"Ao nosso alcance apenas está saber que essa razão, essa entidade,
existiu ou existe, algures ou nenhures, antes ou após a criação do tempo,
do espaço e do que parece ser material.
Sabemo-lo, não por um ato de fé, mas por dedução lógica a montante da fé;
e o que se sabe, não se pode ignorar, nem vale a pena negar"
1. As Leis Não Nascem do Nada
2. O Legislador da Natureza
3. A Inevitável e Inacessível Razão na Origem da Criação
Vivemos, ao que me dizem, num estado de Direito que faz parte de um Mundo todo
ele feito de estados de Direito. Ou quase todo. Ou que parece ser todo.
Ora, num estado de Direito, em qualquer estado de Direito digno dessa
designação, vive-se o primado da lei, sendo esta coletivamente considerada
como o sistema de normas destinado a regular as relações sociais para evitar
que nos trucidemos uns aos outros apenas para ter acesso a comida, ou por nos
terem roubado o ou a mais que tudo; ou por cobiça, por vício, por mera
diversão ou por qualquer outra mais ou menos estúpida razão.
No entanto, as leis não aparecem espontaneamente por aí, sem haver quem as
faça; e, como interessa pouco quem foi que, de facto, redigiu ou fez vigorar
esta ou aquela lei, é costume dizer que a lei – toda e qualquer lei – é da
autoria de uma pessoa a quem convencionámos chamar legislador. Isto é
axiomático, definitivo, é assim, porque não pode ser de outra forma: não
existe lei para a qual não tenha, em algum lugar e em algum tempo, havido um
legislador. Depois, para interpretar essas leis, os técnicos que a essas
coisas se dedicam passam a vida a procurar adivinhar, para certas normas, qual
a intenção do respetivo legislador.
Sabemos, também, que nem todas as leis, se inserem no âmbito do Direito
positivo – aquele dos códigos e do Diário da República -, o mesmo podendo
dizer-se dos princípios que subjazem à conceção e elaboração dessas mesmas
leis. De facto, todos nós, os mais comuns dos mortais, numa ou noutra
circunstância do quotidiano invocamos, da Natureza, esta ou aquela lei.
Para parecermos sabedores, ou por sermos conformistas ou porque assim o
sentimos, é, até, frequente comentar esta ou aquela graça ou desgraça que
acontece dizendo algo como: “Pois é, são as leis da Natureza”. Quase
sempre, quando acontece aos outros algo de mau…
2. O Legislador da Natureza
Certamente que não.
Ora, tendo mais acima estabelecido que qualquer lei é elaborada por um
legislador, forçoso se torna concluir que o apreciável acervo de leis naturais
que conhecemos e a imensidão das que desconhecemos vieram, também elas, não do
caos, mas da mente de um legislador.
Sabemos, outrossim, que é sempre privilégio do legislador alterar, derrogar ou
revogar as leis que elabora, o que frequentemente acontece com os diversos
diplomas legais, códigos, qualquer elemento constituinte de um edifício
jurídico.
Como, na verdade, poderemos alterar ou revogar a lei de Newton, o teorema de
Pitágoras, os princípios de Arquimedes, de Pascal? Impossível, e a razão é
evidente a qualquer um: não foram estes ilustres cientistas os respetivos
legisladores, não foram eles que elaboraram estas e todas as outras
leis naturais – as poucas já conhecidas e aquelas quase infinitas cuja
existência nem sequer nos foi, ainda, dado conhecer -, as quais, por
comodidade na referenciação e em exaltação do resultado que convida a seguir o
exemplo, apenas vão sendo batizadas como o nome de quem, na Natureza,
as identifica.
A existência de qualquer lei da Natureza não é suscetível de ser provocada
pelo Homem, sendo meramente constatável através de uma observação
inicial a validar através daquilo a que chamamos
investigação científica - cientes embora de que os ínfimos passos que a
Ciência vai dando não passam de mosaicos, de pequenas partículas de uma
construção infinita e por nós inalcançável, arquitetada por um legislador
supremo que não conhecemos nem sequer vislumbramos porque se não deu, se não
dá e, desolado com o que por cá poderá estar a ver, cada vez menos razões terá
para se dar a conhecer.
Por uma questão de comodidade e para acompanhar a nomenclatura generalizada, a
esse legislador supremo chamarei Deus.
Não professando eu já qualquer religião, não estou, naturalmente, a referir-me
ao Bom Manitu, a Júpiter, a Alá, a Jeová ou ao deus representado no teto da
Capela Sistina. Chamo Deus à razão sobrenatural que criou a ordem
universal em que todos estamos imersos, à qual estamos irremediavelmente
vinculados e da qual nenhum de nós alguma vez poderá escapar, tal como
acontece com os pequeninos átomos do teto aqui por cima. Pode haver quem diga
que sim, mas ainda ninguém me explicou como ou para quê.
Cada um desses pequenos átomos está sujeito a uma virtualmente infindável
quantidade de leis divinas que, no seu conjunto, asseguram a ordem natural,
tal como as leis dos homens formam o Direito.
Nas cidades, não nos apercebemos tão facilmente das maravilhas da Criação. Por cá, praticamente tudo quanto se nos apresenta aos sentidos é produto da criação humana, de um engenho cada vez mais desenvolvido, e servido por uma base de conhecimento cada vez mais vasta. Mas no campo, quem resistirá a maravilhar-se olhando para uma minúscula bolinha castanha e para o enorme pé de couve que uma bolinha semelhante gerou? Ou olhando para uma bolota caída no caminho e, sobre ela, para o gigantesco e centenário sobreiro que de outra bolota nasceu? Serão o engenho e a razão humana alguma vez capazes de produzir algo tão maravilhoso como aquilo que, há milénios para nós infinitos, a Razão sobrenatural programou?
Esta Razão sobrenatural surge-nos como a primeira causa, a causa das causas,
um deus que, assim definido, inegavelmente existe, dotado de
conhecimento e de poder infinitos ou perto disso e nos permite por cá levar a
vida usufruindo dos recursos que quis pôr à nossa disposição: o tempo, o
espaço, a matéria; as leis que os regem, deterioram e regeneram; os outros
seres; o nosso corpo de primatas e a mente e o espírito que dele se servem na
prossecução de um objetivo último que, paradoxalmente, nos não é dado
conhecer.
Para um ser pensante, deve ser esta a angústia maior da vida, a que suscita a
questão primeira, à qual ninguém sabe responder: o que quer de nós este
desconhecido deus, esta Razão universal? Ao nosso alcance apenas está saber
que essa razão, essa entidade – provavelmente, imaterial -, existiu ou existe,
algures ou nenhures, antes ou após a criação do tempo, do espaço e do que
parece ser material. Sabemo-lo, não por um ato de fé, mas
por dedução lógica
a montante da fé; e o que se sabe, não se pode ignorar, nem vale a pena
negar.
Se aceitarmos esta afirmação, restar-nos-á refletir sobre a nossa missão
enquanto Humanidade, sobre a motivação que poderá ter estado na origem da
vida, sobre o que terá motivado a criação de tudo isto a que nos habituámos a
chamar Universo, cuja dimensão ignoramos e sempre ignoraremos, da mesma
forma que a primeira coisa que nos confunde acerca de Deus é a sua dimensão:
por muito inteligentes que nos julguemos, escapará sempre, ao nosso
entendimento, a qualquer veleidade de compreensão.
Com maior utilidade para todos, caberá, antes de tudo, refletir sobre a missão individual de cada um e sobre as razões da diferença marcante do animal que somos relativamente a todas as outras espécies, questões estas que, porque mais próximas nos são, nos permitirão a verdade com menos insucesso procurar.
É de facto um bom texto, com uma analise muito lucida e lógica acerca do tema. O debate sobre a existencia de Deus è por vezes um debate inconclusivo e controverso porque grande parte das pessoas que o debatem parecem estar predispostas a forçar a sua concepçao acerca do Deus em que acreditam e menos recetivas a trocar ideias e diferentes pontos de vista. O seu texto fez-me ver e pensar segundo uma perspetiva que nao me tinha ocorrido antes. Independentemente de discordar ou concordar, forneceu-me materia e dados para considerar outros pontos de vista. Bem haja.
ResponderEliminarAntonio Magalhaes.
Fico muito grato pelas suas palavras, que sintetizam perfeitamente a minha intenção ao escrever o que leu. As suas palavras serão sempre bem-vindas, em qualquer artigo que consinta comentar.
EliminarÉ caso para dizer: DEUS escreve direito por linhas tortas. Gosto muito do texto. Obrigada. Sucessos.
ResponderEliminarMuito obrigado pela avaliação. Espero ter o gosto de contar com novos comentários seus a outros textos aqui do Mosaicos.
EliminarMuitas felicidades para si também!
Evidentemente que o tema é complicado para um simples comentário, isto no ano de 2021.
ResponderEliminarImagine o que seria há cem anos. Só poucos tentariam fazer comentários, e há duzentos anos? Há trezentos anos nem havia nenhuma forma de o fazer ou até no mínimo seria uma heresia podendo dar lugar à morte na fogueira.
Mas, a existência de Deus é um assunto das pessoas religiosas, ou seja das pessoas religiosas de qualquer religião. Temos o 'até amanhã se Deus quiser' e 'Deus queira que não lhe aconteça nada'. Para quem não é religioso coloca a questão: então amanhã Deus pode não querer ou Deus quer que aconteça mal a determinada pessoa?. Já que os fenómenos naturais, terramotos, dilúvios, erupções vulcânicas acontecem em muitas zonas do globo onde não existem pessoas.
Reparemos no que está agora a acontecer numa ilha do arquipélago das Ilhas Canárias: um vulcão em erupção. No leste asiático na zona da Camechateca os muitos vulcões existentes sempre estiveram em erupção, sempre e numa extensão de milhares de quilómetros, o homem nunca por lá habitou.
Os religiosos estão constantemente a "rectificar" a doutrina em conformidade com evolução das necessidades (ciência) do homem. Alguns filósofos do séc. XVII adiantaram-se e ficaram por 'não foi Deus que criou o homem, foram os homens que criaram Deus'.
Essa questão é muito interessante, e sobre ela procurei refletir no artigo 'Como Gere Deus o Universo' (no separador 'Vida', acima), que o convido a também ler. O mote é, precisamente, a erupção do Cumbre Vieja.
ResponderEliminarNão tenho, porém, certezas quanto aos conceitos absolutos de 'bem' e de 'mal' - caso existam -, já que apenas tenho capacidade para olhar para eles como ser humano; não, seguramente, como Deus. Se for verdade que, como dizem, 'Deus escreve direito por linhas tortas', deixaremos de ter tanta certeza de que as erupções vulcânicas sejam, sobretudo, um mal.
Além do mais, com tanto espaço no Planeta, sempre me fez grande impressão assistir a reocupações destas áreas de risco e de outras no género quando existe a possibilidade de ir viver para outro lado. Poderá dar-se o caso de a Natureza, Deus, o que quisermos, 'necessitar' ou entender por bem, por alguma razão que desconhecemos - como estamos distantes de conhecer ainda que seja uma ífima parcela do Universo! -, que esses fenómenos se repitam nesses lugares e nosses momentos. Em última análise, poderá, até, ser vital para a manutenção da estabilidade da Terra. Não sei.
