sábado, 27 de março de 2021


Chocante Desigualdade!

"Quem tem meios para arrendar uma casa para comemorar o aniversário natalício
numa festa de arromba com amigos, tem quantos duzentos euros quiser para pagar
uma coima ridícula para as suas posses e que, por isso mesmo, nada terá de punitivo"

A prisão é pena justa e equitativa na medida em que, independentemente da qualidade e das circunstâncias da vida do condenado, ele irá passar parte da vida atrás das grades, como qualquer outro e independentemente da duração da pena aplicada.

Pode ser pobre, rico, viver mal, viver bem, viver só ou ter família e amigos, andar a pé, de automóvel ou, até, de foguetão: uma vez condenado por sentença transitada em julgado, vai parar ao lugar por onde tantos outros passaram, e pode razoavelmente dizer-se que, abstraindo de inevitáveis idiossincrasias do condenado e diferenças na qualidade da enxovia, o tempo que por lá ficará irá custar-lhe tanto como terá custado a qualquer daqueles.

Em suma:  dez anos de cadeia são dez anos de cadeia, seja o desgraçado o que ou quem for.

O mesmo já se não pode, evidentemente, dizer das sanções pecuniárias, seja a coima pela papelada entregue fora do prazo ou por ter estacionado o carrinho fora de sítio, seja a pena de multa, eventualmente até a substituir a prisão; e não pode dizer-se o mesmo porque o valor de coimas e multas é sempre absoluto e independente da capacidade económica do infrator – por cá e em qualquer parte do Mundo, tanto quanto julgo saber.

Inevitavelmente, a enorme desproporção entre a capacidade económica dos diversos indivíduos faz com que, por exemplo, uma coima de umas dezenas de euros por estacionamento ilegal represente, para quem aufere o salário mínimo, uns dez por cento deste, enquanto para um bem remunerado alto quadro de uma empresa a mesma coima por idêntica infração pouco mais representará do que o incómodo de ter de a ir pagar – incómodo, aliás, também ele desprezível, já que o pagamento será, provavelmente, efetuado em casa, ao teclado do computador no intervalo do programa que na televisão estiver a ver quando se lembrar daquela coisa estúpida que o fizeram pagar.

No caso específico das infrações ao Código da Estrada*), a sanção acessória da inibição de conduzir procura, de alguma forma, atenuar as diferenças; mas, mesmo neste caso, tal apenas é aplicável aos casos mais graves, assim deixando de fora a maior parte das infrações.  Aliás, à inibição pouca gente liga, já que a probabilidade de se ser apanhado é escassa e, mesmo que tal aconteça, ninguém se esquecerá tão cedo do caso daquela senhora que conduzia diariamente sem que alguma vez houvesse sido aprovada num exame de condução*) e só ao fim de dezenas de vezes foi encarcerada;  e, em prol da habitabilidade das prisões, dada a substancial quantidade de condutores desencartados terá de continuar a ser assim.

A desigualdade é, pois, escandalosa como outra não me ocorre - embora, no que às multas diz respeito, a situação não seja tão grave como a relativa às coimas, uma vez que antes de aplicar a multa o tribunal sempre acaba por fazer alguma ponderação.

Até há alguns anos, não existiria alternativa viável a esta previsão de um valor fixo, uma vez que a inexistência e, mais tarde, a falta de integração dos sistemas informáticos ao serviço da administração pública*) faria com que, mesmo mediante a utilização de meios informáticos, a imposição de sanções pecuniárias que implicassem a realização de um cálculo com base no rendimento efetivo do autuado necessitasse de uma averiguação mais demorada e mobilizadora de recursos do que seria minimamente razoável sequer considerar.

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Os anos passaram, no entanto, e neles ganhou forte alento, entre nós, a denominada modernização administrativa *), para a qual foi, até, criada uma agência governamental.  Porventura devido a ela - ou paralelamente -, atingiu-se, em Portugal, um nível de integração da informação, designadamente fiscal, que quase faz esquecer o tempo do papel nas declarações de imposto e a obrigatoriedade de o apresentar nas correspondentes e mui rigorosas inspeções.

