic Ferries


sexta-feira, 19 de agosto de 2022


Figueira de Castelo Rodrigo

Postal Antigo de Figueira de Castelo Rodrigo

"Villa. Beira Baixa, comarca e 18 kilometros de Pinhel, 345 ao NE. de Lisboa, 250 fogos, 800 almas. No concelho 2:450 fogos.

Em 1757 tinha a villa e freguezia 157 fogos. Orago S. Vicente, martyr. Bispado de Pinhel, districto administrativo da Guarda. O papa e o bispo apresentavam alternativamente o vigário, que tinha 70.000 réis e o pé d'altar.

Esta Villa era uma aldeia (e freguezia) do concelho de Castello Rodrigo, porém esta Villa, pela asperesa da sua posição, foi decahindo, ao passo que a Figueira ia prosperando; pelo que esta foi elevada á cathegoria de villa em 23 de junho de 1836, e para aqui mudada a capital do concelho n'esse mesmo anno. Os foraes e mais honras, foros, privilégios e armas de Castello Rodrigo, são hoje as d'aqui.

É terra fértil. O concelho da Figueira é composto de 14 freguezias, todas no bispado de Pinhel. São: Algodres, Almofalla, Castello Rodrigo, Esealhão, Escarigo, Figueira, Freixêdo do Torrão, Matta de Lobos, Penha d'Aguia, Quinta de Pêro Martins, Valle d'Affonsinho ou de Affonsim Vermiosa, Villar Torpim e Villar d'Amargo".

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno" - Vol.3 pág.186-187
Livraria Editora de Mattos Moreira & Companhia - Lisboa, 1874

Postal Recente de Figueira de Castelo Rodrigo
Imagem: https://encrypted-tbn0.gstatic.com                          

segunda-feira, 15 de agosto de 2022


Ensinar sem Saber, Governar sem Querer

Continuamos dominados por uma política de facilitismo e de escancarar de portas à confusão entre ensino e educação.

Parecendo ignorar que existe desemprego entre professores, e apesar de garantir que as turmas do próximo ano já têm quase todos os professores atribuídos*), prepara-se o nosso absoluto Governo para, na forma desajeitada que lhe é habitual, reduzir drasticamente o nível de habilitações exigidas para lecionar no ensino secundário*).

Em lugar de se requerer a habilitação própria, passa a considerar-se suficiente a avaliação em função do "percurso formativo dos candidatos", apenas tendo em conta as disciplinas relacionadas com a disciplina a lecionar.

Por outras palavras, tira-se umas cadeiras que já se sabe que irão ter saída, manda-se às malvas o resto do curso e passa-se a, nos termos da lei, poder ser colocado como professor do ensino secundário.

Assim, e à boleia de uma alegada dificuldade pontual em contratar professores licenciados para ministrar aulas de informática, passaremos a poder ter, ao que parece em qualquer disciplina, docentes não licenciados, muito ao jeito daquilo que aconteceu, com os resultados sobejamente conhecidos, pouco depois de 1974, tema que já amplamente desenvolvi a propósito do desempenho dos magistrados judiciais portugueses nos acontecimentos que antecederam a fuga de João Rendeiro.

A manifesta falta de formação, em áreas fulcrais, da trupe de incompetentes tecnocratas que preside aos destinos desta mole de passivos e subservientes eleitores que lhes vai assegurando o pré, não lhe permite compreender que um professor licenciado detém uma cultura mais abrangente, se encontra mais documentado, mais instruído em áreas relacionadas com a dominante na área que escolheu, e não apenas nesta. Encontra-se, assim, mais apto a lecionar, a passar a mensagem por forma a motivar os alunos, não apenas a empinar, mas a investigar, a ampliar, eles mesmos, o leque de conhecimentos, assim se tornando, potencialmente, indivíduos aptos a um desempenho profissional que honre e eleve lá por fora a marca "Portugal", sem o que jamais passaremos da cepa torta, seja no curto, no médio ou no longo prazo.

Tudo isto, teoricamente, já se sabe, uma vez que, eivadas das maleitas causadas pelo destrutivo virus de Bolonha, as licenciaturas de hoje mal afloram o nível de exigência de outrora, antes de mais por pouco haver quem saiba, de facto, ensinar e, sobretudo, educar.

Além do mais, medidas destas, sobretudo com caráter geral, violam frontalmente o princípio de igualdade, na medida em que conferem oportunidades iguais a indivíduos com competências supostamente desiguais. Fazem tábua rasa do esforço suplementar investido, durante anos, por quem se licenciou com o objetivo de ir, um dia, lecionar, o que as torna, também, injustas e desincentivadoras para quem considere licenciar-se.

- x -

Se não existem professores de informática em quantidade suficiente para fazer face às necessidades, houvessem os sucessivos governos tratado de, atempadamente, incentivar inscrições nas licenciaturas nessa área, em lugar de se limitarem a deixar andar e correr, agora, atrás do prejuízo.

A liberdade de escolha é um direito essencial em qualquer democracia, mas não pode ser confundido com o direito dos governos a demitir-se da função de sensibilizar os governados para as atuais e previsíveis necessidades do Estado.


quinta-feira, 11 de agosto de 2022


O Princípio da Incerteza


"Não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro,
mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado?
Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários
com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações? 
"

"Como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio
gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública
é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos? 
"

"A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma "

O Princípio da Incerteza
Terá a morfologia facial evoluído no sentido de permitir aos hipoteticamente superiores espíritos humanos comunicar entre si ou, inversamente, terão os ditos espíritos começado a comunicar verbalmente num aproveitamento da dita evolução?

Qualquer que seja a resposta, parece certo que a razão de ser e o objetivo da fala é a comunicação entre os humanos, tal como já sucedia com a expressão corporal e viria a acontecer com a  bem mais recentemente inventada escrita.