O que 'sei' é que, podendo, jamais iria habitar um local com grande probabilidade de ocorrência de erupções frequentes...
Quanto à 'ousadia' de abordar estes temas, concordo inteiramente que só recentemente começou a ser possível fazê-lo sem receio de (grandes) represálias. 'Grandes', já que, também na metafísica, parece existir uma certa cultura de... coisas que se nos colam à pele.
Só não concordo consigo quando diz que 'a existência de Deus é um assunto das pessoas religiosas': eu 'sei' que Deus existe, como procurei demonstrar no artigo que leu. Não professo, no entanto, qualquer religião.
Votos de uma ótima semana!
Não professa qualquer religião, então é irreligioso e por isso é ateu negando a existência do divino ou relativo a Deus.
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
EliminarTenho dificuldade em entender o que pretende expressar, quando afirma que sou ateu em virtude de não professar qualquer religião. Tanto quanto julgo saber, ateu é aquele que nega a existência de Deus, o que, como facilmente se constatará, não é, absolutamente, o meu caso, uma vez que o texto que leu visa, precisamente, demonstrar essa Existência.
Simplesmente, não sinto necessidade da mediação de qualquer religião, entendida como interlocutora privilegiada na minha relação com Deus. Penso pela minha cabeça, e a minha ideia de Deus não passa por qualquer estereótipo ou normalização.
Espero ter contribuído para clarificar a dúvida que apresentou, e renovo os meus agradecimentos, ficando à sua inteira disposição para continuar esta conversa.
Concluindo, então, é religioso mais não professa, no entanto, qualquer religião.
ResponderEliminarComo é que se pode ser religioso sem professar nenhuma religião e querer demonstrar que Deus existe.
A existência de Deus é também o "que não se sabe explicar e só Deus é que sabe", e ficamos na mesma por só se sendo religioso é que ficamos convencidos.
Peço desculpa, mas creio que não me fiz entender. 'Religioso' não será, propriamente, aquele que acredita na existência de Deus, ou a aceita ou, como é o meu caso, chega à conclusão pela Sua existência através da dedução lógica.
Eliminar'Religioso' será, antes, aquele que, uma vez consciente da existência de uma divindade, escolhe uma ou outra organização que professe um conjunto de normas que pretende serem as únicas - ou, pelo menos, as ideais - que permitem a devida adoração da mesma.
Deus não existe porque alguma religião o afirma: as religiões é que existem porque, antes delas, existe Deus. De outra forma dito, Deus existiria mesmo que não existisse qualquer religião, mas nenhuma religião poderia existir se não existisse uma divindade - seja qual for o nome que lhe demos -, por absoluta falta de objeto; isto é, por não ter a quem adorar, se não existisse o respetivo deus.
'...nenhuma religião poderia existir se não existisse uma divindade...'
ResponderEliminarEntão, em que ficamos, que divindade? As divindades nascem/nasceram conforme as necessidades, o lugar e as contingências dos tempos (espaço de tempo).
Pelo que sabemos foram por necessidades de vária ordem que surge um 'valha-me Deus' ou seja qualquer coisa extraordinária ou até normal para resolver um grave problema, e se o problema fosse resolvido nasceria uma crença em qualquer coisa com certa lógica: se rezarmos para acabar a seca só faz sentido em lugares de terreno de cultivo, ninguém reza num deserto para que chova. Voltamos à 'Deus é que sabe' para nos perguntar-mos da necessidade da existência dos dinossauros e o cometa destruidor dos mesmos e os milhões de anos para formar o homo sapiens ou o australopiteco. Então para quê esta experiência divina que a 'Deus é que sabe' dá no mínimo um 'pois, 'tá bem, 'tá bem' para que foram oitocentos milhões de anos com esta experiência'. Vá que todos começamos a concordar da antiguidade da terra e das suas transformações geológicas, até há bem pouco tempo religiosamente subtraiu-se uns bons milhões de anos. A crença em Deus foi diferente conforme o tempo em que se viveu, como é que sabemos se a actual fé em Deus é mais íntegra que há de 2000 anos passados?
Eu pensei que me ia responder de não ser "um" religioso por não ser um padre, pastor, rabino, iman ou um monge budista.
Tem, evidentemente, razão quando diz que 'a crença em Deus foi diferente conforme o tempo em que se viveu', mas não é esse o tema do texto que teve a amabilidade de ler. O que nasceu 'conforme as necessidades, o lugar e as contingências dos tempos' foram as religiões e a visão que cada uma delas tinha de Deus, independentemente do nome (ou nomes, no caso das religiões politeístas) que lhe atribuíssem.
ResponderEliminarOra, que me esforcei por demonstrar no meu texto foi a real existência de Deus enquanto razão criadora do Universo, independentemente da crença ou fé que cada um ou cada religião possa ter. Procurei, pela dedução lógica, chegar ao 'conhecimento' efetivo, positivo, indiscutível da existência de Deus, despido de qualquer fé o crença jamais validada. 'Apenas' isso.
Se a fé de uma ou de outra religião é mais 'íntegra' ou menos do que há milhares de anos, não faço ideia, nem me dedico a pensar nesse assunto, já que, como referi, apenas me interessa o conhecimento (pelo menos, validado pela lógica, ainda que a mais elementar), e não um Deus que, supostamente, existe porque uma ou outra religião o afirma.
Relativamente ao significado de 'religioso', entendo-o como alguém que segue uma religião sem, necessariamente, ser um sacerdote da mesma.
Por fim, quanto às catástrofes naturais, ao seu significado e à razão por que ocorrem, tomo a liberdade de sugerir que leia o artigo 'Como Gere Deus o Universo?' (no separador 'Vida' na barra horizontal acima), no qual refleti com maior pormenor sobre o tema.
Não sabia que pode demonstrar a real existência de Deus, ou melhor dizendo que tem a pretensão de demonstrar num texto a existência de algo que não existe.
ResponderEliminarExistir é viver, ser, estar e fazer parte da realidade.
Descartes está desatualizado com o seu 'penso, logo existo' por nunca ter feito exames a cérebros de pessoas, se o tivesse feito chegava à conclusão de 'existo, por que penso'.
A questão sobre as catástrofes naturais é como se queira, o seu artigo é o seu ponto de vista do lado religioso da questão e o 'foi Deus que quis' resolve a falta da explicação cientifica.
Os primeiros colonos quando se fixaram na América do Norte, para arranjar madeira para construir casas e pasto para a criação de animais domésticos resolveram cortar milhares de árvores e pegar fogo numa grande extensão dos Apalaches, que se estendeu por uma grande área e durante alguns anos, cujo fumo arrastado pelos ventos veio alterar o clima na Europa provocando grandes secas e fome que deu azo à Revolução Francesa. Acabaram os fogos acabou o fumo, o clima voltou a normalizar.
Bem, sempre pensei que a única forma eficaz de discordar de uma conclusão é atacar, um a um, os seus fundamentos. Em vez disso, de atacar cada ponto que me leva à conclusão de que Deus existe, lamento verificar que se limita a dizer que 'não existe', ponto final. Assim, será difícil debater o tema com alguma substância e interesse.
ResponderEliminarDiz que 'existo, porque penso'. Bem, pela minha parte prefiro continuar a pensar que o meu automóvel anda porque alguém o construiu, e não que alguém o construiu porque ele anda. Mas, claro está, se em lugar do conhecimento prefere agarrar-se à crença - no seu caso, à crença de que Deus não existe, sem que, para ela, apresente qualquer fundamentação -, quem sou eu, na minha insignificância, para lhe negar esse direito. Afinal, fundamentando ou não, cada um pode opinar como quiser, tal como cada um pode valorizar como quiser.
Por outro lado, se entende que 'a questão das catástrofes naturais é como se queira', não vejo, também, grande utilidade em debater um assunto relativamente ao qual, à partida, dizemos ser indiferente a conclusão. Posso estar errado, mas tenho para mim que qualquer debate apenas fará sentido enquanto parte de uma busca verdadeira e empenhada da verdade à qual, apesar de sabermos que jamais a conheceremos plenamente.
Não consigo, por fim, entender em que tem o facto e os efeitos de os colonos pegarem fogo às árvores com o tema das catástrofes naturais. Entende, então, que os atos humanos geram catástrofes 'naturais'? Nesse caso, teremos de considerar as guerras também como catástrofes 'naturais'.
Serão?
Quem formata ou mede a credibilidade duma pessoa? Só pode ser outra ou outras pessoas com credibilidade.
ResponderEliminarConhece o distinto Prof. António Damásio, neurocientista português da Universidade do Sul da Califórnia reconhecido entre os seus pares e outras pessoas dos mais diversos quadrantes como pessoa de grande credibilidade no estudo do cérebro e emoções humanas.
No seu livro, que julgo que o leu, "O Erro de Descartes, Emoção, Razão e o Cérebro Humano" explica o 'existo, por que penso', e escreveu mais livros que lhe resolve a sua dúvida quanto ao automóvel.
Quanto às catástrofes naturais e a seca na agricultura poder provocar revoltas está a história cheia. No século XVIII a Europa atravessava a chamada "pequena idade do gelo" que estudiosos do assunto são de opinião de que com a questão solar que se verificava também o fumo dos grandes fogos nos Apalaches influenciaram o clima. Como a Revolução Francesa também esteve ligada ao problema da fome por maus anos agrícolas, é fácil de relacionar com o fumo dos fogos na costa leste d América do Norte. Há estudos científicos que o comprovam.
O estudo científico é uma chatice, e o estudo da geologia é uma grande chatice.
Deixe-me salientar que o que aqui está em discussão é a validade dos argumentos que apresentei. Para continuarmos esta conversa, será esses que fará sentido contestar. Utilizar conclusões de terceiros, por muito conceituados que sejam, conclusões que nada têm a ver com o artigo que, supostamente, estará a comentar afigura-se-me absolutamente inútil e desinteressante para a discussão, que, nessa base, seguramente não irei alimentar.
EliminarQuanto à questão dos fogos, não vale a pena enviesar o assunto: apenas a referi porque indicou uma causa humana a efeitos que associou a uma causa natural, e não humana, como acontece com o atear do fogo.
Se quiser rebater, com ideias próprias, os fundamentos que utilizei no texto, terei o maior prazer em prosseguir a conversa. De outra forma, penso que não teremos como continuar a conversar.
'Se quiser rebater, com ideias próprias....'
ResponderEliminarMas, qualquer ideia que se tenha será sempre formada em conhecimentos aprendidos de terceiros: na escola, universidade, laboratório, colóquios, ensaios e outras formas de "bagagem" de conhecimentos.
As palavras que utiliza nos seus argumentos estão todas dicionarizadas, como não achei nenhum neologismo
não me passou pela cabeça pensar estar a rebatar com palavras de terceiros.
Sei perfeitamente o que são desastres naturais, que mais correctamente devemos chamar desastres geológicos, não incluindo a alterações climáticas devido ao posicionamento da Terra em relação ao Sol ao à Lua e desde a revolução industrial do séc. XIX devido ao homem.
Como não consulta literatura de terceiros não lhe recomendo a leitura de obras dos Prémios Craffoord ("nobel" da Geologia) ou a obra de Samuel Ting prémio Nobel da Física.
