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sábado, 26 de março de 2022


Chamo-lhe, ou Chamo-o de?

"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'

"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar
"


Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português

O Predicado

Assim, e como quase sempre acontece nestas coisas da língua pátria, nenhuma fundamentação válida é apresentada para uma ou para outra posição, resumindo-se cada uma à mera e inane, embora legítima, expressão da opinião subjetiva dos respetivos defensores ou detratores.

O raciocínio lógico que, de seguida, aqui se desenvolve, leva a perfilhar a conclusão segundo a qual a forma “chamou-o de tonto” não passa, em boa verdade, da deturpação brasileira da expressão “chamou-lhe tonto, corretamente utilizada na mesma língua portuguesa que, mau grado os tratos de polé que lhe infligem, os brasileiros dizem falar.

- x –

Iniciemos o raciocínio referindo aquilo que é evidente: independentemente das circunstâncias em que o ato é praticado, no caso de que aqui tratamos chama-se, sempre, algo a alguém.

Temos, assim:

  • o predicado composto pela forma do verbo chamar,
  • o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
  • e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.


A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem for e em que lugar do Globo o vier a fazer.

- x -

Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?

Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:

1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”. 

Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.

No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.

2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.

Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”. 

No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".

3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.

Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.

Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não rege a preposição de.

- x –

Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.

Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser, obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.

De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser introduzidos pela preposição “de”.

Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”, sendo diversas as possíveis variantes.

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A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos nesse sentido, não regem preposição, tais como dizercomunicartransmitirpedir e oferecer, entre outros.

·         Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava

·         Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição

·         Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação

·         Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda

·         Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos

·         Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto

Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.

Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.

Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que " mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.

Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.

Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.

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Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.

Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.

Não há que enganar.

* *

Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


sábado, 5 de fevereiro de 2022


Acerca da Língua que Falam no Brasil

"Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro,
aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura,
também ela muito própria, de um País Irmão
"

"O português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais"


Nestes tempos em que, por tudo e por nada, se fala de igualdade – mesmo a despropósito, mesmo quando aquilo com que se acena chamando-lhe igualdade, com igualdade pouco ou nada tem a ver -, cada vez mais se procura disfarçar com uniformizadas e supostamente identitárias roupagens as diferenças estruturais entre os seres.

Situações com normalização

A moda aparece, naturalmente, como a manifestação por excelência desta prática, como uma tentativa de parecermos o que não somos, mas gostaríamos de ser. Nomeadamente iguais àqueles que cada um idolatra ou admira ou, mais simplesmente, que este novo exército de assim chamados influencers as mais fracas personalidades manipula, em mais ou menos chorudo proveito próprio e a seu bel-prazer.

Situações há, naturalmente, em que a normalização das roupagens é válida, indispensável até, como no caso das forças armadas ou de segurança e de outras organizações orientadas por um, legítimo ou não, objetivo comum. A farda surge, nestes casos, como uma forma de facilmente identificarmos as pessoas nelas filiadas e, também, como a manifestação de uma identidade de missão, de partilha de objetivos, de proximidade cultural, enfim, do que quer que seja que, uns com os outros, nos possa fazer parecer.

Será, assim, absolutamente descabido, patético, até, que, num esforço à partida vão de aparentar identidades que não têm, elementos de grupos distintos, pessoas de diferentes organizações, com diferentes missões, objetivos ou, até, credos vistam a mesma farda ou ostentem os mesmos símbolos. Tal opção, em nada contribuirá, evidentemente, para convencer quem quer que seja da efetiva existência de uma igualdade ou proximidade apenas desejada ou sonhada, apenas servindo, bem pelo contrário, para lançar uma indesejável, mas inevitável, confusão junto de quantos em tais preparos os verão.

Trata-se de uma questão do mais elementar bom senso, tão evidente e pacífica, que não necessitará de ulterior desenvolvimento ou discussão.

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O idioma que falamos é a farda, a roupagem cultural e civilizacional que envergamos.

Com mais ou menos pronúncia daqui ou dali, a língua mãe constitui, não apenas um identificador da nossa provável origem geográfica, como da cultura no seio da qual viemos ao Mundo e, pelo menos em determinada fase da vida, continuámos a viver.

Fenómenos de aculturação
Não é por, em determinada idade ou etapa da existência, aprendermos a falar, também, inglês que passamos a ser ingleses; isto, sem prejuízo de, com o correr do tempo, podermos acabar por absorver aspetos da cultura própria dos países onde se fala algum idioma que formos aprendendo, mormente se, simultaneamente ou não, acabarmos por lá passar algum tempo.

Fenómenos de mais ou menos acentuada aculturação, num e noutro sentido, inevitavelmente ocorrem, também, entre os países responsáveis pelos primórdios da diáspora europeia*), por um lado, e as colónias, de agora ou de outrora, por outro.

Dada a considerável distância que as separava dos países colonizadores e por serem as viagens tão difíceis e demoradas e, durante séculos, assim terem permanecido, novas culturas, substancialmente diferentes das autóctones e das europeias, emergiram dessas colónias inicialmente subjugadas aos ditames e costumes do invasor.

