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quinta-feira, 5 de maio de 2022


A Inenarrável Conferência das Laranjas


"Seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, mostra-se desrazoável classificar
como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores"

"Pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve,
o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente,
colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?
"

~Exemplo de Demagogia
Quando nos pedem um exemplo de demagogia, acabamos, quase invariavelmente, por falar do discurso deste ou daquele dirigente partidário, de qualquer quadrante político, que, com o intuito de impressionar o auditório - leia-se, "o eleitorado"... - ilustra a parlenga com supostos casos práticos de substância nenhuma, mas de forma suficientemente barroca e prenhe de aspetos mais ou menos folclóricos para fazer emergir sentimentos, sejam eles de aquiescência ou de aplauso, de mágoa ou de indignação.

Nesta arte, atrás dos dirigentes políticos não ficam, seguramente, os sindicais, do que é exemplo recente o Coordenador do Sindicato dos Professores da Região Centro, Conselheiro Nacional e Secretário-Geral da Federação Nacional dos Professores (como esta gente gosta de títulos compridos e pomposos!...), Dirigente da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública e Membro do Conselho Nacional e da Comissão Executiva da CGTP-Intersindical Nacional.

Talvez para fazer crer aos mais distraídos que alguma chama ainda arte no cada vez mais enfezado Partido Comunista Português (PCP) - que, todas estas importantes e representativas estruturas, agora na quase clandestinidade lá vai continuando a manipular -, decidiu o pugnaz e pertinaz dirigente proceder, em conferência de imprensa, a uma chaboqueira demonstração das limitações e da ineficácia do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) e do pauperismo a que, do seu ponto de  vista, ela condena os profissionais representados pela Federação que dirige, demonstração essa que, antes de continuar a leitura, recomendo ao caro Leitor que aqui não deixe de apreciar.

Além de ter decidido enveredar, na apresentação, por ações tão violentas como o partir pratos em público - atitude surpreendente vinda de alguém afeto a uma estrutura tão pacifista como o PCP... -, recorreu o distinto conferencista a uma indescritível demonstração baseada em três pratos de laranjas pelos quais espalhou uma amostra de quinze delas.

Atribuiu-as desta forma: ao primeiro prato, sete peças de fruta; ao segundo, "por exemplo, sei lá", cinco; e, ao terceiro, "vamos admitir" três. Tudo muito cândido e descontraído, como se do mais natural do Mundo se tratasse.

O senão desta aparentemente improvisada e ingénua distribuição reside, todavia, no facto de, ao primeiro prato, ter feito corresponder a quantidade de docentes que, na amostra, seria classificada com excelente (sete); ao segundo prato, a que obteria muito bom (cinco); e, ao terceiro, quem teria obtido, apenas, bom.

- x -

Dois vícios lógicos e objetivos logo saltam à vista, por dizerem bem do descoco com que estas demonstrações são feitas, e da irremediável fragilidade de uma argumentação eivada, quer de insanável erro no pressupostos de facto, quer de notório e despudorado viés.

O primeiro vício consiste na patente falta de correspondência, com a realidade, dos pesos atribuídos a cada classe, já que, seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, se mostra desrazoável classificar como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores, o que, entre outros males, desde logo desvirtuaria o próprio conceito de excelência.

Excelència é a qualidade daquele que se destaca dos restantes, do quase perfeito, do virtualmente inigualável, definição universalmente aceite e que, inquestionavelmente, pulveriza qualquer tentativa de vulgarização em que se procure confundir tão raro e sublime nível de desempenho com outro de mera normalidade.

Por muito bom se designa, por sua vez, aquele que se não limita a demarcar-se, em algum grau, do normal - como acontece com o simplesmente bom -, mas que, embora sem atingir um patamar de excelência, o faz de forma suficientemente expressiva para merecer que o adjetivo qualificativo seja elevado a um grau superlativo - o que também pressupõe uma escassez assinalável, na medida em que se aproxima do topo da escala.

Por si só, este escalonamento tornaria evidente que, a menos que passemos a atribuir, a excelente e a muito bom, os significados quase opostos dos atuais, a distribuição proposta na conferência de imprensa é, meramente, anedótica e pensada para consumo de pessoas suficientemente elementares para, com tamanha parvoíce, não ficarem incomodadas; não, seguramente, para docentes dotados do sentido crítico indispensável a quem trabalha para um ministério que se propõe educar.

Como se não bastasse a pouco invejável fase que a nobre profissão atravessa - com uma carreira que se afigura pouco motivadora para aqueles que, com qualidade, brio e dedicação a exercem -, pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve, o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente, colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?

Ter-se-á, outrossim, o improvisado comediante esquecido de incluir os pratos de laranjas correspondentes às restantes três classes do SIADAP: suficiente, medíocre e mau? Ou será que a qualidade dramaticamente elementar da aprendizagem manifestada pelo ror de alunos que acaba, quase analfabeto, o ensino secundário permitirá, paradoxalmente, concluir que não existem, em Portugal, professores com desempenhos suficientes, medíocres e, muito menos, maus?

Considerará a dita pessoa ter, com tão triste espetáculo, prestado um serviço útil e digno aos seus representados, cuja inteligência, afinal, ali apenas foi, de alguma forma, insultar? Ou serão os argumentos disponíveis tão escassos e débeis que se torne necessário atirar para a frente com o folclore para, em desespero de causa, tentar impressionar? É, pelo menos, a ideia com que se fica, queiramos ou não...

Ou tratar-se-á, mais simplesmente, do reconhecimento da completa incapacidade para, de forma minimamente elaborada, sobre esses argumentos discursar?

Tendo presente que "a qualidade da expressão verbal consiste em ser claro sem cair na banalidade", a ser a última a razão, a situação reveste-se de singular gravidade, dado que tal incapacidade comunicacional residirá em alguém que, não nos esqueçamos, além da tal lista de pomposos cargos é, também, professor. Ou foi? Ou já se esqueceu de que foi?

Que exemplo dá aos alunos um docente que se vê forçado a recorrer a um espetáculo destes, que muitos eles não deixarão de ver, para fazer passar uma mera reivindicação salarial?

Que classificação ser+a de atribuir ao desempenho de um comunicador destes, que prefere refugiar-se na vulgaridade de quem entende que o gesto é tudo, a primar por alinhar devidamente as ideias e, de forma articulada e minimamente elegante, com elas saber impressionar?

Suficientemedíocre ou... mau?

* *
Bem, mas isto é nada, quando comparado com a epidemia de palavrões - ou de um certo palavrão - que por aí grassa graças a um desajeitado comentador da guerra, que não sabe quando deve ficar calado.

quinta-feira, 31 de março de 2022


Resiliência ou Ignorância?

"Sou resistente
se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar.
Sou resiliente
se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar
"

"Se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa,
como designar a tal capacidade de recuperação?
"


Internet Popularucha
Encontramos frequentemente, por essa Internet, n sítios que dizem ensinar cultura, como tal parecendo entender a mera repetição, por vezes em tom desnecessariamente popularucho, daquilo que, noutros, facilmente se encontraria com substancialmente maior qualidade e, sobretudo, com a devida e consistente fundamentação.

Além de popularucha, a linguagem utilizada aparece, por vezes, de forma descaradamente evidente, como pensada para atrair leitores menos informados mas mais sensíveis aos apelos mediáticos - o que até poderia resultar num contributo válido para a formação de menos instruídas camadas da população, - bem como para a exaltação mais ou menos narcísica de quem por lá escreve e se não coíbe de pespegar, em dimensões particularmente generosas, a sua imagem em fotografias do tipo passe, obtidas, às tiras para recortar, nas máquina automáticas Photomaton.

Em lugar de prestar esse contributo válido, no caso dos textos em que dizem abordar questões da língua portuguesa, leva-os, bem pelo contrário, o mediatismo excessivo a evidenciar o erro em lugar da palavra ou expressão correta,  problemática que foi, recentemente, aflorada num texto, publicado pelo blog Cota Máxima*), cuja leitura recomendo.

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Ora, legítimo seria esperar que se ocupassem, pelo menos, estes n sítios - n, porque são muitos... -  de averiguar a exatidão dos significados que ensinam como sendo, numa classificação inaceitavelmente subjetiva, as 25, ou as 10, ou as 15 palavras mais qualquer coisa da língua portuguesa, em lugar de comprometer, de forma ainda mais séria do que aquela com que, a cada passo, nos defrontamos, o parco conhecimento da língua portuguesa detido pela generalidade da população.

A par da narrativa, da performance, das geografias, do elencar, do viral, do incontornável e dos restantes membros da vasta família, resiliência vem-se revelando como um dos termos cuja utilização  uma cada vez maior quantidade de pateticamente presumidos oradores e supostos escritores parece julgar que os eleva social e culturalmente, quando a torto, a direito, a despropósito e ad nauseam, a incluem nas mais elementares orações. 

Não será, assim, de estranhar que, no meio de algumas ou muitas outras coisas bizarras encontradas nesses n sítios de cultura, tenha, num deles, deparado, para o termo resiliência, com o significado de  lutar, não desistir, ser otimista e superar obstáculos e outras coisas que tais.

Em lugar de, como de um sítio dito 'de cultura' poderia esperar-se, limitam-se, assim, a papaguear, de forma absolutamente acrítica, o significado do termo originariamente utilizado pela física do qual, abusiva e erradamente, a psicologia se apropriou.

Como já, noutro texto aqui ironizei, resiliência, apenas ao de leve se parece com tal definição: resiliência é, antes, a capacidade de, após sofrer um impacto ou tensão, um material recuperar a sua forma original - como, no quotidiano, observamos, por exemplo, num elástico ou numa mola.

Aplicado à psicologia, o termo resiliência apenas poderia, assim, corresponder à capacidade de recuperação após um impacto ou tensão potencialmente nocivos da estabilidade emocional de uma pessoa. Não é, pois, confundível com resistência, que, essa sim, define a capacidade de um material resistir às tensões e impactos antes de começar a deteriorar-se ou a alterar a forma, ou de uma pessoa resistir antes de, baixando os braços perante os desafios se deixar afetar pela adversidade com que se depara ou lhe é imposta.

Clarificando: sou resistente se resisto a deixar-me quebrar por impactos ou tensões com que outros me vêm desinquietar. Sou resiliente se, tendo acabado por ceder perante a adversidade, tiver a capacidade para dela inteiramente recuperar.

Trata-se, inequivocamente, de conceitos e de situações bem diferentes, afigurando-se absolutamente descabido sustentar que, utilizar uma ou outra... tanto faz!

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Já aqui escrevi, a propósito do sexo e do género, sobre a apropriação, por parte das ciências sociais, de termos utilizados por outras ciências ou disciplinas, assim lançando nos espíritos uma enorme confusão. Trata-se, ao que tudo parece indicar, de um comodismo excessivo, de um aproveitar o que já existe sem muito pensar no assunto, de uma falta de exigência de rigor vocabular, de uma inaceitável displicência com a comunicação que muitos dizem ser tão cara e importante, a mesma comunicação que não param de enfeitar com palavras caras mas vazias de significação.

A apropriação, pela psicologia, do termo resiliência para exprimir algo que resistência muito bem exprime, não passa, assim, de mais uma tentativa de complicar o que é simples; de confundir o que é claro; de enfeitar o que é linear, exaltando a vaidade própria - e provavelmente negada... - de quem opta por uma expressão vocabular cada vez mais barroca e ridícula, em detrimento da qualidade do discurso, da propriedade da expressão, da precisão na compreensão, em suma, minando uma comunicação que se quer pura e exata; pelo menos, tanto quanto razoável e possível, no meio de toda esta indefinição.

Legítimo será, naturalmente, por que razão haverá alguém de, sobre este assunto, aceitar como bom o que aqui defendo, e não aquilo que os reputados linguistas e cientistas fazem e dizem.

Ora, a resposta é bem simples, e arrima-se em dois pilares essenciais:

  • o pilar linguístico, que assenta na imperiosa necessidade de, para nos entendermos e fazermos entender, não apenas procurar eliminar cada um dos múltiplos focos de ambiguidade que o idioma foi gerando e desenvolvendo, através da ignorância e do facilitismo, da indiferença por tudo quanto, como um idioma, não é visível, não rende euros ou votos, ou prestígio, ou - pensam alguns - status social;

  • o pilar lógico, que torna evidente ao mais distraído que, se ambos os termos, resistência e resiliência, significam a mesma coisa, como designar a capacidade de recuperação?
Sem apresentar fundamentação que, literalmente, arrase qualquer destes alicerces, não será fácil convencer espíritos exigentes e mentes informadas da justeza da utilização da já estafada resiliência para, a propósito de tudo de nada, referir algo que resistência perfeitamente define, sem necessidade de elaborados estudos ou rebuscadas  e pomposas interpretações.

Resistência, qualquer aluno da instrução primária sabe o que é. Resiliência, pelo contrário, é um termo de cujo verdadeiro significado muitos que o utilizam nem desconfiam; e, falar sem saber o que se diz, não será, propriamente, a mais eficaz e fluída forma de comunicar.

Capacidade de RESISTIR Resistência Resistente
Capacidade de RECUPERAR Resiliência Resiliente
Ato ou efeito de RECUPERAR Recuperação -

Primeiro, procura-se resistir. Se não resistimos, mas somos resilientes, depois de quebrar, recuperamos. Uma vez recuperados, voltamos a procurar resistir a novos impactos, e assim sucessivamente.

Temos, assim, um dito PRR, um Plano de Ato ou Efeito de Recuperar e de Capacidade de Recuperar. Para aguentar tolices destas, é, de facto, necessária muita... resistência.

* *
Eis, pois, um bom exemplo de que, na língua portuguesa, como em tudo na vida, não é verdade aquilo que, pelas mais diversas razões, muitos querem fazer-nos crer: que "Tanto Faz"!