Bem pelo contrário, nos nossos dias informação bastante precisa quanto ao rendimento efetivo de cada contribuinte, individual ou coletivo, está bem ao alcance de um Estado que diariamente a utiliza com poucas restrições e com crescentes ganhos de eficiência no acesso.

Apesar de, neste quadro, já não ser possível alegar impossibilidade material do cumprimento, continua a violar-se sistematicamente uma das mais básicas manifestações de devida aplicação do princípio constitucional da igualdade, obstinando-se os poderes públicos em tratar em pé de igualdade o que não é, sequer, comparável, quanto mais igual; sobretudo num país que se gaba de estar na crista da onda da inovação tecnológica - do que a Via Verde*) está longe de ser a única manifestação.

Mesmo tendo em conta a fuga aos impostos*), as declarações erradas e o facto de parte dos rendimentos ser tributada na fonte – o que não impede que seja, também ela, suscetível de apuramento por via informática a partir do número fiscal de contribuinte -, a aplicação de sanções pecuniárias proporcionais, por exemplo, ao rendimento líquido do mais recente ano fiscal para o qual haja sido emitida liquidação de imposto é hoje, não apenas uma possibilidade, como um imperativo constitucional.

Alguém escreveu que “o ogre fisco tem o apetite do leão para uns, mas a sobriedade do camelo para outros”.  Será esta a receita que, podendo não o fazer, queremos continuar a aplicar às multas e coimas enquanto instrumentos de uma supostamente cega Justiça?

Como será tão profunda alteração concebida e implementada, não cabe aqui desenvolver por quem não detém competências especiais na matéria. Já quanto ao caminho a seguir, não parece grandes dúvidas existirem:  mantendo a lei exatamente como está, publicar-se-ia uma outra dispondo que o valor mínimo atualmente previsto para qualquer multa ou coima seria percentualmente agravado em função da diferença ponderada entre o rendimento líquido do agregado familiar apurado na mais recente liquidação de imposto e o rendimento mínimo de inserção*), o salário mínimo nacional*) ou um termo de comparação equivalente, dependendo da opção política.  O mesmo para as pessoas coletivas, dependendo de terem ou não fins lucrativos e de outras especificidades a considerar.

A menos, claro está, que prefiramos continuar a ver automóveis ao alcance de apenas algumas bolsas literalmente largados no meio de faixas de rodagem ou encostados à esquina do passeio, enquanto os condutores e seus acompanhantes se enchem de bolos na pastelaria do bairro, sabendo que, na pior das hipóteses, lá terão, um dia, o trabalho de ir ao computador transferir para o Estado uma esmola de valor possivelmente pouco inferior ao que terão despendido com a gulodice.  Ou, muito pior ainda, que queiramos continuar a, durante dramáticos estados de emergência, ver por aí deambular entre festas ou restaurantes, escapulir-se por túneis que vão dar ao rio*) ou passear cachorros fantasma*) segurando uma trela solta na mão autênticos energúmenos sociopatas dispostos a pagar os, para alguns insignificantes, duzentos euros da coima por violação do confinamento obrigatório.  Agravados por reincidência ou não.

Quem tem meios para arrendar uma casa para comemorar o aniversário natalício numa festa de arromba com amigos, tem quantos duzentos euros quiser para pagar uma coima ridícula para as suas posses e que, por isso mesmo, nada terá de punitivo.

Com a alteração aqui proposta, um indivíduo que, por auferir uns três mil euros mensais for autuado, em lugar de duzentos, em qualquer coisa perto de mil euros por andar, em plena pandemia, a pavonear-se sem máscara por um passeio qualquer, irá, com muito maior probabilidade, começar a entender que “quem engendra um método simples e engenhoso de intrujar a lei não pode esquecer-se de que esta nem sempre se deixa enganar”.

Lembrar-se-á, sobretudo, de que, não raras vezes, a conquista daquilo que um quer depende do sacrifício de muitos; de muitos mais sacrifícios do que aquilo que, sobretudo em tempos difíceis, uma sociedade decente poderá, razoavelmente, suportar.


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