Após conturbados tempos de confronto e, por fim, de forçada harmonização, natural se torna que hajam culminado, na maior parte dos casos, em anseios de independência e na sua concretização.

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Um dos aspetos essenciais desta diferenciação cultural terá sido a degeneração ou imperfeita aprendizagem locais da língua materna dos colonizadores, a pontos de, não raramente, já pouco ter ela a ver com a que continua a falar-se na Europa, seja em parte significativa do vocabulário, seja na construção frásica ou na generalidade daquilo que à gramática possa interessar.

Tal é o caso inequívoco do idioma atualmente falado no Brasil, caracterizado por um liberalismo quase caótico relativamente aos mais elementares cânones da língua falada e escrita em Portugal.

As rotas seguidas por um outro idioma – porque de dois bem distintos já se trata - mostram-se a tal ponto divergentes que, praticamente, fazem secar, na América, as raízes portuguesas do idioma, não apenas por força da distância geográfica entre o Brasil e Portugal, como da significativa dispersão geográfica e diversidade cultural da República Federativa, que tornam praticamente impossível evitar, a nível linguístico e entre os seus diversos Estados, a propagação de cada vez maiores arbitrariedades e deturpações.

O idioma falado no Brasil encontra-se, assim, num particularmente intenso processo de formação baseado na degenerescência da língua portuguesa que lhe serviu de base, enquanto o português europeu atravessa um subserviente e galopante processo de quase patológica permeabilização, não apenas a vocábulos, mas a sistemáticas violações da própria construção frásica, das mais elementares regras gramaticais, o qual, finalmente, vai sendo objeto de algumas, embora pontuais e tímidas, chamadas de atenção*).

As próprias matérias de jornais brasileiros*) que, dando conta do facto*), referem que uma das causas residirá na “influência de youtubers brasileiros, os mais assistidos pelos miúdos portuguesesdemonstra bem, num só parágrafo, que ponto atingiu, já, a diferenciação.

Não é verdade, porém, que só entre os jovens o fenómeno se verifique, nem que tenha começado agora esta evolução. Assim entender, seria olvidar o efeito dramático produzido, décadas atrás, pela transmissão, quase em contínuo, de telenovelas brasileiras nos principais canais generalistas da televisão portuguesa, que, desta forma, deram azo a que muita gente começasse, com toda a naturalidade, a dizer que o personagem virou isto ou aquilo, que é impossível não adorá-la ou que é muito péssima, e já não saiba, sequer, ao certo onde por o se numa oração.

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Esta modesta amostra não passa de uma ínfima fração do problema que vivemos no dia a dia, e que não resulta, unicamente, de uma patega excrescência da ação de um governante mais exibicionista ou que tenha querido deixar a sua marca através da celebração de um suposto acordo ortográfico desconexo, arbitrário e elaborado ao arrepio da mais elementar lógica.

Um acordo que os brasileiros nem cumpriram… e para quê? Acaso iriam passar a escrever electrónico em lugar de eletrônico? Para quê, então, fingir que, quanto a esta ideia parva de homogeneizar o que não pode ser homogeneizado, alguma coisa de válido alguém, de facto, pretende ou alguma vez pretendeu fazer?

Arbitrário até na estrutura, o Acordo não passou, em boa verdade, de uma também arbitrária tentativa de impor a diversos países uma das tais fardas, uma roupagem que nos convencesse da existência de uma razoável homogeneidade cultural única entre todos países cujos idiomas nasceram do português. Como se fosse verdade tal besteira.

Dizer que existem traços comuns estruturais, evidentes, entre culturas do Brasil, dos PALOP, de Timor e de Portugal não passa de um discurso politicamente correto, mas vazio; de um despudorado atirar de poeira aos olhos - mas, apenas, de quem os tiver fechados, já que, ainda que, entreabrindo-os, inevitavelmente o contrário constatará.

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Há muito que se não fala português no Brasil, antes um idioma estrangeiro, aparentado com o português da Europa, mas muito próprio e intimamente ligado à cultura, também ela muito própria, do País Irmão, porque, indelevelmente ligados pela História, Brasil e Portugal são e serão países irmãos.

Mas, gémeos, não são: jamais serão. Sobretudo tendo em conta quem, para os governar, livre e democraticamente os brasileiros escolheram na mais recente eleição*).

* *

Sempre há, no entanto, que reconhecer que, acordo ortográfico à parte, a degeneração vocabular e a propensão fácil à descontrolada polissemia não é, exclusivamente, importada, nomeadamente do Brasil.

Por cá, e sem ajuda externa, vamo-nos aproximando, a passos largos, do dia em que qualquer palavra significa qualquer coisa, a ponto de quase deixarmos de nos fazer entender.

(siga aqui a continuação)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
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LÍNGUA PORTUGUESA

terça-feira, 4 de janeiro de 2022


Promoveram o Major Alvega!

O Presidente da República Portuguesa, pessoa conhecida e reconhecida pela qualidade do português com que, habitualmente, se exprime, fez publicar, no passado dia 27 de Dezembro, a seguinte frase*):

"É nomeado para o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada (...) o Vice-Almirante (..),
bem como a correspondente promoção ao posto de Almirante (...)
".

