“As viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do
Ambiente
e do Primeiro-Ministro andam para aí a abrir
que nem loucas nas autoestradas,
descarregando alguns dos mui ilustres transportados, a culpa para cima de
motoristas que,
agindo na melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para
ao patrão agradar”
1. Dos Vícios Tolerados e Seus Efeitos Expressamente
Condenados
Quando um bem conhecido norte-americano escreveu que “uma vez adquirido um hábito, ninguém deve lançá-lo pela janela, mas ampará-lo na descida, degrau a degrau *)” referia-se, por certo, àquelas coisas a que o nosso cérebro ou o nosso organismo se habituam a consumir sem qualquer benefício conhecido para eles.
Acontece com o álcool, com o tabaco e com uma infinidade de outros mais ou
menos nocivos estupefacientes, causando aos ditos cérebro e organismo danos
por vezes irreparáveis em proveito exclusivo de quantos fazem transbordar as
respetivas bolsas graças à exploração do trabalho mal pago de largos milhares
de desgraçados que dependem, para sobreviver, dos proventos de um trabalho
quase escravo a que se sujeitam sabendo, embora, quão nocivo o resultado será
para o chamado consumidor final daquilo que colhem, destilam ou refinam
para sobreviver.
Não se referia, seguramente, o tal norte-americano a hábitos socialmente bem
mais perniciosos, daqueles que não apenas prejudicam quem os adquire e uma ou
outra vítima inocente do fumo do tabaco, de uma criminosa agressão que, por
muito grave e condenável, nem por isso deixa de ser pontual ou, pelo menos,
limitada no alvo e nos eventuais lesados por arrastamento ou proximidade.
Isto, sabendo, como bem se sabe, que a proliferação de certos comportamentos
ocasionais agressivos e de consequências inenarráveis, acabam por se tornar
chagas sociais que cumpre e urge erradicar, sob pena de acabar completamente
subvertida a ordem social.
Todos estes hábitos que são causa direta ou indireta de tão nefastos efeitos
não deixam de gerar na comunidade a descontraída sensação – ou, pelo menos, a
ilusão – de que sempre haverá como os desencorajar, como os controlar ou como
os seus efeitos mitigar a ponto de o coletivo se não sentir ameaçado a menos
que conheça um caso próximo ou lhe tenha sofrido os efeitos na pele.
Fora isso, não apenas são tais vícios tolerados, como até há quem tudo faça
para tornar alguns deles socialmente naturais ou, no mínimo, considerados como
devidos a doenças ditas comportamentais - embora nascidas de comportamentos
censuráveis e evitáveis desde a génese -, por este processo meramente
cosmético passando a ter a dignidade de patologias e tornando-se, pelo facto,
os seus ditos portadores a merecer epítetos próprios de quem padece de
verdadeiras e inevitáveis enfermidades, genéticas ou contraídas.
Passou, desta forma, a louvar-se o que é objetivamente condenável; e a
promover-se, também.
2. “Não Me Comprometa”
Existe, no entanto, algo bem mais grave que não tem raízes nos genes, ou na
vontade de experimentar sentida por um adolescente desacompanhado, num
inultrapassável desgosto de amor, no desespero de alguém que pensa que apenas
lhe resta “dar de beber à dor”.
São coisas que se nos colam à pele, que estão culturalmente enraizadas e
disseminadas por toda uma população habituada, durante décadas a fio, a ser
governada e gerida por incompetentes e corruptos caciques numa ditadura
plenamente assumida pelos seus protagonistas num pensamento lapidar: “Aqueles que concordarem com o programa da Ditadura praticam ato patriótico
colaborando; os que não concordam são livres de proclamar a sua discordância
mas, no que respeita a atuação política efetiva, evitaremos que nos
incomodem demasiadamente”.
Colam-se à pele dessa população que, banida a ditadura, se foi, também há
décadas a fio, habituando a ser governada e gerida, entre outros, por alguns
incompetentes e corruptos caciques que só agora, graças à coragem e ousadia de
uns quantos e a um agora mais apurado sentido de oportunidade política de
outros, vão sendo desmascarados e, até, aqui e ali, efetivamente, confinados
atrás de grades que nada têm a ver com as de uma pandemia.
A dependência do caciquismo labrego e bacoco dos tempos da famigerada PIDE/DGS
continua, não obstante, a correr pelos caminhos portugueses, a correr da pena
dos portugueses, a correr nas artérias e veias dos portugueses.
A
miúfa endémica - eufemisticamente chamada temor ou respeito -
por uma hierarquia superior que jamais o soube ser, continua a condicionar, a
ditar a forma como os portugueses pensam, decidem, agem ou omitem, tentam
alijar responsabilidades na crença que esperam não seja vã de que nada lhes
aconteça e ninguém, pelo seu silêncio, os arrelie.