Sabemos também, à saciedade, que só quando prosseguida de forma rigorosa e contemplando a possível perfeição será qualquer atividade animal razoavelmente conseguida no seu propósito. A falta de caso, a preguiça, o facilitismo e vícios similares comprometem, seriamente, a eficácia e a eficiência da ação, a ponto de, em casos extremos, tornar contraproducente o resultado final.

Se, na infinidade de sinais a que poderia recorrer, a mera linguagem corporal era, inevitavelmente, pouco rigorosa, imprecisa, a linguagem verbal viria, decisivamente, complementá-la como uma forma eficaz de limitar a dispersa e caótica sinalética, assim tornando potencialmente muito mais precisa a correspondência entre a ideia e a mensagem que a veicula entre os espíritos.

Através da combinação, em palavras, de fonemas de correspondência sonora relativamente constante dentro de um mesmo idioma, apurou-se, pois, a transmissão e a captação da ideia contida na mensagem, drasticamente reduzindo a ambiguidade e a indefinição.

Na senda do mesmo objetivo, a evolução inteligente da utilização da palavra deveria, então, ser a da constante afinação e da cada vez mais rigorosa utilização do idioma: nunca a da sua deterioração, seja por via da desenfreada polissemia, seja pela do desprezo que cada vez mais vamos notando para com as mais elementares regras gramaticais.

Esta inversão de sentido, esta desvalorização da função elementar da linguagem verbal encontra-se, porém, de tal forma enraizada no tendencialmente permissivo espírito humano que qualquer norma é prontamente revogada à primeira violação pela pena de um escritor, como se, ao subverter, supostamente em benefício da manifestação artística, o edifício gramatical e a precisão vocabular, qualquer romance fosse, por natureza, um código, uma cartilha pela qual todos nós a língua portuguesa devêssemos estudar.

Bem pelo contrário, e como já aqui opinei, "um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar".

Daqui decorre que, seja quem for que, por indiferença ou em nome da criatividade, sistematicamente utilize de forma inadequada o vocabulário e viole as regras da gramática jamais poderá ser confundível com um teórico da língua.

Apenas patenteia, em tal matéria, inaceitável ignorância larvar.

- x -

O princípio da incerteza, de Werner Heisenberg, sustenta que, observando uma determinada partícula de matéria, não é possível, com exatidão, determinar a posição e, simultaneamente, medir a velocidade daquela - algo que, cingindo-nos aos conhecimentos e aos métodos da física clássica, deveria ser possível fazer-se.

Segundo a física quântica, apresenta-se, assim, o dito princípio como mais uma forma de demonstrar que o Universo age mais misteriosamente do que aquilo que nos têm feito crer - embora a conclusão pela impossibilidade de apurar os valores com absoluta certeza se deva ao facto de serem utilizados, à falta de outros disponíveis, métodos invasivos para efetuar as medições.

Ora, instruídos que foram todos os atuais comentadores do programa da assim chamada CNN Portugal "O Princípio da Incerteza" na conjunto de áreas do conhecimento conhecida pela designação genérica de humanidades, será que foi o postulado de Heisenberg o inspirador do título adotado? Dificilmente, ou estaríamos perante uma provável demonstração de despudorada presunção, ou de  desmesurada cosmética mediática.

Será, então, que, no título do programa, princípio exprime a ideia de início, e não de lei geral da física, de parte da sua informação fundamental?

Mas, a assim ser, também aqui se manifesta insanável dúvida. Pois não é a vida caracterizada, antes de mais, pela imensa incerteza, não apenas quanto ao futuro, mas também quanto à realidade presente e à verdade dos relatos do passado? Não vive a Humanidade angustiada, procurando os mais sensatos proteger-se dos impactos previsíveis ou apenas imaginários com que a própria essência das coisas inevitavelmente povoa a aparentemente inesgotável sede espiritual das nossas preocupações?

Falar do início da incerteza seria, pois, refletir sobre as origens do Universo, ou seja, algo muito distante da linha editorial do programa televisivo de cujo título aqui se trata.

Considerada esta, poder-se-á, naturalmente, considerar a possibilidade de se tratar do início, não da incerteza absoluta, primária, mas, por exemplo, da incerteza ou insegurança na gestão política do Estado. Mas como podem a endémica incompetência, o desnorte das opções, o primado da corrupção e a dependência do compadrio gerar certeza seja em quem for, a propósito seja do que for? Como pode considerar-se que a incerteza na gestão da coisa pública é de agora, e não um virus omnipresente em todas as paragens e regimes ao longo dos tempos?

Até que alguém que saiba a esclareça, a dúvida subsistirá, assim, quanto ao sentido em que, na escolha do título, o termo princípio foi selecionado: lei fundamental, ou início de algo? Neste caso, início de quê?

- x -

Preferir, na circunstância, a utilização do termo início - ou começo - eliminaria qualquer dúvida quanto a ideia a transmitir: início exprime, sempre, o primeiro estágio, o lançamento. Isto, apesar de poder discutir-se a correção de atribuir-lhe, como alguns fazem, o significado de preliminar ou preambular, já que não parece seguro que pre não signifique que antecede o início da ação propriamente dita, a qual se destinaria a preparar ou enquadrar.

Em qualquer caso, o que importa reter é que a ambiguidade vocabular sempre será de evitar, sem prejuízo, naturalmente, da saudável criatividade, da originalidade que, desejavelmente, se procurará imprimir às manifestações do espírito, sob pena de, assim não sendo, tudo se resumir ao sensaborão, ao acinzentado de uma vida em que, praticamente, nos limitaríamos a respirar.

A ambiguidade é, no panorama linguístico, não o princípio ou o início da incerteza, mas a própria essência da mesma, a par com o facilitismo gramatical que, em boa parte por via da importação de vocábulos e estruturas próprias de variantes do idioma desenvolvidas noutras partes do Mundo, mina, não apenas a clareza da ideia, o rigor da mensagem, a destreza do raciocínio, mas, com elas, a qualidade da interação do ser humano com os seus pares.