Na minha habitual lentidão de raciocínio, entendi, inicialmente, que houvera dois nomeados para o cargo: o Vice-Almirante e a respetiva promoção. Mas... não, pensei depois: se fossem dois, em lugar de "é nomeado", teria escrito "são nomeados", o que não fez; e, seja como for, não se pode nomear uma promoção.

Tendo-se, assim, feito luz, apesar da fraca perspicácia lá acabei por concluir, perplexo por vir de quem vinha, que a construção da frase estava, simplesmente, errada, exprimindo um inegável disparate que em nada prestigia, quer quem o redigiu, quer o jornal oficial que o publicou.

Não me passa, evidentemente, pela cabeça que tenha sido o ilustre Magistrado a lavrar aquela coisa, antes algum apressado e distraído escriba cuja função consista, essencialmente, no chamado copy/paste *), sem, pelos vistos, ter, ao menos, o cuidado de reler as letras que nos minúsculos decretos presidenciais vai deixando ficar.

Nem ele releu, nem o Presidente antes de assinar, nem o fez alguém num Diário da República que, apesar de passar por ser o todo-importante Jornal Oficial, parece não ter a mais pequena responsabilidade ou interferência na qualidade daquilo que publica e outros escrevem - e mal feito seria se tivesse, ou se alguém de lá se atravesse a chamar a atenção a alguém de cá, coisa que jamais este alguém iria perdoar, político ou não.

Mas é triste. É triste porque, tal como, no presente caso, a questão é de somenos, o mesmo poderia ter acontecido - e acontece - em situações bem mais graves, a ponto de, quantas vezes, em orações assim tornadas equívocas se ficar sem saber qual a intenção do legislador, com o inevitável impacto acrescido sobre a carga de trabalho dos tribunais, advogados, notários e solicitadores.

- x -

Dirão, claro, as más línguas que a pressa em remover o Chefe do Estado Maior da Armada*) (CEMA) agora exonerado era tal, que nem houve tempo para grandes preciosismos ou, sequer, cuidados. Terá sido assim? Tirada do caminho a oposição do Presidente da República - que acabou por ceder ingloriamente nesta trama birrenta e desconchavada -, seria assim tanta a pressa em içar ao estrelato o prospetivo salvador de um Partido Socialista*) sem candidato presidencial carismático à vista que o tire, daqui a poucos anos, das garras de um mais ou menos anunciado desaire eleitoral?

De que outra forma interpretar a afirmação de que, para a substituição, era este o momento oportuno*), sem minimamente explicar onde estava essa oportunidade, essa extrema urgência que ninguém vê, e que acabou por gerar uma trapalhada tão maltrapilha que se manifesta, até, em coisas tão simples como... um pequeno e despretensioso parágrafo de nomeação?

Ademais, que justificação paupérrima e insultuosa é essa, de que a oportunidade do momento decorria da recente aprovação da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas?*) Vão correr com o Chefe do Estado Maior General? Com os chefes militares dos outros ramos, também?

Já agora: o decreto vai ficar assim?

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Nos meus tempos de estudante liceal, quase todos comprávamos O Falcão, revista de banda desenhada a preto e branco, da qual uma das mais conhecidas personagens era o Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega - nome que o meteorologista Anthímio de Azevedo traduzira de Battler Britton, o nome original 

Acontecia assim, e acontece, porque os miúdos portugueses sempre gostaram de fardas, fosse há muitos anos n'O Falcão, seja agora nos jogos de computadores e consolas: e, depois de crescidos, continuam a achar que, quem quer que vista uma farda, é um herói pelo simples facto de aparecer assim vestido. Todo limpinho e arranjadinho, com a roupa bonita e passadinha a ferro, julgam logo que é competente, e a pessoa indicada para o lugar, seja ele qual for. Isto, os partidos políticos sabem muito bem...

Enquanto Vice-almirante, o agora Almirante CEMA soube tirar o devido partido do seu uniforme de combate*) - sempre serviu para alguma coisa... - para aparecer, com aspeto dinâmico e despretensioso, quando, ao comando da task-force, era apanhado pelas câmaras, em flagrante contraste com a desalinhada fatiota que levou aos Globos de Ouro*), na qual não estava, evidentemente, confortável. Tirou, também, partido das imagens em que aparecia de uniforme de gala*), qual Capitão Iglo, dos douradinhos da dita marca.

Agora, nomeado e promovido à pressa, quase no limite de idade e para assegurar a terceira faixa nos punhos, lá apareceu com uma enorme faixa verde*) a evidenciar, sobretudo, a habitual foleirada latente ou submersa na maior parte dos nossos políticos, que no Almirante parece estar agora a vir à superfície.

Ou não tivesse o homem andado tanto tempo nos submarinos...

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Talvez por jamais ter sido promovido, nunca vi o Major Alvega engalanado com uma faixa... O Major Alvega era o que era, sem necessitar de faixas.

Afinal, a que corresponderia aquela faixa verde?

Para o ego do Almirante, o que significaria?