Sim, será sempre 'formada' como diz, mas não decalcada, com as que aqui me traz.
ResponderEliminarSeja como for, vejo que insiste em afastar-se do tema do texto que, supostamente, está a comentar, pelo que, continuar, seria defraudar as expetativas de quantos aqui vêm ler.
Resta-me, assim, cumprimentá-lo e agradecer o tempo que despendeu.
Texto interessante mas que, na minha modesta opinião, parte de uma falácia: a de considerar equivalentes duas realidades bem diferentes como são as “leis” inventadas pelos homens para regular a vida em sociedade e as “leis” a que chamou da natureza. Parece-me que o facto de também chamarmos leis a relações que encontramos na natureza não permite de maneira nenhuma inferir que essas “leis” também tiveram um legislador.
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
EliminarTrata-se, de facto, de realidades diferentes, mas, parece-me, apenas porque operam em planos distintos: as primeiras no plano espiritual e as segundas no material. Penso, no entanto, que se identificam no sentido em que ambas são compostas por conjuntos de preceitos e de regras cujo cumprimento nos é imposto, com força obrigatória geral.
Acresce, necessariamente, que ambas dimanam da razão, seja ela a razão do Homem, a razão de Deus ou outra, e é, precisamente, esse o sentido da analogia: um preceito, qualquer que seja, é produto de um pensamento, de uma razão, ou não faria sentido, não seria respeitável, não passaria de uma arbitrária imposição.
Vejo, pois, qualquer preceito como prova da existência de uma razão que o gera (à qual, na total ignorância quanto a algo mais do que a mera existência, chamo Deus, por comodidade de expressão).
Assim sento, e com o devido respeito, não vejo como poderei concordar com a sua conclusão.
Renovo os meus agradecimentos pelo comentário: comentários, são um luxo raro para quem aqui vem deixar questionáveis opiniões.
Obrigado pela sua resposta. Vejo que não o convenci que as duas realidades são diferentes. As leis humanas são efetivamente um conjunto de preceitos e regras inventadas pelos homens para organizar a vida em sociedade. Elas variam com o tempo e o lugar e em muitos casos até podemos decidir não as seguir. Ao contrário, as chamadas leis da natureza são apenas a codificação de relações que existem entre os elementos. Não são preceitos que tenhamos que seguir ou não: Pitágoras descobriu que o quadrado da hipotenusa era igual á soma dos quadrados dos catetos mas nada indica que uma qualquer razão ou pensamento tenha decidido que era assim.
ResponderEliminarO que nos separa é, aparentemente, o facto de, no seu caso, o produto de uma - para mim, evidente - atividade intelectual poder ser olhado sem nele vermos a dita atividade que o originou.
EliminarPenso ser possível que, muito no limite - muito mesmo - um ou outro caso pontual de caos acabe, por 'miraculosa' coincidência, por redundar em ordem perfeita. Como explicar, porém, uma Natureza em que tudo parece obedecer a essa ordem prefeita? Como, com a nossa limitada capacidade intelectual, conceber um mundo em que, sem uma razão criadora - pelo menos, num momento inicial, e por muito imperfeitas que, por exemplo, as catástrofes naturais nos possam parecer -, tudo tenha acabado por resultar imutavelmente perfeito?
Tudo o que é produto humano ordenado e estruturado é produto do pensamento, da razão. Pelo menos nisto, concordaremos. Como poderá, então, não o ser a tão ordenada Natureza?
Parece-me que é esta a questão que, entre nós, sempre ficará por responder.
Eu diria que o que nos separa é a nossa anàlise da natureza, que para mim està longissimo de estar ordenada e ainda mais longe de ser perfeita. A admitir que foi obra de um criador, esse criador fez um trabalho bastante atabalhoado.
Eliminar(peço desculpa pela acentuação mas este meu teclado não està previsto para a lingua portuguesa)
Concordo, sem hesitar, que é, efetivamente, esse o pomo da discórdia entre nós; e congratulo-me com o facto de ele existir, assim alimentando a agradável discussão que aqui desenvolvemos.
EliminarComo escrevi, entendo que o conjunto das leis naturais que conhecemos não passa de uma ínfima amostra daquelas - virtualmente infinitas - que existem. Por isso mesmo, a muitos de nós a Natureza aparece como algo desordenado: porque não temos capacidade para vislumbrar a ordem em leis que ainda nos não foi dado identificar.
À medida que o conhecimento evolui - ou parece evoluir -, novas leis vão sendo descobertas, e vamos compreendendo um pouco melhor o Universo e quanto nele se passa. Mas a Ciência, e continuará, continua a não passar de uma migalha no infinito oceano da realidade e das leis que a regem.
Numa coisa, porém, penso que estaremos de acordo: aquelas leis naturais que conhecemos são estáveis, são sempre válidas para as condições em que são enunciadas. H2SO4 + Zn = ZnSO4 + H2: onde, quando e como quer que seja, sem que algum humano o possa alterar. O seu computador não se desintegra, as teclas não se derretem ao impacto das suas falangetas, porque os biliões de bilões de átomos que as compõem não têm como alterar a sua estrutura ou a forma de, uns com os outros, se relacionar.
Votos de um excelente Domingo!
Este seu texto, que não li integralmente (hei-de a ele voltar), deixa-me intrigado. Por um lado, constato estar perante alguém superiormente culto e senhor de uma escrita primorosa; por outro, ainda que tenha de voltar ao texto em questão para melhor me inteirar do seu conteúdo argumentativo, tenho muita dificuldade em entender que possa acreditar na existência dessa espécie de "supremo arquitecto do Universo", como, se bem me recordo, lhe chamavam alguns revolucionários franceses (Robespierre, em particular). Aliás, a primeira objecção que me veio à cabeça nem foi essa; foi a de Bakunine e Nietzsche, que sublinham a ilogicidade desta causa sui ou causa incausada, desta explicação teológica que explica o mais simples, partindo do mais complexo, do material, partindo do espiritual. Com efeito, sendo difícil explicar a maravilhosa (...) complexidade e perfeição do que vemos à nossa volta, mais difícil será admitir a existência de uma Inteligência superior que tudo teria criado. O químico Peter Atkins (Univ. de Oxford), em «Como Surgiu o Universo», diverge de si, “mostrando” como as leis podem surgir do nada, da ausência de leis. Definitivamente, tendo lido Marx, Nietzsche, Freud, Morin, entre outros, compreendo sem dificuldade a necessidade da crença em Deus e o conforto que essa crença pode dar, mas, salvaguardada a vantagem daquilo a que Morin chama, na esteira de Freud, o “compromisso neurótico com a realidade” (o impacto do real é dificilmente suportável), não posso conceber a possibilidade da existência de Deus, seja lá o que isso for – um Padre Eterno de barbas, como em Junqueiro, ou algo mais elaborado, conforme as religiões e as filosofias idealistas vão, progressivamente, compondo, a fim de resguardar o mito dos avanços da ciência. Dito isto, felicito-o pela qualidade dos seus textos e congratulo-me por, aparentemente, não divergirmos tanto na apreciação das questões sociais.
ResponderEliminarMuito obrigado, antes de mais, pela amável apreciação que faz dos parcos méritos da minha escrita.
EliminarNa linha de quanto penso ter deixado claro na 'Apresentação', apenas procuro plasmar, nas linhas que por aqui vou deixando, a reflexão pura, resultante da observação direta que faço da realidade que nos rodeia, como alternativa à habitual elaboração sobre conclusões que ressaltam de escritos de pensadores de outros lugares, de outros tempos, às quais me não atenho e, como no mesmo texto deixo claro, na maior parte dos casos não li nem tenho especial curiosidade em ler, a fim de não contaminar - no bom sentido, claro - o fruto bem menos merecedor da cogitação sobre o que me trazem os sentidos.
A necessidade da crença na existência de um deus, não a sinto, nem me traria qualquer conforto, dada a posição que tenho quanto à vida após a morte - que aqui ainda não expressei apenas por estar a procurar dotar de adequado alinhamento a inclusão cronológica dos textos da secção 'Vida' - e que me torna perfeitamente suportável o impacto da realidade.
Essa ausência de necessidade de aderir a uma qualquer crença poderei, ademais, reforçá-la no facto de haver, em tempos, professado uma religião, da qual me afastei em boa parte por, precisamente, sentir a necessidade de negar a existência de uma divindade que me fora imposta e, voltando então ao nada e partindo da lógica pura, chegar a uma conclusão trabalhada exclusivamente a partir dos parcos recursos da minha mente. Não 'acredito', de facto, "na existência dessa espécie de "supremo arquitecto do Universo", nem acredito no que quer que seja. Apenas investigo, procuro, tento entender, validando, quando possível - o que, evidentemente, não é o caso: para mim, ou para qualquer autor.
A argumentação que expendi baseia-se, exclusivamente, na lógica mais elementar a que, no meu íntimo, consegui aceder. Ciente da possibilidade de estar errado, a conclusão pela existência de um Deus - que não faço a mínima ideia quem seja ou como seja - surge-me, não obstante, como o termo inevitável do itinerário cognoscitivo que empreendi.
(continuação, por falta de espaço disponível)
EliminarAdmito, naturalmente, que alguém possa ter 'demonstrado' que as leis podem surgir do nada, tal como penso ter eu 'demonstrado' que tal não é possível. As conclusões da ciência estão, permanentemente, sujeitas a contestação e a revisão, tal como, por maioria de razão, o estarão as débeis formulações do meu espírito.
Renovo os agradecimentos pelas suas palavras, e terei o maior interesse em conhecer o seu juízo definitivo - e, desejavelmente, demolidor - após a análise crítica aprofundada a que não deixará de submeter a fundamentação que me leva a concluir que, afinal, Deus (um deus) existe - não, necessariamente, um 'salvador' ou 'pai'.
António Ladrilhador,
EliminarI
Ponto prévio: o meu juízo não será “demolidor” (estou longe de ter tal capacidade, além de não ser essa a intenção) e a minha análise estará longe de ser aprofundada. Satisfaço-me com exprimir uma opinião, tentando fundamentá-la com as opiniões de cientistas ou pensadores em que me revejo (no todo ou em parte), bem ciente de que o faço de forma tosca.
Feita a advertência, permita-me que comece com uma citação dum texto do Professor Carlos Fiolhais, publicado em “Tribunal da Relação de Lisboa. Uma Casa da Justiça com rosto”, Lisboa, 2010. A avaliar pelo domínio do léxico do Direito e da organização judiciária que o António Ladrilhador revela nos seus textos (aliás, imagino-o jurista, o que não é o meu caso), julgo que gostaria de o ler na íntegra, o que é fácil, pois está disponível na Internet, se é que não o conhece já.
