Embora seja praticamente impossível não estarem direta ou indiretamente
presentes, independentemente do assunto da conversa, são os dois pilares
fundamentais da sociedade e, ao mesmo tempo, os dois temas sobre os quais,
dada a condição miserável em que em Portugal se encontram, mais me custa
escrever.
O primeiro, é a educação, pensada para que as pessoas saibam
comportar-se no melhor interesse da comunidade; o segundo, a justiça,
indispensável para que elas sejam encorajadas a assim agir, e sancionadas
quando não quiserem fazê-lo.
- x -
Começamos, supostamente, a ser educados em casa, onde cada vez menos é
possível encontrar progenitores com qualificações educacionais, culturais e,
até, funcionais mínimas para uma educação saudável e efetiva saberem
assegurar, já que, para poderem procriar, as pessoas não estão obrigadas a
apresentar o diploma de uma formação em educação infantil e juvenil. E mesmo
que estivessem...
Segue-se, frequentemente, a creche ou o jardim de infância, onde, ainda hoje
e mau grado as avançadas, certificadas e avalizadas novas teorias quanto à
melhor forma de preparar para a vida os rebentos, a educação é transmitida
por educadores, mesmo diplomados, que, ainda hoje e com a maior das
descontrações, os ensinam a cantar o “Atirei o pau ao gato / Mas o gato não morreu / Dona Chica assustou-se /
Com o berro, com o berro que o gato deu”, como ao passar por uma dessas escolas há não muito tempo e sem grande
espanto ouvi.
Confrontados com belas e ternurentas canções como esta, não será de admirar,
anos mais tarde, a propensão dos jovens, outrora dóceis infantes, para a
violência e para a destruição - para as quais também são atraídos graças, em
não pequena parte, à necessidade de gerar lucros que assegurem a
prosperidade de certas empresas que produzem e comercializam conhecidos,
bárbaros e sumamente violentos jogos para consolas e computadores.
Mais tarde ainda, alguns acedem às profissões jurídicas, em cujo exercício
elaboram leis, dirigem inquéritos, acusam, defendem, julgam e decidem os
destinos de muitos dos tais que escolhem portar-se mal em clara
ofensa dos legítimos interesses de quem, melhor ou pior, goza da proteção
que o direito a esta sociedade de todos nós se destina a garantir.
Vai-se, entretanto, a personalidade do jurista formando, numa vivência
quotidiana em muitos aspetos idêntica à de qualquer outro mortal, através da
absorção e integração dos dados e impactos da experiência com as
características essenciais de cada um, supostamente buriladas pela tal
educação, pela formação pessoal que, nos alvores da vida, lhe deveria, como
a todos nós, ter sido assegurada.
Mas que nem sempre foi…
2. Enquadramento
2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura
Judicial
Contrariamente ao que se entendia no tempo em que o Sol girava em torno da
Terra, os juristas, designadamente os magistrados, são seres humanos como
quaisquer outros, que começaram por ser crianças e jovens educados e
formados como quaisquer outros, para o bem de uns e para o mal e de
outros.
A sua atividade profissional visa – também como, teoricamente, qualquer
outra - o serviço da coletividade de acordo com princípios e normas
previamente estabelecidos, que a mesma atividade definem e condicionam. Não
são, como antigamente era uso olhá-los, criaturas quase divinas, dotadas de
incomensurável sapiência e da autoridade dela decorrente para, com quase
total discricionariedade e autonomia, decidir da sorte dos seus semelhantes
cujas ações hoje lhes compete identificar, avaliar e sancionar à luz do
princípio da legalidade, com objetividade, imparcialidade e lucidez.
Não se afigura, assim sendo, aceitável que alguns deles tendam, ainda, a
comportar-se como se divinos fossem, porquanto não deixe de ser verdade que
o destino de quem das suas decisões depende apenas possa ser decidido por
alguém que,
estritamente naquilo que importa à relação específica julgador-julgado, esteja acima dele, isto é, que detenha um ascendente legitimamente
conferido pela coletividade em que ambos se inserem: um poder tamanho e com
tão expressivo grau de independência que, porventura mais do que qualquer
outro poder, deva ser exclusivamente conferido a quem souber exercê-lo com a
indispensável idoneidade, autoridade, sapiência e moderação.
Enquanto o mérito funcional do juiz dimana, por inerência, do cargo que
ocupa, o mérito pessoal e profissional apenas poderá ser granjeado por
via da competência, do brio, da isenção.
- x -
No entanto, e tal como, nos mais variados planos, acontece com a
generalidade dos mortais, a personalidade, a educação e a formação de cada
magistrado judicial diferem substancialmente das dos restantes. Por isto
mesmo se encontra, quiçá com indesejável frequência, a par de indivíduos
incontestavelmente sérios, competentes, sabedores e, sobretudo, sábios,
outros indevida ou insuficientemente formados, incompetentes, corruptos, e,
até, conhecidos ou mesmo, condenados por comportamentos comprovadamente
lesivos dos interesses daqueles cujo cumprimento de deveres e exercício de
direitos lhes cumpre, paradoxalmente, exigir e assegurar.
Profundamente incrustados na mais funda essência da Humanidade, estes e
outros vícios são tão suscetíveis de afetar o desempenho de um juiz, como o
de quem exerce qualquer outra profissão.
Torna-se, desta forma, essencial para a transparência, para a
estabilidade e para a uniformidade e equidade na administração da justiça
que os poderes do juiz, sejam, em tudo quanto não prejudique a eficácia
global das decisões, estritamente limitados por legislação imparcial,
clara, precisa, obrigatória, coerciva, e, em cada lugar e época, adequada
à efetiva realidade social e cultural dos decisores.
A maior dificuldade reside, necessariamente, em assegurar o equilíbrio
entre, por um lado, a previsão dos limites formais indispensáveis ao
exercício da magistratura judicial e, por outro, a necessidade de garantir a
aplicação de uma justiça não apenas adjetiva, mas substantiva, que saiba
extrair conclusões válidas em presença do eterno confronto de interesses
entre a sociedade e o indivíduo que nela vive e nela se forma.
Não foi um poeta alemão que disse “Atentai, Senhor, que o interesse do Estado se não confunda com
justiça”?*) Pois o inverso não deixa de ser verdadeiro:
o interesse do particular em manter uma liberdade a que perdeu o direito
- especialmente o interesse de um indivíduo já condenado e com a sentença
confirmada em, pelo menos, uma instância - não pode, em caso algum,
sobrepor-se ao superior interesse de uma comunidade que, entre outras
considerações, veria a sua segurança seriamente ameaçada por uma eventual
fuga daquele à justiça; para não falar do convite, face à descabida
impunidade e por via do deplorável exemplo, à propagação do ilícito a
outros de moralidade idêntica à daquele que, no caso, o tiver praticado.
- x -
A aplicação de uma justiça substantiva e com amplos poderes discricionários,
implica maior responsabilidade, assim sendo vedado aos julgadores ceder à
tentação do automatismo, do menor esforço, da letargia, do medo, até.
Nas palavras de um eminente jurista brasileiro, “
Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência,
espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado,
interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não
escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde!”
*); e, a outros ferretes, os distraídos, ou menos competentes, ou pouco
empenhados.
Sempre sem transigir perante a tentação do excesso - ou do protagonismo
mediático -, há de o juiz assegurar uma judicatura que, insista-se, sempre
no estrito respeito pelo princípio da legalidade, seja operante,
interventiva; que se não contente com o não fazer ondas, com a
decisão politicamente correta; que se não escude na pureza formalista do
estrito e ineficaz cumprimento da lei por parte de magistrados que ajam como
meros funcionários contratados para executar a tarefa menor que a
administração da justiça, seguramente, não é.
Seria, por exemplo, incompreensível que, na fixação de medidas de coação
visando a neutralização do risco de fuga de figuras públicas com
substanciais meios de subsistência e já condenadas em primeira e, até, em
segunda instância, se não vissem os condenados imediatamente privados, pelo menos, da posse do respetivo passaporte:
não sendo, evidentemente, possível evitar completamente a fuga mediante a
simples apreensão do documento, não menos difícil será vislumbrar razão
objetivamente aceitável para que um tribunal mantenha as condições ideais
para que ela se verifique.
Mas, acontece…
2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses
Independentemente da motivação subjacente e do facto de com ela se concordar
ou não, a Comunidade Europeia decidiu, há não muito tempo, aumentar
abruptamente a quantidade de licenciados, em qualquer área, mediante o
processo de convergência académica iniciado com a celebração do
acordo de Bolonha*) - o qual, como é sabido,
reduziu, substancialmente, a duração da formação numa época em que,
paradoxalmente, existe um cada vez maior acervo de conhecimentos a exigir
maturada assimilação.