Para o novo cargo, que vantagem?

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021


Joacina Katar Moreira e o Elogio da Oligofrenia

"Razões fortes, compromissos claros".

Esta mensagem num cartaz do Bloco de Esquerda terá provocado na rede social Twiter, a mensagem "A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava*).

Salvo o devido respeito, a imbecilidade da coisa apenas é comparável à manifesta ignorância vocabular de quem a produziu, bem como à pobreza gramatical evidenciada pela construção frásica pseudo-moderna e pseudo-progressista do  seguido do pretérito imperfeito do indicativo pretendendo significar que já se poderia isto ou aquilo (neste caso, já mudava, em lugar da expressão correta já se poderia mudar. Ou, na forma popular, já se podia mudar).

Claro, significando evidente, preciso nada tem, em sentido estrito, a ver com claro, no sentido de luminoso, pouco escuro. O adjetivo é o mesmo, mas a utilização que dele é feita num e noutro caso quase as torna palavras homónimas, apenas o não sendo na medida em que a classificação gramatical é a mesma.

Não há, assim, como considerar que se trata de um ataque aos ideais anti-racistas, mais a mais vindo de quem vem. Não passa de uma patetice, de uma alarvidade, da tentativa desesperada de quem politicamente se arrisca a desaparecer para manter um protagonismo que não merece, se é que alguma vez mereceu.

- x -

O aproveitamento abusivo de tudo quanto cai ao alcance dos nossos olhos para o distorcer, para o enviesar à medida da conveniência de uma causa ou argumentação a ele completamente alheia apenas tem como resultado imediato a evidenciação do vazio daquilo que se defende e da fundamentação de suporte que temos para lhe oferecer. No presente incidente, apenas serve para menorizar a nobre causa do racismo, que, é caso para dizer, bem melhores defensores poderia merecer.

Alguém me dizia, há tempos, que para se obter um grau de mestre ou de doutor é mais necessária capacidade de trabalho do que inteligência. Dir-se-ia que alguns parecem profundamente empenhados em o demonstrar...

Se certos doutorados que por aí há trabalharam ou não, jamais saberei. Mas da oligofrenia que caracteriza algumas das suas afirmações não será difícil convencer.

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sábado, 13 de novembro de 2021


Um Milhão de Cidadãos Foi ou Foram?

 

Um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar

"Tal como floreados de qualquer natureza devem ser, implacavelmente, afastados de um texto académico, científico ou, de um modo geral, um que se queira igualmente objetivo, também o erro gramatical deve ser banido, uns e outro apenas servindo para distrair o leitor da essência da matéria, daquilo que de importante o autor pretende transmitir-lhe"



1. Introdução
2. Liberdade aos Poetas!
3. O que Todos Sabem (ou Deveriam Saber)
4. Onde Mora a Confusão
5. Desculpas Esfarrapadas
6. Remate e Proposta

1. Introdução

O princípio e a norma
Esta não é uma reflexão sobre gramática: trata-se, antes, de um pequeno texto sobre coisas bem mais altas, como o princípio e a norma, e a estabilidade de um de outra, essencial para a estabilidade e harmonia da sociedade em que vivemos.

Diz a sabedoria oriental que o sábio não tem conceitos inflexíveis, antes se adapta aos dos outros. É bem verdade. No caso que aqui trago, trata-se, porém, do inverso: focados na tentativa de evitar, a todo o custo, sujeitarmo-nos ao mais pequeno sacrifício, flexibilizamos de forma irrefletida, insensata e desmesurada as mais simples e elementares regras ensinadas no início da vida, as quais cada um de nós se ocupa de, mais ou menos habilidosamente, passar o tempo a tentar contornar.

Nós. Não a vida, habitual culpada de tudo quanto de mau é feito ou acontece. Nós, que nela andamos cada vez mais perdidos, porque cada vez menos princípios e normas aceitamos para nos guiarem; e para, quando tudo o mais falhar, termos a que nos agarrar.

Tendo como mote a muito frequente violação de uma vertente da sagrada regra gramatical elementar da concordância, versa o que se segue sobre a facilidade com que, arbitrariamente e sem saber bem porquê, concluímos que quase tudo tanto pode ser assim, como de outra maneira qualquer*); ou, com que rebuscando ou inventando uma pouco plausível e ainda menos credível fundamentação que, afinal, nada justifica, procuramos legitimar o ilegitimável, adaptar ou, mesmo, louvar o que é condenável, e tudo flexibilizar além das linhas vermelhas mais finas da razoabilidade, da prudência e da sensatez.

Na gramática, ou seja em que campo for desta nossa pequenez…

- x -

Dizem os entendidos que as duas principais disciplinas do ensino secundário são o Português – como dantes se dizia - e a Matemática, da qual, compreensivelmente, quase todos falamos com respeitosa timidez.

Ora, como convém a tudo quanto se diz, também isto tem uma razão de ser: tal como a Matemática é extremamente precisa e exigente nas suas formulações, a correta utilização da Língua Portuguesa deve levar-nos a pensar muito bem antes de dizer o que quer que seja, sob pena de nos terem por parvos, por ignorantes, por alguém meio atarantado que se exprime a esmo, acabando, amiúde, por deixar sair palavras que não quer, que não convêm, ou que dizem, afinal, precisamente o contrário daquilo que as queremos fazer dizer.