Visando, entre outras coisas, alertar para o facto, "Tanto Faz!" é, precisamente, o título do primeiro artigo publicado aqui no Mosaicos em Português.



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LÍNGUA PORTUGUESA

sábado, 8 de janeiro de 2022


O Português não Gosta da Democracia

"Se a educação é a matéria-prima da democracia, o voto é a estrutura, o que lhe dá forma. Quando a maior parte dos cidadãos com capacidade eleitoral repudia o direito ao voto, deixamos de estar numa democracia, deixamos de ser, efetivamente, governados pela vontade popular"

"Não ir votar, podendo fazê-lo, é um claro sinal, não apenas de egoísmo, mas de estupidez, de boçalidade, de iliteracia. Não importa quantos canudos em casa se tenha, nem quantas loas se cante ao sublime ideal da democracia"


Democracia - Regime
No momento em que rabisco estas linhas que vêm na sequência do texto do passado Sábado*), reza a Wikipedia que "Democracia *) é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal".

Goste-se ou não da Wikipedia, olhemos, ou não, para ela como um referencial com algum rigor e a possível validação, será difícil negar que a definição é admirável em toda a sua simplicidade, clareza e precisão.

Aplicada ao caso português, onde vigora uma democracia representativa, significa ela que o regime, o Estado, as pessoas, nós, todos esperam que decidamos, através do voto popular universal, a quem iremos conferir mandato para tão importantes funções.

Voto universal, mas não de todos. Dantes, porque nem todos tinham o direito de votar, agora, porque apenas o exercem aqueles que se levantam da poltrona para o fazer; e são cada vez menos, como insistem em fazer-nos ver os números da abstenção. A COVID não é desculpa, a partir do momento em que quase todos fazem a sua vida normal, e tanta gente por aí anda em grandes eventos desportivos e outros de muita animação.

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Embora as circunstâncias e a legislação de então fossem outras, comparando os 16,7% da taxa de abstenção nas eleições de 1976 com os 51,4% das mais recentes, em 2019*), poucas dúvidas podem restar quanto à atual falta de empenhamento da maior parte dos possíveis votantes em cumprir o dever cívico que sobre eles impende.

Paradoxalmente, nada impede quem não vota de não parar de reclamar, depois. É vê-los, por tudo e por nada, lastimar-se de violações de direitos, liberdades e garantias que, num regime político não democrático, muito dificilmente veriam reconhecidos, mas que nem mereceram o imenso incómodo de uma deslocação a uma assembleia de voto. Mesmo agora, que nem é época de passeatas ou de mergulhos no mar.

Nada disto é novo e, se nada for feito - mas, o quê?... -, chegaremos a um ponto em que não haverá retrocesso, já que a situação não parará de se agravar.

Intelectualmente menos provido
Mesmo antes de chegar esse dia, não custará ao mais desatento ou intelectualmente menos provido entender que, com tanta gente a demitir-se daquilo que, por qualquer concidadão, lhe é legitimamente exigível para que o sistema funcione - o tal sistema de que todos se queixam... -, os resultados eleitorais se tornam cada vez mais vazios de conteúdo: cada vez mais não correspondem à efetiva vontade coletiva da população, sendo a cada dia maior o risco, ou a certeza já, de que, se a taxa de abstenção voltasse aos tais 16,7%, a composição da Assembleia da República seria bem diferente, e até o governo poderia, à direita ou à esquerda, ficar em diferentes mãos.

Se a educação é a matéria-prima da democracia, o voto é a estrutura, o que lhe dá forma. Quando a maior parte dos cidadãos com capacidade eleitoral repudia o direito ao voto, deixamos de estar numa democracia, deixamos de ser, efetivamente, governados pela vontade popular.

Cada vez mais, os chamados eleitores, não o são, não votam: preferem ficar em casa a ver, na televisão, o que resultou  do voto dos que, por eles, assumiram a responsabilidade por uma escolha que os primeiros olham, afinal, com a mesma importância, interesse e dignidade que a votação de um festival da canção ou evento similar.

Esquecem-se de que não ir votar, podendo fazê-lo, é um claro sinal, não apenas de egoísmo, mas de estupidez, de boçalidade, de iliteracia. Não importa quantos canudos em casa se tenha, nem quantas loas se cante ao sublime ideal da democracia.

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Assentemos, pois, em que a maior parte dos cidadãos portugueses não gosta da democracia; ou, pelo menos, não respeita a democracia. De que gosta, então?

O Partido Chega! sabe-o bem, como bem o sabe o seu Chefe Máximo. Os portugueses gostam, de facto, é daquilo que os faz transferir a escolha diretamente de decadentes e não democráticos partidos de extrema-esquerda ou de partidos maiores e ainda ditos democráticos mas minados por uma imparável tendência para a corrupção -, para incipientes e não democráticos partidos de extrema-direita. Assim, de repente, de uma vez só, como há dois anos aconteceu*) e se prepara para, ainda com maior e mais preocupante expressão, voltar a acontecer.

Não será despropositado lembrar as sábias palavras de quem disse que "um governo seria eterno com a condição, de todos os dias, oferecer ao povo um fogo de artifício, e à burguesia um processo escandaloso". Qualquer político português que prefira esta receita às tradicionais longas e sofisticadas parlengas que ninguém ouve ficará cada vez mais próximo de ganhar uma eleição.

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Partido Chega!
Mas há mais quem saiba do que gostam os eleitores portugueses: o presidente do partido em que o chefe do Chega! anteriormente militou.

Nada tendo, decididamente, a ver com qualquer coisa que se pareça com a extrema-direita, o Presidente do PSD há muito aprendeu que aquilo que, noutras terras, se exprime pelo equivalente à palavra portuguesa demagogia corresponde ao muito nosso conceito de democracia. Essa democracia desiludida, trôpega, quase inerte, que se arrasta sob a alçada de políticos de missão indefinida que procuram, a todo o custo, manter-se alcandorados num poder que de competência e de autoridade pouco ou nada já tem.

Bem o sabendo, optou o dito Presidente por um estilo de linguagem popularucho, por fazer comentários e observações de cariz quase populista com uma ou outra gafe à mistura; por apresentar, ainda ontem, o programa eleitoral falando em estilo informal, espontaneamente, apenas com recurso pontual a tópicos; por recorrer à insinuação, por procurar estimular de qualquer forma as mentes atrofiadas dos tugas mais ávidos de escândalos e de fogos de artifício. É neles, e não nos eruditos e sofisticados -ólogos que, pouco sabendo do que vale a pena saber e nada sabendo do como chegar às massas, ganham rios de dinheiro para mutuamente se copiarem, comentando tudo e mais alguma coisa baseados, unicamente, na sua supostamente erudita mas raramente fundamentada opinião.

"The history of the World is the history of the triumph of the hartless over the mindless" e, neste cantinho da Europa, quem quiser, efetivamente, subir nas urnas há de cuidar de comprazer as hordas de medíocres que se deleitam com a desgraça dos outros. Há de tratar de cativar, sobretudo, essa gentinha inconsciente, oca, falha de ideais, de vontade, de interesse até pela identidade de quem decide o seu destino: essa gente do diz-que-disse e dos cochichos, que passa o tempo a criar formas de sujar o mais possível a roupa que o vizinho acabou de pôr a secar.

A educação e o ensino ministram-se em sede própria, e não em campanha eleitoral. Não é, assim, eficaz nem política ou economicamente razoável insistir em fazer uma campanha elaborada, sofisticada; deve, antes, ser vazia e barulhenta, vocacionada para uma mole humana que outra coisa não sabe apreender ou apreciar.

Isto, o Presidente do Chega! não tardou a entender e, dessa forma, lá vai, apesar da indisfarçável cacofonia e dos inconfessáveis ideais que as suas vibrantes palavras escondem, conseguindo algum ascendente num ou outro debate eleitoral.

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A propósito da insinuação há uma dúzia de dias feita pelo Presidente do PSD, de que a captura de João Rendeiro*) na África do Sul estaria, de alguma forma relacionada com a proximidade do ato eleitoral que se avizinha e, implicitamente, com a necessidade de o Governo apresentar resultados que facilitem a reeleição, contra o dito Presidente muita gente se insurgiu; e com razão, já que a insinuação não tinha em que, racionalmente, se sustentar. Mesmo que tivesse, seria praticamente impossível de provar - apesar de, se a juntarmos ao mais recente e tão oportuno sucesso na aprovação do plano de recuperação da eterna TAP, alguns maldizentes poderem começar por aí a sussurrar...

Houve, no entanto, quem chegasse ao ponto de vaticinar que, com essa atitude, teria o Presidente condenado o PSD à derrota no ato eleitoral.

Não sei como: pois não são, precisamente, as insinuações torpes e escandalosas que fazem viver, que fazem vibrar as hostes eleitorais portuguesas? Não é a trampolinice, a acrobacia fácil, a desfaçatez além do admissível que granjeia simpatias? Que as atrai muito mais facilmente do que belas promessas que todos sabem falsas, pouco sinceras e muito provavelmente inexequíveis?

Quem acredita, ainda em programas políticos jamais cumpridos, em promessas vãs papagueadas ao vento, em palavras de ordem sem sentido, desordenadas, desconchavadas? Pois não são os sound bytes, as bocas muito mais giras, muito mais engraçadas? O tipo até tem piada, aquele é que sabe! Chegou para eles! Este é que vai ! Vamos votar nele. Bora lá!

Acaso não é o folclore político que enche os noticiários, as páginas dos jornais? Quantas ideias dignas desse nome fazem ir às urnas aquela massa caótica e inerte de espetadores passivos e maldicentes apenas ansiosos por ler ou ouvir destratar ou maldizer?

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Não, o PSD não perdeu, naquele dia, as eleições. As pouco elegantes charlas do seu dirigente máximo, o seu quiçá enganador à-vontade, o seu premeditado estilo popularucho, alternando com uma ou outra pose mais formal, são a receita ideal - para não dizer a única exequível - para garantir uma vitória eleitoral nesta terra de eleitores ignorantes, sós, desiludidos, tristes e macambúzios que dão tudo por uma por uma vitória, mesmo pírrica, do clube, do partido, seja lá do que for. Até, por uma piada ordinária, sem graça, partilhada numa rede social qualquer, que, por uns segundos, pelo menos, os faça sorrir.

Se o Partido não ganhar, será por pouco. Talvez, até, por muito pouco. Os votos que perder não serão, seguramente, por inabilidade política, já que a habilidade dos outros, mesmo a do mais habilidoso, é isto que se vê.

Serão, quando muito, esses votos perdidos os daquela meia dúzia que ainda reage mal à demagogia.

Serão, enfim, os dos cada vez menos portugueses que com a vacuidade se arrepiam, e que verdadeiramente, respeitam e honram a democracia que todos dizem defender.

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terça-feira, 28 de dezembro de 2021


Títulos que O não São


Concordará o caro Leitor com a minha interpretação de que, a um título bombástico como este, se seguiria uma notícia sobre uma queda em desgraça do Juiz, ou de uma ação disciplinar séria com suspensão à vista, ou qualquer outro evento digno de notícia, mormente antecedida de um título de tamanho impacto.

Desengane-se. Como poderá confirmar no link que antecede o asterisco acima, continuação da leitura logo esclareceria que se trata, apenas, de redistribuir processos a cargo de um outro juiz por estar este exclusivamente dedicado a dois outros de maior exigência; e, logicamente, um eventual sorteio que inclua os novos magistrados recentemente admitidos*) poderá "resultar na perda de processos que estão, neste momento, com Carlos Alexandre", o que não passará de uma consequência natural do facto de, no Tribunal Central de Instrução Criminal existirem agora mais juízes pelos quais repartir a carga de trabalho.

Não se trata, obviamente, de uma notícia falsa. Mas, será coisa tão insonsa realmente uma notícia?

Tampouco estamos perante um título falso. Mas não se tratará de um título que viola a mais elementar fronteira da racionalidade e, até, da legitimidade, da boa fé?

Se o objetivo de títulos sensacionalistas com este for levar pessoas a adquirir jornais impressos ou a aceder a conteúdos eletrónicos a fim de, por qualquer dos processos, gerar receitas, até que ponto será a atitude de quem, impune mas deliberadamente escolhe um destes títulos, diferente daquilo que é geralmente considerado publicidade enganosa?

Com uma agravante, claro: enquanto a publicidade relativa a produtos indiferenciados é da responsabilidade de empresas não vinculadas a qualquer nobre missão que não seja a de obter lucros para quem nelas investe - e não estão protegidas por qualquer estatuto especial ou estão vinculadas a qualquer código de ética além daquele que, mais ou menos intuitivamente, vincula cada um de nós -, os jornalistas estão, supostamente, incumbidos da nobre missão de informar objetivamente, com verdade, sendo estes pressupostos parte importante dos privilégios que o Estado lhes concede para que possam, em liberdade, desempenhar a sua função.

Até que ponto será, então, legítimo a um órgão de comunicação social estar no mercado com a mesma postura que qualquer indiferenciado fabricante de macarrão?

Aqui fica a questão...



terça-feira, 21 de dezembro de 2021


Liberalismo ou Encapotado Negacionismo?

De entre tantos outros defeitos herdados da educação que recebi, ressalta o da convicção de que a nossa liberdade termina precisamente onde começa a dos outros. Ou, como já aqui citei, que "a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um".

Corolário inevitável deste facilmente compreensível pressuposto, é que o liberalismo que extravasa a fronteira precisa em que entramos no domínio do interesse social legítimo dos nossos concidadãos não passa de incitamento à mais abjeta e caótica anarquia, ao primado do egoísmo e do egocentrismo, à irracionalidade de quem pretende, à viva força, que a liberdade individual de qualquer um - ao que quer que seja e por mais doentia e desvairada que ela seja - se sobrepõe, sempre e incondicionalmente, a qualquer esforço sério e socialmente legítimo do Estado de direito na defesa dos interesses da população.

