sábado, 13 de novembro de 2021


Um Milhão de Cidadãos Foi ou Foram?

 

Um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar

"Tal como floreados de qualquer natureza devem ser, implacavelmente, afastados de um texto académico, científico ou, de um modo geral, um que se queira igualmente objetivo, também o erro gramatical deve ser banido, uns e outro apenas servindo para distrair o leitor da essência da matéria, daquilo que de importante o autor pretende transmitir-lhe"



1. Introdução
2. Liberdade aos Poetas!
3. O que Todos Sabem (ou Deveriam Saber)
4. Onde Mora a Confusão
5. Desculpas Esfarrapadas
6. Remate e Proposta

1. Introdução

O princípio e a norma
Esta não é uma reflexão sobre gramática: trata-se, antes, de um pequeno texto sobre coisas bem mais altas, como o princípio e a norma, e a estabilidade de um de outra, essencial para a estabilidade e harmonia da sociedade em que vivemos.

Diz a sabedoria oriental que o sábio não tem conceitos inflexíveis, antes se adapta aos dos outros. É bem verdade. No caso que aqui trago, trata-se, porém, do inverso: focados na tentativa de evitar, a todo o custo, sujeitarmo-nos ao mais pequeno sacrifício, flexibilizamos de forma irrefletida, insensata e desmesurada as mais simples e elementares regras ensinadas no início da vida, as quais cada um de nós se ocupa de, mais ou menos habilidosamente, passar o tempo a tentar contornar.

Nós. Não a vida, habitual culpada de tudo quanto de mau é feito ou acontece. Nós, que nela andamos cada vez mais perdidos, porque cada vez menos princípios e normas aceitamos para nos guiarem; e para, quando tudo o mais falhar, termos a que nos agarrar.

Tendo como mote a muito frequente violação de uma vertente da sagrada regra gramatical elementar da concordância, versa o que se segue sobre a facilidade com que, arbitrariamente e sem saber bem porquê, concluímos que quase tudo tanto pode ser assim, como de outra maneira qualquer*); ou, com que rebuscando ou inventando uma pouco plausível e ainda menos credível fundamentação que, afinal, nada justifica, procuramos legitimar o ilegitimável, adaptar ou, mesmo, louvar o que é condenável, e tudo flexibilizar além das linhas vermelhas mais finas da razoabilidade, da prudência e da sensatez.

Na gramática, ou seja em que campo for desta nossa pequenez…

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Dizem os entendidos que as duas principais disciplinas do ensino secundário são o Português – como dantes se dizia - e a Matemática, da qual, compreensivelmente, quase todos falamos com respeitosa timidez.

Ora, como convém a tudo quanto se diz, também isto tem uma razão de ser: tal como a Matemática é extremamente precisa e exigente nas suas formulações, a correta utilização da Língua Portuguesa deve levar-nos a pensar muito bem antes de dizer o que quer que seja, sob pena de nos terem por parvos, por ignorantes, por alguém meio atarantado que se exprime a esmo, acabando, amiúde, por deixar sair palavras que não quer, que não convêm, ou que dizem, afinal, precisamente o contrário daquilo que as queremos fazer dizer.

Ambos os tipos de raciocínio, o matemático e o linguístico, se revelam, sobretudo na expressão oral em tempo real, extremamente exigentes no que à capacidade e agilidade intelectuais diz respeito, sendo, quando devidamente cuidados e aplicados, excelentes exercícios de musculação da massa cinzenta da qual todos insistimos em orgulhar-nos – uns com mais, outros com menos razão.

Raciocínio Matemático

No caso dos idiomas, essa intensa e lampejante atividade mental manifesta-se na aplicação sistemática que, ao falar, ao improvisar, fazemos de regras gramaticais exatas, precisas, sem cuja aplicação faremos figura de indiferentes, de desleixados, de incapazes, de pouco educados ou, pelo menos, de ignorantes; e, ao mesmo tempo, contribuiremos para a propagação do erro e para a sua adoção cómoda e espontânea como regra nova, assim alimentando a arbitrariedade e o facilitismo na comunicação, a ponto de, um dia, deixarmos, definitivamente, de nos fazer entender.

 

2. Liberdade aos Poetas!

Em claro prejuízo da clareza da língua existe a tendência para considerar que quem a faz evoluir são os chamados grandes autores, os grandes arquitetos da Língua Portuguesa - designações que, antigamente, serviam aos mais consagrados e, hoje, cada vez mais tendemos a associar aos mais publicados, independentemente da intrínseca qualidade dos seus escritos, ou da falta dela.