Ambos os tipos de raciocínio, o matemático e o linguístico, se revelam, sobretudo na expressão oral em tempo real, extremamente exigentes no que à capacidade e agilidade intelectuais diz respeito, sendo, quando devidamente cuidados e aplicados, excelentes exercícios de musculação da massa cinzenta da qual todos insistimos em orgulhar-nos – uns com mais, outros com menos razão.

Raciocínio Matemático

No caso dos idiomas, essa intensa e lampejante atividade mental manifesta-se na aplicação sistemática que, ao falar, ao improvisar, fazemos de regras gramaticais exatas, precisas, sem cuja aplicação faremos figura de indiferentes, de desleixados, de incapazes, de pouco educados ou, pelo menos, de ignorantes; e, ao mesmo tempo, contribuiremos para a propagação do erro e para a sua adoção cómoda e espontânea como regra nova, assim alimentando a arbitrariedade e o facilitismo na comunicação, a ponto de, um dia, deixarmos, definitivamente, de nos fazer entender.

 

2. Liberdade aos Poetas!

Em claro prejuízo da clareza da língua existe a tendência para considerar que quem a faz evoluir são os chamados grandes autores, os grandes arquitetos da Língua Portuguesa - designações que, antigamente, serviam aos mais consagrados e, hoje, cada vez mais tendemos a associar aos mais publicados, independentemente da intrínseca qualidade dos seus escritos, ou da falta dela.

Deriva tal atitude exageradamente subserviente do entendimento erróneo, mas generalizado, de ser o escritor uma espécie de infalível linguista, em lugar de, bem mais simples e realmente, um ilusionista, um mago da palavra que, muitas vezes, nem meia dúzia de regras gramaticais saberia, com rigor, enunciar. O autor cuida das ideias e daquela que lhe parece a melhor forma de as exprimir, muitas vezes sem grande consideração por uma gramática que acaba por encarar como um entrave à sua capacidade criativa e, em última análise, à própria arte.

Assim é, de facto: nenhuma criação artística alguma vez poderá nascer do estrito cumprimento de qualquer lei ou código, caso em que aquilo a que chamamos arte bem poderia passar a ser produzido por qualquer mecanismo programado para o efeito. Talvez por isso, alguém terá definido gramática como um instrumento complicado que ensina as línguas, mas nos inibe de as falar…

Há, pois, que perdoar os excessos, ou seja, os autênticos erros gramaticais cometidos por certos escritores. Carinhosamente, habituamo-nos a designar esses lapsos por liberdades poéticas, quando, de facto, mais não representam do que o reconhecimento, por um indivíduo específico, da incapacidade de o próprio expressar, com brilho e com adequado fulgor, as suas ideias dentro do quadro normativo gramatical estabelecido para o idioma em que escreve.

Tal não implica, porém, que caiam, por arrasto, os gramáticos no servilismo perante estas mais ou menos pontuais manifestações criativas de certos monstros sagrados da Literatura, logo se apressando a transcrevê-las para os manuais ou artigos que irão publicar; passando, apenas porque encontraram uma liberdade poética em determinada obra, a sustentar que, embora a regra seja outra, também poderá não ser se, como fez o autor que os deslumbra, quisermos, por exemplo, intensificar a ideia; e logo acrescentam uma passagem exemplificativa do supostamente imenso conhecimento linguístico de um conceituado autor que… simplesmente meteu o pé na argola gramatical.

Dir-se-ia que certos gramáticos apenas se preocupam em arranjar uma explicação à medida para os disparates que encontram, sem que se preocupem em encontrar a fundamentação lógica para o facto de tal não fazer sentido, de, evidentemente, não poder ser assim.

A gramática é a argamassa que une os vocábulos
Equivaleria isto, muito simplesmente, a dizer que vale tudo e o seu contrário, que podemos dizer ou escrever assim ou assado, e que a produção literária artística é, paradoxalmente, o ataúde de qualquer idioma. Não pode ser.

Num cenário de absoluta permissividade linguística – e não só… -, como aquele para que tudo parece indicar que, a passos largos, caminhamos, qualquer idioma brevemente se resumirá a um amontoado de vocábulos instáveis e desconexos, já que a indispensável argamassa que os une acabará por deixar de existir: a gramática.

 

3. O que Todos Sabem (ou Deveriam Saber...)

Uma das vertentes que mais solidamente estruturam e dão consistência a um idioma é a concordância, que muitas vezes se revela essencial para a inequívoca interpretação exata até das mais simples falas

Atentemos, por exemplo, nas frases "Que resultado vai provocar as eleições?" e "Que resultado vão provocar as eleições?". Nelas exprimimos ideias bem distintas: na primeira, questionamo-nos sobre qual o resultado de uma votação no Parlamento será suscetível de provocar a convocação de eleições gerais antecipadas, enquanto na segunda nos interrogamos sobre qual será o resultado prático que, uma vez promovidas, irão provocar essas eleições.

