"Resta lembrar àqueles que defendem a utilização generalizada
do
plural dezenas de milhares como se fossem dezenas de laranjas,
de castanhas ou de outra coisa
qualquer, que, no singular de dezenas de laranjas,
nunca eles utilizariam a expressão 'uma dezena de laranja', sem ‘s’ –
quanto mais não seja para que deles se não risse quem
os estivesse a escutar"
1. Introdução
2. Classificação Gramatical de Dezena de
Milhar
3. Formação do Plural das Locuções
Substantivas
4. Esticando a Corda, para Tentar
Agradar
5. Notas Finais
1. Introdução
Como em tudo o resto, nestas coisas da língua portuguesa, existem assuntos
de maior gravidade do que outros - e outros ainda, como o caso do
há-des, ou hádes ou lá como se escreve, sobre os quais, de tão
básicos, nem valerá muito a pena elaborar.
Não vale a pena, pelo menos para já, uma vez que, da maneira como o facilitismo vem grassando, não tardará muito que surja alguém ansioso por encontrar matéria nova para os livros que por aí sobre gramática se continua a escrever quase sempre sem fundamentar, e comece a dizer que há-des ou hádes é uma forma corretíssima ou, pelo menos, perfeitamente aceitável da segunda pessoa do singular do presente do indicativo do verbo haver.
- x -
Os temas relacionados com a própria estrutura da língua e relativamente aos quais é possível encontrar raciocínios e bases teóricas lógicas alternativas e mais sustentadas – casos, por exemplo, do “por que? ou porque?”, do “vende-se ou vendem-se” e do “limpo ou limpado”, que já referi nestas páginas – serão, porventura, os que maior atenção requerem, não apenas pelo efeito pernicioso que sobre a evolução do idioma vão exercendo de forma incontrolável, mas, até, devido às deturpações da verdade histórica que é possível encontrar nos escritos de certos defensores do dificilmente defensável, empresa essa que, invariavelmente, fica por fundamentar, ou se limita à brilhante conclusão de que, afinal… “Tanto faz!”.
No entanto, e não sendo estruturantes na medida em que se referem, simplesmente, à aplicação de uma ou de outra regra gramatical a determinada situação pontual, temos, num nível intermédio, aquelas questões que não deixam de gerar, no momento de nos exprimirmos, dúvida por vezes séria e suscetível de provocar, na fala, notória e indesejável hesitação.
Será, pois, sempre útil dirimir essas aparentemente menos nobres questões, entre as quais encontramos a eterna dúvida quanto à utilização do plural de dezena de milhar – ou de centena de milhar.
O tema é tanto mais premente quanto é certo que me parecem irremediavelmente erradas certas posições assumidas de forma mais do que elementar em programas ou sítios com responsabilidades didáticas*); ou, tão mau ou pior ainda, porque, num mesmo sítio da Internet supostamente destinado ao esclarecimento de dúvidas da língua portuguesa, é possível encontrar posições diametralmente opostas, como aqui*) e aqui*), denotando a fraca fiabilidade da iniciativa e sugerindo que lá não havia o cuidado de moderar as publicações, no tempo em que tinha atividade.
2. Classificação Gramatical de Dezena de Milhar
Nem mais, nem menos: dez exatos milhares.
Tempos houve em que os diversos termos das locuções substantivas eram
unidos por hífen, mas essa prática caiu em desuso, tendo em algumas vezes
dado origem a um único substantivo (áudio-visual >
audiovisual) ou a uma locução substantiva (dezena-de-milhar
> dezena de milhar), sendo, também, de considerar formas mistas
(a-pesar-de > apesar de). (Diga-se, entre parênteses, que,
porque apenas aqui nos ocupa a formação do plural, a qual obedece, em
qualquer caso, à mesma regra, passaremos ao lado da discussão, de índole
meramente classificativa, entre os que preferem a designação
substantivo composto e os que preferem locução substantiva,
encontrando, até, diferenças estruturais efetivas entre eles)
Num caso bem diferente do da locução substantiva dezena de milhar,
quando falamos de uma dezena de laranjas não estamos a
referir-nos a uma ordem do sistema decimal: neste caso, a ordem é a
dezena (de unidades), e dezena é, também, o substantivo
simples (único) que, independentemente da classificação sintática, opera na
frase, sendo laranjas um simples complemento nominal - que
é, como se sabe, o termo da oração ligado por preposição a um nome
(dezena) que, sem tal complemento, careceria de sentido.
A ordem do sistema decimal em causa é, no caso das laranjas, designada pelo substantivo simples dezena, e não por uma indivisível locução substantiva, ou seja: temos dezena, e temos laranja, não existindo qualquer ordem numérica designada por dezena de laranja, como não existem as ordens quilo de farinha, ou grosa de prego ou dúzia de rebuçado, no sistema decimal.
