domingo, 1 de setembro de 2024
Tanto IRS ainda por Pagar...
quarta-feira, 13 de julho de 2022
Pois É, São outra Vez os Pirómanos, Coitados...
Neste triste caso, é inútil culpar os juízes.
Com a educação e formação de que beneficiaram, sobre a qual me dispenso de voltar a opinar, vêem à frente um desgraçado de aspeto miserável e ar alucinado, e tendem a aplicar-lhe a pena mínima. Suspensa, claro. Depois, apanha-se à solta e, o mais tardar, no ano seguinte volta ao mesmo, seja doente mental ou não.
Quem roubar, furtar, destruir propriedade alheia ou causar dano físico relevante a terceiro é, por via de regra, encarcerado, e por longos anos, especialmente se do ato resultar a morte.
Como entender, então, que a conduta de um criminoso que ateia um incêndio florestal seja punida com pena de prisão de um a oito anos*), sabendo-se que, tratando-se de réu primário, quase garantidamente será suspensa na sua execução por igual período? Ou seja, que o criminoso será libertado, ficando livre para reincidir, sempre na esperança de não voltar a ser apanhado?
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Um incêndio florestal causa muito mais dano às pessoas e às coisas do que um ato isolado. Causa, sobretudo, dano de uma forma descontrolada, de evolução imprevisível, como imprevisível é antever a dimensão dos estragos. Mas é, invariavelmente, enorme.
Já que os sucessivos governos são patentemente inaptos para proceder a reformas estruturais - quaisquer que sejam, entre tantas absolutamente necessárias -, ao menos promovam uma minúscula alteração da lei, fixando a pena mínima nuns mais do que razoáveis seis anos, por forma a garantir que, provados os factos, o juiz manda, mesmo, prender, impedido que fica de aplicar pena mais branda, designadamente uma que viabilize a suspensão na execução.
Claro que ninguém pode prever que no ano tal ou tal as condições meteorológicas irão ser estas ou aquelas. Pois se nem os cientistas conseguem, quantas vezes, fazer previsões para o dia seguinte!
Existe, no entanto, uma colossal diferença entre prever uma ocorrência e precaver-se contra a respetiva eventualidade. Precaver é criar condições para evitar a ocorrência ou, na impossibilidade, para minorar os seus efeitos nocivos; e, isso, está muito mais ao alcance dos mortais do que adivinhar que vem aí uma onda de calor ou uma tempestade.
Ainda no campo da prevenção, tratar de tornar as matas públicas espaços seguros com largos aceiros*) a intervalos de alguns quilómetros, assim evitando a propagação dos incêndios, seria, seguramente, muito mais eficaz e menos dispendioso do que, todos os anos, condenar-nos a assistir, impotentes, à destruição de florestas e dos bens que nelas se encontram; à destruição de vidas e à degradação da saúde de bombeiros e de outros profissionais ligados ao combate aos incêndios.
Ora, em vez disso, continua o Estado a preferir manter-se inerte na única vertente em que, falhando tudo o resto, seria muito simples e rápido criar condições para reduzir as ignições dolosas por parte de pessoas perturbadas ou ao serviço de interesses económicos bem conhecidos.
Vamos continuar muito humanistas relativamente a um punhado de doidos ou de autênticos javardos ao serviço de quem lhes paga, permanecendo inaceitavelmente desumanos para com os milhares que, todos os anos, os incêndios espoliam nas suas vidas, saúde e propriedade?
A quantidade de ignições acidentais reduziu-se, de forma muito expressiva, nos últimos anos. Como admitir, então, que o fogo posto continue, em boa parte, a ser responsável por um descalabro destes?
De que serve rasgar aceiros e gastar milhões em meios de combate aos fogos, se os loucos e os criminosos continuam, impunemente, por aí à solta?
Ainda alguém se espanta por o pequeno Portugal ter tantos e tão grandes incêndios?
O comodismo ou a falta de coragem para modificar uma única norma desfasada e obsoleta será, provavelmente, uma das principais, se não a principal razão.
quarta-feira, 29 de junho de 2022
Jéssica e a Bruxa
O assunto já foi amplamente noticiado, discutido e comentado.
Desnecessário será, assim, elaborar mais longamente sobre a maldade, a perversidade, a indiferença, presentes neste caso incluindo a indiferença da própria mãe que parece ter ficado inerte perante o estado calamitoso em que lhe foi entregue a filha moribunda*), em lugar de, prontamente, a levar ao hospital, como mandaria o coração de qualquer mortal, por maioria de razão o de um progenitor minimamente humano e apto a desempenhar o seu papel. Mas, desses, há cada vez menos...
Independentemente da tal capacidade económica que cada vez mais se confunde com classe social e pela qual todos se pisam e esgadanham para, no respetivo imaginário, subir mais um ou outro degrau, a triste realidade de boa parte dos lares portugueses vem, de há muito, sendo relatada pela comunicação social, mormente por aquela que mais aprecia e mais vibra com manifestações de tudo aquilo que de mais baixo, de mais podre, de mais horroroso,em suma, caracteriza o ser humano e se manifesta das mais diversas formas e nos mais variados meios.
Tampouco valerá continuar a fazer vibrar até à náusea a corda da falta de intervenção das autoridades competentes*), junto das quais o caso da Jéssica há muito estava devidamente sinalizado. Terá sido falha dos técnicos? Dos responsáveis? Falta de relevância nos orçamentos do Estado?
Haverá, naturalmente, que apurar responsabilidades individuais, bem como de refletir, exaustivamente, sobre a nunca mais chegada reforma estrutural da segurança social que, a par de muitas outras, continua nas gavetas ou nas pastas do Windows de quem tem outras coisas supostamente mais importantes e urgentes para fazer ou tratar.
O que, verdadeiramente, importa é ir ao cerne da questão, à causa imediata que está na origem de tudo o que aconteceu: uma dívida de umas centenas de euros da mãe, a uma bruxa que não terá hesitado em, cobardemente, exercer represálias sobre a filha da cliente devedora.
Diz quem sabe que esta situação não é caso único, tendo as autoridades judiciárias portuguesas entre mãos casos relacionados com autênticas redes criminosas dedicadas a atividades que irão desde o furto por meios eletrónicos até à perseguição de pessoas ao velho estilo das mafias sicilianas.
Estes bruxos e quejandos exploram, sem piedade, a crendice, a iliteracia, a ignorância, o medo e a insegurança que, a despeito dos atraentes números que enviamos lá para fora relativos à educação em Portugal, caracterizam uma parte muito considerável da população portuguesa.
Sabendo-se, como se sabe, da inutilidade, da inanidade, da falta de substrato científico em que se arrime a atividade profissional destes bruxos, videntes e sabe-se lá o que mais, como entender que serviços destes não sejam, simplesmente, proibidos, banidos? Pois não é verdade que qualquer um pode ser criminalmente perseguido por cobrar por produtos ou serviços que não correspondem ao anunciado, ou não produzem o resultado prometido?
Até quando, então, terão vítimas inocentes de sofrer a brutalidade desta inacreditável e anacrónica forma de exploração?
quinta-feira, 24 de março de 2022
Mário Machado e a Juíza de Instrução Criminal
Corre por aí uma onda de indignação pelo facto de, no quadro da aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência com apresentações quinzenais à autoridade policial, uma juíza de instrução criminal haver dispensado do dever de apresentação às autoridades o arguido num processo criminal por posse de arma proibida*).
Pondo de parte qualquer consideração de ordem subjetiva relativa à pessoa do arguido - e com a ressalva de que desconheço os textos completos, quer do requerimento, quer da oposição, quer decisão -, parece-me improvável que a agora mediatizada magistrada pudesse haver decidido de outra forma.
Antes de mais, não estando aqui em causa uma autorização para se ausentar do país - note-se bem que jamais foi exigida a entrega do passaporte... -, o único efeito prático da dispensa de apresentação às autoridades foi, salvo melhor opinião, o de permitir uma estada no estrangeiro por um período superior a duas semanas.
Apenas isto; e apenas isto relativamente a um indivíduo que, independentemente das desgraçadas ideias que alardeia e das pesadas condenações anteriores por atos com elas relacionadas, já pagou a dívida à sociedade mediante o cumprimento das penas em que foi condenado, apenas sendo, agora, arguido relativamente à eventual prática de um crime de baixa gravidade, como o é o de posse de arma proibida, punível, nos termos do art.86º do Código Penal Português, com prisão até três anos ou multa até 360 dias..
Neste quadro, com que fundamento poderia a juíza ter recusado um pedido, não para se deslocar à Ucrânia ou onde quer que fosse fora de Portugal, mas apenas para por lá permanecer mais do que os quinze dias de intervalo que lhe foram fixados?
Para lá da emotividade de uma sociedade e da exploração por uma comunicação social ávida de notícias, a verdade é que:
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para todos os efeitos legais, o arguido é presumível inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória;
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sair de Portugal, sempre pode: o pedido visa, unicamente, a possibilidade de permanência além de duas semanas em missão humanitária junto de um país invadido ao qual Portugal presta auxílio e apoio;
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risco de fuga nunca entenderam os tribunais que existisse, ou outra teria sido a medida de coação aplicada - e a decisão ora criticada tal risco, decididamente, não gerou;
- da prática dos dois outros crimes que lhe são atribuídos - de incitamento ao ódio racial e à violência - era, à data do despacho, um mero suspeito.
Ora, a juíza de instrução fundamentou o despacho dizendo que dada “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão, o arguido poderá deixar de cumprir a referida medida de coação enquanto estiver ausente no estrangeiro”, o que é consentâneo com os pontos acima enumerados: negar o pedido mais não seria, ao que tudo parece indicar, do que uma decisão arbitrária, subjetiva, politicamente motivada e, do ponto de vista estritamente técnico, notoriamente violadora, pelo menos, do princípio constitucional da proporcionalidade.