Um conhecido programa de humor de um País irmão incluía uma personagem que passava o tempo a dizer “Eu não fiz nada, meu Amigo, não sei nada, se disser que eu fiz eu nego, ene, é, gê, ô, n-e-g-oooo. Não me comprometa! *)”. Retratava esta convicção de que, não agindo, não nos manifestando, não tomando partido, não denunciando condutas que a lei proíbe, podemos levar, tranquilos, a nossa vidinha e há-dem continuar a tratar de nós e a zelar por nós aqueles que são eleitos e pagos para isso; e que nada fazer não faz mal, porque quem se tramou foi sempre quem fez alguma coisa.
Como, sabe-se lá porquê, nesta nossa terrinha o indispensável Direito não é
ensinado nos níveis escolares mais básicos nem nos assim-assim, a maior parte
das gentes continua convencida de que o que dá cadeia é fazer o que não
se pode, não lhes passando pela cabeça que quem não faz o que pode por quem se
encontra em estado de necessidade é igualmente punível ou, na linguagem que
melhor entendem, pode ir dentro.
Um emigrante ucraniano encontrou a morte em circunstâncias nada humilhantes
para ele, mas que o são profundamente para cada um de nós.
Havia indícios quase insofismáveis de que, naquele dia no Aeroporto Humberto
Delgado, vários cidadãos alistados nas fileiras do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF) ou ao serviço de entidades externas por ele contratadas
tinham estado em situação de ter intervindo ou, pelo menos, de ter pedido
ajuda para aquilo que, pelos gritos do infeliz, era impossível não desconfiar
que estaria a acontecer.
Pois, apesar disso e vá lá saber-se porquê – talvez por estarem os seus
funcionários ainda imbuídos do tal temor do caciquismo que inquina quer
ditaduras, quer supostas democracias como a nossa -, optou o Ministério
Público por não acusar esses portugueses pelo menos por omissão de auxílio,
crime punível com pena de prisão até um ano nos termos do n.º 1 do art.200º do
Código Penal Português, já para não falar de eventuais cumplicidades ou
conluios, passíveis de bem mais pesada sanção.
Teve, assim, de ser o tribunal que, em primeira instância, julgou e condenou os agressores diretos e por ele condenados de deixar claro que "há um conjunto de pessoas cuja atuação não fica isenta de reparos *)" e determinado a extração das correspondentes certidões e subsequente remessa ao Ministério Público para que contra elas os cabíveis inquéritos-crime instaurasse.
Vem, então, agora a imprensa anunciar, com fanfarra e bandeira, que “o Ministério Público (MP) está a dar passos no sentido de vir a sentar no banco dos réus mais pessoas pela morte de Ihor Homenyuk no Aeroporto de Lisboa *)”, como se o Órgão Judiciário o houvesse feito espontaneamente, adequadamente, como lhe competia, sem esperar, do tribunal, o implícito e nada elogioso reparo.
Que razões estarão na base daquilo que poderá não ter passado de uma tentativa
de resolver rapidamente e com o menor prejuízo para um certo e já
desacreditado governante a questão?
4. A Cultura da Indiferença
Se o problema for encarado de um ponto de vista meramente casuístico, o
Tribunal fez, do ponto de vista técnico-jurídico, o que lhe competia fazer, ao
determinar a extração de certidões.
Poderemos, porém, acalentar alguma esperança de que episódios pontuais e
isolados como este contribuam, ainda que só um pouco, para uma mudança de
mentalidades cada vez mais indispensável num país desgovernado por
desgovernados autoproclamados governantes que, magistralmente aproveitando a
velhinha cultura social herdada da ditadura, continuam a permitir que coisas
com esta aconteçam, que a cultura da indiferença se sobreponha, quase sempre,
à cultura humanista pela qual que o Partido Socialista diz pugnar e que, se a
memória me não falha, noutros tempos, era apanágio de quantos nele escolhiam
militar?
Que chegou ao Partido, ao Governo, ao Parlamento a indiferença pelas pessoas,
por tudo quanto não seja ganhar a próxima eleição já todos sabemos. Disso
tivemos, uma vez mais, a confirmação quando, num curto espaço de tempo,
soubemos que as viaturas do Ministro da Administração Interna, do Ministro do
Ambiente e do Primeiro-Ministro andam para aí a abrir que nem loucas
nas autoestradas – só? – em situações que a lei está longe de
contemplar, descarregando alguns dos mui ilustres transportados, quando
apertados pelos jornalistas, a culpa para cima de motoristas que, agindo na
melhor tradição daqueles que os educaram, apenas aceleram para ao
patrão agradar, para manter o lugar: tal como alguns inspetores e
seguranças do SEF ficaram calados ao ouvir o grito de morte de Ihor Homenyuk
para aos superiores não desagradar, para o emprego não arriscar.
Quando a impunidade e a indiferença servem que nem uma luva a quem governa e
delas não parece ter capacidade ou vontade para se livrar, quanto à tal
indispensável e urgente mudança de mentalidades, o que podemos,
efetivamente, esperar?
“Mas como estas penas se ouvem tantas vezes e nunca se veem,
são tão mal cridas, como nós estamos experimentando”
* *
Tudo isto radica, naturalmente, na clamorosa falta de sentido de estado de que enferma boa parte da chamada classe política portuguesa.