Ora, ainda que partindo do muito discutível pressuposto de que vivemos numa
sociedade maioritariamente constituída por indivíduos devidamente educados e
de elevada consciência social e cívica, é claro que uma inadequada,
insuficiente ou apressada formação técnica em qualquer profissão
inevitavelmente resultará em deploráveis níveis de eficiência e de eficácia
no subsequente desempenho. Isto é tão evidente que não necessita de
demonstração.
Por maioria de razão, numa área tão sensível e, paralelamente, de tamanha
responsabilidade como aquela de que aqui falamos, qualquer défice estrutural
ou pontual na derradeira fase da preparação para o exercício de uma
profissão não tardará, algures no sistema judiciário, a fazer sentir os seus
efeitos, arriscando-se a acarretar danos reputacionais muito sérios e
dificilmente reparáveis para a credibilidade e para a confiança que sempre
deverá ser possível e natural associar aos próprios conceitos de
justiça e da sua aplicação.
O subsequente decaimento da qualidade da formação técnica dos juristas
portugueses foi, recentemente, objeto de severo reparo pelo
Bastonário da Ordem dos Advogados, que propôs a exigência de maiores
qualificações académicas*) aos candidatos a advogados que tiverem concluído a licenciatura já na
vigência das alterações decorrentes do referido processo de aceleração da
formação.
Por razões difíceis de descortinar – quem sabe se relacionadas com a tal
ideia de intocabilidade da magistratura que dominava no tempo em que o Sol
girava em volta de nós… -,
parece a ninguém ter ocorrido que de igual défice formativo iriam,
inevitavelmente, padecer os restantes agentes judiciários com formação
universitária de nível superior, designadamente os magistrados
judiciais,
também eles passados a ser formados à pressa, pelo menos naquilo que
ao tronco comum da licenciatura em Direito se refere.
- x -
Recuando algumas décadas, não podemos esquecer-nos de que, mesmo antes do
atual descalabro da qualidade da formação académica, já a maior parte dos
magistrados e advogados mais veteranos agora em atividade em Portugal tinha
sido, também ela, formada e ensinada depois de uma outra dramática
degradação do ensino - porventura bem mais séria do que a de Bolonha - nos
anos que se seguiram à Revolução dos Cravos que amplamente proclamou os
direitos universais à educação, à justiça e à
saúde.
Acontece que, embora todos eles sejam direitos essenciais cujo
reconhecimento em Portugal há muito tardava, dos três, é o direito à
educação o primeiro dos primeiros, pois que, sem ele, qualquer outro carece
de sentido, seja por da sua existência nem nos consciencializarmos, seja
por, mesmo conscientes, não reunirmos os requisitos intelectuais e
formativos para o viver em plenitude.
Ora, esse importante direito fundamental à educação foi, naqueles
tumultuosos anos, precipitadamente implementado, não se tendo cuidado de,
minimamente, assegurar que, mediante um processo de formação progressivo e
cuidado de novos professores, sempre haveria quem, efetivamente,
educasse e ensinasse; e que, por esse processo, a qualidade da educação e do
ensino se manteria - o que, manifestamente, não aconteceu.
Para tanto, era necessário tempo. Algo que o legislador de então não
tinha.
Bem pelo contrário, a necessidade sentida por alguns políticos de
apresentar serviço a um eleitorado sôfrego de mudança a qualquer
preço – ainda que não houvesse com o que a realizar e com o que a pagar –
fez o País mergulhar a pique num processo de artificiosas
equivalências que, de equidade, nada tinham; e, por via delas
permitiu-se que impreparados estudantes dos primeiros anos de
bacharelatos passassem a poder lecionar, a poder educar, nos ensinos
preparatório e secundário, sem qualquer competência técnica ou pedagógica
para o fazer com um mínimo de qualidade e de rigor.
Entre largas centenas de exemplos, para lecionar a disciplina de Matemática no ensino secundário
bastava ter aprovação em quatro cadeiras anuais do bacharelato em
Administração e Contabilidade.
Era mau, era péssimo, e muitos o sabíamos. Mas, o que importava era que,
sempre que era chamado a votar, o povo estivesse convencido de que, “agora, todos temos direito à educação”; ou, pensava-se, os votos não tardariam a refletir a sensação de
incumprimento das promessas políticas alardeadas pela Revolução e que eram,
afinal, aos olhos dos oprimidos a sua principal motivação. Uma vez mais, “por prevalecer o número de votos mais que o peso das razões”.
Claro está que, sem professores devidamente habilitados, andavam os
governantes a vender ao povo gato por lebre, valendo o facto de, da
esqualidez do resultado da lecionação, os eleitores se nem aperceberem,
fosse pelo entusiasmo dos tempos então vividos, fosse por não deterem, para
que dela se apercebessem, a necessária… educação.
As ditas equivalências, de efeitos irreversíveis e de facilitismo e
demagogia inenarráveis, estiveram na origem de muitos dos efeitos nefastos -
que, muitas décadas depois, perduram e, por muito tempo ainda, perdurarão -
sobre o desempenho de indivíduos afetos às mais variadas profissões.
Inevitavelmente, resultaram, também, em impactos demolidores na generalidade
das áreas científicas, designadamente na do direito, com inevitável e bem
patente prejuízo para a qualidade atual da justiça e da sua
administração.
Isto, sem esquecer, naturalmente, que, no topo do bolo da pressão política,
e para agravar as coisas, à data militava também a cereja da necessidade
premente de, para gáudio de certas universidades privadas pertencentes, quer
a empresas, quer a cooperativas de oportunidade, produzir fornadas e mais
fornadas de juristas e outros licenciados que, rapidamente, inundaram o
mercado de trabalho e acabaram, como ainda acontece, a desempenhar
subalternas e miseravelmente remuneradas funções.
Enfim, dos três direitos fundamentais referidos, só mesmo o direito à saúde
se salvou do descalabro de então. Provavelmente por uma razão bem simples:
enquanto o legislador pensava que, educado, estava ele e que, como
individualmente interessado, provavelmente nunca os seus caminhos se
cruzariam com os da justiça, já no que respeita a saúde, a médicos, a
enfermeiros… nunca se sabe; e, ciente mesmo legislador de que, mais tarde ou
mais cedo, todos inevitavelmente acabamos por ir parar às desejavelmente
sábias mãos de Esculápio, lá nos livrámos, naqueles tempos, de, em nome de
enviesadas ideias de igualdade e de democracia, ver maqueiros e auxiliares
de enfermagem a realizar… cirurgias, pois então!
2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional
O que antecede não pretende, evidentemente, desvalorizar a competência e a
qualidade profissional de todos os portugueses ou, sequer, de
todos os atuais profissionais da educação, da justiça ou de qualquer
outra área afetada pelos desmandos desses gloriosos, mas conturbados,
tempos. Pessoas competentes, empenhadas e com qualidades intrínsecas de
relevo sempre existirão e, nos mais diversos campos, continuarão a
formar-se; desde, claro está, que preferencialmente o façam por elas
próprias, ou tenham a ventura de ter pais que devidamente as eduquem e
mestres que saibam ensiná-las - o que, convenhamos, nos dias que correm não
é coisa de fácil constatação.
Onde quer que se encoraje a formação, à pressa, de pessoas que venham a
executar determinada tarefa, inevitável se torna que a quantidade se
sobreponha à qualidade, quer da aprendizagem técnica, quer, não raramente,
até da formação da personalidade.
Num tal quadro, a verdade é que, jurista ou não, ninguém pode ser
responsabilizado por ter aterrado no meio de um destes dois pretéritos mas
imparáveis processos de degradação pedagógica e educacional, nos quais
alguém notoriamente impreparado acaba a formar alguém que, necessariamente,
fica, pelo menos, tão impreparado como o formador e como aqueles que, por
sua vez, poderá acabar a formar também; e assim sucessivamente, até
chegarmos ao ponto desgraçado em que hoje nos encontramos – e nem será bom
tentar imaginar como, daqui a poucos anos e por via de uma espiral
aparentemente irreversível, pior ainda acabará por ser.
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Não obstante tudo isto, quando assume funções qualquer juiz digno desse nome
já tem de saber ser e de saber estar: em público, numa
audiência de julgamento; ao prolatar uma decisão; no gabinete, interrogando
um suspeito ou arguido, na presença de outros juristas; perante colegas, em
múltiplas situações. Sempre.
Porém, factos são factos; e, no que respeita à magistratura, a imprensa não
cessa de apontar casos – que alguns de nós diretamente presenciaram ou nos
quais participaram, até - que nos levam a concluir por uma falta de
qualidade gritante, quer na fundamentação das decisões judiciais, quer nos
apartes a despropósito lavrados nas mesmas ou proferidos ao vivo; quer,
ainda, na quase sistemática falta de pontualidade de alguns juízes na
comparência a audiências de julgamento, ou na arrogância prepotente e parola
com que se dirigem aos seus interlocutores, arguidos ou não.
Esquecem-se ou ignoram, porventura, que é o alto cargo que deve ser
dignificado pelo desempenho e pela postura do magistrado judicial: não o
cidadão, simplesmente porque o ocupa. Esse, apenas é
meritíssimo enquanto exerce a função ou nela se jubila, deixando de
ser meritíssimo quando opta por diferente mister.