Deriva tal atitude exageradamente subserviente do entendimento erróneo, mas generalizado, de ser o escritor uma espécie de infalível linguista, em lugar de, bem mais simples e realmente, um ilusionista, um mago da palavra que, muitas vezes, nem meia dúzia de regras gramaticais saberia, com rigor, enunciar. O autor cuida das ideias e daquela que lhe parece a melhor forma de as exprimir, muitas vezes sem grande consideração por uma gramática que acaba por encarar como um entrave à sua capacidade criativa e, em última análise, à própria arte.

Assim é, de facto: nenhuma criação artística alguma vez poderá nascer do estrito cumprimento de qualquer lei ou código, caso em que aquilo a que chamamos arte bem poderia passar a ser produzido por qualquer mecanismo programado para o efeito. Talvez por isso, alguém terá definido gramática como um instrumento complicado que ensina as línguas, mas nos inibe de as falar…

Há, pois, que perdoar os excessos, ou seja, os autênticos erros gramaticais cometidos por certos escritores. Carinhosamente, habituamo-nos a designar esses lapsos por liberdades poéticas, quando, de facto, mais não representam do que o reconhecimento, por um indivíduo específico, da incapacidade de o próprio expressar, com brilho e com adequado fulgor, as suas ideias dentro do quadro normativo gramatical estabelecido para o idioma em que escreve.

Tal não implica, porém, que caiam, por arrasto, os gramáticos no servilismo perante estas mais ou menos pontuais manifestações criativas de certos monstros sagrados da Literatura, logo se apressando a transcrevê-las para os manuais ou artigos que irão publicar; passando, apenas porque encontraram uma liberdade poética em determinada obra, a sustentar que, embora a regra seja outra, também poderá não ser se, como fez o autor que os deslumbra, quisermos, por exemplo, intensificar a ideia; e logo acrescentam uma passagem exemplificativa do supostamente imenso conhecimento linguístico de um conceituado autor que… simplesmente meteu o pé na argola gramatical.

Dir-se-ia que certos gramáticos apenas se preocupam em arranjar uma explicação à medida para os disparates que encontram, sem que se preocupem em encontrar a fundamentação lógica para o facto de tal não fazer sentido, de, evidentemente, não poder ser assim.

A gramática é a argamassa que une os vocábulos
Equivaleria isto, muito simplesmente, a dizer que vale tudo e o seu contrário, que podemos dizer ou escrever assim ou assado, e que a produção literária artística é, paradoxalmente, o ataúde de qualquer idioma. Não pode ser.

Num cenário de absoluta permissividade linguística – e não só… -, como aquele para que tudo parece indicar que, a passos largos, caminhamos, qualquer idioma brevemente se resumirá a um amontoado de vocábulos instáveis e desconexos, já que a indispensável argamassa que os une acabará por deixar de existir: a gramática.

 

3. O que Todos Sabem (ou Deveriam Saber...)

Uma das vertentes que mais solidamente estruturam e dão consistência a um idioma é a concordância, que muitas vezes se revela essencial para a inequívoca interpretação exata até das mais simples falas

Atentemos, por exemplo, nas frases "Que resultado vai provocar as eleições?" e "Que resultado vão provocar as eleições?". Nelas exprimimos ideias bem distintas: na primeira, questionamo-nos sobre qual o resultado de uma votação no Parlamento será suscetível de provocar a convocação de eleições gerais antecipadas, enquanto na segunda nos interrogamos sobre qual será o resultado prático que, uma vez promovidas, irão provocar essas eleições.

Em cada caso o sentido é distinto, estando toda a diferença expressa na pessoa em que conjugamos o verbo ir, já que é em função dele que é determinado o sujeito:

  • vai (no singular) apenas pode referir-se a resultado, também no singular;
  • vão (no plural) refere-se, inevitavelmente, a eleições, no plural.

Trata-se, assim, de um entre incontáveis casos em que a concordância do predicado com o sujeito se revela essencial à compreensão.

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A concordância impõe-se em diversos momentos da expressão verbal, sendo uma das mais importantes e mais conhecidas vertentes a da concordância em número do predicado com o sujeito.

Assim, na frase “a equipa representou bem as cores nacionais”, nenhuma dúvida existirá de que o sujeito, singular, é equipa, concordando com ele o predicado (representou) em número, também singular.

No entanto, como as equipas não são, habitualmente, compostas apenas por jogadores, se quisermos ser mais precisos poderemos preferir dizer que “os jogadores representaram bem as cores nacionais”, caso em que, no lugar de equipa, teremos jogadores como sujeito, expresso no plural, o mesmo acontecendo com o predicado (representaram), que com ele concorda.

