sábado, 2 de março de 2024


A Queda do Anjo

"A incompetência dos democratas é o berço dos ditadores"

"Foi o carisma que lançou a extrema direita, e é de falta dele que a democracia irá morrer"

"~(...) grassa a nuvem negra e lambaz da corrupção instalada, que a inércia do legislador, a inépcia do judiciário
e o titubear do judicial parecem empenhar-se em perpetuar sob o céu azul que ela há muito de nós escondeu
"


Esta coisa do bipartidarismo português nunca passou de um mito.

O que emergiu do 25 de Abril foi um Partido Socialista (PS) endeusado pelo indiscutivelmente meritório desempenho de Mário Soares na definição e posterior consolidação da lusa democracia.

A este PS, sempre procurou, sem grande sucesso, morder as canelas um Partido Social Democrata (PSD) tragicamente órfão de tenra idade do carisma de Francisco Sá Carneiro, cuja perda prematura logo viria a demonstrar as evidentes fragilidades de uma casa de nada ou de muito pouco cheia na substância.

Nunca houve dois polos: apenas um partido, dito socialista. Resolvidos os incómodos e sobressaltos que, imediatamente se seguiriam à Revolução, os restos que ficaram, de um de de outro lado do Hemiciclo, jamais passaram de paisagem mais ou menos alcantilada da qual se ia precipitando, imparável, o Partido Comunista, pontilhada por mais ou menos expressivas, mais ou menos caricatas e invariavelmente efémeras emanações partidárias de coisa nenhuma.

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Acostumou-se, pois, o nosso bom povo a vegetar politicamente sob a asa protetora de um eterno PS, em cujos patriarcas de divina áurea sempre confiou, e a cuja angelical asa protetora quase sempre se encomendou.

Uma asa, diga-se, curtida na resistência heroica de uns quantos aos desmandos da República em tempos de má memória. Uma asa que nada parecia capaz de perfurar, e que jamais se imaginaria poder soçobrar ao sopro de adversas mas, desta vez, mais moderadas tormentas.

Jamais, até que aconteceu um Sócrates, de magníloqua "narrativa", campeão da anchura, cuja indelével nódoa de narcísica jactância e básica incompetência governativa, nem que piquem e reboquem, de alto a baixo, as paredes do Largo do Rato, alguma vez as deixará. Ao que já vai parecendo, só mesmo a História o julgará...

Seguiu-se Costa, o pantanoso arrastar de criptobióticos governos que se diria de mera gestão, devotos da tesouraria, e aos quais a simples ideia de uma reforma estrutural que fosse parecia causar infernal brotoeja e comichão.

Enquanto dava golpes de rins para se equilibrar no periclitante baloiço da geringonça, Costa, qual bonecreiro, criou e orientou jovens "turcos e turcas" que, a ele "colados e coladas" como musgo, germinaram "ansiosos e ansiosas" por fazer coisas bonitas para agradar ao mestre; e por alardear ideias que, cá por fora, os burros dos mais crescidos achassem apelativas, ousadas, inteligentes e inovadoras.

Politicamente adolescentes, ignorantes da vida fora do aparelho partidário que os vira parecer crescer, cedo lograriam fazer definhar em redor, por desânimo e saturação, aquelas velhas e frondosas árvores socialistas cujo exemplo desprezavam, em lugar de dele beber ensinamentos. Delas, apenas vemos hoje levantar-se um pouco do chão ressequidas flores da memória, ao sabor de alguma brisa mais travessa.

Outrora pertinazes e pugnazes, resistentes como tartígrados, em vez de morrer de pé foram, suavemente, baixando os desalentados ramos, perdendo as poucas e envergonhadas folhas, deixando o Partido, oco de causas, desnorteado, vazio; e, à deriva, aqueles de nós que, outrora, na sua governação se aninharam, depois nele continuando a votar apenas por inércia e à falta de verdadeira alternativa.

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A hipocrisia das ideologias ditas "de esquerda" - as que prometem a igualdade a expensas do défice e, depois, "os ricos que paguem a crise" -, encarregou-se a História de desmascarar.

As atuais supostas diferenças partidárias reduzem-se, assim, ao carisma de quem dá a cara: é o carisma que ganha o voto de uma população de eleitores, ora ainda ignorante, ora já desinteressada. Como bem sabem as direções de campanha, dêem-lhes palhaçada, intriga, folclore, almoços, frigoríficos, e o voto é garantido.

Foi o carisma que lançou a extrema direita, e é de falta dele que a democracia irá morrer. Quebradas as em tempos majestosas mas há muito estaladiças asas, já se estatelou no solo o último bastião, o anjo dito socialista. Tombou órfão, tal como, antes dele, os outros três Magníficos de Abril.