O respeito devido a um magistrado judicial não advém de um estatuto de
superioridade que lhe seja conferido pelo simples facto de ter apresentado
ao Estado que o emprega um qualquer certificado de habilitações: decorre da
dignidade, imprescindibilidade e enorme responsabilidade social e humana de
uma função que, nos dias de hoje, as notícias e aquilo que diretamente se lê
nas decisões e vê nas salas de audiências sugerem estar nas mãos de cada vez
mais pessoas menos aptas e pouco preparadas; muito relativamente idóneas
para, com eficácia, competência e, sobretudo, discernimento e sensatez,
exigir de cada um aquilo que deve à sociedade, e a esta aquilo que deve a
cada um.
Porventura mais do que qualquer outra atividade, médicos, professores e
juristas hão de, sempre, estar acima de qualquer dúvida quanto a eventuais
défices de idoneidade ou de competência; e, o que os torna idóneos e
competentes, é a exigência, pelos próprios e por terceiros, de excelência em
todas as vertentes do desempenho das suas nobres profissões.
- x -
Para a lei ser eficaz, importa que haja quem a aplique, não propriamente
prolatando espampanantes e pesadas sentenças, mas, sobretudo, garantindo
que, seja a sentença qual for, ela será, efetivamente, executada.
Penal ou não, uma sentença não cumprida escarnece da justiça, do
sistema judiciário, de toda a sociedade, cuja segurança e estabilidade
ficam comprometidas quando se não se consegue a execução, pedra de toque
de toda a construção jurídica, sem a qual o edifício normativo
rapidamente se esboroaria por carecer de qualquer utilidade.
Acontece que, apesar de aparentadas no direito, a função de um magistrado
judicial não é comparável à de um notário ou à de um conservador, salvo o
devido respeito por estas importantes profissões. Enquanto aos últimos
compete aplicar e fazer cumprir procedimentos estritos, inalteráveis e com
praticamente todas as possíveis cambiantes dos atos previstas em códigos
específicos, o mesmo acontecendo como as circunstâncias suscetíveis de os
afetar, ao primeiro cumpre
interpretar a lei e aplicá-la às circunstâncias específicas do caso
concreto, exercendo um poder discricionário consideravelmente lato. No caso da
fixação de medidas de coação, talvez demasiado lato, até…
Não é fácil. Já no século XVII alguém dizia que “o dever dos juízes é administrar a justiça; a sua profissão,
diferenciá-la. Alguns
deles conhecem o seu dever e exercem a sua profissão” *).
Tão amplos poderes e tão vasta discricionariedade não são, evidentemente,
compatíveis com défices de inteligência, de sensatez, de aprendizagem, de
formação, ou, genericamente falando, de educação. Bem pelo contrário:
exige-se de um magistrado, judicial ou não, o conhecimento abrangente, não
apenas da lei, mas também da realidade social, além do raciocínio lógico
superior, da sabedoria e da postura indispensáveis a quem detém nas suas
mãos a possibilidade de, nos termos da lei, privar terceiros do direito
fundamental à liberdade.
Alguém citava, há pouco tempo, um juiz segundo o qual “para despachar processos, é necessário 75% de bom senso e 25% de
direito”. Lá saberá da sua razão…
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Uma parte relativamente significativa de um eventual défice em algumas
destas vertentes poderá, é verdade, ser compensado com uma experiência
intensa e prolongada em níveis de integração profissional do juiz nas
fases iniciais da carreira, antes de, desejavelmente muitos anos mais
tarde, aceder a funções de maior responsabilidade em processos muito
mediatizados ou correspondentes a delitos ou interesses de maior
relevância e potencial impacto social. Para tanto, é indispensável a
tramitação profissional por níveis sucessivos que proporcionem frequentes
oportunidades de contacto com terceiros diversificados na formação, na
vivência, na personalidade e na qualidade em que agem ou operam.
O que não é admissível num estado dito de direito onde a administração da
justiça se quer eficaz, é que o acompanhamento e decisão de processos de
gigantesca responsabilidade seja distribuído a juízes que apenas tenham
condições objetivas para agir como funcionários unicamente aptos a aplicar
estritamente o que dizem os livros, receando ou, por qualquer outra razão,
sendo, manifestamente, incapazes de interpretar e enquadrar os factos na
personalidade do sujeito e nas circunstâncias daqueles; ou que não detenham
a indispensável dose de bom senso necessária à judiciosa aplicação da lei;
ou, ainda, de magistrados de tenra idade e, consequentemente, de
menor experiência, daqueles que nenhuma sensação de segurança transmitem e
que na presidência de um coletivo até confrange ver.
Um juiz não nasce juiz. Faz-se. Com o tempo. Com muito tempo.
Na medida em que o resultado de um eventual erro seja, previsivelmente,
suscetível de indignar e de prejudicar o direito de centenas de pessoas, de
milhares de pessoas, de toda uma coletividade, até, será imperdoável e
irresponsável, por parte do legislador, permitir que se confie a direção do
processo a juízes de fracas características pessoais ou profissionais,
irresponsabilidade que apenas seria equiparável à de uma companhia que
confiasse, a um jovem piloto com escassas horas de voo, os comandos de um
gigantesco e repleto avião comercial.
Há coisas que não se faz; que, simplesmente, não podem acontecer.
2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais
Uma das principais atividades intelectuais do juiz – e espirituais, dada a
forte dose de subjetividade - é a ponderação.
Opera nas mais diversas operações lógicas requeridas em todas as etapas de
um processo judicial ou de inquérito. É o caso, por exemplo, da ponderação
do valor da prova apresentada - já que, se fosse valorada ad libitum por qualquer um, bastaria que um menos preparado investigador tropeçasse em
algo que considerasse “prova” para o infeliz acusado estar condenado sem
apelo nem agravo, ainda que no meio do mais despudorado atropelo dos
direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.
Uma vez o agente considerado culpado, cabe ao julgador ponderar, também, a
medida da pena, adequando-a, dentro dos limites definidos na lei, à
personalidade do acusado e às circunstâncias do caso concreto.
Aquele que aqui interessa, de entre os pressupostos destas últimas, é a
constatação, pelo juiz, da existência de
perigo de fuga*), competindo-lhe, sempre no estrito cumprimento dos requisitos legais,
decretar a medida quando entenda necessário evitar que um qualquer
espertalhão com a manha a transbordar-lhe dos olhos, do rosto, da postura,
da atitude, da fala, daquilo que se quiser – que pode ser quase tudo… - vá
de férias até paragens longínquas para não mais voltar… provavelmente até à
prescrição do processo*) ou à
prescrição da pena*), se por outras terras entretanto se andar a pavonear.
- x -
Os olhos são, diz-se, o espelho da alma, e neles estará, mais do que em
qualquer manual, refletida a verdadeira dimensão do risco de fuga, da
intenção de ao castigo se furtar. Mas, os olhos, não é qualquer um que os
sabe ler, e, para que a ponderação – e, de um modo geral, a atividade
judicativa – seja eficaz, pelo menos quatro qualidades deve um juiz de
julgamento ou de instrução apresentar.
Antes de mais, a capacidade intrínseca, já que, tal como seria
inconcebível a mera ideia de um cirurgião que não possa ver sangue, a de um
piloto de linha aérea que tenha medo das alturas ou a de um contabilista
incapaz de contar, por maioria de razão o seria a de um juiz deficitário no
que se refere ao processamento lógico, ou com inconfessáveis vícios de
caráter, ou padecendo de, ainda que ténue, sociopatia ou maleita
similar.
Seguem-se, inevitavelmente, a formação pessoal cuidada,
desejavelmente começada em casa e, na devida idade, continuada na escola, e,
na universidade, a
aprendizagem aprofundada das coisas do direito,.
Mais difícil de encontrar - e, no entanto, igualmente essencial - é o último
destes quatro requisitos:
um amplo conhecimento da realidade das pessoas e das circunstâncias das
suas vidas, personalidades, relações, gostos, afinidades, atividades, a
fim de, ao julgar, permitir atenuar os efeitos das inevitáveis diferenças,
já que “um homem só pode ser perfeito juiz das ações de outro homem quando entre
ambos se dão absolutamente as mesmas condições de existência. Desde que estas variam, varia com elas a maneira de ver as coisas”.
Como é bom de ver, a necessidade de coexistência dos quatro requisitos torna
singularmente rara a aptidão para o desempenho da judicatura, logo - há que
insistir -, absolutamente incompatível com a formação em massa de sucessivas
fornadas de magistrados judiciais destinados a suprir as necessidades de um
sistema judiciário afogado numa ineficiência em Portugal há muito
unanimemente reconhecida, mas jamais sarada.