Esquece-se, porventura, quem o defende de que, se ele e os outros acérrimos defensores circulam em segurança pela via pública e se sentem seguros nos seus lares, tal se deve à ação do Estado na perseguição, detenção, julgamento, condenação e - quando não os deixa fugir... - detenção de quem comete crimes, designadamente contra as pessoas e contra a propriedade, em tais atividades estando o mesmo Estado, afinal, a fazer precisamente aquilo que dele se espera e que é, ao fim e ao cabo, parte importante da sua razão de ser.

Olvidam, também, essas pessoas que, tal como a lei penal considera criminoso quem mata, quem fere, quem, de alguma forma, causa prejuízo grave a outrem, criminoso é, também, quem causa ou se arrisca a causar-lhe sério dano à saúde. Isto, seja o agente um mal intencionado e mal formado ser humano  ou um virus na sua atividade legítima e habitual.

Pretender, mesmo sem assumir contornos negacionistas, que cada indivíduo tem a liberdade de escolher ser vacinado ou não quando estão em causa a eficácia, a eficiência e, mesmo, a sobrevivência do Sistema Nacional de Saúde - não apenas no tratamento de doentes com COVID-19 mas no dos que padecem de qualquer outra doença - é ultrapassar todas as linhas encarnadas do que é natural, legítimo, razoável; é ultrapassar o mais liberal limite da própria definição de humanidade.

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Dar eco, como há dias deu o jornal Observador, a um arrazoado de infindáveis aberrações*) por parte de uma representante da assim chamada Oficina da Liberdade*) que sustenta que se torna cidadão de segunda quem vive em países que, à falta de alternativa, se vêem constrangidos, para evitar a propagação da pandemia, a decretar a vacinação obrigatória não estará, propriamente, a agir no exercício da liberdade de imprensa, antes talvez a propagar ideias perigosas, bem próximas de um acéfalo e parolo negacionismo e que, numa altura tão crítica para estas andanças como é a do Natal, se arriscam a prejudicar gravemente o mais legítimo e sagrado interesse nacional.

Pretender, por exemplo, que "por toda a Europa, parece renascida a ideia de que quaisquer medidas adotadas pelo poder político, em nome da saúde pública, são legítimas, mesmo que sejam absurdas, como é o caso da irónica divulgação de dados pessoais de saúde para aceder a um restaurante de fast food" diz bem da verdadeira natureza das ideias expressas, quando é certo e sabido que, para aceder a qualquer restaurante, basta apresentar um certificado digital a uma aplicação que apenas responde "Válido", sem especificar se o é por a pessoa ter contraído anteriormente a doença, por ter sido vacinada ou por qualquer outra razão admissível. Ou seja: sem revelar qualquer dado pessoal de saúde, mas apenas o estado de conformidade ou de inconformidade perante uma lei que vai de encontro ao mais básico e universal interesse nacional.

Como pode, de facto, alguém pretender que é do interesse ou do bem-estar de qualquer indivíduo estar permanentemente sujeito a uma contaminação potencial?  Como pode alguém de boa-fé alegar que a administração de uma vacina viola a dignidade humana? Ou que está a ser discriminado alguém impedido de entrar num restaurante por não apresentar a prova possível de que tudo fez para não contaminar outros?

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O apodado "certificado digital da discriminação" não passa de um "certificado digital da diferenciação", apenas condenável por aqueles que defendem a liberdade de tudo e a qualquer preço, não hesitando em, a contrario, violar a própria Constituição que dizem defender, já que insistem em considerar tudo igual a tudo. Mesmo ao que, manifestamente, por natureza ou por estado é tudo menos igual.

A manipulação da comunicação com os espíritos de leitores menos críticos ou menos preparados a troco de algo que, num tal quadro, poderá ser facilmente confundido como ânsia de protagonismo ou de promoção social ou profissional parece pouco prudente, nada profícua e, até, contraproducente para a imagem própria de alguém que ciosamente se possa estar a procurar promover ou socialmente alardear.

A defesa dos interesses e direitos de cada cidadão é fundamental para evitar abusos e desmandos como aqueles que durante décadas conhecemos em Portugal. Mas é pernicioso e atenta contra os mais elementares e nobres propósitos de qualquer organização societária insurgirmo-nos contra aquilo que, objetiva e fundamentadamente, a Ciência e os seus representantes consideram uma precaução essencial.

ª ª

No âmbito da defesa dos interesses e direitos, até que ponto será lícito o Estado conceder gratuitidade de tratamentos a pessoas que, simplesmente, se recusam a tomar as precauções consideradas essenciais a limitar a propagação da doença?

(continua aqui)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021


Joacina Katar Moreira e o Elogio da Oligofrenia

"Razões fortes, compromissos claros".

Esta mensagem num cartaz do Bloco de Esquerda terá provocado na rede social Twiter, a mensagem "A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava*).

Salvo o devido respeito, a imbecilidade da coisa apenas é comparável à manifesta ignorância vocabular de quem a produziu, bem como à pobreza gramatical evidenciada pela construção frásica pseudo-moderna e pseudo-progressista do  seguido do pretérito imperfeito do indicativo pretendendo significar que já se poderia isto ou aquilo (neste caso, já mudava, em lugar da expressão correta já se poderia mudar. Ou, na forma popular, já se podia mudar).

Claro, significando evidente, preciso nada tem, em sentido estrito, a ver com claro, no sentido de luminoso, pouco escuro. O adjetivo é o mesmo, mas a utilização que dele é feita num e noutro caso quase as torna palavras homónimas, apenas o não sendo na medida em que a classificação gramatical é a mesma.

Não há, assim, como considerar que se trata de um ataque aos ideais anti-racistas, mais a mais vindo de quem vem. Não passa de uma patetice, de uma alarvidade, da tentativa desesperada de quem politicamente se arrisca a desaparecer para manter um protagonismo que não merece, se é que alguma vez mereceu.

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O aproveitamento abusivo de tudo quanto cai ao alcance dos nossos olhos para o distorcer, para o enviesar à medida da conveniência de uma causa ou argumentação a ele completamente alheia apenas tem como resultado imediato a evidenciação do vazio daquilo que se defende e da fundamentação de suporte que temos para lhe oferecer. No presente incidente, apenas serve para menorizar a nobre causa do racismo, que, é caso para dizer, bem melhores defensores poderia merecer.

Alguém me dizia, há tempos, que para se obter um grau de mestre ou de doutor é mais necessária capacidade de trabalho do que inteligência. Dir-se-ia que alguns parecem profundamente empenhados em o demonstrar...

Se certos doutorados que por aí há trabalharam ou não, jamais saberei. Mas da oligofrenia que caracteriza algumas das suas afirmações não será difícil convencer.

Outros artigos polémicos sobre
POLÍTICA
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NÃO PERCA!

quarta-feira, 10 de novembro de 2021


Vergílio Ferreira


"Ser tímido é dar importância aos outros. Ser desinibido é dá-la a si próprio.
Mas normalmente o tímido tem-na. O desinibido não"

Vergílio Ferreira*)
Conta Corrente 5*)  


Parece escrita a pensar em certos cada vez mais desinibidos e insignificantes apresentadores de programas televisivos de consumo corrente, com guião à base de gritos e gargalhadas, sem nada acrescentar à pouco instruída plateia que se compraz na mais vazia e embasbacada contemplação.






quarta-feira, 3 de novembro de 2021


Erle Stanley Gardner


Stanley Gardner
"Não é preciso ver um homem, olhar o seu rosto, apertar-lhe a mão e ouvi-lo falar, para o conhecer. Basta observar como se comporta. Podemos vê-lo através dos olhos dos outros"

"You don’t need to see a man, look in his face, shake his hand, and hear him talk, in order to know him. You can watch the things he does. You can see him through the eyes of others"

Erle Stanley Gardner*)
The Case of the Silent Partner


Não sei porquê, ao ler isto, vieram-me à memória aquelas carantonhas inenarráveis que, durante semanas a fio, diretamente - e não através dos olhos dos outros - sempre temos de contemplar em milhares de cartazes da campanha para as eleições autárquicas.

Mas não são, apenas, feios: vê-se logo, naqueles olhares fixos, vazios, o real grau de capacidade e de competência para gerir nem que fosse a mais insignificante autarquia, atributos que, aliás, os debates entre candidatos tragicamente confirmam.

Há também aqueles com o tradicional ar de chicos espertos, de candidatos à perda prematura do mandato, que só não é mais rápida porque, no nosso Torrão Natal, a justiça é lenta como a alguns convém, e o sistema judiciário vive à míngua de esmolas que lhe são lançadas pelos sucessivos orçamentos do Estado.

O arquivo Ephemera*) conserva um vasto acervo, cuja visita recomendo, de imagens de cartazes ilustrativos das mais recentes campanhas eleitorais autárquicas. Diz-se que, quem vê caras, não vê corações, mas até uma vista de olhos superficial por aquela galeria nos fará entender a profundidade do pensamento de Stanley Gardner sobre o assunto...

Não se assustem!...

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Por outro lado, o que vemos através dos olhos dos outros, designadamente dos da comunicação social, diz-nos muto, sobretudo acerca do caráter, da personalidade, da eventual bondade cívica das figuras públicas de políticos, de desportistas, de comunicadores, de toda essa gente que não conhecemos pessoalmente mas, mesmo assim, muitos de nós idolatram, talvez não tanto por aquilo que parecem ser, mas pelo bem que esperamos que nos possam trazer ou fazer.

Já parece preocupar-nos cada vez menos o que outros leiam de nós através daquilo de que, pelo nosso comportamento, se possam aperceber, preferindo, quantas vezes, mostrar o que comprámos, o que temos e que, na maior parte dos casos, connosco pouco ou nada tem a ver.

Vivemos, em suma, numa época de primado da imagem pessoal e institucional, quase sempre manipulada, logo, desprovida de significação válida, resultando num mero e desprezível engodo, num logro onde já só cai mesmo quem preferir fazer de conta que não está a entender.

O que pretendemos, afinal: ser, ou... apenas parecer?

sábado, 30 de outubro de 2021


Um Momento verdadeiramente Singular

"Nem tudo o que acontece é notícia, nem pode, objetiva e eticamente,
ser transformado em notícia simplesmente porque… não há notícias"


Chumbo do Orçamento do Estado para 2022
Há coisas de que nem sei como falar...

Não, não é do chumbo do orçamento, nem das eleições que talvez aí venham, nem da inanidade do resultado previsível das mesmas - a menos que uma coisinha má dê aos eleitores portugueses, a ponto de votarem pela destruição do pouco que ainda nos resta de valores, de princípios, enfim, de algum resquício de moralidade que um governo filisteu de uma sociedade maioritariamente de filisteus possa ter deixado, e ao qual, quando tudo der para o torto, nos possamos, ainda, agarrar.

Não. O que aqui me traz é um facto insólito, um “momento único“, “absolutamente fora do comum”, como o classificou o pivot do Jornal das 8 da TVI24 da passada Quarta-feira, dia em que a proposta de Orçamento do Estado chumbou logo na votação na generalidade.

Honra seja feita à comunicação social que temos, se não fosse seu o olhar atento e arguto, teria este acontecimento de extrema importância política e social corrido sério risco de ter passado despercebido e de, muito provavelmente, acabar por nunca chegar ao conhecimento dos eleitores lusitanos.

Tratou-se, no entanto, de um evento da maior relevância para a democracia, tal como todas as anteriores ocorrências do mesmo fenómeno as quais, sabe-se lá porquê, a nenhum órgão da comunicação social ocorreu, no entanto, relatar: o Presidente da República foi pagar umas contas no Multibanco!

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É inaudito!

Acabava a proposta de orçamento de ser rasgada no Parlamento; acabava o País de ficar condenado à mais abjeta miséria, a viver, sabe-se lá por quanto tempo, dos misérrimos duodécimos do generoso orçamento do ano anterior; acabava de ser seriamente posta em causa a estabilidade do pantanal económico e social em que esbracejamos, e o Presidente da República Portuguesa aproveita para, enquanto não chegavam os convidados para jantar, sair do Palácio de Belém pela porta lateral para ir cumprir as suas obrigações para com um ou outro fornecedor, e voltar a entrar, desta vez pela porta principal (isto das portas deve ter um qualquer significado oculto, para os repórteres, que ainda não consegui discernir...).

Como é possível? "Que momento absolutamente fora do comum!", como não conteve o extasiado apresentador - como chamam, agora, aos locutores.

Imprevisto Ocorrido no Parlamento
Perante tamanho e tão dramático imprevisto ocorrido, nesse mesmo dia no Parlamento, como pode não ter o Presidente permanecido triste, acabrunhado, num canto escuro da residência oficial, a roer as unhas enquanto consumia as meninges a pensar no que fazer, à procura de uma solução para tão inesperado desenlace?

Será que teve, até, o desplante de conseguir tomar um café, comer alguma coisa, para se recompor do choque que não teria podido adivinhar? Terá, mesmo, continuado a respirar, enquanto todos os outros lusitanos sufocavam na imensidão da suas preciosas ansiedades?

Como tolerar tamanho desplante, que arrepiou todos os repórteres – perdão, jornalistas -,   numa altura em que as gráficas já faziam contas às existências de papel para os cartazes; em que as televisões já tinham nas telas dos computadores as reservas de publicidade para as dezenas de debates e de comentários para as semanas seguintes; em que as infalíveis empresas de sondagens esfregavam as mãos de contentamento; em que aqueles tipos que há algum tempo esperavam por um lugarzinho para entrar fosse onde fosse se precipitavam a ligar para o telefone do conhecimento político lá da terra a saber se ainda dava tempo; em que até as piruetas do jogador sete com a bola e as brejeirices da apresentadora desbocada foram esquecidas pelos habituais basbaques; em que muitos que já se julgavam bafejados tremiam de medo de que a mama do Plano de Recuperação e Resiliência acabasse por tardar, ainda mais, a começar pingar e a permitir  começar a pagar as prestações atrasadas.