Até aqui, nada de novo.

Onde Mora a Confusão
No entanto, embora esta regra seja absoluta, a discussão sobre a concordância é vasta, e inúmeros os casos particulares apontados pelos mais diversos autores.

Vamos, assim sendo, limitar o diminuto espaço desta prosa ao caso específico da errada mas recorrente concordância, em número, do predicado, não como o sujeito, mas com o complemento determinativo - ou complemento nominal, como lhe chamam agora 1 -, a qual, embora imprópria, é por alguns encarada como uma possibilidade legítima que cumpre contestar.

Não apresentam, naturalmente, qualquer fundamentação lógica para esta permissiva conclusão; ou, quando algum afloramento de explicação existe, não fornece ele, ao mais generoso intérprete, uma minimamente válida e efetiva justificação.

4. Onde Mora a Confusão

Existe, além da que já aqui vimos, pelo menos uma outra forma de dizer que nos referimos, unicamente, aos jogadores da equipa, expressamente excluindo os restantes elementos.

Para tanto, bastará dizer que “a equipa de jogadores representou bem as cores nacionais”, mantendo-se equipa como sujeito e representou como predicado, ambos no singular. Acrescentou-se, porém, a equipa o conceito de jogador, com o intuito de clarificar que se trata de uma equipa de jogadores, sem mais.

A este substantivo (jogadores) precedido de preposição, destinado a complementar ou a delimitar o sentido do sujeito da oração, damos o nome de complemento determinativo - ou complemento nominal, na nova nomenclatura.

Não pertence ao grupo dos complementos circunstanciais, dado que, em lugar de se referir às circunstâncias em que os factos ocorrem, exprime características essenciais de determinada pessoa, animal ou coisa 3. Pode ser composto por um substantivo (jogadores), por um pronome ou por vocábulos de outras classes da morfologia gramatical, embora seja o primeiro, o substantivo, que aqui nos interessa, por se tratar do caso que, frequentemente, degenera em erros na concordância em número que é, aqui, o nosso assunto.

A muito frequente confusão surge em virtude de o sujeito, equipa, ser singular, enquanto o complemento determinativo que o especifica, jogadores, se encontra no plural e mais próximo do predicado do que o sujeito.

Existe, nestes casos, uma tendência natural para conjugar o verbo no plural, concordando com o complemento determinativo, em lugar de o fazer no singular, como manda a regra da concordância com o sujeito.

Como exemplos recentemente colhidos de parlendas de políticos e de falas de apresentadores de telejornais – muito deles, uns e outros, pródigos na asneira - podemos focar-nos nos seguintes erros:

  O número de internados estão a diminuir

·         Estes são a terceira série dos mesmos papéis

·         Boa parte das pessoas não perceberam a intenção

·         Uma dezena de golfinhos foram avistados ao largo da Costa Alentejana

·         Mais de um milhão de cidadãos continuam sem médico de família

           * São aquele tipo de erros que custam a entender

·         O aumento de casos de gripe podem sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde

A regra da concordância do predicado com o sujeito impõe, evidentemente, que os predicados sejam, nestes casos, está, é, percebeu, foi, continua, é/custa e pode, concordando em número (singular) com o mais importante sujeito, e não com o complemento nominal, que lhe é, como a própria designação indica, meramente complementar.

Escusado será dizer que a concordância se impõe, também, no plural, como em "os casos de doença grave devem ser tratados em internamento".

 

5. Desculpas Esfarrapadas

Este erro frequente beneficia, desde há muito, de uma inexplicável tolerância, sustentando alguns gramáticos que, quando, por exemplo, o sujeito é uma expressão partitiva - como em boa parte das pessoas ou em um milhão de cidadãos - pode admitir-se que o predicado não concorde em número com o sujeito.

Como é habitual, não dizem porquê, limitando-se a citar autores consagrados que o tenham feito 2,4,5, ou dizendo, apenas, que tal acontece quanto “pretendemos salientar de um modo especial a ação do complemento 6 ou a respetiva quantidade, como se o erro mais não fosse, afinal, do que uma estranha espécie de silepse (concordância com o sentido da frase, e não com a regra gramatical), figura de costas largas, que serve para, supostamente, explicar tudo e mais alguma coisa para a qual se não consiga encontrar razoável explicação.

Não deixa, note-se, de ser verdade que, se alternativa não houver e interesses maiores deverem ser protegidos, qualquer regra poderá ser violada. No campo do Direito, disto são exemplos inevitáveis a sobejamente conhecida legítima defesa*) e a menos conhecida ação direta*).