A riqueza vocabular reside na diversidade da utilização de termos com significados semelhantes, próximos, sem deixar de respeitar a particularidade de cada um deles: não no empanturrar das palavras com significados, levando a que, um dia, qualquer coisa querer dizer uma coisa qualquer, e deixemos de conseguir captar a ideia precisa ou, sequer, uma aproximada da que pretende exprimir quem escreveu ou está a falar.

Generalizada muito para além da mais ampla razoabilidade e longe de corresponder ao enriquecimento da língua, antes à degradação da sua beleza e da sua utilidade, a desenfreada polissemia apenas torna mais difícil a já de si difícil arte de comunicar.

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica, e não pela utilização
mais ou menos própria que, aqui ou ali, um ou outro escritor dela fará.

A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada hipercorreção
qualquer tentativa de resistência à degeneração.

segunda-feira, 8 de agosto de 2022


São Miguel de Seide - Casa de Camilo e Acácia do Jorge

 Casa de Camilo e Acácia do Jorge


"Pov. e freg. de S. Miguel, da prov. do Minho, conc. e com. de V. N. de Famalicão, distr. e arceb. de Braga; 77 fog. e 210 hab. Tem esc. do sexo masc. e está situada a 4 k. da margem direita do rio Ave e a 6 da séde do conc. A terra é fértil e cria muito gado bovino, que exporta para Inglaterra. Pertence á 13.ª div. mil. e ao distr. de recrut. e res. n.º 8, com a séde em Braga. Era n'esta pov. a quinta de S. Miguel de Seide, onde durante muitos annos residiu o grande romancista Camillo Castello Branco, visconde de Correia Botelho, e foi alli que elle se suicidou em junho de 1890 ".

Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues,
in "PORTUGAL - Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artistico" -
- vol.VI, pág.785 - João Romano Torres & C.ª - Lisboa, 1912

Leia aqui a opinião de Camilo sobres as cidades

quinta-feira, 28 de julho de 2022


"Alien"

Olham-me, quando por eles passo na rua.

Uns, com ar divertido, outros com ar trocista; uns com ar de pena, outros de censura, outros ainda com o olhar fugaz dos que se apressam a desviá-lo porque parece mal ficar a olhar.

O mesmo numa loja, num qualquer espaço público, ou quando me levanto, no restaurante, para ir lavar as mãos antes de começar.

Também eu não sei como os contemplar. Nem sei, mesmo, se devo desviar ou devolver o olhar.

Estão, claro, no pleno uso do seu direito à liberdade de ser, de estar, de observar, de uma opinião formar e de, a todo o tempo, a inverter ou renovar.

Sou eu o desenquadrado, o retrógrado, o pária de uma sociedade virada para a frente e para a ânsia de aproveitar ao máximo, enquanto isto da guerra não alastra, o ar que respira e aquilo que, da vida, vai podendo tirar.

Por que não? Por que não, afinal, se o mesmo parecem fazer quantos por aí vemos deambular?

Pouco importa. Faço o que faço, ajo como ajo, e continuarei a agir enquanto uma culpa minha puder pôr em risco o bem-estar comum, a economia do Estado e a estabilidade dos outros que por cá têm de andar.

Uso máscara, e continuarei a usar enquanto o bicho por aí andar.

Uso-a, por muito que uns e outros prefiram esquecer o assunto e assobiar para o ar.

terça-feira, 26 de julho de 2022


INATEL Oeiras


Para os que ainda são do tempo em que um motel era uma unidade de alojamento,
aqui fica um postal com algumas imagens do atual INATEL Oeiras
quando ainda se chamava
Motel Continental

Inatel Oeiras

"A pov. é muito antiga, mas não se sabe quando foi fundada, nem o nome do fundador, desconhecendo-se também a data em que se formou a parochia (...).

Oeiras era apenas uma aldeia, grande e muito bem situada. Em 6 de junho de 1759 D. José I, elevando o seu primeiro ministro, Sebastião José de Carvalho e Mello, a conde de Oeiras de juro e herdade, e seus irmãos a secretários de Estado, deu a esta povoação a categoria de villa, por um alvará passado logo no dia seguinte, 7 de junho. Desde então começou para a nova villa uma epoca de esplendor e desenvolvimento, mas por morte do seu primeiro conde, mais tarde marquez de Pombal, ficou estacionaria. O referido monarcha deu foral a Oeiras, no paço d'Ajuda, a 25 de setembro de 1760. Esta villa é das poucas terras portuguesas que têm foral novissimo, isto é, dado pelos successores d'el-rei D. Manuel(...).

A praia de Oeiras é bastante concorrida na estação balnear por familias de Lisboa e d'outras localidades. À beira mar formou-se ha poucos annos uma nova estancia balnear muito aprazivel, chamada Santo Amaro. Tem-se edificado ali ultimamente elegantes chalets, e tem estação na linha de caminho de ferro de Cascaes, que fica entre as de Paço d'Arcos e Oeiras (...).

El-rei D. José, no verão dos annos de 1775 e 1776, habitou com toda a côrte n'aquelle majestoso palacio [da quinta "que se prolonga do Norte ao Sul"] para poder fazer uso todos os dias dos banhos do Estoril, que ficavam próximos. O marquez de Pombal, titulo que já havia recebido em setembro de 1769, aproveitou a permanência do monarcha no seu palácio, ne epocha mencionada, para lhe offerecer um espectaculo, fazendo-lhe vêr os resultados praticos das sabias reformas empreendidas no seu reinado, e mostrar aos portugueses e aos estrangeiros os progressos que Portugal fizera e os recursos que a sus industria promettia, respondendo assim com factos demonstrativos da prosperidade publica ás accusações e calumnias dos inimigos. Determinou então que se fizesse em Oeiras uma grande feira, onde concorressem productos de todos os generos da industria fabril portugueza, e para este fim foram enviadas circulares ás autoridades de todas as provincias do reino, ordenando que intimassem os donos da fabricas a virem armar barracas em Oeiras, e n'ellas expuzessem á venda os diversos productos da sua industria. Ninguem faltou á intimação, e a feira teve um exito completo, que foi uma verdadeira exposição de tudo quanto se fabricava então em Portugal, e assim teve a villa d'Oeiras a honra de vêr dentro dos seus muros a primeira exposição industrial que se realisou em Portugal, e provavelmente a primeira que se effetuou na Europa".

Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues,
in "PORTUGAL - Diccionario Historico, Chorographico, Heraldico, Biographico, Bibliographico, Numismatico e Artistico" -
- vol.V, pág.182-184 - João Romano Torres & C.ª - Lisboa, 1911



sábado, 23 de julho de 2022


Festa do Avante 2022

À boa maneira da propaganda comunista, escrevia-se, em 2013, que "a Entrada Permanente (EP) para os três dias, é um título de solidariedade fundamental para o êxito da Festa do Avante! A sua aquisição antecipada é uma expressão concreta de solidariedade com a preparação e construção da Festa".

Nessa altura, não havia, ainda, invasão da Ucrânia pela Rússia, nem o Partido Comunista Português (PCP) estava ferido de morte pela estultícia das posições quanto a ela assumidas. Nessa altura, ainda uma parte dos Portugueses lia a cartilha comunista com idolatrada fé e devoção, como se de um dogma quase religioso se tratasse para aqueles que nenhuma religião professavam e nenhuma fé de natureza metafísica queriam assumir.

Solidariedade! Quem poderia resistir à abusiva e despudorada utilização de um termo que exprime o que de mais nobre poderá haver no ser humano face ao drama dos que dele necessitam, para levar os incautos e pouco esclarecidos militantes e simpatizantes a financiar a atividade de uma organização política cujos verdadeiros propósitos, não sendo, então, evidentes, hoje já não é possível escamotear?

"Já compraste a tua EP?" Valia a pena, sim.

A monolítica e anquilosada cúpula do Partido descobrira, na Quinta da Atalaia, a galinha dos ovos de oiro: a indiferença dos mais jovens para com as coisas da política, em benefício da irresistível oportunidade de assistir, ao vivo, a um espetáculo musical cuja qualidade os levava a precipitar-se, todos os anos, para a bilheteira física ou virtual, no tal ato de solidariedade que lhes permitisse, pelo menos por escassos três dias, esquecer um pouco o horizonte negro que temos vindo a tratar de lhes propor. Ou impor.

Debandavam, claro, quando chegava a altura de ouvir a monocórdica cassette ligada à língua dos crânios do PCP; ou, pelo menos, aproveitavam para beber uma mine ou uma jola com o pessoal até que a tivesse fim a estafada lenga-lenga.

Depois, música, e mais música, e viva o PCP!

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Já não é assim.

Os aficionados da Festa do Avante! não têm, agora, como assobiar para o lado, fazendo de conta que a "solidariedade com a preparação e construção da Festa" corresponde, em boa verdade, ao financiamento de uma estrutura que mais não visa do que minar, precisamente, os valores indelevelmente associados à solidariedade que diz promover.

A solidariedade para com as vítimas ucranianas é, manifestamente, algo que nem ao de leve perpassa o espírito daquela estranha gente para quem as receitas da Festa hoje aparecem como a forma possível de continuar a difundir a pérfida mensagem, e a financiar o punhado de zelotas que com o Partido ainda colaboram.

Adquirir bilhetes para aquilo mais não é, afinal, do que contribuir para a eternização de uma vergonha nacional que, com despudor e desplante sem par no mundo civilizado, entende que, independentemente da motivação de um e do outro, um estado invadido deve ceder perante o invasor.

Não será altura de os jovens e menos jovens amantes da música que por lá se toca terem a ombridade e a dignidade de dizer NÃO! ?

domingo, 17 de julho de 2022


Fernando Rolim: Ondas do Mar





Para quem aprecia a canção de Coimbra, aqui fica uma interpretação sentida e temperada pela idade, de um dos seus mais conhecidos intérpretes.





                                            Imagem: Youtube/Coimbra Canal

quarta-feira, 13 de julho de 2022


Pois É, São outra Vez os Pirómanos, Coitados...

Neste triste caso, é inútil culpar os juízes.

Com a educação e formação de que beneficiaram, sobre a qual me dispenso de voltar a opinar, vêem à frente um desgraçado de aspeto miserável e ar alucinado, e tendem a aplicar-lhe a pena mínima. Suspensa, claro. Depois, apanha-se à solta e, o mais tardar, no ano seguinte volta ao mesmo, seja doente mental ou não.

Quem roubar, furtar, destruir propriedade alheia ou causar dano físico relevante a terceiro é, por via de regra, encarcerado, e por longos anos, especialmente se do ato resultar a morte.

Como entender, então, que a conduta de um criminoso que ateia um incêndio florestal seja punida com pena de prisão de um a oito anos*), sabendo-se que, tratando-se de réu primário, quase garantidamente será suspensa na sua execução por igual período? Ou seja, que o criminoso será libertado, ficando livre para reincidir, sempre na esperança de não voltar a ser apanhado?

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Um incêndio florestal causa muito mais dano às pessoas e às coisas do que um ato isolado. Causa, sobretudo, dano de uma forma descontrolada, de evolução imprevisível, como imprevisível é antever a dimensão dos estragos.  Mas é, invariavelmente, enorme.

Já que os sucessivos governos são patentemente inaptos para proceder a reformas estruturais - quaisquer que sejam, entre tantas absolutamente necessárias -, ao menos promovam uma minúscula alteração da lei, fixando a pena mínima nuns mais do que razoáveis seis anos, por forma a garantir que, provados os factos, o juiz manda, mesmo, prender, impedido que fica de aplicar pena mais branda, designadamente uma que viabilize a suspensão na execução.