Mostra-se, assim, absolutamente ridículo, falso e manipulatório da opinião pública que estejamos perante uma "decisão que autoriza Mário Machado a ir lutar para a Ucrânia"*), ou que o assumido neonazi foi "autorizado pelo tribunal a combater na Ucrânia"*), ou que se pergunte por que razão Mário Machado foi autorizado a sair do país, ou qualquer outra mais ou menos insidiosa patacoada do género, aparentemente apenas destinada a vender assinaturas de jornais ou minutos de publicidade nas televisões, ou devida ao simples facto de, quem a escreveu, nem a parte relevante da fundamentação do despacho se ter dado ao cuidado de ler.
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Ninguém é mais crítico do que quem aqui escreve quanto àquilo que, em crescendo, a magistratura judicial portuguesa de si tem vindo a dar a conhecer, bem como das aberrantes e desumanas ideias defendidas pelas extremas mais extremas da política nacional ou internacional.
Mas, no momento em que começamos, impiedosamente, a crucificar inocentes servidores públicos pelo simples facto de terem proferido decisões acertadas, apenas como forma de exaltar os ânimos ou de desviar as atenções dos leitores e espetadores de coisas bem mais graves e preocupantes que se passam nos meandros da política portuguesa - como, por exemplo, as relacionadas com a formação do próximo governo constitucional; no momento em que tomamos conhecimento de perplexidades relacionadas com o despacho da juíza de instrução por parte de mediáticos juristas de quem se espera uma análise objetiva e fria das disposições da lei, não há como calar mais uma muito séria palavra de alerta para os perigos da prosápia e da excessiva e, por vezes, enviesada mediatização.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
Dom José Policarpo
Dom José Policarpo*)
(Grande Entrevista - RTP)
Até que ponto existirá, no ordenamento jurídico português, tal correspondência?
Não, apenas, na lei expressa, mas nas omissões à mesma, que acabam por ser também uma forma negativa de, muitas vezes por falta de caso ou de interesse, permitir que factos indesejáveis continuem a ocorrer, a despeito dos bons propósitos propalados.
Lembremo-nos, por exemplo, da recente anulação da votação dos emigrantes devido, presumivelmente, a uma má decisão numa matéria que não se encontra contemplada na lei eleitoral - ou, pelo menos, está-lo-á de forma menos clara.
Numa época em que tanto se fala de minorias, de igualdade de direitos, dos 'nossos emigrantes', não deixa de soar a uma certa hipocrisia que, nem para estes cidadãos para quem votar é um incómodo mil vezes maior do que para um residente em Portugal, esteja, ainda, disponível o voto eletrónico, que com todas estas falhas e inconvenientes viria, de uma vez por todas, acabar.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Lesados do BPN: A Grande Desilusão!
Assim, o facto de cerca de 80% dos processos decididos pelos Tribunais da Relação*) terem sido decididos a favor dos lesados do BPN jamais poderá ser causa invocável para atacar o recente e douto aresto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que decidiu que "para estabelecer o nexo de causalidade entre a violação dos deveres de informação, por parte do intermediário financeiro, e o dano decorrente da decisão de investir, incumbe ao investidor provar que a prestação da informação devida o levaria a não tomar a decisão de investir".
O que deve, neste trecho, causar perplexidade é, antes, o facto de, enquanto consumidores como qualquer um de nós, parecerem ter-se esquecido os Venerandos Conselheiros que votaram favoravelmente a decisão de que aquilo que plasmaram no acórdão foi, afinal, nem mais nem menos do que a conclusão de não ser válido o princípio, subjacente a todas as transações comerciais - muito especialmente no que se refere a valores mobiliários (cf art.7º do Código dos Valores Mobiliários) -, de que a exigência de informação completa e exata se destina, precisamente, à formação da vontade de adquirir por parte do comprador; e que a exigência do fornecimento de toda a informação relevante pressupõe que toda ela é, presumivelmente, relevante para a formação dessa vontade. Logo, a contrario, se alguma ou algumas das características estiverem errada ou insuficientemente referidas, há que concluir que a transação se não efetuaria.
Ora, in claris non admittitur voluntatis quoestio, ou seja: naquilo que é claro, não se admite pergunta quanto à vontade, princípio jurídico que poderá ter sido claramente violado pela polémica decisão.
Aplicado ao caso concreto, teremos que, sendo clara a relevância da informação exigida no processo de formação de decisão de aquisição, não é exigível que, relacionada com ela, se formule - ou demonstre - qualquer outra questão.
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Não obstante, e embora sem força obrigatória geral, encontramo-nos perante um acórdão que os tribunais de primeira ou de segunda instância apenas poderão contrariar apresentando extensa fundamentação - e dificilmente em casos análogos, já que se trata de um acórdão de uniformização. Acresce que, sendo tamanha a probabilidade de revogação, em sede de recurso, pelo STJ, poucos serão os magistrados que tal proeza ousarão.
Os princípios são sagrados, e deve ser intransigente e rigorosa a sua observação. No entanto, a apreciação ex cathedra de questões como esta pode levar - e, pelos vistos, leva - a algo tão simples e inacreditável como o que acaba de acontecer; é que, salvo melhor opinião, a decisão agora prolatada é aplicável, por analogia, a todo e qualquer produto ou serviço transacionado, o que significa que qualquer dos mesmos ilustres magistrados - e de todos nós - deixará de ter direito a exigir, no prazo contratual, a devolução de uma simples varinha mágica apenas alegando que não tem potência suficiente para triturar amêndoas, como era erradamente referido na publicidade: tem de demonstrar que, se soubesse que não servia para triturar amêndoas, não teria concretizado a transação.
Ou seja: na prática, fica completamente impossibilitado de ter sucesso na reclamação!
sábado, 4 de dezembro de 2021
Motorista de Cabrita: Negligência ou Dolo Eventual?
"Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante deveria,
pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia, a coisa parece deplorável,
feia, inqualificável. Demitiu-se do cargo, e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer.
Só pecou por tardar e por, na declaração da saída, tergiversar"
Quando um condutor amador como a maior parte de nós circula, a 166 km/h, numa auto-estrada em zona não sinalizada como nela decorrendo trabalhos de manutenção, e acaba por, inadvertidamente, colher e matar um peão, estamos perante um crime por negligência, com mera culpa. Ou seja: o condutor distraiu-se, ia a pensar que não tinha dado de comer ao gato antes de sair de casa, ou vinha aborrecido com alguma coisa, acelerou e não viu que um maluco qualquer ia a atravessar a faixa de rodagem numa zona onde ninguém deveria estar.
Neste caso, a culpa do condutor não reside no facto de ter atropelado quem, inopinadamente, apareceu a caminhar na auto-estrada, o que ninguém poderia prever. A culpa estaria no facto de não ter podido parar a tempo por circular com um excesso de velocidade de 46 km/h relativamente aos 120 km/h permitidos. Apenas isto; e, por se tratar apenas disto, estaríamos perante um homicídio por negligência, como tantos outros que, por essas estradas, acontecem e continuarão a acontecer.
Bem diferente é a situação de um motorista profissional que conduz na auto-estrada a 166 km/h e, sem abrandar, irrompe por uma zona de trabalhos devidamente assinalada, caso em que a velocidade máxima sinalizada seria, possivelmente, de 80 km/h. O excesso já não seria de 46 km/h, mas de 86 km/h, o que faz uma diferença muito grande. Mas, mais diferença faz ainda o facto de, ao contrário do primeiro exemplo, em que a presença do peão seria absolutamente inesperada, numa zona de trabalhos ser natural e expetável encontrar pessoas!
Quanto mais não fosse, apenas por isto, não se trataria, neste caso, de uma excesso de velocidade meramente negligente que teria tido como efeito dificultar o controlo do automóvel, mas de uma vontade de prevaricar estando plenamente consciente da fortíssima probabilidade de encontrar pessoas cujas vidas seriam postas em sério risco.
De outra forma dito, o motorista ter-se-ia conformado com o resultado mais do que previsível: causar danos irreparáveis à integridade física de terceiros ou, mesmo, tirar-lhes a vida.
"Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for
representada
como consequência possível da conduta,
há
dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização"
Código Penal Português, art.14º n.º 3 (Dolo Eventual)
Lá fora, existe a expressão depraved indiference. Indiferença depravada diz, de facto, muito mais da monstruosa dimensão da atitude assumida por estes criminosos perante o próximo que, aos seus objetivos, não hesitam em sacrificar.
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Daqui de longe, a única razão plausível para que, no caso do motorista profissional do Ministro da Administração Interna, agora acusado de homicídio por negligência, este tipo de crime tivesse sido escolhido pelo Ministério Público em lugar do de homicídio simples - com dolo eventual - seria a eventualidade de os trabalhos não terem sido devidamente sinalizados pela equipa que os executava*), o que a concessionária da auto-estrada prontamente desmentiu*).
Terá a omissão acontecido? Será isto plausível? Ou possível, até?
É que não estamos a falar daqueles empreiteiros de beira de estrada com raquetas encarnadas de um lado e verdes do outro, que quanto utilizam semáforos nem sincronizá-los devidamente sabem; que deixam os sinais de máxima trinta na berma da estrada durante todo o fim de semana sem que lá estejam máquinas ou quem quer que seja a trabalhar, ou os mantêm em vigor ao longo de uns bons cinco ou dez quilómetros para andarem por ali a aparar umas ervinhas enquanto, quilómetros atrás ou à frente, por vontade deles uma interminável fila de automóveis andaria, inutilmente, a pastelar.
Não. Estamos a falar de uma grande empresa, concessionária da maior parte das auto-estradas nacionais e com códigos de conduta e manuais de procedimentos estritos e completos, e com rotinas executadas por diversos elementos e controladas por diversos outros, todos eles com exigentes qualificações profissionais.
Mais simplesmente: alguma vez o Leitor passou por obras ou trabalhos numa auto-estrada portuguesa que não estivessem devidamente sinalizados largas centenas de metros atrás?
Eu, não.
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Sim. Do ponto de vista ético, pessoal e da solidariedade que o Governante deveria, pelo menos, aparentar para com quem, na altura, o conduzia, a coisa parece deplorável, feia, inqualificável. Demitiu-se do cargo*), e muito bem, que outra coisa não haveria a fazer. Só pecou por tardar e por, na declaração da saída, tergiversar.