Em cada caso o sentido é distinto, estando toda a diferença expressa na pessoa em que conjugamos o verbo ir, já que é em função dele que é determinado o sujeito:

  • vai (no singular) apenas pode referir-se a resultado, também no singular;
  • vão (no plural) refere-se, inevitavelmente, a eleições, no plural.

Trata-se, assim, de um entre incontáveis casos em que a concordância do predicado com o sujeito se revela essencial à compreensão.

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A concordância impõe-se em diversos momentos da expressão verbal, sendo uma das mais importantes e mais conhecidas vertentes a da concordância em número do predicado com o sujeito.

Assim, na frase “a equipa representou bem as cores nacionais”, nenhuma dúvida existirá de que o sujeito, singular, é equipa, concordando com ele o predicado (representou) em número, também singular.

No entanto, como as equipas não são, habitualmente, compostas apenas por jogadores, se quisermos ser mais precisos poderemos preferir dizer que “os jogadores representaram bem as cores nacionais”, caso em que, no lugar de equipa, teremos jogadores como sujeito, expresso no plural, o mesmo acontecendo com o predicado (representaram), que com ele concorda.

Até aqui, nada de novo.

Onde Mora a Confusão
No entanto, embora esta regra seja absoluta, a discussão sobre a concordância é vasta, e inúmeros os casos particulares apontados pelos mais diversos autores.

Vamos, assim sendo, limitar o diminuto espaço desta prosa ao caso específico da errada mas recorrente concordância, em número, do predicado, não como o sujeito, mas com o complemento determinativo - ou complemento nominal, como lhe chamam agora 1 -, a qual, embora imprópria, é por alguns encarada como uma possibilidade legítima que cumpre contestar.

Não apresentam, naturalmente, qualquer fundamentação lógica para esta permissiva conclusão; ou, quando algum afloramento de explicação existe, não fornece ele, ao mais generoso intérprete, uma minimamente válida e efetiva justificação.

4. Onde Mora a Confusão

Existe, além da que já aqui vimos, pelo menos uma outra forma de dizer que nos referimos, unicamente, aos jogadores da equipa, expressamente excluindo os restantes elementos.

Para tanto, bastará dizer que “a equipa de jogadores representou bem as cores nacionais”, mantendo-se equipa como sujeito e representou como predicado, ambos no singular. Acrescentou-se, porém, a equipa o conceito de jogador, com o intuito de clarificar que se trata de uma equipa de jogadores, sem mais.

A este substantivo (jogadores) precedido de preposição, destinado a complementar ou a delimitar o sentido do sujeito da oração, damos o nome de complemento determinativo - ou complemento nominal, na nova nomenclatura.

Não pertence ao grupo dos complementos circunstanciais, dado que, em lugar de se referir às circunstâncias em que os factos ocorrem, exprime características essenciais de determinada pessoa, animal ou coisa 3. Pode ser composto por um substantivo (jogadores), por um pronome ou por vocábulos de outras classes da morfologia gramatical, embora seja o primeiro, o substantivo, que aqui nos interessa, por se tratar do caso que, frequentemente, degenera em erros na concordância em número que é, aqui, o nosso assunto.

A muito frequente confusão surge em virtude de o sujeito, equipa, ser singular, enquanto o complemento determinativo que o especifica, jogadores, se encontra no plural e mais próximo do predicado do que o sujeito.

Existe, nestes casos, uma tendência natural para conjugar o verbo no plural, concordando com o complemento determinativo, em lugar de o fazer no singular, como manda a regra da concordância com o sujeito.

Como exemplos recentemente colhidos de parlendas de políticos e de falas de apresentadores de telejornais – muito deles, uns e outros, pródigos na asneira - podemos focar-nos nos seguintes erros:

  O número de internados estão a diminuir

·         Estes são a terceira série dos mesmos papéis

·         Boa parte das pessoas não perceberam a intenção

·         Uma dezena de golfinhos foram avistados ao largo da Costa Alentejana

·         Mais de um milhão de cidadãos continuam sem médico de família

           * São aquele tipo de erros que custam a entender

·         O aumento de casos de gripe podem sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde

A regra da concordância do predicado com o sujeito impõe, evidentemente, que os predicados sejam, nestes casos, está, é, percebeu, foi, continua, é/custa e pode, concordando em número (singular) com o mais importante sujeito, e não com o complemento nominal, que lhe é, como a própria designação indica, meramente complementar.

Escusado será dizer que a concordância se impõe, também, no plural, como em "os casos de doença grave devem ser tratados em internamento".

 

5. Desculpas Esfarrapadas

Este erro frequente beneficia, desde há muito, de uma inexplicável tolerância, sustentando alguns gramáticos que, quando, por exemplo, o sujeito é uma expressão partitiva - como em boa parte das pessoas ou em um milhão de cidadãos - pode admitir-se que o predicado não concorde em número com o sujeito.