No entanto, em Linguística, em Direito e em qualquer outra área do conhecimento, a ausência de fundamentação ou de explicação válidas para a violação de quaisquer normas torna-a indesculpável e, em si mesma, condenável, podendo ser facilmente confundível com a arbitrariedade que caracteriza as conclusões e decisões de quem exerce um poder factual sem que exista uma autoridade legítima ou legitimada a sustentá-lo.

Algum de nós irá, porventura, condescender perante a decisão de um mecânico de montar, no motor do automóvel que tivermos confiado aos seus préstimos, uma peça sem observar as instruções precisas e específicas do fabricante, assim expondo condutor e passageiros a consequências previsivelmente gravosas por, dessa forma, comprometer a segurança e a estabilidade da condução?

Claro que não!

Ora, em casos como aquele que aqui nos ocupa, estaremos, como já vimos, precisamente perante idêntica facilitação ou, até, em presença da preconização, por técnicos e peritos encartados, da violação de uma regra simplesmente porque um ou outro autor, talvez um poeta, algum dia dela nem se lembrou ou, deliberadamente, escolheu ignorá-la.

Apressam-se, então, a copiar a asneira para os compêndios escolares que publicam, sem minimamente explicar, com um mínimo esforço de racionalização, a razão de ser da preconizada exceção, apenas dizendo que é assim porque é assim, ou que é assim porque alguém assim escreveu, explicação que, no que à teoria se refere, vale nada, absolutamente nada.

Lembra a prática de fazer os alunos decorar, não procurando explicar, estimular a compreensão, o que poderá ter levado alguém, na primeira metade do século passado, a definir escola como “ambiente onde velhos microcéfalos desenvolvem nos jovens a memória, a expensas da imaginação”…

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Um caso específico a clarificar será, seguramente, o da concordância com o sujeito quando são referidas quantidades.

Haverá, quanto a ele, que especificar que a necessidade da concordância em número, embora por vezes essencial à compreensão exata das ideias expressas, é meramente formal, nada tendo a ver com a expressão da quantidade propriamente dita, mas unicamente com o modo como ela é expressa. Isto, demonstra-se sem dificuldade lembrando a diferença da concordância entre um milhar de pessoas foi e mil pessoas foram, caso em que ambas as formulações são corretas e, embora gramaticalmente diferentes em número, ambas as orações significam precisamente a mesma coisa.

Da mesma forma, sempre que nos referimos a quantidades incertas, a concordância faz-se com o plural, já que, tal como conjugamos o predicado no plural com, por exemplo, os advérbios mais menos - mais pessoas foram, menos pessoas foram -, também o devemos fazer com mais (de um milhão de) pessoas foram e em menos (de um milhão de) pessoas foram, ou em cerca de um milhão de pessoas foram ou, ainda, em mais de cinquenta pessoas foram.

Há que considerar, ainda, o caso estranho de mais de uma pessoa foi, e não foram, como mandaria a lógica se fosse sempre aplicada nestas coisas da expressão verbal 2.

Tudo isto não passa, no entanto, de casos particulares, de exceções desde há muito instituídas no idioma, e que são precisas, obrigatórias e pacíficas, pelo que, sobre elas, não fará sentido elaborar extensamente num texto que apenas reflete sobre a indefinição, o facilitismo e a incerteza gramaticais.

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Bem mais grave é, porém, pela aparência de seriedade da justificação, a outra alegação acima referida, que procura legitimar a violação da regra da concordância do predicado com o sujeito a pretexto de, pontualmente, se pretender evidenciar a ação ou a quantidade do complemento nominal.

Há, neste caso, que lembrar de que a violação de qualquer regra é absolutamente inaceitável, a menos que, nest caso para o efeito de evidenciação pretendida, não exista alternativa,

No exemplo jurídico acima, também a ausência de alternativa é condição essencial e necessária à aceitação da legítima defesa e da ação direta, ou facilmente cairíamos, por exemplo, na extinção prática do crime de injúria. Bastaria, para tanto, alegar que, com ela, apenas se pretendia intensificar a expressão da nossa opinião desfavorável em relação a determinada pessoa - o que  nada, em boa verdade, legitima e seria, obviamente, justificação inaceitável em qualquer situação.

Acontece, todavia, que, no noso caso, em lugar de “o número de internados estão a diminuir” a quantidade poderia, sem erro e muito simplesmente, ser evidenciada especificando-se “o elevado número de internados está a diminuir”, tal como, numa das outras frases, “o muito expressivo aumento de casos de gripe pode sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde” e assim sucessivamente, sem necessidade de violar qualquer preceito gramatical.