Mas, por muito que nos doa, legalmente, o Ministro tem razão: era, de facto, um mero passageiro, cabendo ao motorista toda a responsabilidade pela condução do automóvel, como acontece, por exemplo, quando viajamos de avião. No avião, há o comandante, e nós todos, os outros: bloggers, políticos, governantes, sejamos quem formos, não passamos de passageiros nem mandamos o que quer que seja na pilotagem (e ainda bem...).
O mesmo acontecia no carro do Ministro, com a condução. A menos que... ele tenha sugerido ao motorista que estava com pressa, que fizesse o favor de se despachar, caso em que poderia ser acusado de cumplicidade ou de incitamento - coisa que, em qualquer caso, sem uma improvável confissão seria sempre difícil de provar.
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Seja o que for que tenha, de facto, acontecido, cabe agora aos tribunais averiguar.
Mas fica sempre aquele cheirinho a poder - perdão, a podre, que ser escreve de maneira quase igual.
Fica aquela suspeitazinha no ar...
Como quase sempre, em Portugal
"Age com dolo directo quem prevê e pretende intencionalmente a realização do facto criminoso.
sábado, 27 de novembro de 2021
Rendeiro: No Rescaldo de Uma Fuga
“Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir o
suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios.
Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo
condenado após amplamente discutida e validada a prova”
“Ao dizer que os juízes não obedecem a ordens, não está, implicitamente, o
CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se do Conselho
dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das medidas de coação
impostas ao Condenado?”
“Impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável
ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas
instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja
segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o
direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas
daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar”
1. Introdução
2. Enquadramento
2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial
2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses
2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional
2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais
2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial
2.6. Do Processo Penal
2.7. Da Discricionariedade
3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes
3.1. Síntese Cronológica
3.2. O Condenado
3.3. Oito Legítimas Interrogações
3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados
3.5. Os Políticos
4. Conclusão e Propostas
1. Introdução
Embora seja praticamente impossível não estarem direta ou indiretamente
presentes, independentemente do assunto da conversa, são os dois pilares
fundamentais da sociedade e, ao mesmo tempo, os dois temas sobre os quais,
dada a condição miserável em que em Portugal se encontram, mais me custa
escrever.
O primeiro, é a educação, pensada para que as pessoas saibam
comportar-se no melhor interesse da comunidade; o segundo, a justiça,
indispensável para que elas sejam encorajadas a assim agir, e sancionadas
quando não quiserem fazê-lo.
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Começamos, supostamente, a ser educados em casa, onde cada vez menos é
possível encontrar progenitores com qualificações educacionais, culturais e,
até, funcionais mínimas para uma educação saudável e efetiva saberem
assegurar, já que, para poderem procriar, as pessoas não estão obrigadas a
apresentar o diploma de uma formação em educação infantil e juvenil. E mesmo
que estivessem...
Segue-se, frequentemente, a creche ou o jardim de infância, onde, ainda hoje e mau grado as avançadas, certificadas e avalizadas novas teorias quanto à melhor forma de preparar para a vida os rebentos, a educação é transmitida por educadores, mesmo diplomados, que, ainda hoje e com a maior das descontrações, os ensinam a cantar o “Atirei o pau ao gato / Mas o gato não morreu / Dona Chica assustou-se / Com o berro, com o berro que o gato deu”, como ao passar por uma dessas escolas há não muito tempo e sem grande espanto ouvi.
Confrontados com belas e ternurentas canções como esta, não será de admirar,
anos mais tarde, a propensão dos jovens, outrora dóceis infantes, para a
violência e para a destruição - para as quais também são atraídos graças, em
não pequena parte, à necessidade de gerar lucros que assegurem a
prosperidade de certas empresas que produzem e comercializam conhecidos,
bárbaros e sumamente violentos jogos para consolas e computadores.
Mais tarde ainda, alguns acedem às profissões jurídicas, em cujo exercício
elaboram leis, dirigem inquéritos, acusam, defendem, julgam e decidem os
destinos de muitos dos tais que escolhem portar-se mal em clara
ofensa dos legítimos interesses de quem, melhor ou pior, goza da proteção
que o direito a esta sociedade de todos nós se destina a garantir.
Mas que nem sempre foi…
2. Enquadramento
2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial
Contrariamente ao que se entendia no tempo em que o Sol girava em torno da
Terra, os juristas, designadamente os magistrados, são seres humanos como
quaisquer outros, que começaram por ser crianças e jovens educados e
formados como quaisquer outros, para o bem de uns e para o mal e de
outros.
A sua atividade profissional visa – também como, teoricamente, qualquer
outra - o serviço da coletividade de acordo com princípios e normas
previamente estabelecidos, que a mesma atividade definem e condicionam. Não
são, como antigamente era uso olhá-los, criaturas quase divinas, dotadas de
incomensurável sapiência e da autoridade dela decorrente para, com quase
total discricionariedade e autonomia, decidir da sorte dos seus semelhantes
cujas ações hoje lhes compete identificar, avaliar e sancionar à luz do
princípio da legalidade, com objetividade, imparcialidade e lucidez.
Não se afigura, assim sendo, aceitável que alguns deles tendam, ainda, a
comportar-se como se divinos fossem, porquanto não deixe de ser verdade que
o destino de quem das suas decisões depende apenas possa ser decidido por
alguém que,
estritamente naquilo que importa à relação específica julgador-julgado, esteja acima dele, isto é, que detenha um ascendente legitimamente
conferido pela coletividade em que ambos se inserem: um poder tamanho e com
tão expressivo grau de independência que, porventura mais do que qualquer
outro poder, deva ser exclusivamente conferido a quem souber exercê-lo com a
indispensável idoneidade, autoridade, sapiência e moderação.
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No entanto, e tal como, nos mais variados planos, acontece com a
generalidade dos mortais, a personalidade, a educação e a formação de cada
magistrado judicial diferem substancialmente das dos restantes. Por isto
mesmo se encontra, quiçá com indesejável frequência, a par de indivíduos
incontestavelmente sérios, competentes, sabedores e, sobretudo, sábios,
outros indevida ou insuficientemente formados, incompetentes, corruptos, e,
até, conhecidos ou mesmo, condenados por comportamentos comprovadamente
lesivos dos interesses daqueles cujo cumprimento de deveres e exercício de
direitos lhes cumpre, paradoxalmente, exigir e assegurar.
Profundamente incrustados na mais funda essência da Humanidade, estes e
outros vícios são tão suscetíveis de afetar o desempenho de um juiz, como o
de quem exerce qualquer outra profissão.
Torna-se, desta forma, essencial para a transparência, para a
estabilidade e para a uniformidade e equidade na administração da justiça
que os poderes do juiz, sejam, em tudo quanto não prejudique a eficácia
global das decisões, estritamente limitados por legislação imparcial,
clara, precisa, obrigatória, coerciva, e, em cada lugar e época, adequada
à efetiva realidade social e cultural dos decisores.
A maior dificuldade reside, necessariamente, em assegurar o equilíbrio
entre, por um lado, a previsão dos limites formais indispensáveis ao
exercício da magistratura judicial e, por outro, a necessidade de garantir a
aplicação de uma justiça não apenas adjetiva, mas substantiva, que saiba
extrair conclusões válidas em presença do eterno confronto de interesses
entre a sociedade e o indivíduo que nela vive e nela se forma.
Não foi um poeta alemão que disse “Atentai, Senhor, que o interesse do Estado se não confunda com justiça”?*) Pois o inverso não deixa de ser verdadeiro: o interesse do particular em manter uma liberdade a que perdeu o direito - especialmente o interesse de um indivíduo já condenado e com a sentença confirmada em, pelo menos, uma instância - não pode, em caso algum, sobrepor-se ao superior interesse de uma comunidade que, entre outras considerações, veria a sua segurança seriamente ameaçada por uma eventual fuga daquele à justiça; para não falar do convite, face à descabida impunidade e por via do deplorável exemplo, à propagação do ilícito a outros de moralidade idêntica à daquele que, no caso, o tiver praticado.
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Sempre sem transigir perante a tentação do excesso - ou do protagonismo
mediático -, há de o juiz assegurar uma judicatura que, insista-se, sempre
no estrito respeito pelo princípio da legalidade, seja operante,
interventiva; que se não contente com o não fazer ondas, com a
decisão politicamente correta; que se não escude na pureza formalista do
estrito e ineficaz cumprimento da lei por parte de magistrados que ajam como
meros funcionários contratados para executar a tarefa menor que a
administração da justiça, seguramente, não é.
Seria, por exemplo, incompreensível que, na fixação de medidas de coação visando a neutralização do risco de fuga de figuras públicas com substanciais meios de subsistência e já condenadas em primeira e, até, em segunda instância, se não vissem os condenados imediatamente privados, pelo menos, da posse do respetivo passaporte: não sendo, evidentemente, possível evitar completamente a fuga mediante a simples apreensão do documento, não menos difícil será vislumbrar razão objetivamente aceitável para que um tribunal mantenha as condições ideais para que ela se verifique.
Mas, acontece…
2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses
Independentemente da motivação subjacente e do facto de com ela se concordar ou não, a Comunidade Europeia decidiu, há não muito tempo, aumentar abruptamente a quantidade de licenciados, em qualquer área, mediante o processo de convergência académica iniciado com a celebração do acordo de Bolonha*) - o qual, como é sabido, reduziu, substancialmente, a duração da formação numa época em que, paradoxalmente, existe um cada vez maior acervo de conhecimentos a exigir maturada assimilação.
Por maioria de razão, numa área tão sensível e, paralelamente, de tamanha
responsabilidade como aquela de que aqui falamos, qualquer défice estrutural
ou pontual na derradeira fase da preparação para o exercício de uma
profissão não tardará, algures no sistema judiciário, a fazer sentir os seus
efeitos, arriscando-se a acarretar danos reputacionais muito sérios e
dificilmente reparáveis para a credibilidade e para a confiança que sempre
deverá ser possível e natural associar aos próprios conceitos de
justiça e da sua aplicação.