Como é habitual, não dizem porquê, limitando-se a citar autores consagrados que o tenham feito 2,4,5, ou dizendo, apenas, que tal acontece quanto “pretendemos salientar de um modo especial a ação do complemento 6 ou a respetiva quantidade, como se o erro mais não fosse, afinal, do que uma estranha espécie de silepse (concordância com o sentido da frase, e não com a regra gramatical), figura de costas largas, que serve para, supostamente, explicar tudo e mais alguma coisa para a qual se não consiga encontrar razoável explicação.

Não deixa, note-se, de ser verdade que, se alternativa não houver e interesses maiores deverem ser protegidos, qualquer regra poderá ser violada. No campo do Direito, disto são exemplos inevitáveis a sobejamente conhecida legítima defesa*) e a menos conhecida ação direta*).

No entanto, em Linguística, em Direito e em qualquer outra área do conhecimento, a ausência de fundamentação ou de explicação válidas para a violação de quaisquer normas torna-a indesculpável e, em si mesma, condenável, podendo ser facilmente confundível com a arbitrariedade que caracteriza as conclusões e decisões de quem exerce um poder factual sem que exista uma autoridade legítima ou legitimada a sustentá-lo.

Algum de nós irá, porventura, condescender perante a decisão de um mecânico de montar, no motor do automóvel que tivermos confiado aos seus préstimos, uma peça sem observar as instruções precisas e específicas do fabricante, assim expondo condutor e passageiros a consequências previsivelmente gravosas por, dessa forma, comprometer a segurança e a estabilidade da condução?

Claro que não!

Ora, em casos como aquele que aqui nos ocupa, estaremos, como já vimos, precisamente perante idêntica facilitação ou, até, em presença da preconização, por técnicos e peritos encartados, da violação de uma regra simplesmente porque um ou outro autor, talvez um poeta, algum dia dela nem se lembrou ou, deliberadamente, escolheu ignorá-la.

Apressam-se, então, a copiar a asneira para os compêndios escolares que publicam, sem minimamente explicar, com um mínimo esforço de racionalização, a razão de ser da preconizada exceção, apenas dizendo que é assim porque é assim, ou que é assim porque alguém assim escreveu, explicação que, no que à teoria se refere, vale nada, absolutamente nada.

Lembra a prática de fazer os alunos decorar, não procurando explicar, estimular a compreensão, o que poderá ter levado alguém, na primeira metade do século passado, a definir escola como “ambiente onde velhos microcéfalos desenvolvem nos jovens a memória, a expensas da imaginação”…

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Um caso específico a clarificar será, seguramente, o da concordância com o sujeito quando são referidas quantidades.

Haverá, quanto a ele, que especificar que a necessidade da concordância em número, embora por vezes essencial à compreensão exata das ideias expressas, é meramente formal, nada tendo a ver com a expressão da quantidade propriamente dita, mas unicamente com o modo como ela é expressa. Isto, demonstra-se sem dificuldade lembrando a diferença da concordância entre um milhar de pessoas foi e mil pessoas foram, caso em que ambas as formulações são corretas e, embora gramaticalmente diferentes em número, ambas as orações significam precisamente a mesma coisa.

Da mesma forma, sempre que nos referimos a quantidades incertas, a concordância faz-se com o plural, já que, tal como conjugamos o predicado no plural com, por exemplo, os advérbios mais menos - mais pessoas foram, menos pessoas foram -, também o devemos fazer com mais (de um milhão de) pessoas foram e em menos (de um milhão de) pessoas foram, ou em cerca de um milhão de pessoas foram ou, ainda, em mais de cinquenta pessoas foram.

Há que considerar, ainda, o caso estranho de mais de uma pessoa foi, e não foram, como mandaria a lógica se fosse sempre aplicada nestas coisas da expressão verbal 2.

Tudo isto não passa, no entanto, de casos particulares, de exceções desde há muito instituídas no idioma, e que são precisas, obrigatórias e pacíficas, pelo que, sobre elas, não fará sentido elaborar extensamente num texto que apenas reflete sobre a indefinição, o facilitismo e a incerteza gramaticais.

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Bem mais grave é, porém, pela aparência de seriedade da justificação, a outra alegação acima referida, que procura legitimar a violação da regra da concordância do predicado com o sujeito a pretexto de, pontualmente, se pretender evidenciar a ação ou a quantidade do complemento nominal.

Há, neste caso, que lembrar de que a violação de qualquer regra é absolutamente inaceitável, a menos que, nest caso para o efeito de evidenciação pretendida, não exista alternativa,

No exemplo jurídico acima, também a ausência de alternativa é condição essencial e necessária à aceitação da legítima defesa e da ação direta, ou facilmente cairíamos, por exemplo, na extinção prática do crime de injúria. Bastaria, para tanto, alegar que, com ela, apenas se pretendia intensificar a expressão da nossa opinião desfavorável em relação a determinada pessoa - o que  nada, em boa verdade, legitima e seria, obviamente, justificação inaceitável em qualquer situação.

