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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024


Das Galinhas Colocadeiras


A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "
colocar" não é,
de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular "pôr".

Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
pior fica, ainda, quando apimentado com a presunção.


Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.

Vivemos no mundo dos influencers e seus obedientes escravos seguidores, dos criadores de moda – da moda, que deveria ser o resultado de uma tendência simples e natural -, de gentes que abrem empresas na Internet em frações de segundo, apenas para se dizerem "empresários", e pouco depois as encerram por manifesta falta interesse ou de viabilidade; no mundo daqueles que querem sobressair pela forma, como única via supostamente eficaz para escamotear a endémica falta de substância, de conhecimento, de cultura.

Não espantará, assim, que alguns vejam os arrebiques da linguagem como uma forma fácil de sobressair socialmente, sem se darem conta da figura ridícula que fazem ao proferir palavras que pouco ou nada têm a ver com a suposta verdade que pretendem transmitir. Palavras que, de despropositadas, tornam o discurso rebuscado, barroco, inesperado; palavras que, em lugar de servir para comunicar, interrompem o fluxo das ideias, com evidente prejuízo para a ampla apreensão e para a plena compreensão.

Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura” demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: para pior!

- x –

Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?

Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!

Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, e até colocam o Windows 11 no PC.

Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo.

Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - material ou imaterial -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.

Serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem popular, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.

Admitamos que será, porventura, este caráter popular associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e, sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, dele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.

Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma popular, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca, que é mais fácil e dá para tudo. Para cada vez mais.

- x -

A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.

Colocar corresponde a um conceito bem mais definido do que o simples pôr, o qual deve ser, preferencialmente, utilizado em linguagem coloquial, sempre que a ideia de rigor na localização estiver afastada da proposição. Em contrapartida, e com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.

Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se colocaPôr uma camisola é a forma popular de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la

Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.

Como vimos, e contrariando o que sustentam alguns dicionários, colocar não é sinónimo de pôr, mas sim uma especialização do termo, destinada a tornar a ideia mais específica: são palavras de significado relacionado, mas não igual.

A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.

Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda das colocações.

Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os retroverter; colocam questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.

Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente.

- x -

Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada em conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.

Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que,  a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe e de parecer o que se não é.

Continuará, e um dia ouviremos falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam num local selecionado.

Com todo o cuidado e precisão.


- x - x -

A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.

sábado, 2 de julho de 2022


José Sócrates em Perigo!


"O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga,
considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar
que o acusado se apresentará à Justiça!
"

"Apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar,
já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana
ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear
"


Em perigo de fuga, claro. Como acontece com todos aqueles presumíveis inocentes que, apesar da proteção necessária e constitucionalmente garantida, a dada altura, ou desde sempre a Justiça considera não serem de, como tal, considerar.

Mas, não: devo ter lido mal a notícia. Será, talvez, a idade que já me não deixa ver as coisas como as vêem os atentos e expeditos olhos destes novos e esforçados magistrados, por certo saídos de escolas de ensino e da vida muito mais sofisticadas e exigentes do que aquelas que, no meu tempo, havia por aí.

Vejamos: reza a notícia do Expresso*) que a Meritíssima Juíza, no mesmo despacho em que quanto a José Sócrates, considerou que, "quando se vir confrontado com a possibilidade de ser julgado pela prática dos crimes pelos quais se encontra pronunciado, o arguido pode decidir eximir-se à ação da justiça (...)" - ou seja, baldar-se... -, conclui o Tribunal que "atentos os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, afigura-se suficiente, para afastar o perigo de fuga que no caso se verifica, sujeitar o mesmo à obrigação de apresentação periódica".

De outra forma dito, e se bem entendi - o que espero bem que não seja o caso -, entende o douto despacho que, para afastar o perigo de que, perante uma cada vez maior proximidade do julgamento, o indivíduo em causa entenda deixar-se ficar lá pelo Brasil onde, agora, tanto parece gostar de estar, é suficiente obrigá-lo a apresentar-se no posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Ericeira a cada quinze dias para garantir que, quando chamado pela autoridade judiciária, não deixará de se apresentar.

Entende o caro leitor a fina sagacidade da decisão? Eu explico...

Em menino, José Sócrates olhou, um belo dia, para um militar da GNR muito alto, muito forte, com um grande e ameaçador bigode e, desde então, treme à simples vista de um dos companheiros de corporação do dito Adamastor, assim bastando entrar, a espaços, num posto cheio deles para nem pensar em falhar a obrigação, transido que fica de puro pavor.