No meio desta confusão toda, o que ousa fazer o mais alto magistrado da Nação? Vai, como tanta gente tantas outras vezes fez, ao Multibanco tratar de assuntos pessoais, gerando uma enorme onda de indignação!

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Mas não tem esta gente mais que fazer?

Mandaram-nos para ali, ao frio, esperar que os dois convidados para jantar com o Presidente da República chegassem, apenas para lhes filmar os automóveis e os ouvir, às perguntas, dizer nada, porque nada ainda haveria, naturalmente, para dizer.

Como, entretanto, tinham de arranjar alguma coisa com que ocupar as antenas, vá de meter o nariz onde não eram chamados, alardeando um assunto sem interesse algum e cobrindo de ridículo a estação televisiva cujos responsáveis deram cobertura a tamanho dislate, a ponto de o destacarem como primeira notícia desenvolvida no bloco noticioso do horário nobre, para gáudio dos mais elementares palermas, que vibram com estas coisas chocantes, como, para aumentar a excitação, gostam de lhes chamar.

Herman José - Miguel Guilherme
Não pude deixar de me lembrar de um trecho, já não sei de que programa de Herman José, em que Miguel Guilherme, no papel de apresentador de um qualquer telejornal, baixava as calças para exibir as cuecas do apresentador, último recurso de alguém a quem tinha sido ordenado que aguentasse os espetadores a olhar mais uns minutos para a televisão.

Ingénuos!

Acaso pensam que, antes de descer à rua, um tão mediático Presidente não teria perfeitamente visto que estavam todos especados à porta, ávidos do que quer que fosse que lhes atirasse da janela? Acaso duvidam de que foi por isso mesmo que escolheu aquele momento para ir liquidar as suas continhas lá abaixo?

Acham, mesmo, que ia perder uma oportunidade de, pedagogicamente, alertar para o ridículo daquilo que bem sabia que o seu passeio noturno não deixaria de provocar? Que não sabia estar a criar uma manobra de diversão para arrefecer um pouco o clima de excitação à volta do chumbo do orçamento? Para, habilmente, desdramatizar o chumbo?

Os experientes e muito competentes profissionais da informação caíram que nem uns patos, proporcionando um espetáculo triste de falta de discernimento e de capacidade de seleção daquilo de que vale, verdadeiramente, a pena dar conta, daquilo que é notícia. Porque nem tudo o que acontece é notícia, nem pode, objetiva e eticamente, ser transformado em notícia simplesmente porque… não há notícias.

Aqui, o facto político cedeu, uma vez mais, lugar a uma cena de telenovela barata.

As perguntas eram muito elaboradas, bem preparadas, e de complexidade tal que só o involuntário Entrevistado poderia responder-lhes: “Sabe-nos dizer, pelo menos, a que horas vai receber o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia?”, pergunta a que, evidentemente, ninguém mais no Palácio saberia responder; ou “Esta caminhada é para refletir sobre o que vai decidir?”, coisa que já estava mais do que decidida há não sei quanto tempo; ou “Para que é que serve este seu passeio aqui”, já que jamais pode ser tomado como um dado adquirido que, se uma pessoa vai ao Multibanco pagar contas, é para… consultar ou movimentar a conta bancária.

A sofreguidão era tal que, assim que o apanharam a jeito, a urgência de obter um esclarecimento cabal para a impensável ousadia presidencial levou os repórteres a atropelar-se a ponto de um deles se ter estatelado na calçada! Bem, esse, pelo menos, lá conseguiu, dessa forma, arrancar aos Presidente a única palavra que, na altura, lhe ouvimos: “Magoou-se?”.

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Mas para que perco tempo a escrever sobre coisas destas?...

Para quem pensar que exagero, termino aqui deixando, ipsis verbis, a transcrição destes três minutos alucinados:

Pivot: “Um momento verdadeiramente singular: o Presidente saiu do Palácio de Belém pelo acesso lateral da Calçada da Ajuda, acompanhado pelo seu Ajudante de Campo, e aí, naturalmente, passou pelos jornalistas que se aglomeravam para ouvir as palavras aguardando a chegada de Ferro Rodrigues e de António Costa, e que, subitamente, depararam com esta imagem única: Marcelo Rebelo de Sousa não respondeu, e o mais surpreendente estava para acontecer. O Presidente dirigiu-se a uma caixa Multibanco e efetuou vários movimentos com o cartão bancário, incluindo o que parecia ser o pagamento de contas. No regresso, entrou pela porta principal para o Palácio, deixando os jornalistas atónitos e, alguns, magoados, porque a agitação súbita levou à queda de um deles. As perguntas ficaram… por responder”.

Voz no local: “Sabe-nos dizer, pelo menos, a que horas vai receber o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia?

Voz no local: “Tem horas para receber o Primeiro-Ministro?

Voz no local: “Esta caminhada é para refletir sobre o que vai decidir?

Voz no local: “Diga-nos lá se já tomou alguma decisão, e para que é que serve este seu passeio aqui

Voz no local: “É um passeio de reflexão, Senhor Presidente?

Pivot: “Que momento, absolutamente fora do comum! A Alexandra Monteiro é a jornalista da TVI que foi surpreendida por esta manifestação presidencial. Alexandra, boa noite. Começo por perguntar se já há alguma explicação para o que sucedeu com esta saída do Presidente, e se há movimentações, porque é isso que aguardamos, efetivamente, no Palácio de Belém, esta noite”.

Repórter no local: “Boa noite, Zé. A explicação para este passeio de Marcelo Rebelo de Sousa, eu julgo que a explicação exata só mesmo o Presidente da República saberá dar. Fomos, de facto, surpreendidos. Não estávamos, de todo, à espera que, numa altura destas, depois daquilo que aconteceu no Parlamento, da seriedade do momento, víssemos o Presidente da República sair do Palácio de Belém a pé para vir fazer um pagamento ao Multibanco. Foi isso que Marcelo Rebelo de Sousa veio fazer, veio pagar uma conta, aqui no Multibanco que fica mesmo ao lado da entrada principal do Palácio de Belém. Quanto a movimentações, de certeza que Ferro Rodrigues já se encontra no Palácio de Belém, e eu arrisco dizer que António Costa poderia vir, também, nesse carro. Isto porquê? Porque a TVI sabe que António Costa e Ferro Rodrigues vão jantar com o Presidente da República e, portanto, é provável que tenham vindo na mesma viatura. Portanto, este encontro será à volta de uma mesa, à volta de um jantar, talvez para descontrair um pouco este ambiente tenso que envolveu todo este dia de votação, na generalidade, do orçamento que acabou neste chumbo”.

Caso se interesse por
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segunda-feira, 20 de setembro de 2021


Por Outro Lado...

Numa época em que o que conta é o espetáculo, em que as entrevistas de fundo parecem contar pelo impressivo tom de voz de quem pergunta, pelas filmagens por drone, pela aparente incapacidade de manter uma conversa longa e profunda, sem artifícios, sem montagens, sem tudo fazer para parecer moderno, dinânico, arrojado, diferente de tudo, vêm à memória sete anos de entrevistas tranquilas, de onde a paz e a profundidade emanam ao longo de cinquenta ininterruptos minutos da voz serena de Ana Sousa Dias e de quanto, com maestria, conseguia arrancar da caixa de segredos de convidados escolhidos, num formato que, é certo, não agradaria às assistências de hoje, mas que continha algo a cujos calcanhares hoje só muito dificilmente um entrevistador conseguirá chegar.

Alguns exemplos que pode ver aqui: Maria José Morgado, João Lobo Antunes, João Amaral, tantos outros...

(Imagem: Arquivo RTP)

sábado, 11 de setembro de 2021


INEM 112: Socorro! A Ambulância Perdeu-se!


"A Referência Exata de Local (REL) responde positivamente
a cada uma das ineficiências da extensa lista apresentada ao permitir,
de forma muito dificilmente sujeita a erro, direcionar um condutor ao ponto exato,
seja da emergência, seja da entrega de bens, seja onde determinado serviço deva ser prestado
"


1. Introdução: Caricatura

2. Enquadramento: Situação Atual

    2.1. Possíveis Fontes Humanas de Problemas na Localização de uma Morada

        2.1.1. Semelhanças na Toponímia
        2.1.2. Escassez de Sinais de Direção
        2.1.3. Confusão entre os Diversos Tipos de Artéria
        2.1.4. Indicações Essenciais Inexistentes ou Ilegíveis
        2.1.5. Dificuldade na Localização de Edifícios Isolados
        2.1.6. Síntese das Fontes Humanas de Problemas na Localização
        2.1.7. Custos Marginais Evitáveis Associados à Ineficiência na Localização

    2.2. As Limitações e os Erros na Informação das Coordenadas GPS

        2.2.1. Problemas Práticos da Referenciação das Coordenadas
        2.2.2. O que Não Tem, Mesmo, Remédio

    2.3. Síntese do Enquadramento

3. Modelo: A Referência Exata de Local (REL)

    3.1. Apresentação
    3.2. Especificação
    3.3. Confirmação da Morada por Identificação Visual do Local
    3.4. Recolha e Armazenamento dos Dados
    3.5. Processamento e Disponibilização da Informação

4. Conclusão

    4.1. Limitações, Cuidados e Sugestões
    4.2. Reflexões Finais

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1. Introdução: Caricatura

Caricatura ao Telefone
Temos bem vivos na memória os “Bombeiros de Mafamude”, farsa dos Gato Fedorento*) ao incidente ocorrido quando de uma chamada ao Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), incidente esse que acabou por se tornar paradigma da ineficiência dos serviços de urgência em Portugal.

Corria a primeira semana de Janeiro de 2008.

Na raiz desse triste episódio estava a nímia esqualidez organizacional do Instituto, que não tinha protocolo assinado com qualquer das corporações de bombeiros de Alijó*), concelho onde se deu a ocorrência.

Para agravar a situação, o sinistro aconteceu em Castedo, aldeia de cuja localização a equipa da viatura médica de emergência e reanimação (VMER, ambulância) nem desconfiava, pelo que houve necessidade de estabelecer diálogo com um descontraído e aparentemente meio adormecido bombeiro de Favaios que, durante um longo minuto, lá foi tentando explicar como a ambulância poderia chegar ao Castedo, partindo de Vila Real.

Aqui fica um pequeno excerto do diálogo, para recordar do que estamos a falar…

    “Médica - Podia-nos dar algumas indicações, então, sobre aquilo?   /   Bombeiro – Como? Como?

    Médica – Onde é que é? Se nos podia dar algumas indicações…   /   Bombeiro – (suspiro) Ora bem, eu não sei como é que lhe vou dizer… que lhe vou explicar… eeeh… aquilo chega-se ali a Alijó… aaahhhh… vai ali ao pé das bombas de gasolina…

    Médica – Sim.   /   Bombeiro – Nas bombas de gasolina em cima tem uma rotunda à esquerda… aaahhh… na rotunda corta à esquerda, que é para ir para o Intermarché, e sempre, sempre, sempre em frente é Castedo, sempre pela estrada a fora.

    Médica – É?   /  Bombeiro – É.

    Médica – Para onde, desculpe?   /   Bombeiro – Para o Castedo.

    Médica – Castedo, ok. Pronto, obrigada.   /   Bombeiro – E agora, o que é que eu faço?

    Médica – Diga?   /   Bombeiro – E eu o que faço? É preciso lá ir eu?”.

(Antes de continuar a ler, será conveniente ouvir aqui*) a inesquecível gravação
para se saber ao certo do que estamos a falar).

Conversação
A conversação com o bombeiro durou quase dez minutos, dos quais um inteiro foi gasto com a transmissão de indicações - imprecisas e com relativamente baixa probabilidade de sucesso - quanto à forma de chegar a uma aldeia no Concelho de Alijó, minuto esse ao qual haverá, inevitavelmente, que acrescentar o tempo gasto pela VMER, uma vez em Castedo, a procurar, primeiro, o Bairro e, depois, o número de polícia*) da porta onde se teria dado a ocorrência.

Não será exagero dizer que, toda esta confusão com o endereço terá custado dez preciosos minutos a uma vítima… em provável paragem cardiorrespiratória.

Isto aconteceu treze anos atrás.

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Na altura, o Ministro da Saúde admitiu que “há muito trabalho a fazer”, designadamente “cobrir o país com ambulâncias*), como se fosse essa a única falha emergente da comunicação telefónica e o facto de cobrir o País com ambulâncias valesse por si só, sem ser acompanhada da preocupação de tornar a rede eficiente no que diz respeito ao rápido e fácil acesso a qualquer local de sinistro.

Claro está que a efetiva falta de ambulâncias era, então – e eventualmente ainda será – um tema de extrema atualidade e que importava sobremaneira resolver. Mas, também não é menos certo que este tipo de falha não é transversal a todo o País, havendo zonas em que, apesar de a quantidade de veículos ao serviço ser adequada, as coisas nem sempre correm pelo melhor.

Entre as variáveis que afetam e atrasam a prestação de socorro praticamente por todo o território encontra-se a imprecisão que, pelas mais diversas razões, ocorre, quer na indicação da morada durante a chamada de emergência, quer, por causas também variadas, na anotação da mesma pelo operador do call center do Número Naional de Emergência (112), quer, ainda, na procura da localização precisa do destino por parte do condutor da VMER.

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Há algumas semanas, embora em urgência de menor gravidade clínica, uma pessoa dos meus conhecimentos que caminhava na estrada viu a assistência que solicitara através do 112 prejudicada por um atraso de mais de vinte minutos na chegada da ambulância devido ao facto de a operadora do call center haver registado como localidade uma outra, de nome semelhante mas situada a uma meia dúzia de quilómetros por estrada lenta, daquela onde ocorrera o sinistro.