Costa, goste-se dele ou não, foi o último carismático nos quatro partidos dignos desse nome. Do PS do dia seguinte a Costa... ficou isto que se vê.

Fracos, como tantos outros, em ideologia, que carisma têm, que fé merecem, que confiança inspiram tão pouco acendrados meninos de coro, quais atarantados escuteiros de voz monocórdica, fala titubeante, rosto tenso, falta de planta, ar desinteressante?

Gente "com estudos", que se exprime como se perorasse em reuniões de alunos convocadas para dizer mal dos professores. Gente estuante de desejo de sobressair, de mandar, mas de discurso sem futuro, arauto das estafadas "empatia" e "humildade", mas elogiosa do passado inútil de um mestre sem obra estrutural feita, com o qual nos acena qual marco glorioso no qual algo houvesse do que se orgulhar.

Irá a falta de identidade, de estrutura, de carisma merecer a benquerença de quem vota, a ponto de confiar num partido apenas bom para agravar o caos em que a Administração Pública ele próprio afundou?

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A incompetência dos democratas é o berço dos ditadores.

Como nos espantarmos então, que, encapotados, estes vão brotando de partidos de protesto, sem estrutura, sem Norte, sem causas que não a descarada exaltação do ego de pelotiqueiros e pícaros cabecilhas, e o mal disfarçado encher do bolso do hábil guloso à custa do parco provento do saturado néscio?

Como respeitar, politicamente, minúsculos partidos, velhos ou novos mas quase sempre patéticos, quase todos ínfimos grupelhos de protesto, originalidades sem esqueleto às ordens de caricatos mas despóticos pastores? Para que servem, além do aleatório agitar das águas, nelas diluindo o voto, assim perturbando mais ainda o navegar dos grandes vapores?

Politicamente falido, ideologicamente desacreditado e tecnicamente anedótico, será aquele partido de esquerda que o PS não é que nos vai tirar do lodo e acalmar as angústias? Ou um PSD consumido em guerras intestinas, no qual ninguém se entende? Onde um ou outro esqueleto mais ou menos mumificado, mais ou menos oportunista, insiste, aqui e ali, em dar à costa apenas para mostrar quão bem sabe dar tiros no pé?

Claro que não!

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A paz social está seriamente ameaçada pela desigualdade no tratamento salarial das diversas forças de segurança e militares. Tudo isto, devido a uma decisão*) negligente, precipitada, quase infantil de quem, quando a tomou à pressa e com eleições à porta, muito mais teria já em que pensar.

Poucas semanas se passarão, depois de Março, sem que a bronca estale, a menos que, inesperadamente, um novo anjo por cá aterre com uma inesperada, apaziguadora e, sobretudo, milagrosa solução.

Entretanto, pairando sobre o corpo tombado do PS, grassa a nuvem negra e lambaz da corrupção instalada, que a inércia do legislador, a inépcia do judiciário e o titubear do judicial parecem empenhar-se em perpetuar sob o céu azul que ela há muito de nós escondeu.

De branco, só o meu voto de protesto.

Um voto em branco que nada muda, é certo. Mas. para melhor, pouco ou nada por cá irá mudar.

Vote eu em quem votar...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


Das Galinhas Colocadeiras


A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "
colocar" não é,
de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular "pôr".

Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
pior fica, ainda, quando apimentado com a presunção.


Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.

Vivemos no mundo dos influencers e seus obedientes escravos seguidores, dos criadores de moda – da moda, que deveria ser o resultado de uma tendência simples e natural -, de gentes que abrem empresas na Internet em frações de segundo, apenas para se dizerem "empresários", e pouco depois as encerram por manifesta falta interesse ou de viabilidade; no mundo daqueles que querem sobressair pela forma, como única via supostamente eficaz para escamotear a endémica falta de substância, de conhecimento, de cultura.

Não espantará, assim, que alguns vejam os arrebiques da linguagem como uma forma fácil de sobressair socialmente, sem se darem conta da figura ridícula que fazem ao proferir palavras que pouco ou nada têm a ver com a suposta verdade que pretendem transmitir. Palavras que, de despropositadas, tornam o discurso rebuscado, barroco, inesperado; palavras que, em lugar de servir para comunicar, interrompem o fluxo das ideias, com evidente prejuízo para a ampla apreensão e para a plena compreensão.

Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura” demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para pior!

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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?

Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!

Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.

Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.

Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.

Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.

Admitamos que será, porventura, este caráter popular associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e, sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.

Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.

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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.

Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.

Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se colocaPôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la

Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.

Como vimos, e contrariando o que sustentam alguns dicionários, colocar não é sinónimo de pôr, mas sim uma especialização do termo, destinada a tornar a ideia mais específica: são palavras de significado relacionado, mas não igual.

A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.

Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda das colocações.

Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.

Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.

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Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.

Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que,  a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.

Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.

Com todo o cuidado e precisão.


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A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.