Claro que ninguém pode prever que no ano tal ou tal as condições meteorológicas irão ser estas ou aquelas. Pois se nem os cientistas conseguem, quantas vezes, fazer previsões para o dia seguinte!

Existe, no entanto, uma colossal diferença entre prever uma ocorrência e precaver-se contra a respetiva eventualidade. Precaver é criar condições para evitar a ocorrência ou, na impossibilidade, para minorar os seus efeitos nocivos; e, isso, está muito mais ao alcance dos mortais do que adivinhar que vem aí uma onda de calor ou uma tempestade.

Ainda no campo da prevenção, tratar de tornar as matas públicas espaços seguros com largos aceiros*) a intervalos de alguns quilómetros, assim evitando a propagação dos incêndios, seria, seguramente, muito mais eficaz e menos dispendioso do que, todos os anos, condenar-nos a assistir, impotentes, à destruição de florestas e dos bens que nelas se encontram; à destruição de vidas e à degradação da saúde de bombeiros e de outros profissionais ligados ao combate aos incêndios.

Ora, em vez disso, continua o Estado a preferir manter-se inerte na única vertente em que, falhando tudo o resto, seria muito simples e rápido criar condições para reduzir as ignições dolosas por parte de pessoas perturbadas ou ao serviço de interesses económicos bem conhecidos.

Vamos continuar muito humanistas relativamente a um punhado de doidos ou de autênticos javardos ao serviço de quem lhes paga, permanecendo inaceitavelmente desumanos para com os milhares que, todos os anos, os incêndios espoliam nas suas vidas, saúde e propriedade?

A quantidade de ignições acidentais reduziu-se, de forma muito expressiva, nos últimos anos. Como admitir, então, que o fogo posto continue, em boa parte, a ser responsável por um descalabro destes?

De que serve rasgar aceiros e gastar milhões em meios de combate aos fogos, se os loucos e os criminosos continuam, impunemente, por aí à solta?

Ainda alguém se espanta por o pequeno Portugal ter tantos e tão grandes incêndios?

O comodismo ou a falta de coragem para modificar uma única norma desfasada e obsoleta será, provavelmente, uma das principais, se não a principal razão.


sábado, 9 de julho de 2022


Vila Verde

Vila Verde - Campo da Feira

Imagem: Wikipedia

"Villa Verde, a séde d'esta parochia, d'este concelho e d'esta comarca, é uma povoação muito antiga, alegre, vistosa, bem situada e bem servida por estradas a macadam de toda a ordem; tem um bom largo para as suas grandes feiras,— bons estabelecimentos commerciaes e bons edifícios entre os quaes avultam os seus novos e magestosos paços do concelho;— é finalmente uma povoação de muita vida e muito importante(...), e mais importante será em praso breve: mas toda a sua importância data de 1855, ou da creação d'este grande concelho pelo decreto de 24 d'outubro do dicto anno. 

Até áquella data esta villa pertenceu ao extincto e antiquíssimo concelho de Villa Chã, que soffreu diversas modificações desde a sua creação até que foi extincto pelo decreto de 24 d'outubro de 1855, passando para este de Villa Verde, com outras muitas, as 9 freguezias que o constituíam e eram as seguintes:— esta de Villa Verde e as de S. Miguel e S. Thiago de Carreiras, Doçãos, Nevogilde, Esqueiros, Travassos, Loureira e Barbudo, hoje extincta e annexa á de Parada. 

Em 1706 já Villa Verde tinha uma importante feira no dia 13 de cada mez e suppomos que era a séde do concelho de Villa Chã, villa e povoação antiquíssima, outr'ora muito honrada e privilegiada(...).

Feiras
1.a — Annual em Villa Verde, no dia de Santo Antonio, 13 de junho. 
2.a — Annual na mesma villa, a 13 de dezembro, dia de Santa Luzia. 
3.a — Annual em Pico de Regalados nos dias 6, 7 e 8 de novembro. 
4.a — Annual em Prado, nos dias 20 e 21 de janeiro. 
5.a — Annual em Prado também, nas sextas feiras de quaresma. 

Para gado somente
6.a— Annual na freguezia de Duas Egrejas, nos dias 11 e 12 de dezembro, denominada feira de Santa Luzia de Penella. 

Para gado muar e cavallar somente
7.a — Bi-mensal ou de 15 em 15 dias, em Villa Verde, aos sabbados. 
8.a — Bi-mensal também aos sabbados e alternada com a feira supra, no Pico de Regalados, de 15 em 15 dias. 
9.a — Mercado de diversos géneros na freguezia de Rio Mau, em todos os domingos posteriores ás feiras de Villa Verde.

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Pela sua população e riqueza e pelas intimas relações que o prendem aos de Amares e Terras de Bouro, que formam a grande comarca de Villa Verde ou por assim dizer um todo, são estes tres concelhos os mais desordeiros e revolucionários de todo o nosso paiz.

Tem havido n'estes 3 concelhos grandes desordens, verdadeiras batalhas, muitas mortes e ferimentos, sendo necessário por vezes intervir a força armada, grandes destacamentos e batalhões inteiros! E não hesitam em reagir contra a mesma tropa os homens e as mulheres, como succedeu na revolução de 1846 a 1847, na qual as mulheres d'este districto de Braga, nomeadamente as d'estes tres concelhos e dos de Vieira e da Povoa de Lanhoso, tanto se distinguiram, que a dita revolução tomou o nome de Maria da Fonte, virago minhota, que se tornou lendária! 

Differentes concelhos e freguezias disputam a gloria de lhe terem dado o berço, mas já hoje não se sabe com ceríesa qual foi a sua terra natal (...).

São muito vivas n'estes povos do Minho as crenças religiosas, pelo que uma grande parte das maiores desordens a que se teem abalançado, expondo o sangue e a vida, provieram de bem ou mal entendidas affrontas ás suas crenças, por não lhes permittirem os enterramentos nas egrejas, obrigando-os a fazerem as inhumações em adros abertos, na falta de cemitérios locaes. 