VMER na localidade errada
Dirigiu-se, assim, a VMER à localidade errada – dez minutos de desvio num sentido e outros dez no outro -, além do que por lá perdeu, pelo menos, cinco minutos à procura do sinistrado, até que acabou por contactá-lo através do telemóvel cujo número tinha sido informado quando do pedido de assistência. Enfim, como em tantos casos semelhantes, lá se esclareceu a situação, desta vez sem consequências de maior.

No entanto, a ambulância esteve ocupada mais tempo do que o estritamente necessário; a equipa que a tripulava, também; gastou-se combustível desnecessário; a vítima permaneceu ferida e ansiosa também durante mais tempo do que o estritamente necessário, e por aí fora na lista de custos supérfluos e de evitáveis inconvenientes.

Era, de facto, coisa de pouca gravidade. Mas, caso se tratasse, como no incidente de Castedo, de uma provável paragem cardiorrespiratória, que impacto teriam estes vinte e tal minutos tido no desfecho da situação?

Pois é…

Têm em comum estes dois episódios, de gravidade e de natureza distinta, dificuldades de navegação do veículo de socorro até ao local do sinistro, problema que afeta, naturalmente, todos os condutores que conduzem viaturas de socorro - como nas forças policiais, nos bombeiros, empresas de segurança e afins - sem falar de todo o tipo de empresas cuja atividade implica deslocações frequentes a destinos não conhecidos previamente dos motoristas.

Como será possível, na quase totalidade dos casos, de forma significativa, eficiente e económica, reduzir drástica e definitivamente o tempo perdido com a condução até destinos errados devido a desconhecimento da localidade e da artéria, a uma incorreta anotação do endereço ou, até, a erro na sua interpretação?

- x -

Refletirei, de seguida, sobre as diversas fontes de erro sempre latentes na indicação de endereços na forma tradicional, bem como sobre a problemática da eficácia ou ineficácia da indicação alternativa de coordenadas para navegação por GPS.

Passarei, então, a propor um modelo de referenciação complementar de prédios urbanos, rústicos ou mistos, visando a sua eficiente e eficaz localização.

Ambulância torcida
No quadro da modernização administrativa de um setor tão crítico como o da prestação de socorro, é imperativo reduzir o tempo de assistência, bem como o de ocupação das viaturas e das suas tripulações. São, assim, destinatários principais da solução proposta, os serviços de urgência, médica, medicamentosa policial e afins.

Colateralmente, beneficiarão do aqui proposto as empresas de distribuição postal ou de mercadorias, bem como os prestadores de serviços pontuais ao domicílio ou em instalações públicas ou empresariais - como, por exemplo, os serviços de enfermagem, os de limpeza ou os de assistência técnica, ente tantos outros possíveis -, além das equipas de reportagem de órgãos de informação, assim se obtendo, designadamente, ganhos de eficiência que permitirão significativas melhorias na qualidade do trabalho e na rentabilidade operacional, além da redução na emissão de poluentes para a atmosfera.

Como mais à frente veremos, a solução proposta é de implementação muito fácil e rápida - aproveitando sistemas informáticos já ao serviço da Administração Pública - além de implicar um investimento muito reduzido por parte do Estado e de ser gratuita para as empresas e particulares, aos dois últimos apenas sendo pedido, no próprio interesse a manutenção de uma minúscula placa e, a título facultativo e por uma única vez, alguns minutos de atenção e de dedicação.

Impossível?

Vamos ver…


2. Enquadramento: Situação Atual


2.1. Fontes Humanas de Problemas na Localização de uma Morada


2.1.1. Semelhanças na Toponímia

Os condutores residentes ou que trabalham na região onde é originado o pedido de socorro tendem a conhecer a maior parte dos locais vizinhos e a saber distingui-los, assim se tornando relativamente rara – mas não totalmente evitável – a confusão entre localidades próximas entre si e com designações semelhantes. 

Operadora tranquila
De idêntica vantagem não dispõem, porém, os distantes operadores do call center do 112, centralizados numa mesma localização geográfica e dos quais seria desrazoável esperar que estivessem igualmente familiarizados com todas as regiões e localidades onde são originados pedidos de socorro.

Para estes, num momento de desconcentração de um dia e hora de maior movimento e por mais legítimas que sejam as razões na sua génese, fácil se tornará confundir, no concelho de Barcelos, Rio Covo – Santa Eulália com Rio Covo – Santa Eugénia. Principalmente se, como é natural acontecer, quem faz a chamada se esquecer, num momento de tensão, de especificar o nome da Santa, dizendo apenas Rio Covo e assim abrindo portas ao equívoco.

Ora, entre as duas aldeias – Santa Eulália e Santa Eugénia – existem sete minutos de estrada para cada lado, aos quais haverá a acrescentar o tempo desperdiçado pela VMER na tentativa de localização de um endereço inexistente; e foi, precisamente, um destes o caso que acima referi como ocorrido com uma pessoa minha conhecida, que ficou desnecessários vinte e tal minutos suplementares à espera de socorro, em plena estrada estreita, bastante esburacada e de não muito fácil acesso.

- x -

Estes casos de designações toponímicas semelhantes e propiciadoras de erro na referenciação não são assim tão poucos. Sem procurar ser exaustivo, extraí alguns de uma listagem de freguesias por concelho*), os quais passo a apresentar.

Localidades mais sujeitas a erro na rota da VMER

Num tal panorama, as possibilidades de erro são, como é bom de ver, diversas e variadas: de baixo/de cima, nova/velha, nomes de santos diferentes para uma mesma designação principal. 


Veja-se o caso extremo dos São Bento do Ameixial, de Ana Loura e do Cortiço,  muito próximos uns dos outros no concelho de Estremoz: se disserem ao operador que anota a chamada 'aqui em São Bento’, ele escreverá apenas São Bento já que, como não é do mesmo concelho nem lá mora, nem desconfia de que três aldeias do mesmo nome nele possam coexistir. Depois, quando o bombeiro ou o condutor da VMER perguntam ao mesmo operador ‘Mas, São Bento? Qual?’, vá de ligar para o participante do sinistro e de gastar mais preciosos minutos a esclarecer o equívoco, que poderá, ainda, piorar quando descobrirem que ali por perto anda, também, uma… Santa Vitória do Ameixial.

Entretanto, o sangue corre, o AVC continua a progredir, ou, mais simplesmente, a ferida começa a infetar…

Isto, para não falar da existência, num mesmo Concelho, de designações principais diferentes para um mesmo santo, de vilar ou vilela disto ou daquilo, de designações semelhantes (Boivães/Bravães), de ordem invertida (Ribeira de São João/São João da Ribeira), todas propícias a confusões de muito provável ocorrência, implicando, um pouco por todo o território, tempos de percurso agravados em múltiplas situações que o quadro acima apenas parcamente exemplifica, para a enumeração se não tornar fastidiosa.

Mesmo nos casos de curta distância, será sempre significativo o tempo decorrido à procura do endereço errado até que o motorista se aperceba da anomalia.

Se a situação clínica for realmente grave, ao fim desses poucos minutos… mais uma família estará de luto precoce.

Evitavelmente.


2.1.2. Escassez de Sinais de Direção

A fabricação, em expressiva quantidade, das placas que, por toda a parte, deveriam indicar aos automobilistas a direção de localidades, de lugares, de bairros ou de locais dignos dessa menção é dispendiosa, e a manutenção das mesmas em boas condições de legibilidade implica o recurso a mão de obra também dispendiosa e nem sempre disponível em quantidade suficiente para se antecipar às causas da deterioração, que vão desde a ação da Natureza aos atos de vandalismo por parte de uns quantos degenerados que andam por aí.


Contexto
Neste contexto, ainda que a morada esteja completa, mesmo que seja a constante do registo do prédio e tenha sido exatamente anotada pelo operador de call center, sempre poderá suceder que os dados dela constantes não correspondam a um local devidamente sinalizado dentro da localidade. Se, por exemplo, o endereço for Bairro de São Pedro, Lote C-D, será necessário que, em cada entrada da localidade, exista um sinal de direção relativo ao dito Bairro, a fim de que o condutor para lá possa dirigir a VMER, o que nem sempre acontece, mormente em casos de bairros de construção recente.

Nestas circunstâncias, o recurso habitual será, como se de um veraneante em tranquilo gozo de férias se tratasse, o condutor parar a ambulância em marcha de urgência para perguntar o caminho a um qualquer transeunte – que pode, também ele, não saber informar -, ou para indagar num estabelecimento comercial, com a inevitável demora que tudo isto não deixará de significar..


2.1.3. Confusão entre os Diversos Tipos de Artéria

Da listagem das abreviaturas recomendadas pelos CTT*), constam perto de trinta tipos de artérias, como avenida, rua, travessa, calçada e calçadinha, e outras que tais.

Não será, pois, de admirar, muito especialmente nas maiores cidades, a ocorrência de inúmeras dúvidas e de numerosos erros ao transmitir ou anotar um endereço, particularmente em pouco tranquilas situações operacionais.

Essa dúvida, pode, aliás, nem sempre ser expressa ou, mesmo, apercebida, limitando-se o operador que desconhece a existência, na mesma localidade, de uma Rua das Flores e de uma Travessa das Flores a anotar o endereço Rua das Flores, 43-F que um primo afastado de visita ocasional à vítima telefonicamente transmitiu em estado de desespero, quando a verdade que é se encontravam na Travessa das Flores, distante largos minutos da rua do mesmo nome, e bastantes mais em horas de ponta, que é, quase sempre, quando estas coisas acontecem, vá lá saber-se porquê…

O certo, é que mais umas boas dezenas de irrecuperáveis minutos ficam para trás, enquanto a VMER faz o que pode para dar com a rua, quando era para a travessa que, quando partiu, deveria ter sido direcionada.


2.1.4. Indicações Essenciais Inexistentes ou Ilegíveis

Indicações essenciais ilegíveis
Bairro de São Vicente, Lote C é um destino que faz qualquer motorista torcer o nariz.

Ainda que uma sequência clara de sinais de direção indique o dito Bairro, o Lote C pode ser uma entre dezenas ou centenas de casas que o constituam e, contrariamente ao que sucede com um arruamento tradicional no centro de uma localidade – em que a localização aproximada do edifício é facilmente previsível por os números de polícia se encontrarem em sequência de números ímpares ou pares -, resulta praticamente impossível encontrar o dito lote sem perder tempo a parar para perguntar a um residente.

Ora, se a pessoa interpelada nem um residente for, quantos transeuntes ocasionais saberão onde fica o Lote C de um bairro que, por mero acaso, estão a atravessar?

A quantos terá o motorista de perguntar? Quanto tempo precioso deverá desperdiçar?

- x -

Pode, também, dar-se o caso de a morada ser insuficientemente conhecida ou incompletamente indicada pela pessoa que pede auxílio – por exemplo, um passante, para alguém que, à sua frente, tombou no solo diante da entrada de um edifício. Se o número da porta estiver visível, o que nem sempre acontece, poderá indicá-lo; mas, se for um passante, que probabilidade teremos de que saiba o nome exato da rua? E se nem uma placa com o número da porta existir para ajudar?

Nestas circunstâncias, e se mais ninguém por ali estiver a passar, que probabilidade haverá de que o operador do call center receba uma informação fidedigna que possa transmitir ao condutor da VMER?

- x –

Admitamos, apesar de tudo, que a pessoa sabe o nome da artéria e que esse nome está visível para o motorista; ou, até, que quem pede socorro é alguém que reside com o sinistrado, e conhece perfeitamente o endereço completo do local: se, numa série de meia dúzia de edifícios, nenhum tiver a placa com o número da porta – como tantas vezes sucede -, como saberá o condutor à frente de que prédio parar?

Esta situação é semelhante à que poderá, facilmente, ocorrer numa das nossas estradas, nas quais a maior parte dos marcos quilométricos há muito deixou de existir – nomeadamente os que indicam os hectómetros - ou se encontram em estado de tal forma degradado que se torna impossível deles extrair qualquer informação válida: ainda que a indicação esteja perfeitamente legível no marco que sinaliza o hectómetro “5” do quilómetro “12”, sempre haverá que perder tempo a conduzir – ou a caminhar… - quinhentos metros até ao quilómetro inteiro mais próximo até o participante que passou pelo local do acidente se inteirar do número da estrada secundária, coisa que muito poucos terão presente quando a estão a percorrer.

Puzzled operator 2.1.5. Dificuldade na Localização de Edifícios Isolados

Operador – “Pode informar-me a morada, por favor?

Participante do sinistro – “Fica a uns cinquenta metros da Quinta das Maravilhas, naquela estradinha que vai de Canecas de Baixo a Garrafas de Cima. Antes de chegar àquela curva à esquerda, mete à direita por um caminho de terra batida, anda uns duzentos metros, chega ao cruzamento, vira à direita, anda um bocadinho e é logo ali”. Lembram-se da descrição feita pelo bombeiro à médica do INEM? Pois será mais ou menos isso…

Quantas vezes acontecerão situações destas? Quanto tempo irá o operador do call center demorar a interpretar e anotar tudo aquilo da forma mais clara possível? Quem chegará ao local com indicações tão pobres? E quanto tempo depois, se acabar por chegar?...

Quando, na melhor das hipóteses, acabar por conseguir aproximar-se razoavelmente do local, como o identificará se no portão de entrada não existir uma placa com os dizeres “Quinta das Maravilhas”?

Como irá a história acabar?