Não? Bem, nesse caso, talvez tenha visto ou ouvido, ao passar por uma esquadra ou posto de uma força policial lusitana ou estrangeira, os gritos desesperados de um qualquer desgraçado a ser, selvaticamente, agredido por se ter portado mal. Bom, talvez mais no estrangeiro, já que coisas dessas não há em Portugal.

Ou terá sido um sonho mau que tenha contado durante um interrogatório cuja ata a Juíza tenha lido? Ou alguma particular e recente alergia do Arguido a esquadras da Polícia e a postos da Guarda que o ponha em sentido apenas por lá entrar?

Não, não parece; sobretudo atendendo ao pouco caso que o Exmº Arguido parece fazer da autoridade, desde logo pelo manifesto desrespeito por aqueles a quem cada deslocação ao estrangeiro ficou por comunicar.

- x -

Ora, a probabilidade de se furtar ao julgamento e suas consequências existe, como sustenta o despacho, e é gigantesca, como qualquer de nós poderá acrescentar atendendo a que o aplicado Estudante se desloca, com frequência, ao longínquo País Irmão no âmbito do desenvolvimento do doutoramento em que se inscreveu por lá.

Que melhor desfecho, então, para toda esta sórdida história do que acabar por lá fixar residência e a ficar, tranquilamente, a leccionar, baralhando e manipulando, ao seu belo estilo e até mais não poder, o acordo de extradição*) e dando aqui e ali uns certeiros apertos de mão a quem considerar mais apto e disponível para o ajudar?

Depois, se a coisa começar a correr mal, inesperadamente - para o Tribunal, leia-se - bastará resolver, na esteira do recentemente sucedido com um malogrado banqueiro, dar um saltinho até um paraíso qualquer ali bem perto para tratar da saúde e fazer, depois, saber que não tenciona voltar a Portugal - talvez aconselhado por alguém mais competente do que quem, no outro caso, terá entendido que a distante África do Sul seria inexpugnável refúgio para quem um fugitivo tentasse apanhar.

Cumpre deixar bem claro que, apesar do inominável que representaria, jamais aqui estaria em causa uma eventual conclusão de sentido contrário a esta da Exmª Magistrada quanto à real existência do perigo de fuga. Tal conclusão de que o perigo não existiria também seria, na verdade, legítima, por se encontrar no âmbito do poder discricionário do Tribunal e resultar do julgamento livremente realizado no íntimo do quem a questão tivesse apreciado.

Não. O que não é admissível, mesmo no plano da lógica mais elementar, é que, havendo concluído pela existência do perigo de fuga, considere a Justiça que a obrigação de apresentação regular num posto da GNR é adequada e proporcional para assegurar que o acusado se apresentará à Justiça!

Será a opção por tão tíbia e inoperante medida uma simples e tosca tentativa de enterrar o incómodo assunto, obnubilando um eventual e inconfessado e, necessariamente, inconfessável temor pela distinta personalidade em causa, a exemplo do que poderá ter acontecido perante o importante, rico e poderoso João Rendeiro, um punhado de meses atrás? Dada a recente postura da Juíza, tal não parece de acreditar.

Ou será que esta boa gente não aprende, mesmo os rudimentos indispensáveis àqueles a quem cumpre decidir, julgar? Que, o que lhes ensinaram quanto à arte de julgar, foi insuficiente para tornar evidente que, apresentando-se à Guarda no dia 5 de um mês, quinze dias depois, quando o dia vinte chegar, já o Engº Pinto de Sousa pode estar, tranquilamente, a bronzear-se em Copacabana ou a esquiar noutro lado qualquer, consoante o hemisfério e a estação do ano em que resolver ir passear?

Mas será que, coisas destas, é preciso ensinar?

Dever-se-á, antes, a manifesta pusilanimidade da medida ora decidida a um manifesto défice de noção do tempo cronológico? A não entender a douta Magistrada que apenas a apreensão do passaporte poderia, em alguma medida, a fuga contribuir para evitar?

Ah! Não! Claro! Coitado! Como pude não me lembrar?

Sem passaporte, José Sócrates ficaria impossibilitado de ir ao Brasil, e o tal doutoramento, tão importante para todos nós e para a Justiça, ficaria por acabar. Seria uma ignomínia, uma ingratidão sem igual, uma tal patifaria fazer a quem, pela brilhante ação política e governativa desenvolvida, Portugal tanto tem a agradecer e a pagar.