«O saudoso Doutor Orlando do Carvalho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, quando um dia proferi a seu convite uma conferência sobre a origem do Universo no Instituto de Coimbra e me referi às leis naturais, perguntou-me com o seu particularíssimo humor: “Então os senhores na ciência também têm leis? E fazem-nas?”. Respondi-lhe que sim, que as tínhamos, embora elas fossem muito diferentes das leis humanas, e que não, não éramos
nós que as fazíamos. Limitávamo-nos, o que já não era pouco, a descobri-las. De facto, observamos que o mundo natural se encontra bem regulado — o mundo é como é e não de outra forma — sendo as suas regularidades descritas pelos cientistas sob a forma de leis. A descoberta das leis naturais é a tarefa permanente e, por isso, inacabada da ciência e o avanço científico não significa de modo nenhum que as leis naturais estabelecidas tenham de ser revogadas. Essas leis são, num certo sentido, fixas. Não as podemos alterar a nosso belo prazer. Pelo contrário, as leis humanas são alteráveis: feitas pelo homem, elas vão mudando, sempre pela mão do homem, em resposta às exigências de uma sociedade em mutação.
Sobre as leis naturais disse um dia Albert Einstein, o físico suíço de origem alemã (naturalizado norte-americano quando emigrou em 1933 para os Estados Unidos) que é reconhecidamente um dos maiores cientistas de todos os tempos (a revista norte-americana Time nomeou-o mesmo o “homem do século”, na passagem do século XX para o século XXI): “Deus é subtil, mas não é malicioso”. Não se trata de uma afirmação de carácter religioso, uma vez que Einstein não professava o judaísmo, a religião dos seus ancestrais, nem sequer qualquer outra. Com esta bela metáfora apenas queria significar que as leis naturais não são para nós evidentes, mas que estão ao nosso alcance.» (continua em II)
II
EliminarNão posso deixar de concordar com a sua afirmação de que «não existe lei para a qual não tenha, em algum lugar e em algum tempo, havido um legislador», desde que ela se circunscreva à esfera do social, do humano, abarcando os planos político, moral, jurídico… Se me é permitido recorrer à «elaboração sobre conclusões que ressaltam de escritos de pensadores de outros lugares, de outros tempos», os próprios detractores do conceito de uma «ordem moral», tais como Nietzsche e Freud, que a radicam no conceito, igualmente negado, de uma pretensa «natureza humana» só entendível na pressuposição da existência de Deus, não se ficam pela simples rejeição. Sartre acrescenta imediatamente que, não havendo Deus, temos de ser nós a criar a tal “ordem moral”: «já que eliminamos Deus Nosso Senhor, alguém terá de inventar os valores. Temos que encarar as coisas como elas são. E, aliás, dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a vida não tem sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido.» (Sartre, O Existencialismo é um Humanismo). Nietzsche, menos filósofo e mais profeta de uma espécie de religião em que ele próprio assume um papel demiúrgico, faz uma exaltada e algo descabelada apologia da energia vital e da fruição dionisíaca da vida, desancando o cristianismo e a moral do rebanho, ao mesmo tempo que entoa cânticos à grandiosidade do super-homem, e anatematiza aqueles que se pronunciam a favor dos operários, dos humildes, dos oprimidos – enfim, dos que não mostram a tal energia necessária para ascender ao estatuto do super-homem. Portanto, sim, não há lei sem legislador. Mas falamos de “leis humanas”.
É quando pergunta «Significará isto que, do caos total sobrevindo de um eventual big bang ou evento parecido terá podido nascer a ordem quase total como hoje a conhecemos?» e responde com a seguinte inferência «tendo mais acima estabelecido que qualquer lei é elaborada por um legislador, forçoso se torna concluir que o apreciável acervo de leis naturais que conhecemos e a imensidão das que desconhecemos vieram, também elas, não do caos, mas da mente de um legislador» que me vejo impedido de o acompanhar. Como é óbvio, as leis da física foram sendo progressivamente enunciadas por cientistas, que serão tudo menos legisladores: observadores atentos, experimentadores, cépticos de resultados aparentemente fiáveis, mas afinal enganadores, modestos redactores de hipóteses fundamentadas, mas sujeitas ao escrutínio da realidade tantas vezes enganadora, eles constatam, verificam e enunciam algo que é independente da sua vontade e, longe de o considerarem válido para todo o sempre, imediatamente assinalam as eventuais fragilidades da lei. Em suma, eles descobrem as leis; não as fazem – conforme bem sublinha Carlos Fiolhais, «o mundo é como é e não de outra forma — sendo as suas regularidades descritas pelos cientistas sob a forma de leis». Por outro lado, especular sobre a eventual existência de uma Inteligência suprema, isenta das condicionantes do método científico e dotada da omnisciência imprescindível para criar um Universo regido por Leis maiúsculas, infinitamente mais credíveis do que as leis da nossa mundana ciência, afigura-se-me como totalmente contrário à lógica pura, e uso as suas palavras para melhor sublinhar a total oposição do meu raciocínio ao seu.(continua em III)
III
EliminarMuito embora a sua perspectiva de uma Inteligência criadora não tenha, como é óbvio e natural vindo de uma pessoa culta, o cariz ingénuo dos deuses antropomórficos da imaginação popular (tanto do nosso monoteísmo como do politeísmo), e possa estar, como está, no seu caso, investida da dignidade de uma reflexão séria e sujeita ao crivo do raciocínio lógico, não deixa de ser, para mim, vulnerável, no seguinte particular: à minha perspectiva materialista dialéctica repugna a ideia de uma entidade imaterial (ou mesmo material) dotada de uma inteligência e poder tais que tudo teria criado, da mais elementar partícula ao mais complexo e perfeito ser. A matéria é o princípio de tudo, e no princípio não havia inteligência. A vida inteligente nasceu da vida tout court, que, por sua vez, nasceu da química e da física. Se é difícil entender a existência de um Universo tão bem oleado sem um criador, mais difícil (na realidade, impossível) me parece ser a existência de uma Inteligência Suprema, prévia a tudo.
Quanto à inteligência que nos distingue dos demais animais, não esqueçamos Darwin e a evolução das espécies, e tenhamos em mente a possibilidade de outra espécie vir a suceder ao sapiens. O Universo tem, ao que parece, perto de catorze mil milhões de anos, e nem sequer se sabe se, antes deste, não terá havido outro, muitos outros, dos quais este seria filho ou neto. É de crer que o caos inicial da grande explosão tenha paulatinamente dado lugar a formas crescentemente complexas de organização, até atingirmos o estádio actual. Pela parte que me toca, não me custa admitir um longuíssimo período de processos evolutivos de toda a ordem até se chegar ao estádio actual; não posso conceber uma entidade pré-existente à matéria, dotada da inteligência capaz de gerar o Universo. De resto, seria até uma inteligência algo contraditória. Uma Inteligência suprema ter-nos-ia criado, no mínimo, no estádio do Génesis, dispensando o demorado processo da filogénese.
Em relação ao surgimento do Universo a partir do nada, não vou entrar em desenvolvimentos para os quais disponho de escassíssimos conhecimentos. Peter Atkins também não é taxativo (daí as aspas em “mostrar” ou “demonstrar”), como não o são, em geral, os cientistas. Transcrevo apenas estes dois pequenos passos de Como Surgiu o Universo: «Defenderei que as leis que não surgem da indolência surgem da anarquia, da não-imposição de leis. […] A ciência mantém-se actualmente em silêncio sobre o mecanismo que levou o Nada a topar com algo, e assim poderá permanecer para sempre, embora tenha havido especulações. Aqueles que têm inclinações religiosas ou mesmo seculares mas poéticas podem talvez satisfazer-se com a visão de um criador, ele próprio exterior ao Nada, a encostar o seu ombro ao Nada, talvez a tropeçar nele por acaso, provocando o que se seguiu (e talvez, se foi por acaso, talvez esteja agora desanimado com as consequências), mas esse não é o modo de pensamento da ciência.» (A referência ao “desânimo” do putativo criador faz eco a este passo da sua resposta: «legislador supremo que não conhecemos nem sequer vislumbramos porque se não deu, se não dá e, desolado com o que por cá poderá estar a ver, cada vez menos razões terá para se dar a conhecer»).
No seguimento deste parágrafo, e não obstante expender uma argumentação assente em dados científicos, o autor refere-se-lhe como “especulação”. Creio que a especulação, a intuição, os pressentimentos são frequentemente um bom ponto de partida para grandes descobertas.
Os dois últimos parágrafos do seu texto configuram condensadamente a expressão de um idealismo de contornos místicos, como, aliás, é próprio dos idealismos: as “missões” a que se refere remetem inevitavelmente para a existência da tal entidade sobrenatural que escapa «ao meu entendimento, a qualquer veleidade de compreensão» da minha parte.
A apetência do homem pelo mito é uma temática que me interessa particularmente e a sua leitura é enriquecedora, pelo que continuarei a visitar o seu Mosaicos em Português.
Aceite os protestos da minha consideração.
EliminarFernando Martins
Muito grato pela sua síntese da literatura, que registo com agrado, embora, não sendo em autoridades que fundamento a minha conclusão, tenha dificuldade em discernir em que poderão as respetivas asserções contribuir para rebater quanto, unicamente no plano da lógica, sustento.
Perdoará que lhe diga que não encontro substancial contraditório na sua afirmação de que 'é quando pergunta «Significará isto que, do caos total sobrevindo de um eventual big bang ou evento parecido terá podido nascer a ordem quase total como hoje a conhecemos?» e responde com a seguinte inferência «tendo mais acima estabelecido que qualquer lei é elaborada por um legislador, forçoso se torna concluir que o apreciável acervo de leis naturais que conhecemos e a imensidão das que desconhecemos vieram, também elas, não do caos, mas da mente de um legislador» que me vejo impedido de o acompanhar'. Tampouco encontro, sem dúvida por inépcia minha, nas linhas que imediatamente se seguem a tal afirmação, fundamentação própria que a sustente a impossibilidade referida.
Entendo que 'à minha perspectiva materialista dialéctica repugna a ideia de uma entidade imaterial (ou mesmo material) dotada de uma inteligência e poder tais que tudo teria criado, da mais elementar partícula ao mais complexo e perfeito ser', o que constitui uma posição subjetiva e respeitável enquanto tal; mas que me não parece suficiente para rebater a conclusão, no plano lógico em que foi formulada, pela existência de um Supremo Legislador. Ou seja: além da repugnância pessoal, que razão objetiva impede, sem margem para dúvidas, que seja válida a hipótese que formulei?
Igualmente discutível me parece a afirmação, também ela não fundamentada, de que 'a matéria é o princípio de tudo', ou que será impossível a existência de uma Inteligência Suprema, prévia a tudo, já que também não esclarece quem terá criado a matéria e as leis que a regem, afigurando-se-me fortemente redutora - e, perdoará, até cómoda - a hipótese 'ninguém'.
Refere como sendo de crer o 'caos inicial da grande explosão', mas tal não passa, como bem diz, de mais uma crença, nem a própria Ciência sendo unânime quanto à existência daquela. A maior probabilidade de uma génese na anarquia em apoio de 'não posso conceber uma entidade pré-existente à matéria, dotada da inteligência capaz de gerar o Universo' aparece como natural mas, uma vez mais, não esclarece, objetivamente, em que deverá a conclusão pela inexistência da entidade prevalecer relativamente à da existência.
(...)
EliminarArriscamo-nos, assim, a andar em círculos em torno daquilo em que cada um acredita quanto à génese de quanto nos rodeia, crença para a qual procuro mas não encontro, nas suas palavras, argumentação contrária, própria e sólida, no plano da lógica pura a que cingi a minha reflexão - que, aliás, mais não é do que isso, já que, como afirmo na 'Apresentação', apenas é meu propósito suscitar outras reflexões, como a sua, e não defender qualquer posição.