2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial
No caso do juiz do foro criminal, a arte da ponderação desenvolve-se,
sobretudo, não na universidade ou no
Centro de Estudos Judiciários*) (CEJ), mas através da experiência adquirida no contacto de proximidade com
investigadores, com testemunhas, com alegados e confirmados infratores,
proximidade essa impossível de conseguir no ambiente de inevitável
distanciamento inerente a uma audiência de julgamento.
Como alguém disse, para ser justo, um juiz tem de ser capaz de calçar os
sapatos do criminoso; mas isso passa por saber, por experiência própria, o
que é uma investigação, por ter intervindo em muitas delas, contactado com
vítimas, delinquentes, defensores.
Visto muito, ouvido mais, falado pouco.
- x -
Em contrapartida, esta relação de proximidade caracteriza boa parte da
função do magistrado do Ministério Público, que é, afinal, o advogado do
Estado.
Até meados dos anos setenta do século passado, esta magistratura constituiu
uma primeira etapa obrigatória para o acesso à magistratura judicial.
Foi-lhe, então, conferido estatuto de autonomia: segundo uns, para
dignificar magistrados do Ministério Público que, desgostosos e infelizes,
se olhavam como um mero primeiro degrau da escada conducente à magistratura
judicial; segundo outros, para o Estado rapidamente satisfazer a necessidade
premente de produzir, à pressão, a tal grande quantidade de novos juízes a
fim de parecer satisfazer os requisitos do já aqui falado acesso universal à
justiça - mesmo a uma justiça de substancialmente menor qualidade, como
inevitável seria nas descritas condições.
Sentaram-se, desde então, no lugar cimeiro da teia dos tribunais juízes cada
vez mais que jamais passaram pelo alfobre do Ministério Público, com um
patentemente reduzido conhecimento das pessoas – sobretudo, dos criminosos
-, com uma diminuta experiência dos mais variados aspetos da vida –
sobretudo, da vida dos criminosos -, por isso mesmo equiparáveis a docentes
sem trabalho de campo realizado, literalmente afogados na leitura de livros
e de artigos mais ou menos científicos, exclusivamente baseados nos quais
proferem belas mas vazias lições ex cathedra, sem significativa
integração na sociedade e produzindo trabalhos com interesse prático nenhum.
Todo um potencial cabedal de indispensável experiência foi, desta forma,
liminar e irresponsavelmente desperdiçado, eventualmente em nome de uma
dignificação dos magistrados do Ministério Público que jamais poderá ser, de
forma significativa e efetiva, assegurada pela separação de carreiras, antes
pela exigível qualidade superior num desempenho que, a fazer fé em notícias
sobre sucessivas prescrições de processos por causas não cabalmente
esclarecidas e sobre diversos percalços devidos a vícios processuais, pouco
permite entrever dessa desejável e indispensável qualidade.
Acresce, necessariamente, que,
de um ponto de vista funcional, os magistrados do Ministério Público são,
e serão sempre, meros advogados do Estado, logo, parte interessada nas
demandas judiciais, jamais podendo, sensatamente, considerar-se a sua
magistratura equiparável à de um juiz, na medida em que sempre às decisões
deste se terão de sujeitar.
Chega, assim, a ser ridícula a insistência na equiparação, antes urgindo
reverter, no mais curto espaço de tempo possível - e a despeito da
inevitável vozearia em contrário - a separação de carreiras, voltando à bem
mais eficaz e promissora progressão. Sobretudo, sendo cada vez mais pobre a
formação.
Se a motivação da separação foi o ímpeto revolucionário ou a pressa em
aumentar a quantidade de magistrados judiciais, a opção explica-se pelo
facto de as revoluções tenderem a racionar com o coração, a tal ímpeto ainda
havendo que aliar a proverbial incompetência de decisores políticos então,
como hoje, completamente falhos de estratégica visão.
Se a bem diferente motivação foi a dignificação dos magistrados do
Ministério Público, teremos de nos perguntar:
até que ponto é legítimo, em democracia, que o interesse na exaltação da
imagem de uns poucos comprometa, de tal forma, a qualidade do desempenho
de uma justiça que a todos interessa e sem a qual, em democracia e em liberdade, não há como
viver?
2.6. Do Processo Penal
Através das normas jurídicas e da sua aplicação, procura o direito garantir,
tanto quanto é razoável e possível, a normalização dos comportamentos dos
indivíduos, independentemente das suas aptidões, competências, personalidade
e motivações.
Se todos fôssemos condutores conscienciosos e tecnicamente aptos a
determinar, em cada situação, como deveremos comportar-nos ao volante de um
automóvel, o cada vez mais encorpado Código da Estrada seria dispensável,
redundante - sem prejuízo de ser sempre conveniente saber se devemos
circular pela direita ou pela esquerda, e mais uma ou outra coisa...
Todavia, e tal como acontece com muitas outras leis, o Código da Estrada
destina-se, antes de mais, aos menos competentes para conduzir, seja do
ponto de vista técnico, seja do de um personalidade tendencialmente mais
virada para o interesse do próprio e indiferente às necessidades e aos
direitos dos outros.
A estas motivações, não é exceção o Código de Processo Penal.
No entanto, face a lapsos que permitam fugas airosas de criminosos
condenados por sentenças transitadas em julgado e provavelmente relapsos, há
que concluir que, tal como uma cada vez maior quantidade de acidentes
rodoviários vem determinando normas objetivas cada vez mais
apertadas para a condução, também, numa altura em que tanto se fala
de juízes e raramente pelas melhores razões, cumpre apertar os
códigos de processo e a conexa legislação.
Antes de mais e na falta de melhor critério objetivo, limitando, de forma
mais rigorosa do que atualmente e em função da idade e das
horas de voo, o acesso à condução de processos judiciais mais
sensíveis - seja pela seriedade da matéria em causa, seja pelo impacto
previsível das decisões.
A fim de assegurar um rigoroso e ponderado critério - não apenas na fixação
das penas mas no crítico processo de assegurar que serão, efetivamente,
cumpridas -, haverá que garantir, com força de lei, que as decisões
relativas aos processos mais sensíveis são confiadas a indivíduos, não
apenas devidamente ensinados, mas que tenham, de facto, aprendido a lição do
direito e, em pelo menos igual dose, a experiência apenas ensinada pela vida
e pelo intenso e prolongado exercício da magistratura, designadamente no
Ministério Público; e, mais tarde, com vasta experiência como copilotos,
como juízes asa, antes de serem chamados à presidência de um desses
julgamentos de mais mediática decisão.
Haverá, também, que restringir, significativamente o poder discricionário
dos magistrados judiciais na ponderação do risco de fuga e na consequente
determinação de medidas - como a apreensão de passaportes... -, bem como
agilizando e racionalizando, uma vez a decisão transitada em julgado, os
procedimentos relativos à notificação do condenado e à sua condução à
prisão.
Poderá argumentar-se, não sem razão, que também o legislador que irá
introduzir, na lei, as necessárias alterações terá sido, muito
provavelmente, formado nas mesmas escolas e épocas já referidas. Mas, como
para legislar, basta meia dúzia, enquanto, para administrar a justiça, são
necessários milhares, maior será a probabilidade de escolher bem essa meia
dúzia, do que a de que a justiça seja, com excessiva discricionariedade, bem
administrada por largas centenas de pessoas pouco preparadas e apenas
sujeitas às permissivas normas processuais que atualmente a regem.
Principalmente, no que se refere à aplicação de medidas de coação.
2.7. Da Discricionariedade
Discricionariedade não é sinónimo de arbitrariedade.
O juiz não pode fazer o que quer e bem lhe apetece, apenas porque acha que
sim, já que, como não poderia deixar de ser, a lei não parte do princípio de
que existe, em qualquer caso, um perigo de fuga, tampouco considerando que o
risco esteja presente pelo simples facto de existir uma prévia condenação.
Exige, antes, a existência de outros
elementos de facto que claramente indiciem a intenção de, quando
futuramente convocado, o sujeito se não apresentar, designadamente para
cumprimento da pena de prisão.
Impõe-se, naturalmente, a maior objetividade possível em tudo quanto toca à
limitação de direitos, liberdades e garantias, nos termos constitucionais.
Mas, importa, também, que, na decisão de aplicar uma medida de coação, o
juiz pondere até que ponto ela não será, efetivamente, imprescindível à luz
da probabilidade de fuga e do perigo potencial decorrente do facto de o
indivíduo ser deixado em liberdade para continuar a atividade criminosa, bem
como em presença do chamado fumus comissi delicti: o fumo, a
probabilidade de que um delito tenha, efetivamente, sido cometido.
Ora, este fumo, não há como não o considerar, incomensuravelmente,
mais opaco no caso de um indivíduo condenado, do que no de um mero
suspeito acabado de deter. Assim,
o rigor na aplicação de medidas de coação a indivíduos já condenados em
alguma instância terá de ser, necessariamente, maior do que em igual
diligência relativa a meros suspeitos.
- x -
Por outro lado, além de não ser confundível com a arbitrariedade, a
discricionariedade significa poder, e o poder gera responsabilidade, por
dele ser a eficácia um inseparável pressuposto.