Desta forma, e dada a manifesta existência de alternativa, o incumprimento da regra gramatical não se mostra admissível, o mesmo acontecendo em qualquer equivalente situação.


6. Remate e Proposta

Desde que deliberado, e não por chã ignorância, aos poetas, tudo é permitido. Também aos romancistas. Até àqueles que, não sendo uns nem outros, escrevem para emocionar, para sensibilizar, para nos fazer vibrar.

Fechemos, assim, os olhos e os ouvidos ao que de menos correto lemos ou ouvimos em comentários políticos, em crónicas inflamadas, em alegações jurídicas, em apelos desesperados, em manifestos, assumindo, embora com evidente excesso de generosidade, que os tantos erros que por lá se dá o não são, realmente, antes deliberadas deturpações destinadas a intensificar esta ou aquela ideia.

Já no que é objetivo, como relatos ou relatórios de qualquer natureza ou tipo, textos académicos ou científicos, peças jornalísticas não opinativas, notícias de telejornais, em tudo, enfim, quanto se destine, meramente, a informar objetiva e friamente, o cumprimento das regras gramaticais deve ser absoluto e intransigente.

Valorizar o que É Substantivo
A razão para esta exigência é bem simples: se nem na forma um autor for capaz de demonstrar rigor, como tomar por fiáveis os factos que relata e a razão das conclusões que exprime e da respetiva fundamentação? Como valorizar aquilo que no texto é essencial, substantivo, quando manifesta ignorância está patente na forma como é escrito?

Tal como floreados de qualquer natureza devem ser, implacavelmente, afastados de um texto académico, científico ou, de um modo geral, de qualquer um que se queira igualmente objetivo, também os erros gramaticais deve ser banido, uns e outros apenas servindo para distrair o leitor da essência da matéria, daquilo que de importante o autor pretende transmitir-lhe.

Mesmo nos casos poéticos em que a liberalidade acontece, sempre ela deverá ser vista como um erro gramatical objetivo, nunca podendo servir para fixar uma espécie de jurisprudência linguística, por muito conceituado e ilustrado que se apresente o autor, que nem por isso deixará de estar prevaricar.

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Um pintor descreve a realidade como a vê, sem respeito pelos limites que a evidência lhe impõe. Mas essa transgressão apenas afeta a tela, não modificando a realidade, ou viveríamos no caos.

Da mesma forma, um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração  das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar.

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Com o propósito claro e único de combater a degeneração do idioma por via do facilitismo endémico e da injustificada submissão a artifícios apenas toleráveis no contexto poético, propõe-se a adoção generalizada e obrigatória dos seguintes princípios elementares:

*) Qualquer liberdade poética que viole uma regra gramatical será, para todos os efeitos e independentemente do estatuto e mérito do autor, considerada um erro, em todos os casos insuscetível de constituir precedente ou justificação para a adoção de exceção ou caso particular relativamente a uma norma estabelecida.
*) Em falas ou escritos científicos, académicos, bem como em quaisquer outros que, pela sua natureza ou propósito, se queiram objetivos e despidos de quaisquer ornamentos, é intolerável o recurso a liberdades poéticas, sendo a voluntária ou involuntária violação de qualquer regra gramatical considerada erro, exceto no caso improvável de, para transmitir a ideia pretendida, àquela manifestamente inexistir alternativa que observe o cumprimento estrito dos preceitos estabelecidos.

* *

Algumas e alguns não deixarão de criticar quem diz ou escreve que "um milhão de cidadãos foi", em lugar de "um milhão de cidadãs e de cidadãos foi".

Corresponderá esta estranha maneira de falar a uma linguagem verdadeiramente inclusiva? Estará, por outro lado, correta, do ponto de vista gramatical?


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


1)      CUNHA Celso e CINTRA Lindley – “Breve Gramática do Português Contemporâneo” – Edições João Sá da Costa, Lisboa – 15ª edição, 2002 –pp.103-104

2)      Idem, ibidem, pp.350

3)      FONTINHA, Rodrigo Fernandes – “Gramática Portuguesa Elementar” – Editorial Domingos Barreira, Porto – 2ª edição – pp.243

4)      TORRINHA, Francisco – “Gramática Portuguesa” – Edições Marânus, Porto – 7ª edição, 1946 – pp.309 – n.º 577, 3)

5)      GOMES, A. – “Lições Práticas de Gramática Portuguesa” – Livraria Simões Lopes, Porto - pp.168

6)      ALMEIDA, João, “Gramática Portuguesa” – Editorial Argos, Lda, Porto – pp.253-254

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