Peço-lhe, simplesmente, que note que a conclusão pela existência de uma divindade criadora foi obtida por mera dedução objetiva, positiva, concorde-se ou não, subjetivamente, com a analogia em que assenta. É, assim, tudo menos 'poética', e é nesse plano puro e duro que gostaria de a ver aqui rebatida, o que, na minha modesta opinião, ainda não aconteceu.
Penso que resta esclarecer a ideia subjacente aos dois últimos parágrafos do texto que teve a amabilidade de comentar, a qual - pelos vistos imperfeitamente expressa... - nada têm a ver com 'missões' divinas ou tendentes a merecer o divino favor. Bem pelo contrário: na impossibilidade de conhecer qualquer 'missão' dessa natureza, resta-nos, no plano estritamente, humano - o único que, melhor ou pior, vamos 'conhecendo' - procurar a razão de sermos, de existirmos: esta, seja ela qual for, apenas poderemos concretizar no plano social, através do serviço ao próximo, nosso companheiro de 'infortúnio'. Enquanto não refletimos mais aprofundadamente sobre qual poderá ser a razão última de aqui termos sido 'plantados', a dedicação a quem nos rodeia será, porventura, a única 'missão' que poderá realizar-nos e dar sentido à vida humana - pseudo-conclusão que, desde já e sem rebuço concedo, por uma vez, me dou ao 'luxo' de formular intuitivamente e sem qualquer possibilidade lógica de demonstração.
Lamento, assim, que o Mosaicos não sirva o propósito de enriquecer a sua pesquisa sobre a apetência do Homem pelo mito, o que, espero, não o impedirá de o visitar regularmente, comentando sempre que entender adequado e oportuno quanto entenda merecer tal distinção.
Peço-lhe que aceite as minhas mais cordiais saudações
António Ladrilhador,
EliminarO debate em curso é daqueles que não têm fim e dificilmente algum dia o terão. Partindo deste pressuposto, é de elementar bom senso cada debatente afirmar as suas convicções pessoais – mais ou menos consistentes, mais ou menos fundamentadas, expressas de forma mais ou menos criteriosa – sem a veleidade de chegar a acordo. Como não está em causa o prosseguimento da vida nem a governabilidade do país, há que aceitar o inevitável, sem estados de alma. Neste, como noutros domínios, é mais importante o processo do que o resultado. No meu caso, sempre que debato esta problemática, e contrariamente ao que algumas pessoas imediatamente pensam, não me move a intenção de convencer; move-me sobretudo a perspectiva de me ver confrontado com uma argumentação capaz de me persuadir de que possa estar errado. Parece ser esta, também, a sua motivação. É no espelho do confronto dialéctico que nos é dado observar as nossas próprias e eventuais fragilidades, sem prejuízo de continuarmos a confiar nas nossas convicções, enquanto não forem abaladas pelo tal argumento “demolidor”.
Uma vez feita a declaração de fé nas virtudes do diálogo, quero aqui manifestar a minha adesão a este seu pensamento: «Enquanto não refletimos mais aprofundadamente sobre qual poderá ser a razão última de aqui termos sido 'plantados', a dedicação a quem nos rodeia será, porventura, a única 'missão' que poderá realizar-nos e dar sentido à vida humana.» É uma adesão ligeiramente mitigada (o adjectivo arrisca-se a ser a palavra do ano em 2022, depois da conversa do Rui Rio com o outro indivíduo), pois só a subscrevo na íntegra depois de expurgada daquela ideia de aqui termos sido “plantados”, pelas razões que já ficaram expressas e que não vale a pena repetir. Tirando isso, o envolvimento social e cidadão no combate por um mundo justo e fraterno (julgo não fazer uma interpretação demasiado extensiva e abusiva da sua expressão “dedicação a quem nos rodeia”), também a entendo como «a única 'missão' que poderá realizar-nos e dar sentido à vida humana», dispensando toda e qualquer demonstração. Para alguns (o historiador israelita Harari, autor de Sapiens, Breve História da Humanidade, por exemplo), isto será o equivalente de uma religião. Talvez o seja no sentido etimológico do “religare”, mas religiões destas não me incomodam. Em tempos, disse a um colega (frade franciscano que deixara a ordem): «Tu vives a religião na vertical, na tua relação com Deus; eu vivo-a na horizontal, na minha relação com os homens». Mas chamar “religião” a tudo e mais alguma coisa não me parece ser a melhor maneira de esclarecer conceitos e posições filosóficas. Há um texto de Freud, para cuja transcrição peço a sua benevolência, em que ele diz o seguinte:
Quanto a questões de religião, as pessoas são culpadas de toda espécie possível de desonestidade e mau procedimento intelectual. Os filósofos distendem tanto o sentido das palavras, que elas mal retêm algo de seu sentido original. Dão o nome de ‘Deus’ a alguma vaga abstracção que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos como deístas, como crentes em Deus, e inclusive gabar-se de terem identificado um conceito mais elevado e puro de Deus, não obstante significar seu Deus agora nada mais que uma sombra sem substância, sem nada da vigorosa personalidade das doutrinas religiosas. Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação da insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reacção que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra. (O Futuro de uma Ilusão)
(continuação)
EliminarA “crença” (!...) na “dedicação a quem nos rodeia” como «a única 'missão' que poderá realizar-nos e dar sentido à vida humana» não a entendo, pois, nem seguramente o A.L., como uma religião. Já a crença no Supremo Legislador é de natureza diferente, uma vez que um “intruso” faz irrupção na equação humana. É aqui que o espelho do debate nos devolve uma imagem algo distorcida, e, se não apelido de “religião” a sua hipótese atinente à Criação (maiúscula, como a solenidade do acto impõe), é apenas porque ela se restringe ao plano da especulação filosófica estribada na “lógica pura” e prescinde de toda a utensilagem laudatória e ritual que revela o carácter neurótico da prática religiosa (Freud dixit, ou magister dixit, para convir que não dispenso as minhas referências intelectuais, conforme o A.L. tem sublinhado).
O A.L. parece inferir do facto de não haver lei sem legislador, o que é válido para as leis humanas, que, forçosamente, as leis da Natureza (que não são obra de cientistas, mas apenas a formulação por eles, em termos matemáticos, das regularidades observáveis na Natureza), decorrem necessariamente da actividade legislativa de um Supremo Legislador (sobrenatural, como só pode ser). Ao fazê-lo, transpõe para o plano da metafísica aquilo que só é válido para o mundo físico, o que se me afigura uma descontinuidade epistemológica. Se interpretei mal as suas palavras ou o seu raciocínio, peço-lhe que me ajude a corrigir o equívoco.
A «afirmação, também ela não fundamentada, de que 'a matéria é o princípio de tudo', ou que será impossível a existência de uma Inteligência Suprema, prévia a tudo» é, efectivamente, um postulado que eu subscrevo, como materialista que sou. A diferença de “legitimidade” entre o meu postulado e o postulado idealista da precedência do Espírito Criador, da Inteligência Criadora, do Supremo Legislador, do Desígnio Divino, é que a matéria está aqui, ao alcance da nossa mão – eu sou matéria e percepciono permanentemente a matéria que me rodeia, graças aos meus sentidos materiais. Já o Supremo Legislador está arredado de qualquer possibilidade de percepção sensorial e só podemos aceder à sua ideação / nomeação ou pelo recurso a instâncias psíquicas que dispensam a sensorialidade e obedecem a pulsões profundas com mais que prováveis raízes na nossa ancestralidade ou através de um mecanismo dedutivo de lógica “pura”, rigorosamente formal, isto é, por meio de mero jogo silogístico, sem apoio na realidade concreta do mundo físico.
(continua)
No limite, não querendo propriamente comparar o seu raciocínio ao contra-senso que vou pedir emprestado a Bertrand Russell, se alguém afirmar a existência de um bule de chá em órbita entre a Terra e Marte, nos garantir que, por ser diminuto, não é susceptível de ser avistado por nenhum telescópio, e nos exigir a prova de que esse bule de chá celeste não existe, é claro que não poderemos prová-lo. Não podemos, nem temos de o provar. É quem o afirma que tem essa obrigação. Os materialistas afirmam a existência da matéria e a sua precedência sobre o espírito – aqui, na acepção de pensamento, de consciência, que só existem porque há um cérebro material que os suporta. Este postulado não carece, suponho, de demonstração. Mas a precedência do Espírito sobre a matéria é hipótese para a qual me parece lógico exigir-se uma prova.
EliminarPela parte que me toca, aceitaria essa e qualquer outra singularidade (não uso aqui o termo no sentido da física), desde que a demonstração da sua existência fosse feita, não pelo recurso à lógica, mas sim por meio de instrumentos de observação. O James Webb, que vai proximamente entrar na órbita do Sol e “avistar” até perto dos 13,7 mil milhões de anos da existência do Universo (pelo menos, deste Universo, que outros poderão tê-lo precedido), talvez consiga esse feito. Se, algum dia, a ciência do homem ou uma excepcional e nunca vista iniciativa do próprio nos revelar a existência do Supremo Legislador (excluída a hipótese da hierofania, que essa já é experienciada por milhões e milhões de humanos), nesse dia, eu dar-lhe-ei razão e farei um auto-de-fé com os meus pobres escritos blasfemos.
Recuando, mas um pouco menos, no tempo, apenas uns escassos mil anos, Santo Anselmo dizia, a propósito do Supremo Legislador, mais ou menos isto: se pensarmos num ser infinitamente perfeito, então ele existe mesmo, ou não seria infinitamente perfeito. É um raciocínio em que a lógica é subvertida, pois a existência da ideia não implica a existência do ser a que ela se refere. No caso do A.L., e não me leve a mal o cotejo, o raciocínio tem algo de semelhante, pois a ideia de que as leis humanas resultam de uma actividade legislativa (tão verdadeira quanto a ideia de um ser infinitamente perfeito) não tem que implicar a existência paralela de um Legislador divino. Por mais perfeito que seja o funcionamento do Universo, os seus 13,7 mil milhões de anos de existência parecem ter dado à matéria e à energia o tempo necessário para se acomodarem até ao ponto de nos permitirem especular sobre a eventual necessidade de um universologista.
Cordiais saudações.
Fernando Martins
Fernando Martins
EliminarConcordo, evidentemente, com o integral conteúdo da sua introdução, e nenhuma dúvida alguma vez me assaltou quanto ao seu posicionamento. Já quanto ao facto de não valer a pena insistir nas razões que levaram a que aqui fôssemos 'plantados', não insistirei, por agora; mas, devo informar de que tenho em - demorada... - preparação um despretensioso texto sobre o assunto, que, de tão complexa e sensível que é a matéria, ainda deverá demorar 'alguns' meses a surgir.
A minha opinião sobre as religiões será, por sua vez, um dia exaustivamente explanada num artigo a incluir na secção 'Sociedade' - já que vejo que ambos concordamos em não considerar a religiosidade um tema da 'Vida', mas um mero fenómeno social. Lamento não me encontrar, ainda, em posição de me pronunciar sobre, este, com a fundamentação sólida e abrangente com que, sem grande sucesso, procuro sustentar quanto no Mosaicos proponho como mote para reflexão.