O subsequente decaimento da qualidade da formação técnica dos juristas portugueses foi, recentemente, objeto de severo reparo pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, que propôs a exigência de maiores qualificações académicas*) aos candidatos a advogados que tiverem concluído a licenciatura já na vigência das alterações decorrentes do referido processo de aceleração da formação.
Por razões difíceis de descortinar – quem sabe se relacionadas com a tal
ideia de intocabilidade da magistratura que dominava no tempo em que o Sol
girava em volta de nós… -,
parece a ninguém ter ocorrido que de igual défice formativo iriam,
inevitavelmente, padecer os restantes agentes judiciários com formação
universitária de nível superior, designadamente os magistrados
judiciais,
também eles passados a ser formados à pressa, pelo menos naquilo que
ao tronco comum da licenciatura em Direito se refere.
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Recuando algumas décadas, não podemos esquecer-nos de que, mesmo antes do
atual descalabro da qualidade da formação académica, já a maior parte dos
magistrados e advogados mais veteranos agora em atividade em Portugal tinha
sido, também ela, formada e ensinada depois de uma outra dramática
degradação do ensino - porventura bem mais séria do que a de Bolonha - nos
anos que se seguiram à Revolução dos Cravos que amplamente proclamou os
direitos universais à educação, à justiça e à
saúde.
Acontece que, embora todos eles sejam direitos essenciais cujo
reconhecimento em Portugal há muito tardava, dos três, é o direito à
educação o primeiro dos primeiros, pois que, sem ele, qualquer outro carece
de sentido, seja por da sua existência nem nos consciencializarmos, seja
por, mesmo conscientes, não reunirmos os requisitos intelectuais e
formativos para o viver em plenitude.
Para tanto, era necessário tempo. Algo que o legislador de então não
tinha.
Bem pelo contrário, a necessidade sentida por alguns políticos de
apresentar serviço a um eleitorado sôfrego de mudança a qualquer
preço – ainda que não houvesse com o que a realizar e com o que a pagar –
fez o País mergulhar a pique num processo de artificiosas
equivalências que, de equidade, nada tinham; e, por via delas
permitiu-se que impreparados estudantes dos primeiros anos de
bacharelatos passassem a poder lecionar, a poder educar, nos ensinos
preparatório e secundário, sem qualquer competência técnica ou pedagógica
para o fazer com um mínimo de qualidade e de rigor.
Entre largas centenas de exemplos, para lecionar a disciplina de Matemática no ensino secundário bastava ter aprovação em quatro cadeiras anuais do bacharelato em Administração e Contabilidade.
Era mau, era péssimo, e muitos o sabíamos. Mas, o que importava era que,
sempre que era chamado a votar, o povo estivesse convencido de que, “agora, todos temos direito à educação”; ou, pensava-se, os votos não tardariam a refletir a sensação de
incumprimento das promessas políticas alardeadas pela Revolução e que eram,
afinal, aos olhos dos oprimidos a sua principal motivação. Uma vez mais, “por prevalecer o número de votos mais que o peso das razões”.
Claro está que, sem professores devidamente habilitados, andavam os governantes a vender ao povo gato por lebre, valendo o facto de, da esqualidez do resultado da lecionação, os eleitores se nem aperceberem, fosse pelo entusiasmo dos tempos então vividos, fosse por não deterem, para que dela se apercebessem, a necessária… educação.
As ditas equivalências, de efeitos irreversíveis e de facilitismo e
demagogia inenarráveis, estiveram na origem de muitos dos efeitos nefastos -
que, muitas décadas depois, perduram e, por muito tempo ainda, perdurarão -
sobre o desempenho de indivíduos afetos às mais variadas profissões.
Inevitavelmente, resultaram, também, em impactos demolidores na generalidade
das áreas científicas, designadamente na do direito, com inevitável e bem
patente prejuízo para a qualidade atual da justiça e da sua
administração.
2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional
O que antecede não pretende, evidentemente, desvalorizar a competência e a
qualidade profissional de todos os portugueses ou, sequer, de
todos os atuais profissionais da educação, da justiça ou de qualquer
outra área afetada pelos desmandos desses gloriosos, mas conturbados,
tempos. Pessoas competentes, empenhadas e com qualidades intrínsecas de
relevo sempre existirão e, nos mais diversos campos, continuarão a
formar-se; desde, claro está, que preferencialmente o façam por elas
próprias, ou tenham a ventura de ter pais que devidamente as eduquem e
mestres que saibam ensiná-las - o que, convenhamos, nos dias que correm não
é coisa de fácil constatação.
Onde quer que se encoraje a formação, à pressa, de pessoas que venham a
executar determinada tarefa, inevitável se torna que a quantidade se
sobreponha à qualidade, quer da aprendizagem técnica, quer, não raramente,
até da formação da personalidade.
Num tal quadro, a verdade é que, jurista ou não, ninguém pode ser
responsabilizado por ter aterrado no meio de um destes dois pretéritos mas
imparáveis processos de degradação pedagógica e educacional, nos quais
alguém notoriamente impreparado acaba a formar alguém que, necessariamente,
fica, pelo menos, tão impreparado como o formador e como aqueles que, por
sua vez, poderá acabar a formar também; e assim sucessivamente, até
chegarmos ao ponto desgraçado em que hoje nos encontramos – e nem será bom
tentar imaginar como, daqui a poucos anos e por via de uma espiral
aparentemente irreversível, pior ainda acabará por ser.
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Porém, factos são factos; e, no que respeita à magistratura, a imprensa não
cessa de apontar casos – que alguns de nós diretamente presenciaram ou nos
quais participaram, até - que nos levam a concluir por uma falta de
qualidade gritante, quer na fundamentação das decisões judiciais, quer nos
apartes a despropósito lavrados nas mesmas ou proferidos ao vivo; quer,
ainda, na quase sistemática falta de pontualidade de alguns juízes na
comparência a audiências de julgamento, ou na arrogância prepotente e parola
com que se dirigem aos seus interlocutores, arguidos ou não.
Esquecem-se ou ignoram, porventura, que é o alto cargo que deve ser
dignificado pelo desempenho e pela postura do magistrado judicial: não o
cidadão, simplesmente porque o ocupa. Esse, apenas é
meritíssimo enquanto exerce a função ou nela se jubila, deixando de
ser meritíssimo quando opta por diferente mister.
O respeito devido a um magistrado judicial não advém de um estatuto de
superioridade que lhe seja conferido pelo simples facto de ter apresentado
ao Estado que o emprega um qualquer certificado de habilitações: decorre da
dignidade, imprescindibilidade e enorme responsabilidade social e humana de
uma função que, nos dias de hoje, as notícias e aquilo que diretamente se lê
nas decisões e vê nas salas de audiências sugerem estar nas mãos de cada vez
mais pessoas menos aptas e pouco preparadas; muito relativamente idóneas
para, com eficácia, competência e, sobretudo, discernimento e sensatez,
exigir de cada um aquilo que deve à sociedade, e a esta aquilo que deve a
cada um.
Porventura mais do que qualquer outra atividade, médicos, professores e
juristas hão de, sempre, estar acima de qualquer dúvida quanto a eventuais
défices de idoneidade ou de competência; e, o que os torna idóneos e
competentes, é a exigência, pelos próprios e por terceiros, de excelência em
todas as vertentes do desempenho das suas nobres profissões.
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Para a lei ser eficaz, importa que haja quem a aplique, não propriamente
prolatando espampanantes e pesadas sentenças, mas, sobretudo, garantindo
que, seja a sentença qual for, ela será, efetivamente, executada.
Acontece que, apesar de aparentadas no direito, a função de um magistrado judicial não é comparável à de um notário ou à de um conservador, salvo o devido respeito por estas importantes profissões. Enquanto aos últimos compete aplicar e fazer cumprir procedimentos estritos, inalteráveis e com praticamente todas as possíveis cambiantes dos atos previstas em códigos específicos, o mesmo acontecendo como as circunstâncias suscetíveis de os afetar, ao primeiro cumpre interpretar a lei e aplicá-la às circunstâncias específicas do caso concreto, exercendo um poder discricionário consideravelmente lato. No caso da fixação de medidas de coação, talvez demasiado lato, até…
Não é fácil. Já no século XVII alguém dizia que “o dever dos juízes é administrar a justiça; a sua profissão, diferenciá-la. Alguns deles conhecem o seu dever e exercem a sua profissão” *).
Tão amplos poderes e tão vasta discricionariedade não são, evidentemente,
compatíveis com défices de inteligência, de sensatez, de aprendizagem, de
formação, ou, genericamente falando, de educação. Bem pelo contrário:
exige-se de um magistrado, judicial ou não, o conhecimento abrangente, não
apenas da lei, mas também da realidade social, além do raciocínio lógico
superior, da sabedoria e da postura indispensáveis a quem detém nas suas
mãos a possibilidade de, nos termos da lei, privar terceiros do direito
fundamental à liberdade.
Alguém citava, há pouco tempo, um juiz segundo o qual “para despachar processos, é necessário 75% de bom senso e 25% de
direito”. Lá saberá da sua razão…
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Um juiz não nasce juiz. Faz-se. Com o tempo. Com muito tempo.
Na medida em que o resultado de um eventual erro seja, previsivelmente,
suscetível de indignar e de prejudicar o direito de centenas de pessoas, de
milhares de pessoas, de toda uma coletividade, até, será imperdoável e
irresponsável, por parte do legislador, permitir que se confie a direção do
processo a juízes de fracas características pessoais ou profissionais,
irresponsabilidade que apenas seria equiparável à de uma companhia que
confiasse, a um jovem piloto com escassas horas de voo, os comandos de um
gigantesco e repleto avião comercial.
Há coisas que não se faz; que, simplesmente, não podem acontecer.
2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais
Uma das principais atividades intelectuais do juiz – e espirituais, dada a
forte dose de subjetividade - é a ponderação.