* *

Por estas e por outras, a cada vez mais desacreditada magistratura judicial portuguesa, não cessa de nos desencantar com histórias de pasmar!...

A mais recente - lembram-se? - foi mesmo coisa de arrepiar...

(continua aqui)

terça-feira, 28 de junho de 2022


Guerra? Que Guerra?

Explosões? Tiros? Muito déja vu...

Há várias décadas que estamos imunizados contra o horror de tudo isso.

Então não passámos os mais recentes anos a contemplar, durante horas a fio, filmes de guerra, históricos ou de ficção, com mais ou menos conteúdo e mais ou menos efeitos especiais, mas sempre brutais, com imagens em tudo semelhantes às que hoje nos trazem do conflito?

Tudo isso se passa lá bem longe, na realidade distante ou para lá da ainda mais distante fronteira da imaginação.

Os mais de nós jamais sentiram na carne o impacto de uma bala ou de um estilhaço, assim podendo permitir-se o luxo de maldizer coisas tão mais graves como uma forte dor de dentes, uma nova borbulha na cara ou o comichar da mais ligeira cutânea erupção, sem esquecer as recorrentes cefaleias típicas daquelas alturas em que, inexoravelmente, se aproxima o terrível momento de fazer aquelas coisas chatas que não podemos deixar de fazer.

Há mortos? Muitos? Sim, mas não morre tanta gente a cada instante? Por esta ou por aquela causa, ou simplesmente de velhice ou de doença; e ainda bem, ou o que seria da Humanidade num ainda mais sobrepovoado planeta?

Refugiados? Pois. Mas, olhe: se têm de fugir, é porque andaram a incomodar os poderes instituídos, ao ninguém os mandou. Ou não estão para ficar a lutar pela pátria deles e, depois, a gente que os ature por cá a dar cabo do sossego da nossa.

Guerra? Que guerra?

Vemos as terríveis imagens da desgraça enquanto nos deliciamos com a mesma beberragem que acompanha os filmes de horror. Depois de tanta desgraça e de tanta ameaça, acontece-nos agora o mesmo nada que então.

Para quê tanta conversa, tanta preocupação?

- x -

A esta indiferença abjeta nos conduziu um estilo de vida confortável, comparativamente idílico face ao inimaginável que caracteriza o agora de quem vive os horrores de uma invasão, provocada pelo delírio de um louco, empurrado ou não por qualquer outra menos evidente, menos clara personagem ou razão.

Ah, mas estamos de férias, no Verão! A solo ou com a famelga, na tasca da praia, em casa com os amigos, com o uisque no copo, com a mine e os pistachos, ou com o chouriço e o garrafão, chateados com as férias da bola, indispensável para começar uma bela discussão.

Digam lá: acaso a guerra nos vai tirar isto? Claro que não!

Vão cair bombas em Lisboa? Nucleares? Não brinquem! Isso não passa de notícias falsas, para nos espevitar a adrenalina e fazer palpitar o adormecido coração!

A guerra, pois...  É chato, mas vai tudo acabar bem; e eles, lá, os outros, que aguentem, que a gente também já cá aguentou muita coisa... no tempo dos reis e isso, sei lá...

São coisas que acontecem, mas passam. Tudo passa, e a gente cá continua  na nossa Terrinha. Ou não?

Eu cá, de tanta coisa sobre essa guerra, até já me aborrece só de olhar para a televisão.

O pior é que agora nem há bola. Vou falar de quê? Fingir que sou um perito em quê? Na guerra?

Cruzes! Já não basta a inflação! Ou a guerra acaba, ou ainda entro eu em depressão...

quarta-feira, 8 de junho de 2022


O 9 de Maio e o Jubileu de Platina

Outrora olhados como exibições destinadas a ostentar e a demonstrar o poder político e militar de quem reina ou governa, os mais recentes desfiles militares que as televisões nos trouxeram mais parecem tentativas vãs de aparentar um poder debilitado ou praticamente inexistente.

Na Rússia (ainda) de Vladimir Putin, a parada do 9 de Maio não passou de uma vergonhosa encenação que alguém com vergonha teria preferido cancelar, para não lembrar o enorme fiasco de que, na Ucrânia, já então o aparatoso exército vinha padecendo.

No Reino Unido (para sempre) de Isabel II, a parada que integrou as comemorações do Jubileu de Platina não passou de uma hipócrita tentativa de associar as poderosas forças armadas britânicas a um trono completamente esvaziado de poder, "servido" por um governante descredibilizado, de cabelo loiro desgranhado e, ao que parece, de circuitos cerebrais algo desgrenhados, também.