3. Formação do Plural das Locuções Substantivas
Ora, como é sabido, o plural das locuções substantivas é formado precisamente da mesma forma que o dos substantivos simples e, nos casos em que o primeiro e o último são substantivos separados por preposição - como acontece em dezena de milhar - afeta, unicamente, o primeiro termo da expressão (dezenas), mantendo-se o último no singular (milhar).
A assim não acontecer teríamos plurais estapafúrdios como
salas de jantares, canas de açúcares, pães de lós,
anjos das guardas, cães de guardas,
jardins de infâncias, luas de méis, pés de cabras,
árbitros de futebóis ou… dezenas de milhares, sendo o último
tão ridículo e descabido como qualquer dos que o antecedem.
Resta, pois, concluir que o plural da ordem do sistema decimal
dezena de milhar, gramaticalmente uma locução substantiva, não é,
como muito por aí se diz, dezenas de milhares, mas dezenas de milhar.
4. Esticando a Corda, para Tentar Agradar
Já que, também nestas coisas da gramática, nunca é conveniente deixar
pontas soltas, consideremos um cenário imaginário, que utilizaremos para
tentar comprazer quem discorda da acima anunciada conclusão.
Pensemos, a título de exemplo, num carregamento de contentores de castanhas
contendo, cada um deles, o peso exato de duzentos quilogramas do fruto –
exemplo meramente académico, já que, dada a dimensão de cada castanha e o
peso variável entre cada uma, um valor exato sempre seria praticamente
impossível de obter.
O nosso carregamento seria de uns quarenta contentores, e aos duzentos
quilogramas de cada um deles, corresponderiam, como é evidente, alguns
milhares de castanhas, necessariamente em número indeterminado.
Todavia, se, por alguma razão tão estranha quanto este raciocínio é
rebuscado, em vez de quilos, quiséssemos referir-nos a castanhas, poderíamos
então, sem chocar muito, dizer que o carregamento era composto por
dezenas de contentores, cada um com vários milhares - indeterminados
- de castanhas; ou, mais simplesmente, que, de castanhas
havia dezenas de milhares, embora se não soubesse, ao certo, quantas.
Em casos de quantidades indefinidas como este, em que uma
quantificação exata é absolutamente impossível, seriam, forçando bastante a
nota, admissíveis os plurais dos substantivos dezena e milhar
ligados pela preposição de; ou seja, a utilização do substantivo
dezenas seguido do complemento nominal de milhares, do que
resultariam as tais dezenas de milhares.
Ocorre, porém, que, apesar disso, sempre seria mais correto, mais puro,
dizer que as castanhas eram aos milhares, ou… às
dezenas de milhar, assim exprimindo uma quantidade indefinida, é
certo, mas de uma grandeza exata, que nestas coisas da fala e da escrita,
como noutras da vida, nada se perde e muito se ganha em não deixar as coisas
para aí ao acaso de como cada um as quiser ou puder interpretar; e, sendo a
forma dezenas de milhar mais económica e mais precisa, a outra, ainda
que se insista em defender a sua admissibilidade, resulta, inevitavelmente,
inútil e, também por isso, será de rejeitar.
5. Notas Finais
Resta lembrar àqueles que defendem a utilização generalizada do plural
dezenas de milhares como se fossem dezenas de laranjas, de castanhas ou de outra coisa
qualquer, que, no singular de dezenas de laranjas, nunca eles
utilizariam a expressão 'uma dezena de laranja', sem ‘s’ – quanto
mais não seja para que deles se não risse quem os estivesse a escutar.
No singular, falam de 'uma dezena de laranjas', mas não dizem uma dezena de milhares, antes designam a ordem numérica, dizendo... 'uma dezena de milhar'; sem 'es', denotando, no raciocínio, absoluta falta de coerência, inevitavelmente conducente à invalidade da conclusão.
Tal diferenciação estabelece, para além de qualquer dúvida razoável, não estarem a utilizar um substantivo simples seguido de complemento nominal, mas sim a ordem do sistema decimal dezena de milhar, cujo plural em português correto não poderia deixar de ser… dezenas de milhar. em 'es', claro!
- x -
A vida é um mistério imenso, provavelmente impossível de decifrar.
Se insistirmos em tentar fazê-lo, teremos de nos habituar a criticar o óbvio, a exercitar a mente, a praticar o que queremos aprender, já que procurar além daquilo que os ouvidos ouvem e os olhos vêem enriquece o espírito e subtrai-nos, por pouco que tal represente, à mediocridade da nossa desoladora Humanidade.