Opera nas mais diversas operações lógicas requeridas em todas as etapas de um processo judicial ou de inquérito. É o caso, por exemplo, da ponderação do valor da prova apresentada - já que, se fosse valorada ad libitum por qualquer um, bastaria que um menos preparado investigador tropeçasse em algo que considerasse “prova” para o infeliz acusado estar condenado sem apelo nem agravo, ainda que no meio do mais despudorado atropelo dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.
Uma vez o agente considerado culpado, cabe ao julgador ponderar, também, a
medida da pena, adequando-a, dentro dos limites definidos na lei, à
personalidade do acusado e às circunstâncias do caso concreto.
Aquele que aqui interessa, de entre os pressupostos destas últimas, é a constatação, pelo juiz, da existência de perigo de fuga*), competindo-lhe, sempre no estrito cumprimento dos requisitos legais, decretar a medida quando entenda necessário evitar que um qualquer espertalhão com a manha a transbordar-lhe dos olhos, do rosto, da postura, da atitude, da fala, daquilo que se quiser – que pode ser quase tudo… - vá de férias até paragens longínquas para não mais voltar… provavelmente até à prescrição do processo*) ou à prescrição da pena*), se por outras terras entretanto se andar a pavonear.
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Os olhos são, diz-se, o espelho da alma, e neles estará, mais do que em qualquer manual, refletida a verdadeira dimensão do risco de fuga, da intenção de ao castigo se furtar. Mas, os olhos, não é qualquer um que os sabe ler, e, para que a ponderação – e, de um modo geral, a atividade judicativa – seja eficaz, pelo menos quatro qualidades deve um juiz de julgamento ou de instrução apresentar.
Antes de mais, a capacidade intrínseca, já que, tal como seria
inconcebível a mera ideia de um cirurgião que não possa ver sangue, a de um
piloto de linha aérea que tenha medo das alturas ou a de um contabilista
incapaz de contar, por maioria de razão o seria a de um juiz deficitário no
que se refere ao processamento lógico, ou com inconfessáveis vícios de
caráter, ou padecendo de, ainda que ténue, sociopatia ou maleita
similar.
Seguem-se, inevitavelmente, a formação pessoal cuidada,
desejavelmente começada em casa e, na devida idade, continuada na escola, e,
na universidade, a
aprendizagem aprofundada das coisas do direito,.
Mais difícil de encontrar - e, no entanto, igualmente essencial - é o último
destes quatro requisitos:
um amplo conhecimento da realidade das pessoas e das circunstâncias das
suas vidas, personalidades, relações, gostos, afinidades, atividades, a
fim de, ao julgar, permitir atenuar os efeitos das inevitáveis diferenças,
já que “um homem só pode ser perfeito juiz das ações de outro homem quando entre
ambos se dão absolutamente as mesmas condições de existência. Desde que estas variam, varia com elas a maneira de ver as coisas”.
2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial
No caso do juiz do foro criminal, a arte da ponderação desenvolve-se, sobretudo, não na universidade ou no Centro de Estudos Judiciários*) (CEJ), mas através da experiência adquirida no contacto de proximidade com investigadores, com testemunhas, com alegados e confirmados infratores, proximidade essa impossível de conseguir no ambiente de inevitável distanciamento inerente a uma audiência de julgamento.
Como alguém disse, para ser justo, um juiz tem de ser capaz de calçar os
sapatos do criminoso; mas isso passa por saber, por experiência própria, o
que é uma investigação, por ter intervindo em muitas delas, contactado com
vítimas, delinquentes, defensores.
Visto muito, ouvido mais, falado pouco.
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Em contrapartida, esta relação de proximidade caracteriza boa parte da
função do magistrado do Ministério Público, que é, afinal, o advogado do
Estado.
Até meados dos anos setenta do século passado, esta magistratura constituiu
uma primeira etapa obrigatória para o acesso à magistratura judicial.
Foi-lhe, então, conferido estatuto de autonomia: segundo uns, para
dignificar magistrados do Ministério Público que, desgostosos e infelizes,
se olhavam como um mero primeiro degrau da escada conducente à magistratura
judicial; segundo outros, para o Estado rapidamente satisfazer a necessidade
premente de produzir, à pressão, a tal grande quantidade de novos juízes a
fim de parecer satisfazer os requisitos do já aqui falado acesso universal à
justiça - mesmo a uma justiça de substancialmente menor qualidade, como
inevitável seria nas descritas condições.
Acresce, necessariamente, que,
de um ponto de vista funcional, os magistrados do Ministério Público são,
e serão sempre, meros advogados do Estado, logo, parte interessada nas
demandas judiciais, jamais podendo, sensatamente, considerar-se a sua
magistratura equiparável à de um juiz, na medida em que sempre às decisões
deste se terão de sujeitar.
Chega, assim, a ser ridícula a insistência na equiparação, antes urgindo
reverter, no mais curto espaço de tempo possível - e a despeito da
inevitável vozearia em contrário - a separação de carreiras, voltando à bem
mais eficaz e promissora progressão. Sobretudo, sendo cada vez mais pobre a
formação.
Se a motivação da separação foi o ímpeto revolucionário ou a pressa em
aumentar a quantidade de magistrados judiciais, a opção explica-se pelo
facto de as revoluções tenderem a racionar com o coração, a tal ímpeto ainda
havendo que aliar a proverbial incompetência de decisores políticos então,
como hoje, completamente falhos de estratégica visão.
Se a bem diferente motivação foi a dignificação dos magistrados do Ministério Público, teremos de nos perguntar: até que ponto é legítimo, em democracia, que o interesse na exaltação da imagem de uns poucos comprometa, de tal forma, a qualidade do desempenho de uma justiça que a todos interessa e sem a qual, em democracia e em liberdade, não há como viver?
2.6. Do Processo Penal
Se todos fôssemos condutores conscienciosos e tecnicamente aptos a
determinar, em cada situação, como deveremos comportar-nos ao volante de um
automóvel, o cada vez mais encorpado Código da Estrada seria dispensável,
redundante - sem prejuízo de ser sempre conveniente saber se devemos
circular pela direita ou pela esquerda, e mais uma ou outra coisa...
Todavia, e tal como acontece com muitas outras leis, o Código da Estrada
destina-se, antes de mais, aos menos competentes para conduzir, seja do
ponto de vista técnico, seja do de um personalidade tendencialmente mais
virada para o interesse do próprio e indiferente às necessidades e aos
direitos dos outros.
A estas motivações, não é exceção o Código de Processo Penal.
No entanto, face a lapsos que permitam fugas airosas de criminosos
condenados por sentenças transitadas em julgado e provavelmente relapsos, há
que concluir que, tal como uma cada vez maior quantidade de acidentes
rodoviários vem determinando normas objetivas cada vez mais
apertadas para a condução, também, numa altura em que tanto se fala
de juízes e raramente pelas melhores razões, cumpre apertar os
códigos de processo e a conexa legislação.
A fim de assegurar um rigoroso e ponderado critério - não apenas na fixação das penas mas no crítico processo de assegurar que serão, efetivamente, cumpridas -, haverá que garantir, com força de lei, que as decisões relativas aos processos mais sensíveis são confiadas a indivíduos, não apenas devidamente ensinados, mas que tenham, de facto, aprendido a lição do direito e, em pelo menos igual dose, a experiência apenas ensinada pela vida e pelo intenso e prolongado exercício da magistratura, designadamente no Ministério Público; e, mais tarde, com vasta experiência como copilotos, como juízes asa, antes de serem chamados à presidência de um desses julgamentos de mais mediática decisão.
Poderá argumentar-se, não sem razão, que também o legislador que irá
introduzir, na lei, as necessárias alterações terá sido, muito
provavelmente, formado nas mesmas escolas e épocas já referidas. Mas, como
para legislar, basta meia dúzia, enquanto, para administrar a justiça, são
necessários milhares, maior será a probabilidade de escolher bem essa meia
dúzia, do que a de que a justiça seja, com excessiva discricionariedade, bem
administrada por largas centenas de pessoas pouco preparadas e apenas
sujeitas às permissivas normas processuais que atualmente a regem.
Principalmente, no que se refere à aplicação de medidas de coação.
2.7. Da Discricionariedade
Discricionariedade não é sinónimo de arbitrariedade.
Ora, este fumo, não há como não o considerar, incomensuravelmente,
mais opaco no caso de um indivíduo condenado, do que no de um mero
suspeito acabado de deter. Assim,
o rigor na aplicação de medidas de coação a indivíduos já condenados em
alguma instância terá de ser, necessariamente, maior do que em igual
diligência relativa a meros suspeitos.
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Por outro lado, além de não ser confundível com a arbitrariedade, a discricionariedade significa poder, e o poder gera responsabilidade, por dele ser a eficácia um inseparável pressuposto.
Fazer o que a lei permite não significa fazer tudo aquilo a que ela
obriga: no caso das medidas de coação,
a obrigação do juiz que as decide, o que lhe dá tão amplos poderes, é
evitar a fuga. Logo, quando não evita, ainda que por mero erro, não cumpre uma lei que
lhe dá os poderes e meios, todos e mais alguns, para não falhar.
A lei prevê, é verdade, que o juiz possa aplicar a medida de termo de
identidade e residência, sem entrega do passaporte. Mas, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas
nos artigos anteriores”, fica o mesmo juiz obrigado a decretar outras. São essas as
palavras que introduzem os preceitos do Código de Processo Penal relativos
às medidas de coação mais gravosas, palavras que não deixam margem para
qualquer dúvida quanto à responsabilidade exclusiva do julgador na
determinação da forma como irá coagir o sujeito a apresentar-se, de como
irá, através dela, servir as exigências de natureza cautelar do
processo.
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No que tange, especificamente, a aplicação do princípio da proporcionalidade na fixação da medida, se os juízes se mostram, manifestamente, incapazes de o contemplar, impõe-se ao legislador que tal défice de capacidade cuide de, significativamente, atenuar; de, sem demora a sua posição quanto a este assunto vir clarificar.
Isto porque, se, na determinação das medidas de coação, o comportamento do alegado criminoso dever ser objeto de análise e julgamento diferenciados exclusivamente segundo o melhor critério do juiz, a justiça jamais será servida por magistrados que não estejam, minimamente, habilitados a processar, com razoável rigor e sensatez, as informações que tal diferenciação permitam, eficazmente, viabilizar
Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir um
suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios.
Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo
condenado após amplamente discutida e validada a prova.
3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes
3.1. Síntese Cronológica
Muitas são as etapas, e disperso o que foi publicado sobre os acontecimentos que antecederam a fuga.
A fim de que todos saibamos, com a exatidão e isenção permitidas pelas notícias dos factos, o que está em causa nesta reflexão, comecemos por uma breve resenha, ordenada e documentada - poderá selecionar os texto antes de cada *) - daquilo que se relaciona com a epopeia judicial do Herói desta pequena história:
a) Primeira Condenação
i. por falsidade informática e falsificação de documento, foi, em 15 de Outubro de 2018, condenado à pena de cinco anos de prisão, com possibilidade de a mesma ser suspensa mediante o pagamento de quatrocentos mil euros a uma instituição particular de solidariedade social*);
ii. no início de Julho de 2020, o Tribunal da Relação de Lisboa agravou o castigo para cinco anos e oito meses, assim afastando a possibilidade de suspensão - limitada por lei a penas até cinco anos*) - tornando a pena efetiva*);
iii. em Dezembro de 2020, o Condenado propôs ao Supremo Tribunal de justiça (STJ) pagar ao Estado cem mil euros adicionais a troco de não ter de cumprir os cinco anos e oito meses de prisão;
iv. em 24 de Fevereiro de 2021, o STJ rejeitou a proposta e confirmou a condenação*);
v. em 8 de Junho, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu não admitir o recurso entretanto interposto*);
vi. em 15 de Julho, e ainda no regime de termo de identidade e residência – sem apreensão do passaporte - decretado por, pelo menos, um dos tribunais, o condenado partiu para uma estada na Costa Rica*);
vii. violando a lei*), forneceu, como morada de contacto, unicamente a da Embaixada de Portugal, não tendo, apesar disso, sido alterada a medida de coação de termo de identidade e residência, sem entrega do passaporte*);
viii. em 16 de Julho, iniciou-se o período de férias judiciais, nos termos do art.28º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto*);
ix. em 20 de Julho, o TC confirmou a inadmissibilidade do recurso*)
x. em 29 de Julho, a Imprensa noticiava que “vai para a prisão mas só em Setembro, depois das férias judiciais”*);
xi. regressa da Costa Rica a 21 de Agosto, ainda
durante o período de férias judiciais;
xii. em 24 de Agosto, noticiava-se que o “Conselho da Magistratura (CSM) vai reunir informação sobre cumprimento de pena de João Rendeiro”*);
xiv. em 9 de Setembro foi entregue ao CSM a relação de factos mandada elaborar em 24 de Agosto*);
xv. regressado, entretanto, a casa, voltaria o Condenado a sair, em 12 de Setembro de 2021, para ir tratar da saúde a Londres, uma vez mais violando a lei ao informar, unicamente, a morada da Embaixada de Portugal*);
xvi. em 17 de Setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou o trânsito em julgado, na véspera, da mais recente decisão do TC, assim se tendo a condenação tornado irrecorrível*);
xvii. em 22 de Setembro, os advogados do assistente BPP pedem um reforço das medidas de coação, alertando para o perigo de fuga*);
xviii. em 29 de Setembro, informou o Condenado estar em parte incerta e não ser sua intenção regressar a Portugal para cumprir a pena correspondente à condenação transitada em julgado*);
xix. com data de 30 de Setembro, o CSM publica uma “Nota à Imprensa – Processos João Rendeiro” contendo a relação de factos (documento que tinha em seu poder desde 9 de Setembro) resultante da diligência que ordenara em 24 de Agosto.
b) Segunda Condenação
xx. Entretanto, acusado de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento de capitais, foi, em 14 Maio de 2021, o Herói desta história condenado a mais dez anos de prisão efetiva, considerando a Juíza que o Condenado “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”*);
xxi. no mesmo acórdão, diz-se que os arguidos foram “condenados de forma exemplar e expressiva porque os factos que praticaram são graves” e a comunidade não entenderia outra medida*);
xxii. ainda em 30 de Setembro, a imprensa noticia o entendimento da juíza presidente de que, até 19 de Julho, inexistia “qualquer informação da qual pudesse antever-se um concreto perigo de fuga”*);
xxiii. na mesma data é noticiado que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses vem dizer que, até 13 de Setembro – e não 19 de Julho – “não havia fundamento legal para sujeitar o arguido a medida de coação mais grave que o termo de identidade e residência“*)
c) Terceira Condenação
xxiv. A 28 de Setembro de 2021, véspera da oficialização da fuga, noticiava-se que havia sido condenado num outro processo, desta vez por burla, a mais três anos e meio de prisão efetiva*).
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O Condenado não esteve presente na leitura de qualquer das decisões, no caso
da mais recente por já se encontrar em fuga.
Dado que este texto versa, precisamente, sobre essa fuga e sobre as razões que a ela poderão ter conduzido, não será aqui desenvolvido o referente a outros eventuais erros, jurídicos e outros, em decisões com ela apenas indiretamente relacionadas ou a ela posteriores, como a detenção ilegal de um outro condenado para cumprir pena antes do trânsito em julgado da decisão*), o inocente com nome idêntico que, depois da fuga, o tribunal andou a tentar apanhar*), o desaparecimento de algumas obras de arte que o Estado não tinha condições para guardar, ou o facto de não ter sido evitada a respetiva substituição por falsificações*) e a recusa da declaração de contumácia pelo tribunal de execução de penas, que se declarou incompetente, porque um juiz de julgamento se esqueceu de preencher uns editais.*)
Mas, tudo isto, confrange, de facto.
Para a imagem do sistema judiciário e do País, tanto amadorismo é
desolador…
3.2. O Condenado
Convirá salientar que não está aqui em causa um narcísico e, porventura, alucinado Robin dos Bosques à portuguesa que, juntamente com alguns outros, tenha subtraído, de um balcão de banco, um comparativamente magro pecúlio destinado a contribuir para financiar uma revolta armada; ou, se a história se passasse há poucos anos, que o tivesse feito para mandar plantar rotundas onde mal passam carros, ou parques infantis onde não brincam crianças; ou ainda, seguindo a atual moda das campanhas eleitorais, para mandar construir cada vez mais prometidas creches para as nossas criancinhas, numa altura em que a estatística teima em afirmar que cada vez mais vai encolhendo a lusitana população.
Nada disso.
Quem, assumidamente, fugiu à justiça foi alguém diversas vezes condenado por
crimes típicos dos escroques, alguém que agiu exclusivamente em proveito
próprio e no dos seus sequazes; e que, tal como outros bem conhecidos que
operam ou operaram no mesmo ramo ou em ramos da mesma árvore, quis fazer
crer que se dedicou à atividade comercial para viver, não apenas de
legítimas mas cada vez mais absurdas taxas rotineiramente cobradas a
clientes, como também da falsidade e da burla daqueles que ainda acreditam
que, quando alguém lhes acena com uma das expressões juros altos ou
capital garantido, é certo e sabido que foram eles os
escolhidos para receber o pecúlio, o maná que a
benemérita instituição mal pode esperar por lhes depor nas mãos.
Esquecem-se, evidentemente, os patéticos incautos de que, se o juro fosse
tão bom e o negócio tão garantido, quem os promete preferiria ficar com
eles, em lugar de, altruisticamente, partilhar…
Conhecedor da complacência da legislação processual penal portuguesa, sabia
muito bem o Condenado que, praticamente, nenhum risco correria ao regressar
da Costa Rica em meados de Agosto - quando ainda decorria o longo
descanso que os juristas não deixam tirar-lhes - já que,
incompreensivelmente, o legislador não parece ter julgado necessário, mesmo
em casos de tamanho impacto social e de tão evidente risco de fuga, impor
normas objetivas à atividade dos juízes de turno nesse período mais
vulnerável, no sentido de, preventivamente ou não, já condenados malandros
rapidamente enviar para a prisão.
Parece que sabia, também, o nosso Herói – ou, pelo menos, contava com isso -
que, apesar de tido como não possuindo ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, exibindo uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento”, só muito dificilmente veria agravada a generosa medida de coação que lhe
fora aplicada.
Apesar de tudo, o risco era grande. Desmesurado. Como poderia saber? Não valerá a pena investigar?
Arsène Lupin*) não teria feito melhor!
3.3.
Oito Legítimas Interrogações
i. Quem oferece maior perigo de fuga? Um suspeito que ainda nem foi acusado e ainda menos sabe se vai, sequer, ser condenado, ou um criminoso relapso já condenado, que sabe que, a menos que fuja, jamais irá poder escapar à prisão?
Por que razão é, ao primeiro, quase sempre e sem grande hesitação decretada a prisão preventiva, enquanto, ao segundo, foram, neste caso, mantidas todas as condições necessárias a uma possível evasão?
Não será a validação, em segunda instância, da matéria de facto razão mais do que suficiente para que um magistrado de bom senso o ponha, preventivamente, atrás das grades até ao efetivo início da execução da pena? Quantas fugas terão, ainda, de acontecer para que o legislador chame a si a responsabilidade de vincular os juízes à determinação de mais severas, mais eficazes medidas de coação?
No panorama atual da magistratura judicial, não faz qualquer sentido
continuar a confiar em meros juízos de valor subjetivos por parte de um ou
de outro julgador: há que definir padrões objetivos, linhas vermelhas,
factos e circunstâncias de tal forma significativos e perentórios que a
própria lei determine que, automaticamente, operarão na imposição ou
alteração de medidas de coação.
ii. Na ponderação do perigo de fuga, os poderes de cognição do juiz não podem ficar limitados ao processo: ninguém pode ignorar o que os sentidos lhe transmitem.
Que razão poderá haver para que um magistrado judicial se não sinta alertado do perigo por aquilo que lê ou ouve na comunicação social? Ou não terão os juízes o hábito de ler jornais e de assistir a serviços noticiosos na televisão?