2.1.6. Síntese das Fontes Humanas de Problemas na Localização

Sem prejuízo, naturalmente, de outras situações que poderão ocorrer e que os motoristas profissionais conhecerão melhor do que ninguém, as anteriormente exemplificadas têm, essencialmente, como fontes:

   i Semelhança do nome da localidade de destino com o de localidades limítrofes ou próximas no mesmo município

   ii Insuficiência ou inexistência de sinais de direção

  iii Existência, na mesma localidade, de mais do que uma artéria com a mesma designação, embora de diferentes tipos

  iv Inexistência ou ilegibilidade de indicações essenciais relativas à localização do prédio de destino

   v Inexistência ou ilegibilidade de marcos quilométricos

  vi Impossibilidade prática de indicar com precisão a localização de prédios isolados

VMER em loop
Saliente-se que, nos casos referidos nos pontos i., iii., v., vi. e, em certos casos, também no ponto iv., o erro não é evitável pela introdução do endereço tradicional no Waze®, no Google Maps® no TomTom® ou em qualquer outro sistema de navegação, que apenas em algumas situações do ponto ii. poderão auxiliar.

Num tal panorama, e mesmo num dia calmo do call center e em que o quartel dos bombeiros e o centro de saúde estejam repletos de ambulâncias, quem poderá estranhar a demora na chegada do socorro?

Que preço em cuidados de saúde – ou em vidas… - estaremos a pagar por tudo isto, diariamente, durante todo o ano? Sem falar nos casos em que as forças policiais detêm, indevidamente, anciãos pacatos e indefesos por terem confundido a morada da residência deles com a do criminoso que procuravam…

Faz-vos lembrar alguma coisa?*)


2.1.7. Custos Marginais Evitáveis Associados à Ineficiência na Localização

Os custos não se limitam, porém, ao impacto negativo na rapidez e na qualidade global da assistência prestada.

Como impactos económicos marginais negativos há a destacar, desde logo, a ocupação indevida da viatura de socorro e de uma equipa de duas pessoas – exceto no caso das motorizadas - que anda de um lado para o outro, a perguntar a este e àquele, até encontrar o local onde deve dirigir-se.

O desperdício não só é significativo quanto ao tempo despendido, mas também, em números agregados da frota, em muitos milhares de quilómetros percorridos desde o início ao fim do ano, com o dispêndio de combustível inerente e a necessidade de manutenções de rotina mais frequentes, para não falar do inútil desgaste suplementar das viaturas, tendente a determinar o seu abate precoce.

Se atentarmos no quadro exemplificativo acima incluído em 2.1., facilmente concluiremos pela enorme desproporção entre os 9 km a percorrer em treze minutos até um endereço completo e claramente indicado em Barrosas – Santo Estêvão por uma ambulância estacionada em Vila Verde ou, caso ocorra erro ou imprecisão na indicação da freguesia, os 17,2 km (17 minutos) de Lousada a Santa Eulália onde se constataria o erro, acrescidos dos 9,3 km (15 minutos) de Santa Eulália a Santo Estêvão, onde deveria ser assistido o sinistrado.

Preço a pagar em vidas
Ou seja: em lugar de 9 km em treze minutos, a VMER e os dois profissionais da saúde percorreriam 26,5km em 32 minutos, o que representaria um acréscimo de 194% na distância e de 146% no tempo de percurso – e, possivelmente, um óbito ocorrido nos 23 minutos perdidos no trajeto, mais alguns passados a procurar uma casa simplesmente não existia, ou na qual nada tinha ocorrido que requeresse urgente auxílio.

No caso da já referida pessoa das minhas relações, o tempo de espera total foi de 35 minutos – os dez correspondentes ao socorro eficiente, acrescidos dos vinte e cinco em que andou a deambular uma ambulância que estava de prontidão à porta do centro de saúde e partiu, no máximo, quatro minutos após a chamada para um percurso total de… oito quilómetros, sempre a direito, por um Itinerário Principal.

- x -

Dir-se-á que casos de tamanha desproporção não serão assim tão frequentes, o que é aceitável. Mas quantos casos com acréscimos menores, mas sempre significativos, não existirão? Qual a aritmética final em combustível gasto, horas de oficina e… vidas?

A tudo isto haverá, evidentemente, que adicionar o risco acrescido de ocorrência de acidentes de viação  durante o tempo em que a VMER anda perdida, não apenas dada a maior distância percorrida, como pelo facto de, como a tripulação não é composta por robots, esta ficar, compreensivelmente, perturbada por saber que uma vítima acabará prejudicada devido ao erro, assim havendo, ainda, que adicionar o desgaste emocional associado à tensão nervosa ao facto de, tal como a ambulância, os recursos humanos ficarem retidos mais tempo do que o necessário, logo, menos disponíveis para acorrer a outras situações.

Tal como os elementos da equipa da VMER, o operador do call center ficará, também ele, retido ao telefone mais tempo do que o necessário, já que irá ser, inevitavelmente, contactado pelos tripulantes na tentativa de obter esclarecimentos complementares quanto ao endereço.

Não será, assim, de admirar que uma outra ligação para o 112, efetuada poucos minutos depois, demore a ser atendida, e que, por via do atraso escusado no serviço, as vítimas de outros episódios de urgência em que o endereço seja corretamente processado acabem por ver o socorro atrasado por indisponibilidade de quem anda de Herodes para Pilatos à procura do edifício correspondente a uma morada que lhes deveria ter sido transmitida com toda a precisão. Mas não foi...

Decorrentes de todos estes atrasos e ineficiências, haverá, naturalmente, que considerar também os custos de imagem para o INEM e para o Estado, nos quais todos, em princípio, deveríamos confiar.

Dificuldade na localização de endereços
Por fim, juntando às ambulâncias e outras viaturas de socorro todos os veículos cujos condutores experimentam idênticas dificuldades na localização de endereços – carrinhas e camionetas de distribuição, equipas de reportagem, veículos de empresas de serviços ao domicílio, como enfermagem e assistência técnica -, não será difícil imaginar o impacto negativo global na receita do Estado por via da redução do IRC decorrente de menos favoráveis resultados económicos das empresas afetadas, bem como o impacto ambiental agregado das emissões de gases poluentes.

Aqueles que acham que nada disto tem a ver com eles, pensem então quanto, ao longo de um lustro ou uma década, tudo não representa em impostos desnecessariamente cobrados aos cidadãos.  A cada um deles!

Porque, até pelas coisas que acontecem só aos outros, de alguma forma acabamos por pagar todos nós.

- x -

Em síntese, temos como custos marginais supérfluos:

  » Quanto ao Equipamento

      • Maior gasto de combustível

      • Necessidade de mais frequantes operações de manutenção das viaturas

      • Menor duração útil das viaturas

      • Maior risco de acidente rodoviário

      • Maior tempo de indisponibilidade da ambulância


  » 
Quanto às Pessoas Diretamente Envolvidas

      • Agravamento da situação clínica e da probabilidade de óbito do sinistrado

      • Maior tempo de indisponibilidade da tripulação da VMER

      • Maior desgaste emocional da tripulação com inevitável impacto negativo sobre o desempenho na prestação do socorro

      • Maior tempo de indisponibilidade do operador do call center

Mapa de São Domingos de Ana Loura
 
» 
Quanto à Generalidade da População

      • Menor rentabilidade das empresas de distribuição, de assistência técnica e de prestação de outros serviços ao domicílio

      • Impacto negativo sobre a imagem do INEM e do Estado

      • Efeitos nocivos da emissão de gases poluentes

      • Impacto dos custos na receita fiscal

Num tal quadro, os atrasos e as frustrações serão, mesmo, de admirar?


2.2. As Limitações e os Erros na Informação das Coordenadas GPS

Bem, dir-se-á, mas as ambulâncias estão equipadas com dispositivos de navegação por GPS – ou, pelo menos, os telemóveis dos tripulantes permitem-na … – e, quem pede auxílio, sempre poderá indicar, além do endereço na forma tradicional, as coordenadas exatas do local do sinistro.

Ninguém duvida. Mas, como adiante veremos, contrariamente ao que acontece com os endereços em língua de gente que a todas as horas e minutos introduzimos no telemóvel para obter o melhor caminho para lá chegar, a indicação por coordenadas do sistema GPS foi pensada mais para as máquinas e menos para as pessoas, o que aparece como uma das razões possíveis para que, se considerarmos a generalidade da população e das situações – particularmente em casos de picos de enervamento, como nos pedidos de socorro -, poucas vezes essa indicação seja publicitada ou pontualmente transmitida.

Lá se vai vendo um ou outro anúncio de restaurante, ou de andar para venda com a indicação das coordenadas; mas muito raramente, e em muito poucos tipos de situação, também.

Quais serão, então, as razões específicas para tão fraca adesão?


2.2.1. Problemas Práticos da Referenciação das Coordenadas

Uma razão provável da fraca utilização das coordenadas como referência de local será a existência, não de uma única, mas de três notações distintas e, mesmo dentro de cada uma delas, com variações:

     • Notação complexa, em graus, minutos, segundos e decimas de segundo (DMS): gg°mm'ss.s"

     • Notação decimal, em graus e centésimas-milésimas de grau: (DD): gg.ggggg

     • Notação mista, em graus, minutos e décimas-milésimas de minuto (DMM): gg mm.mmmm

Mapa distorcido
Como se não bastasse, a indicação dos pontos cardeais também varia, podendo acontecer antes ou depois do valor numérico, e utilizando letras ou sinais aritméticos.

Assim, teremos, por exemplo, “N gg.ggggg W gg.ggggg” ou “gg.ggggg N gg.ggggg W”, ou, ainda, “(+)gg.ggggg -gg.ggggg”, ou qualquer uma de outras dezenas de combinações possíveis.

Dado que boa parte dos navegadores apenas aceita uma destas notações, e nenhum deles aceita todas, imagine-se o tempo perdido a procurar o conversor adequado e a utilizá-lo quando o participante do sinistro informa N 38°51’23.080” W 9°6’11.455” e o navegador GPS do condutor da VMER só aceita o formato gg.ggggg -gg.ggggg, o que corresponderia a 38.856411 -9.103182.

Alguém normal se entende no meio de uma confusão destas?*)

A agravar o que já de si é bem grave, também existem diversos sistemas, não apenas de notação mas de medição, como o Datum 73, o WGS84 e o ED50 - mais ou menos utilizados, é certo -, para dar com qualquer um em doido, e inviabilizar totalmente o recurso fiável à indicação das coordenadas geográficas para localizar, com inequívoca precisão, o destino de um condutor.

Sobretudo ao atender uma emergência…

Tão útil, indispensável e preciso é, pois, o sistema GPS no seu funcionamento, como é perigosamente falível na transmissão ou introdução de coordenadas por humanos.

- x –

A indicação da coordenadas é inesperadamente equívoca num sistema de tamanha precisão, não apenas devido à existência de variados sistemas de medição e de notação, como ao facto de a combinação das duas coordenadas resultar numa expressão indesejavelmente extensa e, em certos casos, praticamente sem separadores, o que dificulta a transmissão verbal e, até, a simples leitura, gerando erros potencialmente catastróficos quando se trata de prestar auxílio urgente.

Pode, pois, dizer-se que, no que se refere à indicação do endereço mediante a entrada das coordenadas, o GPS, tão preciso no funcionamento, nasceu com o formato infetado pelo vírus da confusão.


População de Ambulâncias
2.2.2. O que Não Tem, Mesmo, Remédio

O problema mais sério que afeta a utilização das coordenadas para referir um local não reside, porém, na inevitável ambiguidade gerada pela diversidade de formatos e pela extensão e falta de clareza da notação.

Em boa verdade, estes inconvenientes até poderiam, em tese, ser resolvidos mediante a normalização para um sistema de notação único, acompanhado de um separador complementar de traço ou de ponto a intercalar nos decimais extensos – a ser esse o formato finalmente adotado - ou por expediente similar, um pouco na linha dos traços que separavam os grupos alfanuméricos das matrículas portuguesas de automóveis, cuja supressão a leitura por humanos acabou por dificultar.

Isto, apesar de as tentativas de normalização de sistemas tenderem a perder-se em discussões intermináveis, e de, faça-se o que se fizer, a sequência de algarismos ou de letras e algarismos das coordenadas continuar extensa, confusa e, sobretudo, difícil de ditar.

Mas o mau, mesmo, é que além da possibilidade de erro na localização por circunstâncias diversas – como as condições ambientais e as características técnicas do equipamento de leitura no que se refere, por exemplo, à antena ou à potência de receção -, o que não tem solução é a impossibilidade material de validação da mais do que falível indicação de coordenadas transmitida.

Vejamos…

Voltando ao exemplo anterior das coordenadas 38.856411 -9.103182, se o participante do sinistro indicasse, por lapso, 38.856411 -9.103183 - em vez de 2, como seria correto –, mesmo que não ocorresse erro significativo na precisão do dispositivo de leitura a VMER desviar-se-ia escassos dez centímetros da localização informada, o que, por ser impercetível, não teria qualquer importância.

Se o erro fosse, por exemplo, 38.856411 -9.103192, a diferença seria também insignificante, cifrando-se em pouco mais de um metro, também sem provocar qualquer dano.

No entanto, e como é mais do que evidente, o erro – ou os diversos erros… - pode ocorrer com a mesma facilidade ao indicar um dos últimos dígitos de cada coordenada, como ao indicar um dos primeiros!

Por isso mesmo, se o erro fosse, por exemplo, 38.856411 -9.104182, a ambulância dirigir-se-ia para um quarteirão adjacente ao do edifício onde a vítima se entraria; e, se fosse 38.856411 -9.203182 o desvio seria de uns bons dez quilómetros*), acarretando consequências que poderiam ser mais nefastas do que aqui seria viável descrever.

O que não tem mesmo remédio
Ora, o que não tem, mesmo, remédio é a impossibilidade prática de adicionar à indicação das coordenadas um ou mais dígitos de verificação (check digits *)), como acontece, por exemplo, no IBAN, nos números dos cheques bancários e em tantas outras situações da vida corrente em que dessa existência nem nos apercebemos.