Defender o plural dezenas de milhares parece-me nada mais representar do que consentir em deturpar a língua portuguesa nas suas regras mais basilares, ficando pelo fácil, pelo imediato - pelas laranjas... -, coisa que qualquer um bem pode fazer sem muito ter de se esforçar.
O óbvio é a primeira impressão, a mera espuma da onda da razão, o salpico de explicação que molha qualquer ser, por mais elementar, que do cérebro apenas necessite para o fazer comer e respirar.
A gramática, porém, não é coisa que se agarre à memória. A gramática é, entre tantas outras cada vez mais ignoradas ou desperdiçadas, uma praia de partida para quem quer mergulhar nas profundezas da razão, explorando e desenvolvendo, até ao limite da lógica mais pura e mais isenta, a informação que permite devidamente enquadrar os dados de cada problema apresentado ou apercebido.
Desta forma, a Humanidade evolui, cresce, desenvolve-se, enriquece: não limitando-se a ficar pelo óbvio, pelo fácil, para mais depressa apresentar resultados, fazer o teste na escola, pespegar na Internet mais um paper académico, publicar mais um livro, tudo muito a correr, para mais cedo poder esquecer, curtir, relaxar...
* *
Por falar em quantidades, pode dizer-se que esta questão das dezenas de milhar corresponde a um caso de aplicação muito pontual e específica. Já quando nos perguntamos se um milhão de pessoas foi ou se um milhão de pessoas foram estamos a referir-nos a um tema bem mais vasto, e fonte inesgotável de erros e de imprecisões, mormente por parte de diversos órgãos de comunicação social.
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela
utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor
dela fará
"LIMPO" ou "LIMPADO"?
A eterna dúvida...
Leia aqui!
É consabido que os falantes "fazem" a língua, mas é irritante que o façam pela vida do erro, ou seja, do tal facilitismo que refere, pela balda, acrescento eu. Já por mais do que uma vez me senti dececionada quando ouvi/li um "Tanto faz!" de pessoas supostamente mais credenciadas do que eu, quando lhes expus uma dúvida, ou pedi uma opinião.
ResponderEliminarHá alterações subtis que, pouco a pouco, vão ganhando forma e serão regra não tardará muito,
Noto, em registos diversos e até da parte de pessoas-que-publicam livros, a "queda" de preposições, o que é ainda mais flagrante junto dos verbos cuja regência é obrigatória. "Os livros que eu gosto!"
Noto igualmente o desaparecimento do uso das formas verbais no modo conjuntivo. Os exemplos são imensos. Uma praga.
Os jornais e as revistas são um alfobre de atropelos de toda a espécie: "há uns anos atrás", "isto vai de encontro a" quando se quer expressar o oposto, "a aderência à vacinação" " a paisagem que entorna a figura"...
Há um jovem escritor, Walter Hugo Mãe, que parece andar em busca do seu azimute: escrevia o seu nome em letras minúsculas, agora já não, iniciava as frases com letras minúsculas, agora já não. De momento noto que omite o uso dos determinantes artigos definidos e indefinidos, mas nem sempre! Será tudo em nome da liberdade literária, ou, neste último caso, será pela aproximação do escritor ao Brasil?
Podemos, e devemos, enriquecer o nosso léxico, mas não atirá-lo para o estro e substituí-lo por outra variante, como é o caso do português do Brasil:
Parabenizar, planejar, o uso indevido da próclise, etc.
Gosto muito de o ler e ainda das abordagens que faz.
Desejo-lhe um otimo fim de semana.
Tenho, também, o maior gosto em lê-la, não apenas no seu 'blog' em https://ctmx.blogspot.com, como nos comentários que aqui me traz.
EliminarEstou a coligir um desgraçadamente vasto acervo de disparates - 'Disparates' é a designação do ficheiro em que os deposito e fecho logo a tampa -, já que 'consta-se que' 'não foram possíveis abordar todos os assuntos' que se ouve 'todos os fim de semanas' e esta é 'uma discussão que é necessária ter' pois 'têm estado a desenvolverem-se um conjunto' de violações das regras gramaticais que deixam 'encostada na parede' qualquer pessoa que 'peça para que' elas sejam seguidas.
Entre tantos outros, estes mimos foram, nas mais recentes três semanas, presenteados por ditos jornalistas, comentadores e '-ólogos', sem exceção, em diversos canais de televisão.
Vou classificando as peças colecionadas, investigando - sabendo de antemão que quase só encontrarei 'porque sins' -, sacudindo o pó a apontamentos da instrução primária e a velhas gramáticas escolares e, ciente, embora, de que o 'por que não?' https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/06/por-que-nao-porque-nao_79.html é uma guerra perdida, procurando alinhar ideias e encontrar explicações para o que não é como dizem, porque não pode, mesmo, ser assim.
Votos de uma excelente semana, e obrigado pela visita.