Fazer o que a lei permite não significa fazer tudo aquilo a que ela
obriga: no caso das medidas de coação,
a obrigação do juiz que as decide, o que lhe dá tão amplos poderes, é
evitar a fuga. Logo, quando não evita, ainda que por mero erro, não cumpre uma lei que
lhe dá os poderes e meios, todos e mais alguns, para não falhar.
A lei prevê, é verdade, que o juiz possa aplicar a medida de termo de
identidade e residência, sem entrega do passaporte. Mas, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas
nos artigos anteriores”, fica o mesmo juiz obrigado a decretar outras. São essas as
palavras que introduzem os preceitos do Código de Processo Penal relativos
às medidas de coação mais gravosas, palavras que não deixam margem para
qualquer dúvida quanto à responsabilidade exclusiva do julgador na
determinação da forma como irá coagir o sujeito a apresentar-se, de como
irá, através dela, servir as exigências de natureza cautelar do
processo.
- x -
Qualquer que seja o ângulo por que a contemplemos, a fuga de um condenado é
um erro de ponderação do risco; e, sob esse prisma, uma indiscutível prova
de incompetência por parte do magistrado ou dos magistrados que a tiverem
viabilizado por terem sido parcos na seleção da medida a aplicar.
No que tange, especificamente, a aplicação do princípio da proporcionalidade
na fixação da medida, se os juízes se mostram, manifestamente, incapazes de
o contemplar, impõe-se ao legislador que tal défice de capacidade cuide de,
significativamente, atenuar; de, sem demora a sua posição quanto a este
assunto vir clarificar.
Isto porque, se, na determinação das medidas de coação, o comportamento do
alegado criminoso dever ser objeto de análise e julgamento diferenciados
exclusivamente segundo o melhor critério do juiz, a justiça jamais
será servida por magistrados que não estejam, minimamente, habilitados a
processar, com razoável rigor e sensatez, as informações que tal
diferenciação permitam, eficazmente, viabilizar
Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir um
suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios.
Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo
condenado após amplamente discutida e validada a prova.
3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes
3.1. Síntese Cronológica
Muitas são as etapas, e disperso o que foi publicado sobre os acontecimentos
que antecederam a fuga.
A fim de que todos saibamos, com a exatidão e isenção permitidas pelas
notícias dos factos, o que está em causa nesta reflexão, comecemos por uma
breve resenha, ordenada e documentada -
poderá selecionar os texto antes de cada *) - daquilo que se relaciona com a epopeia judicial do
Herói desta pequena história:
a) Primeira Condenação
i. por falsidade informática e falsificação de
documento, foi, em 15 de Outubro de 2018,
condenado à pena de cinco anos de prisão, com possibilidade de a mesma
ser suspensa mediante o pagamento de quatrocentos mil euros a uma
instituição particular de solidariedade social*);
ii. no início de Julho de 2020, o Tribunal da Relação
de Lisboa agravou o castigo para cinco anos e oito meses, assim afastando
a possibilidade de suspensão - limitada por lei a penas até cinco anos*) - tornando a pena efetiva*);
iii. em Dezembro de 2020, o Condenado propôs ao Supremo Tribunal de justiça (STJ) pagar ao Estado
cem mil euros adicionais a troco de não ter de cumprir os cinco anos e
oito meses de prisão;
iv. em 24 de Fevereiro de 2021, o STJ rejeitou a proposta e confirmou a condenação*);
v. em 8 de Junho,
o Tribunal Constitucional (TC) decidiu não admitir o recurso entretanto
interposto*);
vi. em 15 de Julho, e ainda no regime de termo de
identidade e residência – sem apreensão do passaporte - decretado por, pelo menos, um dos tribunais, o condenado partiu para uma estada na Costa Rica*);
vii. violando a lei*),
forneceu, como morada de contacto, unicamente a da Embaixada de
Portugal, não tendo, apesar disso, sido alterada a medida de coação de termo de
identidade e residência, sem entrega do passaporte*);
viii. em 16 de Julho,
iniciou-se o período de férias judiciais, nos termos do art.28º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto*);
ix. em 20 de Julho,
o TC confirmou a inadmissibilidade do recurso*)
x. em 29 de Julho, a Imprensa noticiava que “vai para a prisão mas só em Setembro, depois das férias judiciais”*);
xi. regressa da Costa Rica a 21 de Agosto, ainda
durante o período de férias judiciais;
xii. em 24 de Agosto, noticiava-se que o “Conselho da Magistratura (CSM)
vai reunir informação sobre cumprimento de pena de João Rendeiro”*);
xiii. em 31 de Agosto terminaram as férias judiciais;
xiv. em 9 de Setembro
foi entregue ao CSM a relação de factos mandada elaborar em 24 de
Agosto*);
xv. regressado, entretanto, a casa,
voltaria o Condenado a sair, em 12 de Setembro de 2021, para ir tratar da
saúde a Londres, uma vez mais violando a lei ao informar, unicamente, a morada da
Embaixada de Portugal*);
xvi. em 17 de Setembro,
a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou o trânsito em julgado,
na véspera, da mais recente decisão do TC, assim se tendo a condenação tornado irrecorrível*);
xvii. em 22 de Setembro,
os advogados do assistente BPP pedem um reforço das medidas de coação,
alertando para o perigo de fuga*);
xviii. em 29 de Setembro,
informou o Condenado estar em parte incerta e não ser sua intenção
regressar a Portugal para cumprir a pena
correspondente à condenação transitada em julgado*);
xix. com data de 30 de Setembro, o CSM publica uma “Nota à Imprensa – Processos João Rendeiro” contendo a relação de
factos (documento que tinha em seu poder desde 9 de Setembro) resultante da diligência que ordenara em 24 de Agosto.
b) Segunda Condenação
xx. Entretanto, acusado de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança
qualificado e branqueamento de capitais, foi, em 14 Maio de 2021, o Herói
desta história
condenado a mais dez anos de prisão efetiva, considerando a Juíza que o Condenado “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém
uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”*);
xxi. no mesmo acórdão, diz-se que
os arguidos foram “condenados de forma exemplar e expressiva porque os factos que
praticaram são graves” e a comunidade não entenderia outra medida*);
xxii. ainda em 30 de Setembro, a imprensa noticia o entendimento da juíza presidente de que, até 19 de
Julho, inexistia “qualquer informação da qual pudesse antever-se um concreto perigo de
fuga”*);
xxiii. na mesma data é noticiado que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses vem dizer que, até 13 de
Setembro – e não 19 de Julho – “não havia fundamento legal para sujeitar o arguido a medida de coação
mais grave que o termo de identidade e residência“*)
c) Terceira Condenação
xxiv. A 28 de Setembro de 2021, véspera da oficialização da
fuga, noticiava-se que havia sido
condenado num outro processo, desta vez por burla, a mais três anos e
meio de prisão efetiva*).
- x -
O Condenado não esteve presente na leitura de qualquer das decisões, no caso
da mais recente por já se encontrar em fuga.
Dado que este texto versa, precisamente, sobre essa fuga e sobre as razões
que a ela poderão ter conduzido, não será aqui desenvolvido o referente a
outros eventuais erros, jurídicos e outros, em decisões com ela apenas
indiretamente relacionadas ou a ela posteriores, como a
detenção ilegal de um outro condenado para cumprir pena antes do trânsito
em julgado da decisão*),
o inocente com nome idêntico que, depois da fuga, o tribunal andou a
tentar apanhar*),
o desaparecimento de algumas obras de arte que o Estado não tinha
condições para guardar, ou o facto de não ter sido evitada a respetiva
substituição por falsificações*) e
a recusa da declaração de contumácia pelo tribunal de execução de penas,
que se declarou incompetente, porque um juiz de julgamento se esqueceu de
preencher uns editais.*)
Mas, tudo isto, confrange, de facto.
Para a imagem do sistema judiciário e do País, tanto amadorismo é
desolador…
3.2. O Condenado
Convirá salientar que não está aqui em causa um narcísico e, porventura,
alucinado Robin dos Bosques à portuguesa que, juntamente com alguns outros,
tenha subtraído, de um balcão de banco, um comparativamente magro pecúlio
destinado a contribuir para financiar uma revolta armada; ou, se a história
se passasse há poucos anos, que o tivesse feito para mandar plantar rotundas
onde mal passam carros, ou parques infantis onde não brincam crianças; ou
ainda, seguindo a atual moda das campanhas eleitorais, para mandar construir
cada vez mais prometidas creches para as nossas criancinhas, numa altura em
que a estatística teima em afirmar que cada vez mais vai encolhendo a
lusitana população.
Nada disso.