- x -

Clarificando um pouco, os check digits são algarismos que não fazem parte da numeração e têm como única função procurar garantir que a parte significativa da referência numérica se encontra corretamente indicada.

Exemplificando com uma situação bem simples, o código internacional de Portugal a duas letras é “PT”, de acordo com a norma ISO 3166-1 alpha-2*). Esta é também, como todos sabemos, a designação que corresponde às duas letras iniciais de uma referência IBAN.

No entanto, dado que seria relativamente fácil alguém cometer um erro ao transmitir ou ao digitar o “PT”, estas duas letras são sempre seguidas dos algarismos “5” e “0”, assim se formando as quatro primeiras posições do IBAN correspondente a uma conta bancária num banco português que é, como se sabe, a sequência “PT50” – em Espanha, “ES39”, em França “FR14” e assim por esse Mundo fora, sempre com o objetivo de evitar erros numa indicação unicamente alfabética a duas letras do país.

O efeito prático é o “chumbo” do IBAN se alguém introduzir um daqueles números compridos começando por “PT40” ou "PW50" em vez de “PT50”, algo que o sistema informático nunca aceitará porque essas combinações de código de país com os dígitos de verificação – o PT mais o 40, o o PW mais o 50 - simplesmente não existem na referida norma ISO!

A propósito, os dois últimos dígitos do IBAN são, também, check digits, que nada têm a ver com a identificação da conta bancária a que o IBAN se refere, apenas servindo para evitar que o dinheiro que acabou de transferir vá parar onde não deveria ter ido só porque quando lhe informaram, por telefone, o número da conta de destino o seu ouvido estava um pouco entupido, o interlocutor constipado ou tinha sotaque, algum dos dois estava distraído ou… um comboio perturbou a conversa ao passar.

- x -

Ora, as coordenadas a introduzir num sistema de navegação por GPS não têm check digits; nem podem ter, já que, para tanto, seria necessário criá-los e divulgá-los para cada coordenada possível, sendo elas, como facilmente se depreende, aos milhares de milhões!

Mapa de cubos
Restar-nos-ia, pois, sem nos enganarmos, informar as coordenadas, nada fiáveis apesar do aspeto rigoroso e certinho daqueles números todos, e esperar que fossem corretamente entendidas no call center e o condutor também corretamente as introduzisse no telemóvel ou no dispositivo de navegação.

Caso contrário, haveria que perder mais tempo a ligar de volta para quem pediu assistência e procurar esclarecer o equívoco, depois retificar a rota para um ponto a dezenas de quilómetros de distância enquanto a vítima se ia esvaindo em sangue e demorando, toda esta trapalhada, bastante mais tempo do que o desperdiçado, em Janeiro de 2008, numa inesquecível conversa telefónica entre uma médica da VMER de Vila Real e um bombeiro de Favaios, no concelho de Alijó...


2.3. Síntese do Enquadramento

Por muito que a aplicação de navegação por GPS e o dispositivo em que é utilizada sejam fiáveis e precisos, nada poderá evitar um direcionamento errado da viatura de socorro no caso de o endereço de destino ser, no formato tradicional, indevidamente transmitido ou anotado.

Uma eventual ambiguidade na toponímia, a escassez de placas de direção, a multiplicidade de ruas, estradas, calçadas e calçadinhas, a facilidade com que, em situações de perturbação extrema, podem ser transmitidas ou rececionadas informações de endereço erradas, e a dificuldade na identificação da localização precisa de quintas isoladas ou de prédios semelhantes são fatores potenciais de elevado risco de quebra grave – por vezes fatal - na celeridade da prestação do socorro, com consequências nefastas, não apenas para a situação do doente ou do sinistrado, mas para a tripulação do veículo, sobre o dispêndio com a deslocação e sobre a intensidade dos riscos a ela inerentes, sendo também responsáveis por um inevitável e significativo impacto ambiental.

A alternativa à indicação do endereço no formato tradicional - que todos estes erros repetidamente provoca e muitos mais potencia -, não passa, porém, pela substituição daquela pela informação das coordenadas geográficas, extensas, confusas e sem possibilidade mínima de validação, o que as torna, também elas, suscetíveis de provocar desvios de dezenas de quilómetros em relação ao local do incidente.

À custa de tanta diferenciação e de tanta especialização, as coordenadas geográficas, que poderiam representar uma vantagem imensa para a comunidade, transformaram-se, no que respeita à especificação de endereços, numa miragem inacessível para a grande maior parte dos eventuais utilizadores.

VMER a desviar-se
Resta, neste quadro, conceber e implementar, com inegável urgência, um sistema de referenciação que, preferencialmente conjugado com a indicação do endereço no formato tradicional - mas sendo, também, eficaz e funcionando autonomamente -, permita conduzir até ao destino com o erro de navegação limitado ao máximo de escassos metros próprio de um equipamento de navegação digno de tal designação.


3.  Modelo: A Referência Exata de Local (REL)


3.1. Apresentação

A Referência Exata de Local (REL) responde positivamente a cada uma das ineficiências da extensa lista apresentada ao permitir, de forma, se não absolutamente fiável, pelo menos muito dificilmente sujeita a erro, direcionar um condutor ao ponto exato, seja da emergência, seja da reportagem, seja da entrega de bens, seja onde determinado serviço deva ser prestado.

A sua estrutura traz-nos, simultaneamente, as seguintes vantagens:

     i. é incomparavelmente mais precisa do que a do endereço indicado no formato tradicional de artéria, número e localidade;

     ii. é de muito mais fácil leitura do que a informação das coordenadas do local, qualquer que seja o formato considerado;

     iii. contém caracteres de validação que a tornam infalível na exata medida em que anulam a possibilidade de erro na transmissão e na receção da informação;

     iv. é de ditado simples, alternando letras com números, em grupos de reduzida dimensão;

     v. permite que, à indicação da REL pelo participante do incidente, responda o operador do call center pedindo para confirmar que a morada real corresponde à que lhe é apresentada no monitor do sistema de apoio, assim reduzindo drasticamente a possibilidade de equívoco.

A informação quanto ao local exato de destino será, naturalmente, complementada com a indicação do andar e lado ou letra, sempre que aplicável.

Exemplificando, a REL 12.34.AB.56.78.904 pode ser lida como “doze, trinta e quatro, à bê, cinquenta e seis, setenta e oito, novecentos e quatro”, ou como “um dois ponto três quatro ponto Algarve Barreiro ponto cinco seis ponto sete oito ponto nove zero quatro”, ou algo semelhante, ao que o operador de call center responderá “a sua emergência situa-se na Calçadinha dos Morangueiros número trinta e cinco. Confirma?”, seguindo-se, se aplicável, a indicação pelo participante do andar e lado ou letra, e assim se eliminando qualquer razoável possibilidade de engano por troca, por exemplo, com uma travessa do mesmo nome que também exista na localidade.

Mas, vejamos mais pormenorizadamente em que consiste a REL e, seguidamente, como poderá proceder-se à sua implementação.


3.2. Especificação

Os dois primeiros dígitos da Referência Exata de Local correspondem à identificação do distrito*), de um a 18, para este efeito correspondendo os números 19 e 20 às regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Assim, uma REL começada por “02” referir-se-á, sempre, a uma localização no distrito de Beja.

O terceiro e o quarto dígitos correspondem ao código de cada concelho dentro do distrito correspondente. Como exemplo, saberemos que uma REL iniciada por “02.06” dirá respeito a uma localização no concelho de Castro Verde, do distrito de Beja*).

Quinta e Sexta posições
As quinta e sexta posições, alfabéticas, correspondem a check
letters, em lugar dos tradicionais check digits já aqui referidos.

Esta opção pelas check letters deveu-se, essencialmente, a duas considerações:

     • Por um lado, porque com a saúde e a vida não se brinca, e a validação com duas das vinte e seis letras do alfabeto garante uma possibilidade de erro cerca de seis vezes menor (1 : 26² = 0,0016) do que a que é proporcionada por dois dos dez algarismos do sistema numérico (1 : 10² = 0,0100).

     • Por outro, em virtude de a utilização de um grupo alfabético intercalando outros numéricos assegurar uma maior fiabilidade do ditado, na medida em que permite evitar erros de transmissão dos grupos numéricos decorrentes da troca eventual da posição relativa de cada um deles.

Por fim, as posições sete a onze designam o código numérico do local de destino dentro do concelho em que está situado, servindo o ponto que separa a oitava posição da nona unicamente para facilitar o ditado e para o tornar menos sujeito a erros.

Há que dizer que, inicialmente, se pensou na possibilidade de fazer o código numérico do local coincidir exatamente com o número constante do registo predial da freguesia em que o prédio estivesse localizado – já que, como adiante veremos, o processamento informático estará intimamente relacionado com esse registo. Corresponderiam, assim, as posições sétima e oitava ao código numérico daquela.

No entanto, além de tal opção reduzir substancialmente a quantidade de números de ordem disponível, a recente dança entre freguesias e uniões de freguesias a que recentemente assistimos, aliada à vontade latente de autonomização de umas relativamente a outras, desaconselha tal escolha, já que o assunto que aqui nos entretém é demasiadamente sério para que fique sujeito a alterações constantes da REL ao sabor de manifestações de bairrismo, de estados de alma, de campanhas eleitorais autárquicas, em suma, da vontade política de uns e de outros.

Num assunto sensível como este, requer-se rigor e estabilidade, deixando a ânsia de protagonismo para outras ocasiões e outras atividades de menor responsabilidade e premência.

A Referência Exata de Local deverá ser obrigatoriamente comunicada por escrito pelos locadores aos locatários e constará dos contratos de arrendamento e de compra e venda de imóveis, bem como dos respetivos anúncios, nos termos que a lei prevê para o Certificado Energético.*)


3.3. Confirmação da Morada por Identificação Visual do Local

Como vimos em 2.1., a possibilidade de erro na indicação ou interpretação da REL no momento da comunicação da emergência fica, praticamente, eliminada pelo facto de, uma vez introduzida aquela no sistema informático, o endereço correspondente ser imediatamente apresentado no monitor do operador do call center, que o lerá ao participante a fim de que este o valide por comparação com a informação que é do seu conhecimento.

Mapa de São Bento
Por outro lado, na generalidade dos casos, não haverá o perigo de a equipa da VMER entrar no prédio errado, já que a exatidão do destino sempre será validada no local mediante a observação no nome da artéria, do número de polícia, da designação da propriedade rural, ou de indicação congénere que desejavelmente existirá junto à entrada.

Utilizando a REL, mesmo se, no caso de imprecisão na navegação devida a variáveis atmosféricas pontuais e impossíveis de controlar, a localização correta não for aquela para a qual o veículo de socorro se dirigiu, será outra no raio máximo do erro do GPS, o qual não deverá, mesmo em casos extremos ultrapassar os cinquenta metros – logo, bem menor do que os quilómetros que separam uma aldeia de outra com nome semelhante -, o que, no local, facilmente pode corrigir-se.

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Acontece, porém, que a Referência Exata de Local se destina, também, a facilitar a localização de emergências ocorridas no exterior de prédios urbanos, rústicos ou mistos, ocorrências geralmente participadas por transeuntes que, em boa parte dos casos, não saberão o nome da artéria em que se encontram; ou de automobilistas que circulam numa estrada e acabam de passar pela Quinta das Maravilhas (v 2.1.5.), próximo de cuja entrada ocorreu o sinistro, e não fazem a mais remota ideia de como informar o operador do call center do 112 de como a ambulância lá poderá chegar em tempo útil .

Assim, e porque importa que o socorro a prestar o seja de forma eficiente, quer dentro, quer fora dos prédios, deverá ser obrigatória a afixação de uma pequena placa – discreta, mas facilmente localizável – na entrada principal do local identificado pela REL, a fim de que qualquer pessoa que passe e presencie o sinistro possa pedir socorro de forma eficiente e eficaz.

A utilíssima plaquinha servirá, até, às mil maravilhas para marcar encontro para umas comprinhas, para beber um copo ou para qualquer outra coisa a que se possa adaptar.

A fornecer e enviar gratuitamente pelo Estado para a morada dos proprietários ou usufrutuários – e será este, além das campanhas publicitárias, o único investimento mais ou menos significativo, dependendo da quantidade e da voracidade dos intermediários que se acabar por contratar para chegar a quem a irá fabricar -, a placa deverá:

Consequências da ambiguidade na toponímia
     • conter, unicamente, "REL ", seguido da referência;

     • ser fabricada em material plástico razoavelmente flexível;

     • ser gravada ou impressa em material e por processo resistentes à humidade e à luz solar;

     • ter as dimensões estritamente necessárias a uma rápida localização e a uma correta leitura na porta ou portão em que estiver afixada, a fim de evitar resistências alegando ser a placa desproporcionadamente grande e inestética;

     • estar dotada de uma banda autocolante e, próximo de cada extremo, de duas pequenas perfurações que permitam a respetiva aposição em superfícies nas quais a colagem não seja eficaz.

A afixação da placa é obrigatória, sendo a contravenção punível com coima - proporcional à capacidade económica do infrator, como já se defendeu aqui*) - aplicada solidariamente aos diversos proprietários e ao responsável pela gestão do prédio, sem prejuízo da eventual responsabilidade civil e criminal originada na demora no socorro por dificuldade na localização.

Também não fará mal se um pequeno dístico a afixar em local visível no interior da habitação ou estabelecimento for enviado, por correio eletrónico, para o endereço de cada um dos proprietários, usufrutuários ou arrendatários - tal como a Autoridade Tributária e Aduaneira volta e meia envia aquelas importantíssimas notícias relativas aos sorteios da e-Fatura *).