Tal não obsta, porém, a que agradeça a citação de Freud que teve a amabilidade de aqui trazer e à qual me inclino a aderir sem grande hesitação.
Compraz-me, sobremaneira, ver, partindo das suas palavras, conseguido o meu cuidado de separar, de qualquer contaminação religiosa, a problemática da existência de uma Razão Criadora; mas, desgosta-me, profundamente, a manifesta incapacidade para, até este ponto, clarificar o que entendo por esta Razão.
Se me permite, tentarei, uma vez mais, embora sem grande esperança de maior sucesso.
Como penso ter deixado claro, o ponto de partida para o texto que publiquei é o conceito abstrato de 'lei' imperativa, como penso que concordamos ser toda e qualquer conhecida lei da Natureza - já que o F.M. não contesta o facto de serem todas elas irrevogáveis e inalteráveis por vontade humana.
Todavia, tal como à sua 'perspectiva materialista dialéctica repugna a ideia de uma entidade imaterial (ou mesmo material), dotada de uma inteligência e poder tais que tudo teria criado, da mais elementar partícula ao mais complexo e perfeito ser', a minha visão da ordem natural e das múltiplas limitações e riscos a que nos sujeita impede-me de aceitar que um conjunto tão vasto de elementos como é a Humanidade - a cuja subsistência e desenvolvimento estável subjazem, entre outros, conceitos como ética e justiça - tenha espontaneamente surgido do nada apenas para padecer sob tais limitações e riscos. Se a inteligência e a inesgotável curiosidade humanas nos levam a assumir que, para tudo, existe uma explicação, como poderemos considerar como única exceção a este entendimento aquilo que é, possivelmente, o mais essencial de tudo: a própria Criação?
Como poderemos, legitimamente, abdicar de procurar a causa das causas?
Acaso poderá a nossa inteligência sossegar após desistir de investigar o que terá determinado o 'big bang'? O que terá criado as poeiras - a matéria - que, entrando em 'confronto', terá determinado a magna explosão que, a ter existido, terá lançado o processo de propagação da matéria pelo supostamente infinito Espaço ao longo de um supostamente infinito Tempo? Até, do que terá, com normas precisas, feito aparecer esses mesmos Espaço e Tempo?
Jamais o 'saberemos', é certo. Mas, como não inferir, da ordem que observamos em todas as coisas, que tudo obedece a algo previamente projetado a que toda a matéria obedece, apenas parecendo capaz de, numa ligeiríssima medida, a essa obediência se subtrair - com resultados, por vezes, catastróficos - a 'vontade' humana? (que não cabe nesta discussão...)
(continua)
(continuação)
EliminarDeixe que repita: o fundamento primeiro da minha pergunta de partida 'Afinal, Deus Existe?' é, muito simplesmente, o conceito ABSTRATO de 'lei' imperativa.
Se o conceito genérico de 'lei' pressupõe o de autoria, haverá que, querendo, demonstrar que 'alguns' tipos de lei deste não dependem (o que, perdoará, penso que até agora o F.M. não conseguiu). É que, ainda que pudéssemos transigir a ponto de admitir que uma ou outra lei natural pudesse ter resultado do acaso, como conceber, sequer, 'que do caos TOTAL nasceu, por coincidência tão espantosa como improvável, uma ordem universal tão perfeita (...)'? Consegue, de facto, desenvolver sólida argumentação que o sustente? Além da mera presunção de que o tempo terá permitido ir ajustando alguma coisa, aqui e ali...
Releve, peço-lhe, a insistência, mas não transponho 'para o plano da metafísica aquilo que só é válido para o mundo físico': não estará antes, e paradoxalmente, a 'descontinuidade epistemológica' na sua não fundamentada afirmação de que o que defendo 'só é válido para o mundo físico'? O quê? O
pressuposto da existência de uma Razão na génese de qualquer lei? Não haverá, aqui, uma certa contradição? É que o F.M. diz considerar que esta necessidade de existência de um legislador apenas é válida para as leis do mundo físico. Mas não é o mundo físico, precisamente, o que é regulado pelas leis naturais, que diz não se deverem a qualquer legislador?
As leis dos homens não têm como destinatário o mundo físico, a matéria, antes a mente ou o espírito dos seres humanos que as deverão observar. As únicas leis válidas para o 'mundo físico' são, precisamente, as leis naturais, e é para estas que reivindico a autoria de uma Razão, que jamais chegaremos a conhecer, mas que 'sei' que existe ou existiu (sobre esta temática da eventual efemeridade de Deus, permito-me sugerir a leitura do texto 'Como Gere Deus o Universo?').
Perdoará, mas a negação do 'postulado idealista da precedência do Espírito Criador' e a limitação do conhecimento à matéria que 'está aqui, ao alcance da nossa mão' parece-me mais não ser do que também a negação, na apreciação de uma causa, do valor de qualquer prova circunstancial: pois não é a observação dos factos que me leva a aqui concluir por algo que transcende os mesmos, tal como é o facto de alguém ter tido motivo, meio e oportunidade para cometer um crime que leva, para além de qualquer dúvida razoável, à conclusão pela culpabilidade, mesmo que prova direta não exista, que ninguém tenha visto ou não tenha sido registada a ação. Ou não passarão, no seu entendimento, as decisões judiciais assim tomadas de produtos de meros jogos silogísticos sem apoio na realidade concreta do mundo físico? (A pergunta é, evidentemente, retórica, já que, vindo de si, em tal me recuso a acreditar)
O facto que observo e me leva, sem recurso a quaisquer instâncias psíquicas nem movido por pulsões profundas, a concluir pela existência do Legislador é a, para mim insofismável, existência da ORDEM NATURAL, essa ordem COM 'apoio na realidade concreta do mundo físico' que à mente me trazem os sentidos. O F.M. entende, por seu turno e sem demonstrar, que a ordem perfeita pode nascer do caos absoluto, de uma explosão originada pela fricção de poeiras cujos átomos eram livres de decidir o respetivo destino.
Devo dizer que, essa simples ideia, violenta, em mim, os mais elementares ditames da razão.
(continua)
(continuação)
EliminarO F.M. limita-se a afirmar que o 'bule' não está lá; e, de facto, 'auctori incumbit onus probandi'. Por isso mesmo, procurei, no artigo que acima publiquei, demonstrar, por dedução lógica nascida da observação da Natureza, a minha singela conclusão existência da Razão Criadora, da mesma forma que é da observação dos factos que a Ciência extrai qualquer bem mais complexa conclusão que formule quanto à existência desta ou daquela lei.
Peço-lhe, no entanto, que atente em que, após a apresentação de qualquer fundamentação, ocorre inversão do ónus da prova: a 'obrigação' de demonstrar que estou errado transfere-se para o meu caro Leitor, mais propriamente para o seu direito ao contraditório - tal como a 'obrigação' de demonstrar que o bule de Bertrand Russel não orbita a Terra se transfere para quem tal afirma, no preciso momento em que ele é 'apanhado' por um telescópio.
Explanarei em artigo - espero que dentro de poucas semanas - o meu entendimento quando a algumas questões relacionadas com o corpo e o espírito; mas concordo, para já, com quanto afirma quanto à relação entre ambos. Diga-me, no entanto: será a ordem natural que aos nossos olhos é dado ver insuficiente para daí concluir pela existência de um Criador? Ou será ele tão distante - ou tão pequeno - que necessitemos, para o 'ver', de instrumentos de observação?
Vejo, com perplexidade, que fala da matéria como se toda ela fosse composta por 'adaptáveis' seres vivos. Considera, pois, que os maiores ou menores calhaus que nos rodeiam - não os calhaus humanos, os outros... - e a energia que os move detêm a faculdade de, pela simples ação do tempo, se acomodar ou adaptar às vicissitudes por ele impostas? Considera que átomos não 'inteligentes' tomam, com o tempo, o destino - seu e nosso - nas próprias 'mãos'?
Instintivamente, dei comigo a olhar para o teto que há alguns anos me abriga. Não estarão alguns dos átomos que o integram prestes a, cada um por si, 'abraçar um novo projeto', fazendo o teto estatelar-se, entalando-me contra o chão?
Os seus escritos não são blasfemos, tal como inspirados pelo 'sagrado' os meus não são - o que penso ficar claro quando 'ouso', em 'Como Gere Deus o Universo', interrogar-me 'Será o Universo a empresa que Deus gere, ou a obra perfeita de um deus extinto?', perfeito ou não.
A nossa interessante discussão nada tem a ver com divindades, com subjetividades, sequer com meras opiniões. Prove-me que não existe a Razão Criadora por cuja existência apenas a ordem natural que observo me leva a concluir, e será credor do meu agradecimento efusivo, já que me permitirá abandonar a pesquisa e dedicar-me, quiçá com maior arte e proveito, a pensar e a escrever sobre questões mais próximas do 'material' dia-a-dia de cada um de nós.
Votos de uma excelente semana.
Caro António Ladrilhador,
EliminarAcabo de ler o seu requisitório, para o qual tenciono alinhar algumas alegações durante os próximos dias, esforçando-me por não me alongar – primeiro, porque não o quero maçar com meras variações que pouco ou nada acrescentam ao que já foi dito, segundo, porque acho bem que queira «pensar e escrever sobre questões mais próximas do 'material' dia-a-dia de cada um de nós», ainda que isso não decorra de qualquer prova da «não existência da Razão Criadora».
Para já, quero apenas manifestar-lhe a minha gratidão por me permitir este interessante debate.
Se não erro na interpretação de um ou dois passos do seu texto, estará a trabalhar em algo de relativamente extenso sobre a temática de que nos ocupamos aqui. Passa-se o mesmo comigo, o que também explica o meu interesse na discussão (e algum alheamento em relação ao «material dia-a-dia», coisa que, convenho, nem sequer fica bem a um materialista dialéctico).
No meu caso, porém, o método será substancialmente diferente, já que tendo a considerar as leituras que tenho feito mais dignas de confiança do que a minha própria capacidade de indagação de matérias tão sérias e profundas quanto esta. Não abdicando de opinar com os fracos recursos da minha reflexão pessoal e os escassos instrumentos de quem não domina a metalinguagem filosófica, dou preferencialmente a palavra aos investigadores em quem confio, isto é, aqueles que fazem eco na minha consciência, aqueles que vazam em enunciados rigorosos aquilo que eu apenas vislumbro.
Comecei, ontem, a semana a votar. Mas não em branco...
Desejo-lhe também uma óptima semana.
Caro Fernando Martins
EliminarNão só não me maça, como, se lugar houver a alguma gratidão, será mútua, pelo gosto que tenho em aqui trocar impressões consigo sobre uma temática tão essencial, numa conversa que, dada a quantidade expressiva de consultas que esta página tem tido, penso que se revestirá, também, de considerável interesse para quem aqui nos lê.
Formulo os melhores votos para o trabalho que está a desenvolver, e estarei, sempre, à sua inteira disposição para debater este ou qualquer outro artigo que considere merecedor da sua atenção.
Cordiais saudações
Caro António Ladrilhador,
EliminarA intenção de condensar era boa, mas esgueirou-se para o Inferno (opção vocacional).