Quem, assumidamente, fugiu à justiça foi alguém diversas vezes condenado por
crimes típicos dos escroques, alguém que agiu exclusivamente em proveito
próprio e no dos seus sequazes; e que, tal como outros bem conhecidos que
operam ou operaram no mesmo ramo ou em ramos da mesma árvore, quis fazer
crer que se dedicou à atividade comercial para viver, não apenas de
legítimas mas cada vez mais absurdas taxas rotineiramente cobradas a
clientes, como também da falsidade e da burla daqueles que ainda acreditam
que, quando alguém lhes acena com uma das expressões juros altos ou
capital garantido, é certo e sabido que foram eles os
escolhidos para receber o pecúlio, o maná que a
benemérita instituição mal pode esperar por lhes depor nas mãos.
Esquecem-se, evidentemente, os patéticos incautos de que, se o juro fosse
tão bom e o negócio tão garantido, quem os promete preferiria ficar com
eles, em lugar de, altruisticamente, partilhar…
Conhecedor da complacência da legislação processual penal portuguesa, sabia
muito bem o Condenado que, praticamente, nenhum risco correria ao regressar
da Costa Rica em meados de Agosto - quando ainda decorria o longo
descanso que os juristas não deixam tirar-lhes - já que,
incompreensivelmente, o legislador não parece ter julgado necessário, mesmo
em casos de tamanho impacto social e de tão evidente risco de fuga, impor
normas objetivas à atividade dos juízes de turno nesse período mais
vulnerável, no sentido de, preventivamente ou não, já condenados malandros
rapidamente enviar para a prisão.
Parece que sabia, também, o nosso Herói – ou, pelo menos, contava com isso -
que, apesar de tido como não possuindo ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, exibindo uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento”, só muito dificilmente veria agravada a generosa medida de coação que lhe
fora aplicada.
Apesar de tudo, o risco era grande. Desmesurado. Como poderia saber? Não valerá a pena investigar?
Arsène Lupin*) não teria feito melhor!
3.3.
Oito Legítimas Interrogações
i. Quem oferece maior perigo de fuga? Um suspeito que ainda nem foi acusado
e ainda menos sabe se vai, sequer, ser condenado, ou um criminoso relapso
já condenado, que sabe que, a menos que fuja, jamais irá poder escapar à
prisão?
Por que razão é, ao primeiro, quase sempre e sem grande hesitação decretada
a prisão preventiva, enquanto, ao segundo, foram, neste caso, mantidas todas
as condições necessárias a uma possível evasão?
Não será a validação, em segunda instância, da matéria de facto razão mais
do que suficiente para que um magistrado de bom senso o ponha,
preventivamente, atrás das grades até ao efetivo início da execução da pena?
Quantas fugas terão, ainda, de acontecer para que o legislador chame a si a
responsabilidade de vincular os juízes à determinação de mais severas, mais
eficazes medidas de coação?
No panorama atual da magistratura judicial, não faz qualquer sentido
continuar a confiar em meros juízos de valor subjetivos por parte de um ou
de outro julgador: há que definir padrões objetivos, linhas vermelhas,
factos e circunstâncias de tal forma significativos e perentórios que a
própria lei determine que, automaticamente, operarão na imposição ou
alteração de medidas de coação.
ii. Na ponderação do perigo de fuga, os poderes de cognição do juiz não podem
ficar limitados ao processo: ninguém pode ignorar o que os sentidos lhe
transmitem.
Que razão poderá haver para que um magistrado judicial se não sinta alertado
do perigo por aquilo que lê ou ouve na comunicação social? Ou não terão os
juízes o hábito de ler jornais e de assistir a serviços noticiosos na
televisão?
Nenhum alarme soou quando foi noticiado que “vai para a prisão, mas só em Setembro, depois das férias judiciais”? Ninguém pensou, nessa altura: “Espera, e se, daqui até lá, o homem resolve fugir?”.
Pelos vistos… não.
iii. Não existe, por outro lado, um dever de vigilância e de acompanhamento dos
processos? Ou ficam na gaveta até que algo de novo – como uma fuga
espetacular, por exemplo – acabe por acontecer? É que será muito, mas muito,
difícil alguma vez alguém entender que, ao insistir em manter o Condenado em
liberdade, lhe não tenha pelo menos um dos juízes de um dos três processos
em curso mandado, pelo menos apreender imediatamente o passaporte - por
muito discutível que, face à imensidão de meios financeiros aparentemente
disponíveis, a alguns possa parecer a eficácia de tal medida.
Que falta de segurança tudo isto acaba por transmitir! Ou será falta de
coordenação?
iv. Os juízes não são, é verdade, seres sobrenaturais. Mas também não será
muito aconselhável sujeitarem-se a aparecer à opinião pública como pessoas
que, profissionalmente, agem como o comum dos mortais que acha que, pois com
certeza, há que trabalhar lá no emprego, mas a gente tem as nossas vidas cá
em casa e não pode passar o tempo a pensar nessas coisas…
Num cenário de mais do que provável inevitabilidade do posterior
encarceramento no âmbito da execução da sentença, quem de boa-fé poderá
garantir - ou, até, esperar... - que, uma vez convocado, um condenado sem
”sentido de autocrítica nem de autocensura”, que exiba uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento” se apresentará voluntariamente
se, da notificação que recebe, constar que a comparência se destina à
revisão das medidas de coação, ou seja, a privá-lo, desde logo, da
liberdade?
Pensar-se-á, porventura, que, quem apresenta tais características de
personalidade e engendra esquemas de uma tão estranha forma de engenharia
financeira como estes, não tem na manga artifícios e trunfos mais do que
suficientes para, em direção a outras paragens, rapidamente se saber
orientar? Ou será que o fumus comissi delicti
era tão espesso que, aquilo que a qualquer um se metia pelos olhos dentro,
aos magistrados não permitiu vislumbrar?
v. Como explicar que, na data publicamente conhecida do trânsito em julgado -
em que a condenação se torna definitiva e o criminoso sabe que já não escapa
às malhas da justiça se decidir ficar por cá -, em lugar de ser
automaticamente emitido o mandado de detenção e imediatamente executado tudo
deva, ainda, voltar à primeira instância para a respetiva emissão, assim
dando, a qualquer condenado, mais do que tempo para, de passaporte no bolso,
tomar as medidas que quiser com vista a evitar o castigo?
vi. Onde estão o bom senso e a ponderação de um Conselho Superior que, durante
semanas, fica praticamente silencioso e imóvel perante uma situação notória
desta natureza e calibre? Afinal, o que se passa na cabeça destes
magistrados? Os juízes não podem conversar entre eles? Não existe,
ironicamente, na hierarquia dos juízes, uma magistratura de influência?
Nesse universo hermético e distante, não existe o hábito de... comunicar?
Qual a justificação para só depois de mais de um mês e de muito alarido
mediático ter sido noticiado que o “Conselho da Magistratura vai reunir informação sobre cumprimento de
pena”? Por que terá o resultado dessa diligência ficado muito bem guardado
durante três semanas, só tendo visto a luz do dia depois de concretizada a
fuga? Por que se terá o serôdio comunicado ficado por uma lacónica e
acrítica relação dos acontecimentos, sem um comentário ou, sequer, uma
opinião pontual?
vii. Acaso a cadeia é algum hotel?
Como explicar que seja possível que, prolatada uma sentença condenatória,
confirmada a matéria de facto e na pendência de múltiplos e sucessivos
recursos, andasse o Condenado, já em Maio, a passear-se por aí,
indagando das condições do estabelecimento prisional onde,
presumivelmente, irá cumprir pena?*) A não ser, claro, para no caso de lhe não agradarem, poder, de forma
informada, optar pela fuga?
viii. Não vou ao ponto de defender, como alguns, que se inicie a execução de uma
sentença condenatória imediatamente após o encerramento da matéria de facto
na primeira instância, o que se afigura uma falta de respeito, não apenas
dos mais elementares direitos humanos, mas da própria segunda instância,
cuja decisão se estaria, de alguma forma, a desvalorizar.
Mas é inevitável perguntarmo-nos: que percentagem de recursos é admitida
pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Constitucional? E, de
entre os recursos que são admitidos, quantos merecem provimento? Qual a
probabilidade de alguém condenado em primeira instância e com a condenação
quanto à matéria de facto confirmada pelo Tribunal da Relação ver, no STJ ou
no TC, o processo arquivado por vícios de direito?
Diminuta.
Até que ponto, então, o eventual prejuízo, suportado por essa meia dúzia
de condenados, de umas semanas a mais de preventiva depois de,
irreversivelmente, dada como provada a matéria de facto, justifica que o
bem-estar da comunidade acabe comprometido por o condenado fugir e assim
uns tantos ingénuos, por cá ou noutra parte, poder continuar a aldrabar?
Ou, se se tratar de um homicida, até a matar?
Como algures alguém disse, “penso que a Constituição deveria ser menos utilizada como um escudo para
os culpados, e mais como uma espada para as suas vítimas inocentes”.