Pelos vistos… não.
iii. Não existe, por outro lado, um dever de vigilância e de acompanhamento dos processos? Ou ficam na gaveta até que algo de novo – como uma fuga espetacular, por exemplo – acabe por acontecer? É que será muito, mas muito, difícil alguma vez alguém entender que, ao insistir em manter o Condenado em liberdade, lhe não tenha pelo menos um dos juízes de um dos três processos em curso mandado, pelo menos apreender imediatamente o passaporte - por muito discutível que, face à imensidão de meios financeiros aparentemente disponíveis, a alguns possa parecer a eficácia de tal medida.
iv. Os juízes não são, é verdade, seres sobrenaturais. Mas também não será muito aconselhável sujeitarem-se a aparecer à opinião pública como pessoas que, profissionalmente, agem como o comum dos mortais que acha que, pois com certeza, há que trabalhar lá no emprego, mas a gente tem as nossas vidas cá em casa e não pode passar o tempo a pensar nessas coisas…
Num cenário de mais do que provável inevitabilidade do posterior encarceramento no âmbito da execução da sentença, quem de boa-fé poderá garantir - ou, até, esperar... - que, uma vez convocado, um condenado sem ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, que exiba uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento” se apresentará voluntariamente se, da notificação que recebe, constar que a comparência se destina à revisão das medidas de coação, ou seja, a privá-lo, desde logo, da liberdade?
Pensar-se-á, porventura, que, quem apresenta tais características de personalidade e engendra esquemas de uma tão estranha forma de engenharia financeira como estes, não tem na manga artifícios e trunfos mais do que suficientes para, em direção a outras paragens, rapidamente se saber orientar? Ou será que o fumus comissi delicti era tão espesso que, aquilo que a qualquer um se metia pelos olhos dentro, aos magistrados não permitiu vislumbrar?
vi. Onde estão o bom senso e a ponderação de um Conselho Superior que, durante semanas, fica praticamente silencioso e imóvel perante uma situação notória desta natureza e calibre? Afinal, o que se passa na cabeça destes magistrados? Os juízes não podem conversar entre eles? Não existe, ironicamente, na hierarquia dos juízes, uma magistratura de influência? Nesse universo hermético e distante, não existe o hábito de... comunicar?
Qual a justificação para só depois de mais de um mês e de muito alarido mediático ter sido noticiado que o “Conselho da Magistratura vai reunir informação sobre cumprimento de pena”? Por que terá o resultado dessa diligência ficado muito bem guardado durante três semanas, só tendo visto a luz do dia depois de concretizada a fuga? Por que se terá o serôdio comunicado ficado por uma lacónica e acrítica relação dos acontecimentos, sem um comentário ou, sequer, uma opinião pontual?
vii. Acaso a cadeia é algum hotel?
Como explicar que seja possível que, prolatada uma sentença condenatória, confirmada a matéria de facto e na pendência de múltiplos e sucessivos recursos, andasse o Condenado, já em Maio, a passear-se por aí, indagando das condições do estabelecimento prisional onde, presumivelmente, irá cumprir pena?*) A não ser, claro, para no caso de lhe não agradarem, poder, de forma informada, optar pela fuga?
Mas é inevitável perguntarmo-nos: que percentagem de recursos é admitida pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Constitucional? E, de entre os recursos que são admitidos, quantos merecem provimento? Qual a probabilidade de alguém condenado em primeira instância e com a condenação quanto à matéria de facto confirmada pelo Tribunal da Relação ver, no STJ ou no TC, o processo arquivado por vícios de direito?
Diminuta.
Até que ponto, então, o eventual prejuízo, suportado por essa meia dúzia de condenados, de umas semanas a mais de preventiva depois de, irreversivelmente, dada como provada a matéria de facto, justifica que o bem-estar da comunidade acabe comprometido por o condenado fugir e assim uns tantos ingénuos, por cá ou noutra parte, poder continuar a aldrabar? Ou, se se tratar de um homicida, até a matar?
Como algures alguém disse, “penso que a Constituição deveria ser menos utilizada como um escudo para os culpados, e mais como uma espada para as suas vítimas inocentes”.
Não nos esqueçamos, também, de que, nas sábias palavras há alguns anos proferidas por uma ilustre magistrada do Ministério Público, “a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um”
- x -
Não é fácil encontrar sensatez em normas permissivas, que conferem ampla discricionariedade a quem, manifestamente, a não sabe exercer; incompreensivelmente arrimadas na complacência, até no tendencialmente erróneo pressuposto da vontade cumprir o castigo por parte de quem a ele foi sentenciado, deixando à discricionariedade de um talvez incompetente magistrado a decisão de tomar, ou não, medidas destinadas a por cá o reter.
A eficácia é a primeira e a principal medida de avaliação da qualidade em qualquer profissão ou área de atividade. Na magistratura judicial, também.
Como está, a lei é omissa, facilita a fuga e os tribunais tampouco a impedem, embora disponham de todos os meios legais necessários para tal; a fuga que, além do perigo potencial que representa para a sociedade, não passa de um claro ato de desrespeito pela Lei, pelos próprios tribunais que a viabilizam, pela justiça, por todos nós.
Neste caso... estavam mesmo a pedi-las!
Nós, não.
3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados
Ao dizer que “os juízes não obedecem a ordens”, não está,
implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se
do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das
medidas de coação?
Assim o exigiria o mais elementar bom senso, a mais básica capacidade de
ponderação, no caso de
falta de indicação da morada exata no estrangeiro, mesmo de depois de
instado a fazê-lo, por parte de um indivíduo já condenado, por crimes semelhantes, em dois
processos – um dos quais em vias de ver transitada em julgado a sentença – e
acusado, num outro processo, de crimes de idêntica natureza; e, não será
demasiado repetir, que “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”.
Que elemento de facto faltará, num tal cenário, preencher para se meter
pelos olhos de qualquer homem médio a mais do que evidente intenção de o
indivíduo se subtrair à ação da justiça?
Já para não falar dos olhos de um supostamente esforçado, experiente e
competente magistrado judicial…
No momento da desobediência à ordem do tribunal para que indicasse a morada precisa de residência, o perigo de fuga deixou de ser presumido, passou a ser bem real, pelo que, independentemente de o Condenado ter, mais tarde, regressado a Portugal – o que, em meados de Julho, ainda se não sabia que iria acontecer -, logo à chegada deveria ter a medida de coação sido agravada, até ao abrigo do disposto na alínea f) do art.27º da própria Constituição: “detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal”*)
Se isto é válido para qualquer um de nós, por que não, também, para o nosso Herói? Mesmo com a melhor das intenções, quantos pesos e quantas medidas por cá existirão na magistratura judicial?
Evidentemente, os juízes não obedecem a ordens, nem tal faria qualquer sentido, pois comprometeria, irremediavelmente, a sagrada independência na administração da justiça. Obedecem, porém, como qualquer de nós, às instruções do legislador, isto é, à legislação.
- x -
Há que reconhecer que, num cenário de tamanha ineficácia, se impõe, é
manifesto, uma profunda e urgente revisão do regime das medidas de coação,
tornando, não apenas obrigatório, mas automático, que sejam agravadas de
acordo com as diversas etapas da marcha do processo penal.
Não há, assim, como concordar com quem sustenta que “temos que dar cada vez mais poder ao juiz no processo, para que seja ele a decidir, em cada caso, as diligências que devem ou não devem realizadas”*). Depois daquilo a que, recentemente, temos vindo a assistir, seria muitíssimo insensato fazê-lo, a menos que todos fossem como o Ilustre Magistrado que, há já alguns anos, assim falou…
A decisão sobre as medidas de coação não pode, em suma, ser, em tão larga
escala, deixada ao muito discutível critério de um eventualmente imprudente,
impreparado e menos sensato ou esclarecido julgador, que até pareça pensar
que o perfil do condenado não conta para a ponderação do risco de fuga,
mesmo quando na sentença nada é, quanto a ele, elogiosamente referido.
Muito pelo contrário.
Pior: como se extrai das palavras da própria Magistrada – que a mesma Associação Sindical que entende que, neste caso, aplicar o termo de identidade e residência é cumprir a lei*) logo tentou emendar… -, desde 19 de Julho que a intenção do Condenado de optar pela fuga se manifestava no processo; e desde então, o que se fez para o manter disponível?
O homem só fugiu em finais de Setembro. Mais de dois meses depois! Ninguém viu a coisa a tempo de a impedir?
O que é, afinal, para um juiz, um facto que indicie perigo de fuga? Apenas a constatação dos derradeiros atos preparatórios? Da tentativa? Ou a própria fuga, quando já é tarde demais?
Como evitar os mais do que legítimos sobressaltos e indignação cívicos,
quando, do desempenho de certos magistrados judiciais, isto é o melhor que
podemos esperar?
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Pretendem tais juízes que uma condenação do Herói desta história em menos de dez anos de prisão causaria indignação social. Talvez. Mas, não causará uma fuga em tais condições muito maior indignação?
Será razoável esperar que não fuja alguém já não propriamente jovem que
acaba de ser condenado, num conjunto de processos, a mais de dezoito anos
de prisão?
É verdade que, à data da fuga, desconhecia, ainda, a decisão relativa ao
terceiro processo. Mas, qual seria ela, nem a ele, nem a nós custaria muito
adivinhar…
Uma pena razoável, com conta, peso e medida, ainda poderá levar o arguido a optar por sujeitar-se ao castigo, não obstante lhe serem dadas todas e mais algumas possibilidades de, pela via da fuga e alegando “legítima defesa”*) ou direito de resistência, a ele se furtar. Não pode, em contrapartida, excluir-se a possibilidade de, perante uma pena que, a despeito do mau caráter e dos antecedentes, o pior dos condenados legitimamente possa considerar injustamente pesada, muito maior ser a tentação de a evitar.
A simples condenação numa pena de prisão, ainda que pesada, não pressupõe,
por si só, a existência de perigo de fuga, mas o mesmo não poderá dizer-se
de uma pena desproporcionada, injusta, excessivamente empenhada em tornar-se
exemplar.