Por vezes não foi necessário mais nada para immediatamente subirem aos campanários dos sinos da paroehia, onde se dava o conflicto, e tocarem a rebate. O mesmo toque se repetia instantaneamente nas parochias circumvisinhas, por serem muito próximas e não haver entre ellas as grandes distancias que se notam em outras provincias, nomeadamente na do Alemtejo. 

O povo — homens e mulheres, — acudia logo em chusma e armado; as mulheres tomavam sempre a iniciativa e, — mesmo na presença das auctoridades— tractavam de sepultar o cadáver na egreja. As auctoridades reclamavam força; — intervinham então os homens — e por vezes a tropa e as auctoridades foram de vencida na lucta; mas por vezes também a tropa, quando se achava em força superior, obrigava o povo a ceder, sendo porém raro terminar o conflicto sem fogo, pancadaria, ferimentos e mortes — em ambos os campos !..."

Pinho Leal, in "Portugal Antigo e Moderno" - Vol.11 pág.1103-1107
Livraria Editora de Tavares, Cardoso & Irmão - Lisboa, 1886

quarta-feira, 6 de julho de 2022


Aborto: 'Nim' ou Não?


"Uma anquilosada Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos
como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada"

"A norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação"

"Há que ter presente que o ruído é, sempre, consequente,
e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição"


Aborto nos 'States'
Aparentemente, tratou-se de um balde de água fria, ideal para reanimar as hostes mediáticas quando o assunto do dia parece serem, já, as férias: quando até a guerra na Ucrânia se encontra, para alguns menos atentos, a marcar passo, quando, enfim, já pouca gente liga ao que quer que seja, além, naturalmente, dos episódios mais ou menos folclóricos, mais ou menos ridículos protagonizados pelos políticos que nos governam e por aqueles que gostariam de estar a governar-nos.

O assunto aqui vertido rendeu rios de dinheiro, páginas de anúncios, horas de publicidade televisionada intercalando comentários mais ou menos inflamados de ativistas, de juristas, dos autodenominados politólogos, de sociólogos, até de simples e mais ou menos bem pagos curiosos.

A verdade, porém, é que tudo não passou de uma decisão há muito esperada de um estrutural e conjunturalmente politizado Supremo Tribunal dos Estados Unidos, recentemente tornado conservador graças aos bons ofícios dessa inenarrável e inclassificável criatura de ascendência europeia denominada Donald Trump que, manipulações de resultados à parte, preenche o ideário de metade dos nativos daquela grossa fatia do norte do continente americano da qual todos, de alguma forma, dependemos e a cujos caprichos e desígnios prestamos e continuaremos a prestar respeitosa vassalagem.

No entanto, e para lá do significado político e social que é bastante fácil e quase inevitável atribuir-lhe, o efeito prático do aresto será, possivelmente, pouco expressivo.

Mal andam pois, a assim ser, aqueles que, na ânsia de agitar bandeiras, o fazem quase como se a polémica conclusão tivesse ido no sentido de proibir a interrupção voluntária da gravidez nos E.U.A.  Mas não foi, seguramente, disso que se tratou.

Estão, assim, estas bem intencionadas pessoas, que aos quatro ventos bramam a sua indignação, apenas a abrir alas àqueles que defendem a polémica decisão sustentando que se trata, meramente, da assunção de uma postura mais democrática e mais liberal por parte do Tribunal, na boa tradição americana que nos prezamos de adotar, também, em Portugal.

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Ocorre, porém, goste-se ou não e concorde-se ou não, que o entendimento de que o julgamento proferido dota a sociedade norte-americana de uma maior democraticidade e de uma maior liberalidade tem, do ponto de vista formal e jurídico, a sua razão de ser.

Ao contrário de Portugal, estado único, independente, dividido em regiões e autarquias dotadas de autonomia meramente administrativa, os Estados Unidos são isso mesmo que o nome diz: estados, independentes em quanto não está regulado pela demasiado genérica e hoje patentemente obsoleta Constituição comum à qual, em tempos há muito idos, todos eles acederam sujeitar-se; e, como se sabe, em direito, a norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação.

Acontece, também, que, por inevitável e sensato princípio, as constituições se limitam à enunciação de princípios, resultando omissas quanto à aplicabilidade específica dos mesmos à miríade de situações concretas com que os diversos intérpretes se irão defrontar. Cumpre, assim, aos mais ou menos políticos e politizados órgãos investidos de atribuições de fiscalização do cumprimento da Lei Fundamental interpretar a respetiva letra e preencher, por decisão definitiva e irrecorrível irrecorrível, as lacunas que a cada passo não deixam de se manifestar. Sobretudo, numa Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos, como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada, como há quem diga que somos nós.

Ora, sem deixar de ser verdade que, do ponto de vista técnico-jurídico se inverteu uma posição hermenêutica aceite durante o mais recente meio século, a verdade insofismável é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos não veio impor o que quer que fosse. Bem pelo contrário: veio devolver a cada estado o direito de decidir por si quanto a tão sensível matéria.

Esta é a verdade objetiva, que, por muito que possa doer, não há como contrariar.

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Já aquela dúzia de estados que, pressurosamente, correu a anunciar leis mais repressivas na matéria apenas se está a colocar na mesmíssima posição que o nosso Torrão Natal antes da Revolução de 1974, quando a prática do aborto era genericamente proibida.

Ao tempo, efeito inevitável foi, como se sabe o do florescimento de clínicas especializadas ao longo da raia, às quais recorriam as portuguesas suficientemente abastadas para percorrer a distância e suportar os custos da intervenção; e, por cá, a proliferação de parteiras não encartadas, procuradas por quem não tinha meios para se dar a outros luxos, e abortava em circunstâncias que, mesmo quando não documentadas, são bem fáceis de imaginar. A verdade, aliás, é que, ainda hoje uma boa parte atravessa a fronteira para o efeito*), dado o regime mais benévolo da lei espanhola que está a vigorar.