Não nos esqueçamos, também, de que, nas sábias palavras há alguns anos
proferidas por uma ilustre magistrada do Ministério Público, “a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada
um”
- x -
Não é fácil encontrar sensatez em normas permissivas, que conferem ampla
discricionariedade a quem, manifestamente, a não sabe exercer;
incompreensivelmente arrimadas na complacência, até no tendencialmente
erróneo pressuposto da vontade cumprir o castigo por parte de quem a ele foi
sentenciado, deixando à discricionariedade de um talvez incompetente
magistrado a decisão de tomar, ou não, medidas destinadas a por cá o reter.
A eficácia é a primeira e a principal medida de avaliação da qualidade em
qualquer profissão ou área de atividade. Na magistratura judicial, também.
Como está, a lei é omissa, facilita a fuga e os tribunais tampouco a
impedem, embora disponham de todos os meios legais necessários para
tal; a fuga que, além do perigo potencial que representa para a sociedade,
não passa de um claro ato de desrespeito pela Lei, pelos próprios tribunais
que a viabilizam, pela justiça, por todos nós.
Neste caso... estavam mesmo a pedi-las!
Nós, não.
3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados
Ao dizer que “os juízes não obedecem a ordens”, não está,
implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se
do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das
medidas de coação?
Assim o exigiria o mais elementar bom senso, a mais básica capacidade de
ponderação, no caso de
falta de indicação da morada exata no estrangeiro, mesmo de depois de
instado a fazê-lo, por parte de um indivíduo já condenado, por crimes semelhantes, em dois
processos – um dos quais em vias de ver transitada em julgado a sentença – e
acusado, num outro processo, de crimes de idêntica natureza; e, não será
demasiado repetir, que “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”.
Que elemento de facto faltará, num tal cenário, preencher para se meter
pelos olhos de qualquer homem médio a mais do que evidente intenção de o
indivíduo se subtrair à ação da justiça?
Já para não falar dos olhos de um supostamente esforçado, experiente e
competente magistrado judicial…
No momento da desobediência à ordem do tribunal para que indicasse a
morada precisa de residência, o perigo de fuga deixou de ser presumido,
passou a ser bem real, pelo que, independentemente de o Condenado ter, mais tarde, regressado a
Portugal – o que, em meados de Julho, ainda se não sabia que iria acontecer
-, logo à chegada deveria ter a medida de coação sido agravada, até ao
abrigo do disposto na alínea f) do
art.27º da própria Constituição: “detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão
tomada por um tribunal”*)
Se isto é válido para qualquer um de nós, por que não, também, para o nosso
Herói? Mesmo com a melhor das intenções, quantos pesos e quantas medidas por
cá existirão na magistratura judicial?
Evidentemente, os juízes não obedecem a ordens, nem tal faria qualquer
sentido, pois comprometeria, irremediavelmente, a sagrada independência na
administração da justiça.
Obedecem, porém, como qualquer de nós, às instruções do legislador, isto
é, à legislação.
- x -
Há que reconhecer que, num cenário de tamanha ineficácia, se impõe, é
manifesto, uma profunda e urgente revisão do regime das medidas de coação,
tornando, não apenas obrigatório, mas automático, que sejam agravadas de
acordo com as diversas etapas da marcha do processo penal.
Não se vislumbra, de facto, de que outra forma poderão ser atenuados os
efeitos nefastos de uma cada vez menor qualidade global do desempenho da
magistratura judicial, a fazer fé nas notícias que, sobre este e diversos
outros casos, nos vão chegando pelos mais diversos canais de comunicação.
Não há, assim, como concordar com quem sustenta que “temos que dar cada vez mais poder ao juiz no processo, para que seja
ele a decidir, em cada caso, as diligências que devem ou não devem
realizadas”*). Depois daquilo a que, recentemente, temos vindo a assistir, seria
muitíssimo insensato fazê-lo, a menos que todos fossem como o Ilustre
Magistrado que, há já alguns anos, assim falou…
A decisão sobre as medidas de coação não pode, em suma, ser, em tão larga
escala, deixada ao muito discutível critério de um eventualmente imprudente,
impreparado e menos sensato ou esclarecido julgador, que até pareça pensar
que o perfil do condenado não conta para a ponderação do risco de fuga,
mesmo quando na sentença nada é, quanto a ele, elogiosamente referido.
Muito pelo contrário.
Segundo que critério pode, razoavelmente, a conhecida e reconhecida
personalidade do arguido não contribuir para, em apoio de um facto
relevante, levar um juiz a concluir pelo perigo de fuga?*)
Pior: como se extrai das palavras da própria Magistrada – que
a mesma Associação Sindical que entende que, neste caso, aplicar o termo
de identidade e residência é cumprir a lei*) logo tentou emendar… -, desde 19 de Julho que a intenção do Condenado
de optar pela fuga se manifestava no processo;
e desde então, o que se fez para o manter disponível?
O homem só fugiu em finais de Setembro. Mais de dois meses depois! Ninguém
viu a coisa a tempo de a impedir?
O que é, afinal, para um juiz, um
facto que indicie perigo de fuga? Apenas a constatação dos
derradeiros atos preparatórios? Da tentativa? Ou a própria fuga, quando já é
tarde demais?
Como evitar os mais do que legítimos sobressaltos e indignação cívicos,
quando, do desempenho de certos magistrados judiciais, isto é o melhor que
podemos esperar?
- x -
Será, também, vantajoso iniciar uma reflexão séria sobre a equidade na
medida das penas, a fim de evitar que sejam aplicadas, por juízes quiçá mais
imaturos, ou emotivos, ou sensacionalistas do que outros, penas de dimensão
provavelmente nunca vista para crimes de determinada natureza, ainda que
justificando com a necessidade de aplicar punições exemplares.
Pretendem tais juízes que uma condenação do Herói desta história em menos de
dez anos de prisão causaria indignação social. Talvez.
Mas, não causará uma fuga em tais condições muito maior indignação?
Será razoável esperar que não fuja alguém já não propriamente jovem que
acaba de ser condenado, num conjunto de processos, a mais de dezoito anos
de prisão?
É verdade que, à data da fuga, desconhecia, ainda, a decisão relativa ao
terceiro processo. Mas, qual seria ela, nem a ele, nem a nós custaria muito
adivinhar…
Uma pena razoável, com conta, peso e medida, ainda poderá levar o arguido a
optar por sujeitar-se ao castigo, não obstante lhe serem dadas todas e mais
algumas possibilidades de, pela via da fuga e alegando “legítima defesa”*) ou direito de resistência, a ele se furtar. Não pode, em
contrapartida, excluir-se a possibilidade de, perante uma pena que, a
despeito do mau caráter e dos antecedentes, o pior dos condenados
legitimamente possa considerar injustamente pesada, muito maior ser a
tentação de a evitar.
A simples condenação numa pena de prisão, ainda que pesada, não pressupõe,
por si só, a existência de perigo de fuga, mas o mesmo não poderá dizer-se
de uma pena desproporcionada, injusta, excessivamente empenhada em tornar-se
exemplar.
Nas palavras de um jurista norte-americano que também escrevia livros
policiais, “quando não se obtém justiça perto, tenta-se encontrá-la mais longe”, verdade esta que muito maior rigor na ponderação do equilíbrio entre a
medida da pena e a seriedade da medida de coação a aplicar haveria de
suscitar.
Todos sabemos que o respeito pelos direitos, liberdades e garantias é um
pilar inamovível da democracia. Mas, no caso específico de um condenado que
sabe serem tão diminutas as possibilidades de não ser encarcerado que até já
se vai informando das condições do hotel, impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável
ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas
instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja
segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o
direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas
daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar.
- x –
Os senhores Advogados do Assistente por onde andaram, também, entre 19 de
Julho de 2021 e a data, em Setembro, em que, finalmente, as campainhas
fizeram soar?
Pode, é verdade, dar-se o caso de não terem, desde 19 de Julho de 2021,
tomado conhecimento de qualquer facto relevante para a ponderação do risco
de fuga. Mas, mesmo assim sendo, não teria sido oportuno, mesmo durante as
férias, o processo irem espreitar? Tê-lo-ão feito? Nesse caso, porque parece
terem tardado a reagir?
Por falar nisso, ninguém parece ter, até agora, reparado na inegável
coincidência entre algumas ocorrências enumeradas na cronologia acima e o
decurso das férias judiciais.
Dá que pensar…
3.5. Os Políticos
Políticos, todos nós somos, de alguma maneira; quanto mais não seja na forma
como, uns mais, outros menos, procuramos emendar e, se possível, desviar a
atenção de possíveis erros próprios. Há, até, quem diga que é uma
manifestação natural da nossa humanidade…
Não admira, pois, todo o folclore a que temos vindo a assistir em torno do
acessório, como a novela dos quadros arrestados – gota de água no oceano da
dívida - que acabaram desviados ou falsificados quando à guarda do cônjuge;
o episódio do carro à porta de casa pronto para fazer a mudança de mais
uns quantos quadros e mobílias*);
as andanças do Taxista*); a detenção do Cônjuge do Condenado*);
o amante ou novo amor do Cônjuge*);
o choro do Cônjuge durante o interrogatório*);
o cavalheirismo do Condenado ao avocar a responsabilidade única
pelo descaminho dos quadros quando o divórcio parece, já, difícil de
evitar*);
o dinheiro na conta dos Pais já falecidos*);
as tramponilices feitas aos anteriores advogados*);
o descoco na exigência da ilibação ou do indulto*); enfim, tudo quanto possa engordar o folclore mediático e contribuir para,
do essencial, as atenções da imprensa e do público desviar, e tudo o mais
que por aí virá.