Nas palavras de um jurista norte-americano que também escrevia livros
policiais, “quando não se obtém justiça perto, tenta-se encontrá-la mais longe”, verdade esta que muito maior rigor na ponderação do equilíbrio entre a
medida da pena e a seriedade da medida de coação a aplicar haveria de
suscitar.
Todos sabemos que o respeito pelos direitos, liberdades e garantias é um
pilar inamovível da democracia. Mas, no caso específico de um condenado que
sabe serem tão diminutas as possibilidades de não ser encarcerado que até já
se vai informando das condições do hotel, impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável
ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas
instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja
segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o
direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas
daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar.
- x –
Pode, é verdade, dar-se o caso de não terem, desde 19 de Julho de 2021,
tomado conhecimento de qualquer facto relevante para a ponderação do risco
de fuga. Mas, mesmo assim sendo, não teria sido oportuno, mesmo durante as
férias, o processo irem espreitar? Tê-lo-ão feito? Nesse caso, porque parece
terem tardado a reagir?
Por falar nisso, ninguém parece ter, até agora, reparado na inegável
coincidência entre algumas ocorrências enumeradas na cronologia acima e o
decurso das férias judiciais.
Dá que pensar…
3.5. Os Políticos
Políticos, todos nós somos, de alguma maneira; quanto mais não seja na forma como, uns mais, outros menos, procuramos emendar e, se possível, desviar a atenção de possíveis erros próprios. Há, até, quem diga que é uma manifestação natural da nossa humanidade…
Não admira, pois, todo o folclore a que temos vindo a assistir em torno do acessório, como a novela dos quadros arrestados – gota de água no oceano da dívida - que acabaram desviados ou falsificados quando à guarda do cônjuge; o episódio do carro à porta de casa pronto para fazer a mudança de mais uns quantos quadros e mobílias*); as andanças do Taxista*); a detenção do Cônjuge do Condenado*); o amante ou novo amor do Cônjuge*); o choro do Cônjuge durante o interrogatório*); o cavalheirismo do Condenado ao avocar a responsabilidade única pelo descaminho dos quadros quando o divórcio parece, já, difícil de evitar*); o dinheiro na conta dos Pais já falecidos*); as tramponilices feitas aos anteriores advogados*); o descoco na exigência da ilibação ou do indulto*); enfim, tudo quanto possa engordar o folclore mediático e contribuir para, do essencial, as atenções da imprensa e do público desviar, e tudo o mais que por aí virá.
Os partidos políticos que foram passando pelo poder, procuram, agora, alijar responsabilidades por omissões legislativas que deixaram à mercê do poder discricionário de menos preparados juízes o controlo de quem parece ter, cabalmente, demonstrado que vale a pena aldrabar este e aquele – rico, de preferência - para chegar a rico e ficar impune. Que para subir na vida, tornar-se famoso e engordar o ego, melhor não há do que o crime de colarinho branco, sem temer, na nossa Santa Terrinha, à cadeia ir parar.
- x -
Dizem esses políticos que não faltam leis, que a lei permite impedir
as fugas.
Ora, é precisamente aí que está a questão:
a lei permite impedir, mas não obriga a impedir.
A lei permite tudo e mais alguma coisa, assim não sendo de admirar que
alguns juízes a não apliquem devidamente porque, simplesmente, não querem
fazê-lo, ou porque sentem alguma simpatia pelos ricos e poderosos ou, mais
simples e provavelmente, porque não foram formados ou educados como deveriam
ter sido. E lá voltamos ao início desta triste história…
Não é, obviamente, de estranhar que a Ordem dos Advogados*) (quase sempre de defesa…) não queira alterar uma lei tão benéfica para os clientes dos seus associados, igual postura não sendo de admirar por parte de partidos em que, assumidamente ou não, grasse airosamente a corrupção.
Com a justiça neste baixo nível, com o Estado neste triste estado, quem
pode, em sucessivas eleições, admirar-se com o cada vez mais elevado nível
de abstenção?
4. Conclusão e Propostas
Poucas dúvidas podem, pois, restar quanto às causas profundas da atual fraca
qualidade da administração da justiça em Portugal, as quais, de forma
determinante e, pelo menos, por longas décadas, irreversivelmente e com
extrema gravidade continuarão a fazer-nos sofrer os seus efeitos.
Os juízes vitimados por esta evolução são, naturalmente, os menos culpados
de tudo. As vítimas dessas vítimas - nós - é que são as verdadeiras culpadas
das escolhas que vão fazendo para a governação.
Isto, num país em que, ao mesmo tempo que a população não cessa de diminuir, parece ser cada vez
maior a conflitualidade, cada vez mais numerosas as questões comezinhas
com dignidade de ser dirimidas em juízo.
No interesse de quem?
Porquê?
A execução é a própria razão de ser da sentença. O interesse público e o Direito não se satisfazem numa mera condenação inane, que não faça justiça por não haver quem a faça cumprir. Ubi non est justicia, ibi non potest esse jus*)
A fazer fé nas notícias, não há como, racionalmente, não considerar estarmos
em presença de diversos factos dificilmente explicáveis, a não ser por
quanto já se disse relativamente à deficiente formação e consequente fraca
credibilidade de parte importante e significativa dos agentes da
justiça.
Ao que tudo parece indicar, terão falhado juízes que deixaram o Condenado
à solta, outros juízes que se limitaram a averiguar as razões da
demora na detenção, e também advogados do Estado e os do Assistente por não
terem sido, no momento oportuno, mais vigilantes e interventivos.
As razões profundas prender-se-ão, como vimos e antes de mais, com percalços
no processo educacional e formativo dos quais algumas destas pessoas terão
sido vítimas nas épocas aqui amplamente referidas, ao mesmo tempo que, às
razões mais próximas, não será, porventura, alheia a descontração nem sempre
benéfica associada às prolongadas férias judiciais.
A detenção do Cônjuge, a detenção ilegal de outro condenado, o inocente com
nome idêntico que se andou a tentar apanhar, o desaparecimento das telas,
eventuais cumplicidades, o esquecimento dos editais, tudo isso é grave, diz
bem da qualidade do desempenho de certos magistrados a quem são confiados
processos de seriedade e de gravidade supremas.
No entanto, se considerarmos os efeitos, não passam de
faits divers quando comparados com as duas grandes perguntas jamais
respondidas, as quais, essas sim, causam verdadeiro alarme social:
· A primeira,
por que razão, uma vez constatada, e mais tarde expressamente admitida, a
superveniência de risco de fuga a partir de 19 de Julho de 2021, não foi o
Condenado prontamente detido ou, pelo menos, apreendido o seu
passaporte?
· A segunda,
qual a razão pela qual, apesar de não poder dar ordens a juízes, o
Conselho Superior da Magistratura não exerceu, pelo menos, uma
magistratura de influência no sentido de procurar assegurar a exigível
eficácia na prevenção da fuga?
As respostas que, instintivamente, ocorrem para estas questões são de tal
forma revoltantes, de tal forma desprestigiantes para tanta gente e para
tantos interesses legítimos e fundamentais associados à promoção e
salvaguarda da imagem exterior do País numa vertente tão essencial para o
desenvolvimento económico do qual tanto dependemos, que melhor será nem as
verbalizar; até porque, de tão imediatas, inevitáveis e evidentes, qualquer
um, quase sem refletir, muito naturalmente a tais respostas chegará.
- x -
Passemos, pois, sem aqui aprofundar, à formulação de propostas, de ideias
singelas, para serem desenvolvidas por quem sabe, visando, naquilo
que ainda for possível, o risco de futuros e maiores danos minorar:
I. Elaboração de nova legislação relativa à fixação das medidas de coação,
clara, precisa, obrigatória, coerciva e balizada por parâmetros e critérios
objetivos que, em alguns casos, gerem automatismos e, noutros, vinculem de
forma inequívoca a atuação do juiz, entre as quais:
a) Obrigatoriedade da entrega do passaporte do acusado imediatamente após a
prolação da sentença pelo tribunal de julgamento.
b) Obrigatoriedade da prisão preventiva uma vez confirmada, pelo Tribunal da
Relação, a sentença condenatória.
c) Na data do trânsito em julgado, emissão automática e imediata execução do
mandado de detenção para cumprimento de pena.
II. Classificação, segundo critérios mais objetivos do que os atuais,
dos processos judiciais, especialmente os criminais, em função da
responsabilidade, do impacto económico e social associável e de outras
variáveis que contribuam para definir uns como mais sensíveis do que
outros.
III. Revisão dos critérios de distribuição dos processos mais sensíveis,
reservando-os aos magistrados mais experientes e mais especialmente qualificados.
IV. Criteriosa definição das qualificações e dos requisitos mínimos objetivos
de formação e, sobretudo, de idade e de experiência dos magistrados com
acesso aos processos classificados como mais sensíveis.
V. Estabelecimento de um mais exigente regime de vigilância dos processos criminais, designadamente quanto à verificação, quanto às medidas de coação, do rebus sic stantibus.*)
VI. Rigorosa investigação do que, na lei ou fora dela, possa ter levado o Condenado a sentir-se suficientemente seguro de que não seria preso, a ponto de se dar ao luxo de entrar e sair, a seu bel-prazer, do território nacional.
VII. Reversão da separação das carreiras de magistrado do Ministério Público e de magistrado judicial.
VIII.Reflexão profunda sobre a forma como a ponderação de medidas de coação é abordada no CEJ.
IX. Encurtamento, para metade, do período de Verão das férias judiciais.
- x -
Sempre que magistrados investidos nas suas funções pelo Estado falham de
forma tão clamorosa, é a credibilidade de todo o sistema que fica em risco,
e, com a dele, a credibilidade da própria justiça. Mas, isto, tal como tudo
quanto antecede, não passa da minha modesta opinião.
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O caos mora mesmo à esquina de um Estado sem justiça.
A todos convém mantê-lo afastado da nossa habitação.
Sic transit gloria mundi...
* *
Da mesma forma, haverá que evitar a proximidade de certos magistrados de má fama, que em nada beneficiam a imagem da magistratura.