Poderemos, no entanto, comparar o nível económico das portuguesas de então - e de parte considerável das de agora... - ao das americanas dos dias de hoje? Claro que não.

Poderemos, outrossim, comparar o grau de esclarecimento da população mundial quanto à matéria - nomeadamente quanto à existência e disponibilidade de contracetivos - na América do Norte ou onde quer que seja no mundo dito civilizado dos nossos dias, com a situação cultural, social e politicamente estagnada dos lusitanos de então? Claro que também não.

Assim, nos estados americanos que optarem por endurecer as restrições a consequência mais provável e imediata da decisão será, provavelmente, a vantagem económica dos restantes estados, que irão acolher quem pretender interromper a gravidez. É que, independentemente do estado de origem, é o local do 'crime' que determina a jurisdição, pelo que essas pessoas que abortam além fronteiras estaduais não poderão ser punidas no estado onde estão domiciliadas. Tal como, noutros tempos, não podiam ser legalmente perseguidas em Portugal as portuguesas que abortavam em Badajoz.

Fala-se, segundo se diz, da criminalização, por parte de certos estados radicais, da mera deslocação para interromper a gravidez noutras paragens; mas isso, a acontecer, não passará de uma medida extrema, de uma verdadeira aberração suscetível de firmar, indelevelmente, do espírito das restantes nações a noção de que, no tão amado e admirado País dos norte-americanos, a liberdade e a democracia não passam de uma nada democrática ilusão.

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Bem, e antes da polémica decisão?

Em sociedades como aquelas que elegeram, para os governar, os políticos que a nova legislação restritiva irão impor, será que, já então, se poderia abortar sem imediatamente se adquirir um sério estigma social, mesmo junto de familiares e de amigos?

Ousaria a generalidade das cidadãs por lá interromper a gravidez, ou já demandaria outras paragens para o fazer? Quantas clínicas de Badajoz não haverá para lá dessas fronteiras estaduais americanas? Quantas não irão, a partir de agora, surgir como cogumelos ou florescer mais ainda? Com um nível económico tão diferente do nosso, bem poucas serão decerto as norte-americanas que não terão meios para se deslocar a um estado liberto de tão severa legislação.

A assim ser, o que veio, então, esta decisão do Supremo mudar? Como contrariar os tais que dizem que ela apenas veio ainda mais liberalizar, democratizar?

Como, enfim, agitar bandeiras contra ela, sem as suas formalmente inatacáveis posições estar, paradoxalmente, a divulgar?

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O pouco imparcial Supremo Tribunal norte-americano efetuou uma manobra propagandística de cujo impacto social e mediático sempre esteve bem ciente. Não resistiu a uma acintosa e, bem vistas as coisas, na prática pouco impactante provocação, bem ao estilo do seu arquiteto Donald Trump-

A esta provocação, talvez tivesse sido bem melhor não terem os opositores de aquém e além fronteiras dado tanto tempo de antena, o qual apenas terá servido para evidenciar, contra o que era propósito dos mesmos, que, de facto, o acórdão confere, individualmente, a cada estado uma maior liberdade de decisão.

As causas, todas as causas, há que as defender com entusiasmo, com militância, com mediatização. Com tudo isso e o mais que as possa dar a conhecer, e motivar quantos a elas quiseram aderir.

Há, no entanto, que ter presente que o ruído é, sempre, consequente, e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição.

*  *

Por cá, estas decisões cabem, exclusivamente, ao Tribunal Constitucional, também não isento de polémica nas nomeações dos seus conselheiros, felizmente não vitalícios, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos.

terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

sábado, 2 de julho de 2022


José Sócrates em Perigo!


"O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga,
considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar
que o acusado se apresentará à Justiça!
"

"Apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar,
já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana
ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear
"


Em perigo de fuga, claro. Como acontece com todos aqueles presumíveis inocentes que, apesar da proteção necessária e constitucionalmente garantida, a dada altura, ou desde sempre a Justiça considera não serem de, como tal, considerar.

Mas, não: devo ter lido mal a notícia. Será, talvez, a idade que já me não deixa ver as coisas como as vêem os atentos e expeditos olhos destes novos e esforçados magistrados, por certo saídos de escolas de ensino e da vida muito mais sofisticadas e exigentes do que aquelas que, no meu tempo, havia por aí.

Vejamos: reza a notícia do Expresso*) que a Meritíssima Juíza, no mesmo despacho em que quanto a José Sócrates, considerou que, "quando se vir confrontado com a possibilidade de ser julgado pela prática dos crimes pelos quais se encontra pronunciado, o arguido pode decidir eximir-se à ação da justiça (...)" - ou seja, baldar-se... -, conclui o Tribunal que "atentos os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, afigura-se suficiente, para afastar o perigo de fuga que no caso se verifica, sujeitar o mesmo à obrigação de apresentação periódica".

De outra forma dito, e se bem entendi - o que espero bem que não seja o caso -, entende o douto despacho que, para afastar o perigo de que, perante uma cada vez maior proximidade do julgamento, o indivíduo em causa entenda deixar-se ficar lá pelo Brasil onde, agora, tanto parece gostar de estar, é suficiente obrigá-lo a apresentar-se no posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Ericeira a cada quinze dias para garantir que, quando chamado pela autoridade judiciária, não deixará de se apresentar.

Entende o caro leitor a fina sagacidade da decisão? Eu explico...

Em menino, José Sócrates olhou, um belo dia, para um militar da GNR muito alto, muito forte, com um grande e ameaçador bigode e, desde então, treme à simples vista de um dos companheiros de corporação do dito Adamastor, assim bastando entrar, a espaços, num posto cheio deles para nem pensar em falhar a obrigação, transido que fica de puro pavor.