1. Leis e legisladores
Começo por meter a foice em terminologia alheia, que o léxico jurídico é-lhe mais familiar do que a mim, esperando não dizer demasiadas asneiras.
As leis humanas são concebidas pelo homem e integram códigos estatuídos pela vontade do homem, tendo em vista a prossecução de determinados fins. Variam no espaço e no tempo, configurando uma manifestação super-estrutural das condições materiais de existência. Numa sociedade estratificada em classes, as leis humanas reflectem essa estratificação e visam assegurar a prevalência dos valores e direitos da classe dominante. Assim, aquilo que, na nossa sociedade, é tido como direito “sagrado” – o direito de propriedade e, nomeadamente, a propriedade privada dos grandes meios de produção – é visto noutras sociedades (ou, pelo menos, em círculos ideológicos “dissidentes”) como algo incompatível com a prossecução dos superiores interesses da comunidade. O que acontece com os códigos legais acontece com a «ordem moral»: para os materialistas, não existe uma ordem moral pré-estabelecida – somos nós que a definimos, e definimo-la igualmente em função de circunstâncias materiais. O crente, pelo contrário, entende que o Criador, ao criar o homem, implementou uma espécie de projecto, fê-lo à maneira do industrial que concebe determinado objecto com determinada forma, para determinado fim (Sartre). A forma está na «natureza humana»; o fim está na «ordem moral». Estas concepções antagónicas reflecte a incompatibilidade insanável entre uma visão científica do Universo e do homem e uma visão metafísica, tenha ela a forma da crença na existência de um Criador mais ou menos familiar ou a de uma abstracção extrema (seu caso).
Quando contestei a sua transposição «para o plano metafísico daquilo que só é válido para o mundo físico, o que se me afigura uma descontinuidade epistemológica», usei realmente o adjectivo “físico” numa acepção que se prestou à sua observação: de facto, eu quis dizer «para o mundo das relações entre os homens» (que fazem parte do mundo físico, contrariamente à «Razão Criadora»), mas não me referia, nem podia ser, às leis da física, que escapam, obviamente, à nossa vontade e não fazem caso das nossas opções políticas. Ora o A.L. parte do princípio de que lei é lei, logo, tem de haver um legislador: «Se o conceito genérico de 'lei' pressupõe o de autoria, haverá que, querendo, demonstrar que 'alguns' tipos de lei deste não dependem (o que, perdoará, penso que até agora o F.M. não conseguiu).» Desculpará, também, mas a alegação parece-me ter algo de escolástico, ou, no mínimo, de mera habilidade conceptual: não há qualquer semelhança entre as leis da física e a Constituição da República, as leis do Código Penal ou as regras do Código da Estrada, nem me parece que valha a pena criar um neologismo para designar as primeiras. Por outro lado, a relação analógica estabelecida entre leis humanas e leis da física, ambas dependentes dos respectivos legisladores, a ser levada às últimas consequências, parece-me implicar que, assim como as nossa leis carecem de meios logísticos e humanos (tribunais, juízes, oficiais de justiça, polícias, semáforos), também as do Supremo Legislador deveriam estar sujeitas a todas estas contingências, mas a nível sobrenatural. Ora isso não me parece que aconteça, nem o A.L parece defender tal esbanjamento de recursos. Neste particular, contudo, os cristãos são mais consequentes: têm o Juízo Final (a nossa Justiça, por vezes, também já difere a sentença para depois do decesso), têm santos que intercedem por nós, como verdadeiros causídicos, demónios e anjos que se comportam como certos juízes de idiossincrasias opostas. Enfim, voltando à tese do legislador, admitamos que estamos perante um caso de polissemia: o prego tem cabeça, como eu, mas, apesar da sua utilidade, é menos capaz de entrar neste debate.
(continua)
2. O caos e a ordem
EliminarDiz o A. L. que eu entendo, «sem o demonstrar, que a ordem perfeita pode nascer do caos absoluto, de uma explosão originada pela fricção de poeiras cujos átomos eram livres de decidir o respetivo destino» e que isso «violenta, em si, os mais elementares ditames da razão.»
Deixe-me pôr a falar, por mim, Daniel Susskind, que, tendo trabalhado «com o Governo britânico como conselheiro político da Stategy Unit do primeiro-ministro, como analista de políticas na Policy Unit no n.º 10 de Downing Street e como analista político sénior no Cabinet Office, dificilmente poderá ser suspeito de marxismo cultural, ainda que cite Darwin, que, na opinião de um antigo director da Cadeia Penitenciária de Lisboa, em 1951, era um cientista «comunista» (se quiser, poderei dar-lhe pormenores sobre o caso):
«Durante muito tempo, a explicação para a origem dessas capacidades [humanas] foi religiosa: vieram de Deus, de algo ainda mais inteligente do que nós, criando-nos à Sua imagem. Afinal, como poderia existir uma máquina tão complexa como o ser humano, se algo, muito mais inteligente do que nós, não nos tivesse concebido assim? […] No entanto, hoje sabemos que os académicos religiosos estavam errados. Os humanos e as capacidades humanas não foram criados pelo esforço superior de algo mais inteligente do que nós, moldando-nos à sua imagem. Em 1859, Charles Darwin mostrou-nos o contrário: a força criativa era um processo ascendente de criação inconsciente. Darwin chamou-lhe “evolução pela selecção natural”, o pensamento mais simples, apenas exigindo que se aceitem três coisas: primeiro, que há pequenas diferenças entre os seres vivos; segundo, que algumas dessas diferenças podem ser favoráveis à sua sobrevivência; e terceiro, que estas diferenças são passadas de uns para os outros. Não houve necessidade de um criador inteligente, no comando dos acontecimentos; estes três factos apenas podem explicar todas as diferentes aparências do mundo natural. As diferenças podem ser minúsculas, as vantagens muito ténues, mas estas mudanças, se negligenciadas, ir-se-ão acumulando – se deixarmos o mundo correr por tempo suficiente – durante mil milhões de anos, criando uma complexidade deslumbrante. Como disse Darwin, até os mais “complexos órgãos e instintos” foram “aperfeiçoados, não por meios superiores, embora análogos, à razão humana, mas pelo acumular de ligeiras variações, cada uma benéfica para o seu possuidor”». (Um Mundo Sem Trabalho, Ideias de Ler, Porto Editora).
Claro que esta citação não se refere exactamente às leis da física, mas, do mesmo modo que o A. L. assenta a sua argumentação nos mecanismos da lógica formal, eu questiono: os mil milhões de anos de selecção natural que criaram a «complexidade deslumbrante das espécies», sem necessidade de um «criador inteligente» não poderão ter “criado”, somando-se-lhes mais uns quantos milhares de milhões, a complexidade deslumbrante de tudo o que constitui o Universo, com as respectivas “leis” (enquanto não encontrarmos outra designação)?
(continua)
Retruca-me o A. L.: «Vejo, com perplexidade, que fala da matéria como se toda ela fosse composta por 'adaptáveis' seres vivos. Considera, pois, que os maiores ou menores calhaus que nos rodeiam - não os calhaus humanos, os outros... - e a energia que os move detêm a faculdade de, pela simples ação do tempo, se acomodar ou adaptar às vicissitudes por ele impostas? Considera que átomos não 'inteligentes' tomam, com o tempo, o destino - seu e nosso - nas próprias 'mãos'?
EliminarInstintivamente, dei comigo a olhar para o teto que há alguns anos me abriga. Não estarão alguns dos átomos que o integram prestes a, cada um por si, 'abraçar um novo projeto', fazendo o teto estatelar-se, entalando-me contra o chão?»
E eu respondo que sim e quero crer que o A.L. concordará: a matéria e a radiação têm uma natureza dual, são partículas e ondas (fundamento da mecânica quântica). Einstein recebeu o Prémio Nobel em 1921 por ter logrado explicar algo dependente do facto de os raios de luz (radiação electromagnética) serem feixes de partículas. Por outro lado, a anarquia constitui a base da óptica: não havendo lei nenhuma a governar a propagação da luz (que pode seguir qualquer trajectória entre a origem e o destino), ela adopta, no entanto, as trajectórias nas quais o tempo de deslocação é o mínimo (Atkins). Não que ela tenha um «destino», um «projecto», uma «intenção»; simplesmente, ela “obedece” cegamente àquela lei saída da anarquia que a “manda” adoptar a trajectória mais económica, coisa que a Razão Criadora ignorou, ao criar um Universo tão caótico que levou milhares de milhões de anos a chegar à relativa harmonia em que vivemos, apenas perturbada pelos cataclismos naturais, pelas erupções vulcânicas, pelas desavenças conjugais e pelo ressurgimento do fascismo.
Quanto aos átomos do seu tecto (como os do meu), com as cargas electromagnéticas que os animam, acabarão, com o tempo (seguramente, muito menos do que mil milhões de anos) por desabar, mas nós não daremos por nada.
Tudo isto é, de facto, tão extraordinário e fascinante que a ideia de uma Razão Criadora se me afigura altamente redutora. Trata-se, afinal, de aplicar à enorme complexidade do mundo físico, que a ciência progressivamente vai desvendando, uma explicação que, sem ofensa, julgo simultaneamente simplista e contraditória: simplista porque consiste em explicar a origem e o funcionamento do Universo do mesmo modo que explicamos os acontecimentos do dia-a-dia: o legislador faz a lei, o oleiro, o pote, a Razão Criadora, o Universo; contraditória, porque é querer, à viva força, dar como “causa” de tudo algo que não tem causa, ou que é a sua própria causa. A isto, mais do que Lógica, eu chamaria passe de mágica.
(continua)
3. Big Bang ou «cosmogénese eterna»?
EliminarQuanto à teoria do Big Bang, não tendo qualquer crédito para me pronunciar num sentido ou noutro, sempre me pareceu mais plausível a hipótese de uma criação contínua, uma «cosmogénese eterna», opinião esta defendida por Fred Hoyle (1915-2001), do que a ocorrência de um Big Bang momentâneo. Eterno e infinito – eis o que sempre julguei serem atributos do Universo. Stephen Hawking di-lo assim: «a possibilidade de o espaço-tempo ser finito, mas ilimitado […] significaria que não tinha tido um princípio e que não havia qualquer momento de criação.» (Breve História do Tempo)
4. Afinal, o que é que importa?
Continuo persuadido de que orientações ideológicas inconciliáveis, como as nossas, radicam no mais profundo do nosso psiquismo. Tenho, provavelmente, muitos correligionários crentes, o que é, obviamente, contraditório com o materialismo filosófico que deveriam defender, mas isso não os impede de lutar pela transformação das condições materiais da existência, nem a mim, de os acompanhar nesta luta, que é bem mais importante do que chegarmos a acordo quanto à existência ou não de uma Razão Criadora. Se a crença lhes é necessária para assegurar a sua tranquilidade, como amparo, sem impedir a sua acção em prol da justiça social, tudo bem. Fecho os olhos. Apetece mesmo citar aquele mural anarquista que diz “Se Deus existe, o problema é dele”, ou Fernando Pessoa, no “Guardador de rebanhos” do anti-metafísico Caeiro.