3.4. Recolha e Armazenamento dos Dados

Dado que se destina, antes de mais, a direcionar para prédios urbanos, rústicos e mistos, a Referência Exata de Local ficará associada ao correspondente registo na conservatória do registo predial em, pelo menos, três campos especialmente acrescentados para o efeito: um para a designação alfanumérica, outro para a coordenada correspondente à latitude e outro para a correspondente à longitude, informações que serão, desde o início da operação, livre e gratuitamente disponibilizadas a toda a população, designadamente aos serviços públicos, empresas e pessoas individuais:

Ficheiro de dados VMER e SMS
     • através de ficheiro de dados a ser descarregado pela Internet por quantos o pretendam utilizar em aplicações próprias para fins específicos – como para que as coordenadas exatas e sem possibilidade de erro sejam imediatamente transmitidas eletronicamente (por exemplo, por SMS), tanto ao condutor de uma VMER como ao de uma a carrinha de distribuição de um supermercado ou a alguém que apenas pretende visitar uma casa que está para comprar ou arrendar ou ao restaurante ir jantar;

     • através de aplicações para telemóveis que, uma vez eletronicamente recebida a REL - ou manualmente introduzida em campo próprio -, exportem as coordenadas para o navegador (ex: Waze®, Google Maps®) utilizado no telemóvel ou no computador, assim evitando qualquer possibilidade de erro que subsista na cópia, para a memória temporária, da indicação das coordenadas e subsequente colagem no campo de pesquisa adequado;

   • através de aplicação na Internet que, a partir da REL introduzida, informe as coordenadas correspondentes, para utilizações de qualquer natureza ou tipo.

Diz quem penso saber do que fala que as aplicações informáticas de suporte são tão simples de desenvolver, mas mesmo tão simples, que poderão ser entregues a qualquer estudante dos níveis médios de um curso de informática, não existindo assim qualquer necessidade de, para o efeito, contratar dessas empresas de parques de campismo - detidas por maridos de autarcas e intermediadas por padeiros - que fornecem golas que eram à prova de fogo mas afinal não são*), ou consultores mirabolantes e muitíssimo bem remunerados externos ao Portal da Habitação.

Em qualquer caso, os custos de desenvolvimento não chegarão aos calcanhares dos absorvidos pelo tão propalado ivaucher*), atrasado*) e de eficácia ainda por apurar, ou daquela coisa mirabolante denominada StayAwayCOVID*), que nunca alguém chegou a entender muito bem para que servia e que, ou me engano muito, ou tinha uns errozitos de análise que desde o início a condenaram ao insucesso, já que, feitas as contas, do grandioso projeto apenas se conseguiu entender pouco mais do que a intenção. Ao vírus, pelo menos, parece não ter feito a mais leve comichão…

Também não é necessário enfeitar e encarecer as páginas da Internet e as agora chamadas apps com caríssimos e parolos bonecos e mapinhas, ou com aquelas frases pategas de encorajamento de que certos políticos e fabricantes de jogos para consolas tanto gostam, do género "Fixe! Conseguiste, Meu!", uma vez que o assunto aqui é sério, e o único propósito das tais app será o de copiar para a área de transferência (clipboard) as duas coordenadas a colar no campo de pesquisa do Waze® ou do Google Maps® ou similar.

Por uma vez, façam as coisas de forma célere e simples, focando o essencial, como sempre deveria acontecer em Portugal.

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Especificação da Referência Exata de Local
A gravação dos dados competirá, numa primeira fase facultativa, aos proprietários ou moradores, logo se seguindo a confirmação por técnicos camarários dotados de formação e de equipamento adequados a tais operações, confirmação essa que, porque, tal como o nome sugere, os imóveis se caracterizam pela imobilidade, serão realizadas uma única vez, sem que os dados necessitem de qualquer manutenção – a menos que os satélites do sistema GPS endoideçam ou a Terra resolva inverter o sentido da rotação.

O processo será muito simples:

     I. No primeiro arranque, o software afetará, a cada um dos prédios à data registados na base de dados do Instituto dos Registos e do Notariado*), uma REL, sendo os cinco últimos dígitos atribuídos sequencialmente dentro do concelho em que o prédio se situa, começando na primeira freguesia e terminando na última.

     II. De seguida e após abundante divulgação, os cidadãos interessados – por exemplo, proprietários, coproprietários, administradores de condomínio, proprietários de frações no caso de não haver condomínio constituído -, devidamente identificados, utilizarão, se assim o entenderem e a fim de agilizar procedimentos, uma muito simples página da Internet criada para o efeito para, acedendo pela morada ou pelo número de registo do prédio, nela introduzirem as coordenadas correspondentes.

     III. À medida que as coordenadas forem sendo gravadas – ou de uma vez só, logo de início, como for julgado mais funcional e conveniente -, o Estado remeterá aos interessados as placas normalizadas onde estarão inscritas as REL, que eles obrigatoriamente afixarão ou farão afixar, sendo também deles a responsabilidade pela manutenção das condições de visibilidade e de legibilidade, bem como, eventualmente, pela substituição caso a deterioração chegue a um ponto tal que não possam ser repostas tais condições.

     IV. A informação originada nos cidadãos – extremamente útil numa fase inicial, mas menos precisa - será posteriormente validada pelos técnicos municipais já referidos, competindo ainda aos mesmos ir, gradualmente, medindo e gravando as coordenadas correspondentes a cada REL que não hajam sido, entretanto, informadas pelos primeiros.

     V. Posteriormente, sempre que um novo prédio seja adicionado, concentrado ou dividido será automaticamente gerada para o mesmo uma REL, com número de ordem igual ao primeiro disponível por ordem numérica ascendente, sendo obrigatória a indicação manual, pelo operador responsável pelo registo, das coordenadas correspondentes.

   VI. Qualquer registo de um novo prédio ou alteração a um já existente estará, obrigatoriamente, dependente de declaração de medição de coordenadas a emitir pela câmara municipal.

Apresentação da Referência Exata de Local

Escusado será dizer que, aos três campos a acrescentar ao registo predial já referidos, outros se deverão juntar, nomeadamente para, em nome da fiabilidade e da segurança do sistema, registar a data em que as coordenadas foram gravadas no sistema e a identidade do cidadão responsável pela informação, bem como, numa fase posterior, a data da validação e a identidade do técnico municipal que a tiver efetuado.


3.5. Processamento e Disponibilização da Informação

Diariamente, será a informação relativa à Referência Exata de Local e às correspondentes coordenadas exportada para um ficheiro de texto ordenado e formatado de forma a assegurar, simultaneamente:

     • a utilização por qualquer cidadão, por visualização direta e, eventualmente, por aplicação que, para o efeito, alguém entenda desenvolver;

     • a pesquisa eficiente e segura.

O ficheiro – que poderá, evidentemente, ser desdobrado por distrito ou, até, por concelho a fim de que a consulta e pesquisa se tornem mais rápidas e simples – será livremente descarregado a qualquer momento a partir do Portal da Habitação, ou, melhor ainda, de um sítio simples e económico desenhado com esse propósito específico, do qual uma explicação pormenorizada da REL e do seu funcionamento deverá constar.


Conclusão
4. Conclusão

4.1. Limitações, Cuidados e Sugestões

Poderá argumentar-se que a generalidade dos cidadãos não quererá dar-se ao trabalho de tomar nota, no telemóvel ou num papelinho que guardará na carteira, de uma referência que apenas irá utilizar no caso de lhe bater à porta uma daquelas desgraças que se está mesmo a ver que só aos outros irão acontecer.

Uma boa campanha publicitária saberá, no entanto, alertá-los para o facto de que a REL dará bastante jeito para agilizar a entrega daquelas coisas todas que os mesmos cidadãos passam a vida a encomendar pela Internet, para fornecer ao senhor que lá vai hoje reparar a televisão e para um sem-número de outras coisas de que os publicitários se não esquecerão de enfatizar.

Sempre haverá, naturalmente, que lembrar que quem, unicamente para agilizar a distribuição da correspondência, aderiu ao Código Postal Português, não terá grandes argumentos para se furtar a acolher com agrado uma REL pensada, antes de mais, para garantir o socorro pronto e eficaz ao próprio, seus amigos e familiares.

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Embora com sacrifício tolerável do rigor da validação, haverá que ter em conta uma certa vantagem no facto de o algoritmo a desenvolver para a atribuição das check letters não contemplar as letras k, w e y que, por muito que isso possa doer a quem quer convencer-se de que os portugueses são todos muito cultos, eruditos e, até, licenciados, são de existência desconhecida pela maior parte da população mais idosa que não fala inglês, mormente em zonas rurais desfavorecidas onde, não obstante, as emergências acontecem e há que, de forma especialmente segura e expedita, as reportar, o que não será possível a menos que se possa soletrar.

Aprendamos, pois, por uma vez, no terreno o que só pode ser constatado no terreno, em lugar de fingir que não existe quando nos entretemos a ler papéis e páginas da Internet como esta nos gabinetes ministeriais, uma vez mais dizendo “Stay away!” à eficácia de projetos, de aplicações e de outros que tais.

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A dança das freguesias e uniões de freguesias
Além dos prédios urbanos, rústicos e mistos, haverá considerável vantagem em estender a utilização da Referência Exata de Local a locais públicos relevantes, como monumentos isolados, pontos críticos de estruturas viárias e afins.

No caso de edifícios ou espaços especialmente vastos, deverá contemplar-se a atribuição de mais do que uma REL, a distribuir pelas diversas entradas ou pontos de interesse existentes no interior.

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Embora pensada para o território português, será de considerar a utilização internacional, eventualmente fazendo preceder a REL das mesmas quatro posições que antecedem o NIB para a formação do IBAN (PT50).

Poderá, também, dar-se o caso de, com tal objetivo, a estrutura proposta dever ser modificada a fim de acomodar estados com maior quantidade de distritos e concelhos, ou de unidades administrativas equivalentes.

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Sempre haverá, no entanto, que cuidar de que nada do que neste ponto antecede atrase o desenvolvimento e implementação urgente do demais.


4.2. Reflexões Finais

Fala-se muito de mudanças estruturais e de outras inconsequentes divagações. Porém, quando uma ineficiência de tamanho impacto subsiste numa área tão sensível como a emergência sanitária, parece não se lhe encontrar urgência na necessidade de resolução.

Erros efetivos de localização, levados às últimas consequências, poderão não ser assim tantos, mas todos aqueles que ocorrerem representarão, inevitavelmente danos acrescidos para a saúde ou, mesmo, perda de vidas, além, entre outros, dos diversos efeitos colaterais já enumerados.

Call center
Assim, o custo irrisório de implementação da Referência Exata de Local - dispêndio que, recorde-se, acontecerá de uma só vez e sem necessidade de manutenção ou de repetição - torna aberrante, condenável, quase criminosa, até, não apenas a rejeição do que aqui se propõe, como a mera demora na sua implementação.

Em qualquer caso, os danos colaterais para a economia, para a eficiência do call center, para as tripulações das VMER e para o ambiente são tão recorrentes, como frequentes são as perdas de tempo diárias a corrigir e confirmar, telefonicamente, informações evitavelmente confusas (a propósito: alguém sabe como estarão agora as coisas lá pelos bombeiros de Favaios e de Alijó?).

A Eletricidade de Portugal (EDP) já há muito tem o seu CPE (Código do Ponto de Entrega). Como entender, então, que, numa área tão crítica como os serviços de socorro, o omnipresente Estado Português não tenha já adotado idêntica medida?

Se não fosse o incidente ocorrido com um conhecido meu, é verdade que nem da gravidade do problema sistémico me teria apercebido. Mas, tendo ele sempre existido, estando, necessariamente, identificado, e sendo a solução tão simples e pouco dispendiosa, por que razão, num país com tantas cabeças supostamente pensantes em exércitos de assessores, ninguém se deteve a pensar no assunto e investir, seriamente, em investir seriamente nun think tank - como, para parecerem estrangeiros importantes, agora gostam de dizer... -, visando encontrar uma solução, fosse esta ou outra pelo menos igualmente eficaz, segura  e eficiente?

Por que não foi tão elementar problema há muito resolvido num País e, pelo menos, numa Europa que não para de inventar, para tudo e mais alguma coisa, classificações, e referências, e códigos novos a que ninguém liga deles se consegue, sequer, lembrar?

Portugal que, apesar de tudo, é pioneiro em tantas áreas, por que não o foi já também na definição de uma fórmula precisa, económica, funcional, eficaz e segura de indicação dos locais?

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Não apenas ao nível da ideia, mas com razoável desenvolvimento e vasta fundamentação, aqui fica uma possível solução que pode ser desenvolvida num máximo de três ou quatro meses, sem necessidade de análise por comissões e mais comissões.

Porque é simples, inacreditavelmente simples, como se viu.

Quanto à implementação, o mais moroso ainda poderá acabar por ser a conceção e fabricação das placas identificativas do local, já que é onde acaba por estar dinheiro com algum interesse nisto tudo, apesar de gasto quase de uma vez só - pelo que haverá que gastar algum tempo a escolher, criteriosamente, quem o, mesmo assim, razoável cesto de maná irá engordar: se o homem das golas, se alguma empresa do "grupo", mais ou menos habilmente encapotada, que coisas destas não são de se desperdiçar.

Informática
A programação informática, num computador doméstico, seria, dizem-me, coisa para escassas horas, incluindo uma razoável bateria de testes para garantir que tudo correria sobre rodas. Como não é feito em casa, poderá, com empenho a sério, ser coisa para um ou dois meses. Não mais.

Junte-se-lhe a campanha publicitária – que também irá render bastante a certas empresas e não só -, e lá para a Primavera de 2022, a REL poderá estar a funcionar, e a economia e a saúde a melhorar.

Não nos esqueçamos de que, como disse um eminente cirurgião português em entrevista subsequente a uma pequena intervenção cirúrgica na pessoa de outro ilustre português, “a saúde é um estado transitório que não augura nada de bom”.

Ou que, como diziam os romanos,

Salus populi suprema legis est