Não? Bem, nesse caso, talvez tenha visto ou ouvido, ao passar por uma esquadra ou posto de uma força policial lusitana ou estrangeira, os gritos desesperados de um qualquer desgraçado a ser, selvaticamente, agredido por se ter portado mal. Bom, talvez mais no estrangeiro, já que coisas dessas não há em Portugal.

Ou terá sido um sonho mau que tenha contado durante um interrogatório cuja ata a Juíza tenha lido? Ou alguma particular e recente alergia do Arguido a esquadras da Polícia e a postos da Guarda que o ponha em sentido apenas por lá entrar?

Não, não parece; sobretudo atendendo ao pouco caso que o Exmº Arguido parece fazer da autoridade, desde logo pelo manifesto desrespeito por aqueles a quem cada deslocação ao estrangeiro ficou por comunicar.

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Ora, a probabilidade de se furtar ao julgamento e suas consequências existe, como sustenta o despacho, e é gigantesca, como qualquer de nós poderá acrescentar atendendo a que o aplicado Estudante se desloca, com frequência, ao longínquo País Irmão no âmbito do desenvolvimento do doutoramento em que se inscreveu por lá.

Que melhor desfecho, então, para toda esta sórdida história do que acabar por lá fixar residência e a ficar, tranquilamente, a leccionar, baralhando e manipulando, ao seu belo estilo e até mais não poder, o acordo de extradição*) e dando aqui e ali uns certeiros apertos de mão a quem considerar mais apto e disponível para o ajudar?

Depois, se a coisa começar a correr mal, inesperadamente - para o Tribunal, leia-se - bastará resolver, na esteira do recentemente sucedido com um malogrado banqueiro, dar um saltinho até um paraíso qualquer ali bem perto para tratar da saúde e fazer, depois, saber que não tenciona voltar a Portugal - talvez aconselhado por alguém mais competente do que quem, no outro caso, terá entendido que a distante África do Sul seria inexpugnável refúgio para quem um fugitivo tentasse apanhar.

Cumpre deixar bem claro que, apesar do inominável que representaria, jamais aqui estaria em causa uma eventual conclusão de sentido contrário a esta da Exmª Magistrada quanto à real existência do perigo de fuga. Tal conclusão de que o perigo não existiria também seria, na verdade, legítima, por se encontrar no âmbito do poder discricionário do Tribunal e resultar do julgamento livremente realizado no íntimo do quem a questão tivesse apreciado.

Não. O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga, considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar que o acusado se apresentará à Justiça!

Será a opção por tão tíbia e inoperante medida uma simples e tosca tentativa de enterrar o incómodo assunto, obnubilando um eventual e inconfessado e, necessariamente, inconfessável temor pela distinta personalidade em causa, a exemplo do que poderá ter acontecido perante o importante, rico e poderoso João Rendeiro, um punhado de meses atrás? Dada a recente postura da Juíza, tal não parece de acreditar.

Ou será que esta boa gente não aprende, mesmo os rudimentos indispensáveis àqueles a quem cumpre decidir, julgar? Que, o que lhes ensinaram quanto à arte de julgar, foi insuficiente para tornar evidente que, apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar, já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear?

Mas será que, coisas destas, é preciso ensinar?

Dever-se-á, antes, a manifesta pusilanimidade da medida ora decidida a um manifesto défice de noção do tempo cronológico? A não entender a douta Magistrada que apenas a apreensão do passaporte poderia, em alguma medida, a fuga contribuir para evitar?

Ah! Não! Claro! Coitado! Como pude não me lembrar?

Sem passaporte, José Sócrates ficaria impossibilitado de ir ao Brasil, e o tal doutoramento, tão importante para todos nós e para a Justiça, ficaria por acabar. Seria uma ignomínia, uma ingratidão sem igual, uma tal patifaria fazer a quem, pela brilhante ação política e governativa desenvolvida, Portugal tanto tem a agradecer e a pagar.

* *

Por estas e por outras, a cada vez mais desacreditada magistratura judicial portuguesa, não cessa de nos desencantar com histórias de pasmar!...

A mais recente - lembram-se? - foi mesmo coisa de arrepiar...

(continua aqui)

quinta-feira, 30 de junho de 2022


VLADIBOUUMMM!!

A - pensava-se - outrora poderosa máquina bélica de Vladimir Putin já nem consegue acertar num paiol*), numa época em que, se os russos ainda tivessem equipamento e material de ponta, a tecnologia GPS lhes permitiria acertar no que quer que fosse com elevadíssimo grau de precisão.

A conclusão pelo défice de material bélico e de efetivos militares que o operem é, aliás, inevitável, já que, a assim não ser, pelo menos a Moldávia há muito estaria em vias de ser libertada pelo magnífico Vladimir.

Como se tanta desgraça lhe não bastasse, com a iminente adesão da Suécia e da Finlândia, a NATO acaba de aumentar muito significativamente a fronteira com a terra de sonho com que a propaganda russa não pára de nos acenar.

O perigo está, assim, bem à vista, bem à frente dos nossos olhos, apenas sendo invisível para quem continuar em estado de negação, para quem o não quiser ver.

Esgotados, a breve trecho, os meios convencionais para combater uma Aliança liderada pelos Estados Unidos da América, que não cessa de tomar posições junto à fronteira; doente, muito doente, ao que dizem quando falam da sua saúde precária; não querendo deixar-nos sem uma indelével marca da sua ominosa atuação, poderá alguém ter dúvidas quanto ao próximo passo, assim o deixem dá-lo os que têm bastante mais a perder?

A NATO não pode deixar de saber que o contínuo posicionamento de novas tropas junto à fronteira com a Rússia será, a breve trecho, muito pouco eficaz contra armas nucleares russas que, a considerável distância, estão apontadas às principais cidades, e não só.

Serão, então, estas movimentações e reforços da Aliança algo mais do que aquilo que parecem?

Mera provocação de um já bem acossado louco?

(continua aqui)