Por outro lado, o meu materialismo radical não contraria a minha convicção de que o mito, o sonho e a fantasia têm um papel imprescindível na vida do homem e no seu equilíbrio a todos os níveis. A minha contestação ateísta da religião prende-se sobretudo com o seu carácter mistificador naquilo que ele tem de mais nocivo para a humanidade: o aproveitamento da crença para benefício de alguns. Quanto ao sonho, constante da vida, e quanto ao mito, ficção, fantasia que a arte nos faculta, nihil obstat: são parte da condição humana (condição, que não natureza).
Saudações cordiais.
Caro Fernando Martins
EliminarVou tentar, uma vez mais, clarificar o meu pensamento, embora exclusivamente quanto ao teor do texto que publiquei, que é, afinal, o que temos vindo a comentar.
Como hoje mesmo respondi a um outro comentário, 'não parto do caso particular das leis humanas para induzir que o mesmo se passará relativamente à da Natureza, mas do caso GERAL do CONCEITO de lei, para deduzir que a obrigatoriedade da existência de um legislador é inerente a esse conceito'. É esta a minha opinião - a de que qualquer lei que se enquadre no conceito de lei carece de um legislador -, meramente conceptual e totalmente alheia a quaisquer consideração própria de um crente ou de um materialista, já que nem um, nem outro sou, tampouco tenho qualquer 'crença' numa abstração extrema ou no que quer que seja, como inequivocamente já declarei, assim me não parecendo fazer grande sentido a sua insistência em considerar-me 'crente': procurei, simplesmente, demonstrar a existência de um Criador pelo uso da razão aplicada ao conceito genérico de lei.
A referência, a título de exemplo, das leis humanas não passa disso mesmo, de um exemplo ilustrativo daquela conclusão, fundada, como já escrevi, no facto de, sendo qualquer lei imperativa uma imposição, apenas a legitima o facto de dimanar da vontade e da manifestação intelectual de alguém, e não de um mero capricho de um acaso vindo sabe-se lá de onde.
Fala-me de sociedade estratificada, de leis humanas, de direitos, de ordem moral, de natureza humana: nada disso é objeto do artigo que escrevi, nem em nada disso se sustentam as respetivas conclusões. As posições antagónicas que refere são de todos bem conhecidas, mas em nenhuma me revejo, apenas tendo proposto uma explicação alternativa a ambas, que cada um é totalmente livre de aceitar, ou não, mas que apenas no domínio estrito da lógica aceitarei continuar a debater.
Permita que lhe diga que a introdução, nesta conversa, de teoria política me parece algo enviesada. Mantenho, outrossim, a minha posição de não comentar, ainda para mais por interposta pessoa, posições de autores que jamais poderiam ter tido em conta, nas suas conclusões, aquilo que proponho, pelo que me não estão, de modo algum, a contradizer, tampouco estando vivos para a conhecer e debater.
Apreciarei e agradecerei qualquer contributo tendente a, pela LÓGICA, contrariar o produto do meu raciocínio - algo que, insisto, não me parece que a abordagem do meu caro F.M. tenha, até agora, conseguido fazer, já que não procede à única demonstração que poderá contrariar a minha hipótese: a de que é possível existir uma lei, qualquer lei, sem que tenha sido pensada e elaborada por um legislador.
Saudações cordiais.
!"... Como, com a nossa limitada capacidade intelectual, conceber um mundo em que, sem uma razão criadora - pelo menos, num momento inicial...": porquê a necessidade desse "momento inicial"?! E quem criou "o criador" desse "momento inicial"?! Ou, seguindo a analogia da existência obrigatório de um legislador, a que normas obedecerá esse, por certo, complexo legislador divino, e quem as legislou?! Ou, mais prosaicamente, como perguntaria uma criança mais curiosa, quem é o pai de Deus?
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu contributo.
EliminarPergunta muito bem, claro.
A necessidade desse 'momento inicial', a existir, será consequência da nossa 'limitada capacidade intelectual', programados que parecemos ter sido para intuir a existência de princípio, meio e fim para todas as coisas.
Não é, afinal, essa limitação intrínseca, de que não conseguimos libertar-nos, que explica a sua pergunta seguinte:'a que normas obedecerá esse, por certo, complexo legislador divino, e quem as legislou (...), quem é o pai de Deus'? A dúvida metódica do ser inteligente leva-nos ao desconforto, por vezes à revolta, face à impossibilidade de ir mais longe na investigação.
Quando escrevi que 'ao nosso alcance apenas está saber que essa razão, essa entidade – provavelmente, imaterial -, existiu ou existe' referia-me, precisamente, à inviabilidade de, mediante a mera dedução lógica que aqui utilizo, saber mais o que quer que seja acerca dessa Razão criadora, designadamente a sua origem. Foi essa triste e frustrante conclusão que me levou a concluir que 'investigar Deus mais não é do que desafiar os Seus desígnios, e uma perda de tempo colossal'.
Mas não será, afinal, a possibilidade de, racionalmente, chegar à conclusão pela existência de um Criador - chamemos-lhe como chamarmos - um bem suficientemente valioso, ainda que sobre Ele, nenhuma crença nos seja dado validar, nada de específico nos seus dado conhecer?
Caro Senhor António Ladrilhador,
ResponderEliminarPretende ter conseguido demonstrar a existência de Deus, usando apenas a dedução lógica ("Sabemo-lo, não por um ato de fé, mas por dedução lógica a montante da fé...").
Ora, permito-me discordar de si - de que usa a razão lógica - com os seguintes fundamentos:
- do caso particular não pode deduzir o geral. Do facto constatável de que as leis humanas precisam de um legislador, não pode, por dedução, assentar numa suposta regra geral, de que todas as leis têm um legislador. Só dá esse salto, porque precisa de estabelecer um axioma que lhe permita ficcionar o impulso criador do universo ( "Chamo Deus à razão sobrenatural que criou a ordem universal em que todos estamos imersos"). Mas, mesmo que fosse aceitável tal salto, não vejo como bastaria para poder concluir que esse legislador seria Deus. Poderia, perfeitamente, ser o caos, que o seu texto teria a mesma validade formal. Assim, ao contrário do que diz, julgo que a sua convicção é do domínio da crença. Acresce ao já dito que será pouco razoável pretender amalgamar realidades diferentes num mesmo conceito. É que, sendo as leis humanas muito variáveis no tempo, por inerência das funções que cumprem, contrariamente às leis da natureza, como o senhor reconhece, não me parece muito lógica tal unificação. Nem valerá como argumento usar a linguagem comum para homogeneizar os vários conceitos de lei.
Finalmente,
- sobre o" caos", não vejo qualquer razão, nem ganho, em afastá-lo da "ordem". A verdade é que um não vive sem a outra. São faces da mesma moeda. Não faria qualquer sentido dar ordem a uma realidade já ordenada! Ordena-se, pois, o caos!
- E a maravilha da transformação da pequena semente em couve, não julgue que se faz sem luta, em perfeita ordem! Antes de brotar há-de lutar para vencer o tegumento seminal, a terra, a falta, ou excesso, de humidade, etc.! E que dizer das sementes que por qualquer razão se tornaram inviáveis, fenecendo? Existiram só na "ordem"?! De modo idêntico se pode concluir do nascimento de um humano, bastando para isso colher os depoimentos das nossas mães.
Concluo, transcrevendo do livro "como se transforma ar em pão", de Nuno Maulide, com Tanja Traxler, edições Planeta, página 114:"Já que estamos na entropia, vou dizer mais qualquer coisa sobre o assunto. É que a entropia também é uma questão muito filosófica. Já se disse que é uma bitola para a desordem e a grande conquista de Ludwig Boltzmann foi descobrir que a entropia do Universo está sempre a crescer. Por isso, o Universo tende sempre mais a rumar para o caos, sendo que, no entanto, um dos traços fundamentais da vida é trabalhar sempre no sentido inverso, criando pequenas ilhas de ordem.".
Cordiais saudações.
Agradeço o seu comentário, mas penso já ter esclarecido, em resposta a outros comentários a este texto, todos os pontos que aborda.
EliminarAssim, lembrarei apenas que não parto do caso particular das leis humanas para induzir que o mesmo se passará relativamente à da Natureza, mas do caso geral do CONCEITO de lei, para deduzir que a obrigatoriedade da existência de um legislador é inerente a esse conceito.
Tampouco concluo que 'esse legislador seria Deus' - bem pelo contrário -, pelo que me permito sugerir uma nova leitura do texto, a qual lhe permitirá, também, reparar que não afasto o caos da ordem, nem tal faria qualquer sentido: limito-me a negar que, do caos absoluto, possa nascer a ordem absoluta. Apenas isto.
Por fim, agradeço a citação, embora considere que, uma vez que falo do início e não do fim, ela nada com o meu texto tenha a ver.
Cordiais cumprimentos
Caro Senhor António Ladrilhador,
ResponderEliminarSendo parcos os meus conhecimentos acerca da Lógica, mesmo assim atrever-me-ei a dizer que dificilmente se poderá aceitar que de um caso apenas - as leis humanas - se possa induzir um conceito geral que abranja todas as leis, nomeadamente as da natureza. Tanto mais que, como referi no meu comentário anterior, a natureza dessas leis nada têm em comum. Relido o seu artigo, não encontrei qualquer "CONCEITO" geral de lei. Nem vejo como, nas condições que se propunha, poderia estabelecê-lo! Ao contrário, formula um conceito de norma jurídica inatacável ("vive-se o primado da lei, sendo esta coletivamente considerada como o sistema de normas destinado a regular as relações sociais para evitar que nos trucidemos uns aos outros apenas para ter acesso a comida, ou por nos terem roubado o ou a mais que tudo; ou por cobiça, por vício, por mera diversão ou por qualquer outra mais ou menos estúpida razão."). Mas, este conceito, repetindo-me, não cola com o conceito de lei da natureza, ou, pelo menos, eu não vislumbro como isso possa acontecer.
Nesta sua resposta nega que tenha concluído que "esse legislador seria Deus", e eu fico na dúvida se o texto que publicou é o mesmo que quis. De facto, do texto que comento, e acabo de revisitar, constam as seguintes passagens:
"Ora, tendo mais acima estabelecido que qualquer lei é elaborada por um legislador, forçoso se torna concluir que o apreciável acervo de leis naturais que conhecemos e a imensidão das que desconhecemos vieram, também elas, não do caos, mas da mente de um legislador."
E
"Por uma questão de comodidade e para acompanhar a nomenclatura generalizada, a esse legislador supremo chamarei Deus.".
Posso admitir que não tenha percebido cabalmente o seu raciocínio, mas não está fácil! Por isso agradeço algum aditamento que me possa elucidar.
Saudações cordiais.
Caro Leitor
ResponderEliminarContrariamente ao que afirma, peço, uma vez mais, a sua atenção para o facto de que 'não parto do caso particular das leis humanas para induzir (...)', pelo que não tenho o que responder ao seu comentário, que parte de um pressuposto errado quanto à minha posição. Permito-me remeter para a minha mais recente resposta ao Exmº Senhor Fernando Martins, a qual poderá clarificar o meu pensamento.
Direi, apenas, que utilizei a norma jurídica como mero exemplo destinado a facilitar a exposição.
Cordiais saudações