Acontece, todavia, que, no noso caso, em lugar de “o número de internados estão a diminuir” a quantidade poderia, sem erro e muito simplesmente, ser evidenciada especificando-se “o elevado número de internados está a diminuir”, tal como, numa das outras frases, “o muito expressivo aumento de casos de gripe pode sobrecarregar o Serviço Nacional de Saúde” e assim sucessivamente, sem necessidade de violar qualquer preceito gramatical.

Desta forma, e dada a manifesta existência de alternativa, o incumprimento da regra gramatical não se mostra admissível, o mesmo acontecendo em qualquer equivalente situação.


6. Remate e Proposta

Desde que deliberado, e não por chã ignorância, aos poetas, tudo é permitido. Também aos romancistas. Até àqueles que, não sendo uns nem outros, escrevem para emocionar, para sensibilizar, para nos fazer vibrar.

Fechemos, assim, os olhos e os ouvidos ao que de menos correto lemos ou ouvimos em comentários políticos, em crónicas inflamadas, em alegações jurídicas, em apelos desesperados, em manifestos, assumindo, embora com evidente excesso de generosidade, que os tantos erros que por lá se dá o não são, realmente, antes deliberadas deturpações destinadas a intensificar esta ou aquela ideia.

Já no que é objetivo, como relatos ou relatórios de qualquer natureza ou tipo, textos académicos ou científicos, peças jornalísticas não opinativas, notícias de telejornais, em tudo, enfim, quanto se destine, meramente, a informar objetiva e friamente, o cumprimento das regras gramaticais deve ser absoluto e intransigente.

Valorizar o que É Substantivo
A razão para esta exigência é bem simples: se nem na forma um autor for capaz de demonstrar rigor, como tomar por fiáveis os factos que relata e a razão das conclusões que exprime e da respetiva fundamentação? Como valorizar aquilo que no texto é essencial, substantivo, quando manifesta ignorância está patente na forma como é escrito?

Tal como floreados de qualquer natureza devem ser, implacavelmente, afastados de um texto académico, científico ou, de um modo geral, de qualquer um que se queira igualmente objetivo, também os erros gramaticais deve ser banido, uns e outros apenas servindo para distrair o leitor da essência da matéria, daquilo que de importante o autor pretende transmitir-lhe.

Mesmo nos casos poéticos em que a liberalidade acontece, sempre ela deverá ser vista como um erro gramatical objetivo, nunca podendo servir para fixar uma espécie de jurisprudência linguística, por muito conceituado e ilustrado que se apresente o autor, que nem por isso deixará de estar prevaricar.

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Um pintor descreve a realidade como a vê, sem respeito pelos limites que a evidência lhe impõe. Mas essa transgressão apenas afeta a tela, não modificando a realidade, ou viveríamos no caos.

Da mesma forma, um escritor dá às suas frases a forma que melhor lhe parece exprimir as ideias, sem observar estritamente as regras gramaticais. Mas essa liberdade poética apenas deve afetar o texto, nunca servindo de fundamento para a alteração  das ditas regras, ou toda a estrutura do idioma irremediavelmente acabará por soçobrar.

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Com o propósito claro e único de combater a degeneração do idioma por via do facilitismo endémico e da injustificada submissão a artifícios apenas toleráveis no contexto poético, propõe-se a adoção generalizada e obrigatória dos seguintes princípios elementares:

*) Qualquer liberdade poética que viole uma regra gramatical será, para todos os efeitos e independentemente do estatuto e mérito do autor, considerada um erro, em todos os casos insuscetível de constituir precedente ou justificação para a adoção de exceção ou caso particular relativamente a uma norma estabelecida.
*) Em falas ou escritos científicos, académicos, bem como em quaisquer outros que, pela sua natureza ou propósito, se queiram objetivos e despidos de quaisquer ornamentos, é intolerável o recurso a liberdades poéticas, sendo a voluntária ou involuntária violação de qualquer regra gramatical considerada erro, exceto no caso improvável de, para transmitir a ideia pretendida, àquela manifestamente inexistir alternativa que observe o cumprimento estrito dos preceitos estabelecidos.

* *

Algumas e alguns não deixarão de criticar quem diz ou escreve que "um milhão de cidadãos foi", em lugar de "um milhão de cidadãs e de cidadãos foi".

Corresponderá esta estranha maneira de falar a uma linguagem verdadeiramente inclusiva? Estará, por outro lado, correta, do ponto de vista gramatical?


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


1)      CUNHA Celso e CINTRA Lindley – “Breve Gramática do Português Contemporâneo” – Edições João Sá da Costa, Lisboa – 15ª edição, 2002 –pp.103-104

2)      Idem, ibidem, pp.350

3)      FONTINHA, Rodrigo Fernandes – “Gramática Portuguesa Elementar” – Editorial Domingos Barreira, Porto – 2ª edição – pp.243

4)      TORRINHA, Francisco – “Gramática Portuguesa” – Edições Marânus, Porto – 7ª edição, 1946 – pp.309 – n.º 577, 3)

5)      GOMES, A. – “Lições Práticas de Gramática Portuguesa” – Livraria Simões Lopes, Porto - pp.168

6)      ALMEIDA, João, “Gramática Portuguesa” – Editorial Argos, Lda, Porto – pp.253-254