Os partidos políticos que foram passando pelo poder, procuram, agora, alijar
responsabilidades por omissões legislativas que deixaram à mercê do poder
discricionário de menos preparados juízes o controlo de quem parece ter,
cabalmente, demonstrado que vale a pena aldrabar este e aquele –
rico, de preferência - para chegar a rico e ficar impune. Que
para subir na vida, tornar-se famoso e engordar o ego, melhor não há do que
o crime de colarinho branco, sem temer, na nossa Santa Terrinha, à
cadeia ir parar.
- x -
Dizem esses políticos que não faltam leis, que a lei permite impedir
as fugas.
Ora, é precisamente aí que está a questão:
a lei permite impedir, mas não obriga a impedir.
A lei permite tudo e mais alguma coisa, assim não sendo de admirar que
alguns juízes a não apliquem devidamente porque, simplesmente, não querem
fazê-lo, ou porque sentem alguma simpatia pelos ricos e poderosos ou, mais
simples e provavelmente, porque não foram formados ou educados como deveriam
ter sido. E lá voltamos ao início desta triste história…
Não é, obviamente, de estranhar que a
Ordem dos Advogados*) (quase sempre de defesa…) não queira alterar uma lei tão benéfica para os
clientes dos seus associados, igual postura não sendo de admirar por parte
de partidos em que, assumidamente ou não, grasse airosamente a corrupção.
Com a justiça neste baixo nível, com o Estado neste triste estado, quem
pode, em sucessivas eleições, admirar-se com o cada vez mais elevado nível
de abstenção?
4. Conclusão e Propostas
Poucas dúvidas podem, pois, restar quanto às causas profundas da atual fraca
qualidade da administração da justiça em Portugal, as quais, de forma
determinante e, pelo menos, por longas décadas, irreversivelmente e com
extrema gravidade continuarão a fazer-nos sofrer os seus efeitos.
Os juízes vitimados por esta evolução são, naturalmente, os menos culpados
de tudo. As vítimas dessas vítimas - nós - é que são as verdadeiras culpadas
das escolhas que vão fazendo para a governação.
A incapacidade de lidar com as cada vez maiores exigências de rigor na
gestão e decisão dos processos judiciais exige que, no mais curto espaço de
tempo possível, os poderes políticos clara e definitivamente se entendam
quanto à completa restruturação do processo e do sistema judiciário.
Isto, num país em que, ao mesmo tempo que a população não cessa de diminuir, parece ser cada vez
maior a conflitualidade, cada vez mais numerosas as questões comezinhas
com dignidade de ser dirimidas em juízo.
No interesse de quem?
Porquê?
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A execução é a própria razão de ser da sentença. O interesse público e o
Direito não se satisfazem numa mera condenação inane, que não faça justiça
por não haver quem a faça cumprir.
Ubi non est justicia, ibi non potest esse jus*)
A fazer fé nas notícias, não há como, racionalmente, não considerar estarmos
em presença de diversos factos dificilmente explicáveis, a não ser por
quanto já se disse relativamente à deficiente formação e consequente fraca
credibilidade de parte importante e significativa dos agentes da
justiça.
O conjunto de factos que as notícias trazem ao cerzir destas conclusões
sugere que, no caso aqui abordado, a justiça nem sempre terá sido bem
servida por preocupante défice de competência de alguns dos seus agentes.
Ao que tudo parece indicar, terão falhado juízes que deixaram o Condenado
à solta, outros juízes que se limitaram a averiguar as razões da
demora na detenção, e também advogados do Estado e os do Assistente por não
terem sido, no momento oportuno, mais vigilantes e interventivos.
As razões profundas prender-se-ão, como vimos e antes de mais, com percalços
no processo educacional e formativo dos quais algumas destas pessoas terão
sido vítimas nas épocas aqui amplamente referidas, ao mesmo tempo que, às
razões mais próximas, não será, porventura, alheia a descontração nem sempre
benéfica associada às prolongadas férias judiciais.
A detenção do Cônjuge, a detenção ilegal de outro condenado, o inocente com
nome idêntico que se andou a tentar apanhar, o desaparecimento das telas,
eventuais cumplicidades, o esquecimento dos editais, tudo isso é grave, diz
bem da qualidade do desempenho de certos magistrados a quem são confiados
processos de seriedade e de gravidade supremas.
No entanto, se considerarmos os efeitos, não passam de
faits divers quando comparados com as duas grandes perguntas jamais
respondidas, as quais, essas sim, causam verdadeiro alarme social:
· A primeira,
por que razão, uma vez constatada, e mais tarde expressamente admitida, a
superveniência de risco de fuga a partir de 19 de Julho de 2021, não foi o
Condenado prontamente detido ou, pelo menos, apreendido o seu
passaporte?
· A segunda,
qual a razão pela qual, apesar de não poder dar ordens a juízes, o
Conselho Superior da Magistratura não exerceu, pelo menos, uma
magistratura de influência no sentido de procurar assegurar a exigível
eficácia na prevenção da fuga?
As respostas que, instintivamente, ocorrem para estas questões são de tal
forma revoltantes, de tal forma desprestigiantes para tanta gente e para
tantos interesses legítimos e fundamentais associados à promoção e
salvaguarda da imagem exterior do País numa vertente tão essencial para o
desenvolvimento económico do qual tanto dependemos, que melhor será nem as
verbalizar; até porque, de tão imediatas, inevitáveis e evidentes, qualquer
um, quase sem refletir, muito naturalmente a tais respostas chegará.
- x -
"The law should be stable but never stand still".
Passemos, pois, sem aqui aprofundar, à formulação de propostas, de ideias
singelas, para serem desenvolvidas por quem sabe, visando, naquilo
que ainda for possível, o risco de futuros e maiores danos minorar:
I. Elaboração de nova legislação relativa à fixação das medidas de coação,
clara, precisa, obrigatória, coerciva e balizada por parâmetros e critérios
objetivos que, em alguns casos, gerem automatismos e, noutros, vinculem de
forma inequívoca a atuação do juiz, entre as quais:
a) Obrigatoriedade da entrega do passaporte do acusado imediatamente após a
prolação da sentença pelo tribunal de julgamento.
b) Obrigatoriedade da prisão preventiva uma vez confirmada, pelo Tribunal da
Relação, a sentença condenatória.
c) Na data do trânsito em julgado, emissão automática e imediata execução do
mandado de detenção para cumprimento de pena.
II. Classificação, segundo critérios mais objetivos do que os atuais,
dos processos judiciais, especialmente os criminais, em função da
responsabilidade, do impacto económico e social associável e de outras
variáveis que contribuam para definir uns como mais sensíveis do que
outros.
III. Revisão dos critérios de distribuição dos processos mais sensíveis,
reservando-os aos magistrados mais experientes e mais especialmente qualificados.
IV. Criteriosa definição das qualificações e dos requisitos mínimos objetivos
de formação e, sobretudo, de idade e de experiência dos magistrados com
acesso aos processos classificados como mais sensíveis.
V. Estabelecimento de um mais exigente regime de vigilância dos processos
criminais, designadamente quanto à verificação, quanto às medidas de coação,
do
rebus sic stantibus.*)
VI. Rigorosa investigação do que, na lei ou fora dela, possa ter levado
o Condenado a sentir-se suficientemente seguro de que não seria preso, a
ponto de se dar ao luxo de entrar e sair, a seu bel-prazer, do
território nacional.
VII. Reversão da separação das carreiras de magistrado do Ministério Público e
de magistrado judicial.
VIII.Reflexão profunda sobre a forma como a ponderação de medidas de coação
é abordada no CEJ.
IX. Encurtamento, para metade, do período de Verão das férias judiciais.
- x -
Os juízes ocupam o topo da pirâmide do sistema judiciário, e o sucedido,
independentemente dos culpados, não é desculpável, seja qual for o ângulo de
que o queiramos olhar.
Sempre que magistrados investidos nas suas funções pelo Estado falham de
forma tão clamorosa, é a credibilidade de todo o sistema que fica em risco,
e, com a dele, a credibilidade da própria justiça. Mas, isto, tal como tudo
quanto antecede, não passa da minha modesta opinião.
- x -
O caos mora mesmo à esquina de um Estado sem justiça.
A todos convém mantê-lo afastado da nossa habitação.
Sic transit gloria mundi...
* *
Da mesma forma, haverá que evitar a proximidade de certos magistrados de
má fama, que em nada beneficiam a imagem da magistratura.
(leia aqui a sequência)