Não deixa de ser verdade que a ânsia de ver, ao vivo, Sua Majestade ainda atrai uns milhares de deslumbrados vindos um pouco de todo o Mundo, o que algum impacto terá nas finanças do Arquipélago. Mas, além do diminuto significado da monarquia no ordenamento político atual, como não relacionar, em extremos opostos, todo aquele efetivamente inútil dispêndio de verbas com a fome que grassa no Planeta, com a miséria causada pelas guerras, com tanta gente que não tem porque não tem como vir a ter aquilo que outros olham com o desdém de quem muito tem e dos outros nem quer saber?

Estas demonstrações de um cada vez mais imaginário poderio servem, afinal, para quê?

Destinam-se a enganar quem?

segunda-feira, 6 de junho de 2022


Contra-Informação: A Carta (de Acabado Silva)

Não perca! Nem chega a três minutos, e vale bem a pena.

O saudoso Contra-Informação, da RTP,  deixou-nos diversos momentos inesquecíveis, de alguns dos quais os protagonistas bem gostariam de que conseguíssemos esquecer-nos.

Tal é, provavelmente, o caso deste pequeno trecho transmitido em 10 de Junho de 1997 - vinte e cinco anos atrás! - , no qual, ao som da conhecida música dos Rio Grande "Postal dos Correios", Acabado Silva lamenta a longa ausência da ribalta do poder, aparecendo, na resposta, Marques Bentes e o Professor Martelo, que de um regresso de Acabado à política nem querem ouvir falar.

"Querida Mãe, querido Pai, cá estou eu
No degredo da política nacional.
As saudades que eu tenho do poder,
Já são tantas que até me fazem mal
(...)
Mas vocês estão aí no deixa andar,
E o PS faz o que lhe apetece,
Quem não sabe fazer oposição
Depois, olha, tem aquilo que merece"

E por aí fora, até que os outros respondem:

"Este agora anda armado em filho pródigo,
Deve achar que alguém quer vê-lo voltar,
Tal havia de ser o disparate,
Felizmente estamos cá para o evitar".

Vinte e cinco anos depois, não sei por que haveria, agora, de me lembrar disto...
Será por haver pessoas que continuam na mesma vinte e cinco anos depois?


Video também disponível em artuivo.rtp.pt



Em pleno século XXI, que razão poderá, ainda, encontrar-se para a subsistência de um partido que, assumidamente, admira e advoga os princípios da teoria soviética dos primórdios do século passado?

LEIA AQUI

uma análise objetiva sobre o PCP dos nossos dias
e o processo entrópico em que mergulhou




O futuro tem Partido,
ou não há futuro para o Partido?

domingo, 5 de junho de 2022


Sentido de Estado

"No momento em que é eleito para o importante cargo de presidente da República,
um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente,
do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional
e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos
"

"Num mundo civilizado, será, assim, impensável que um outrora presidente da República venha, do nada,
desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado
"

"Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico,
menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar
"

Sentido de Estado
Se o significado de sentido de estado é tão evidente como qualquer outro, não menos certo é que a definição de sentido de estado é tão difícil como qualquer outra. Se não quanto à substância, pelo menos quanto ao grau, ou seja, à fronteira além da qual, do ponto de vista da legalidade, da decência, da probidade, da mais elementar educação, cada um considera que seria ilegítimo comportar-se no desempenho das funções públicas que lhe foram confiadas.

Resta, naturalmente, o caso daquelas figuras públicas que, sem reserva ou pudor, desvalorizam o dever de se comportar de forma responsável e cívica, reféns que estão do próprio umbigo, do incomensurável ego que terá determinado, desde a génese, a decisão de enveredar por uma carreira política orientada, não para o serviço da coisa pública, mas do engrandecimento e glorificação de coisa própria, mormente património, imagem ou poder.

Ora, casos de manifesta falta de sentido de estado não têm faltado.

Quem não se lembra das trapalhadas do Ministério da Justiça no processo de nomeação de um procurador europeu?*) Ou do Presidente da Assembleia da República que, em plena crise pandémica, convidou todos os portugueses a deslocar-se a Sevilha para assistir a uma partida de futebol?*)

Por mais que estejamos cientes de que por aí anda muita gente mal formada, pouco educada, insensata, insensível, quase todos os dias os mais diversos canais informativos nos confrontam com demonstrações de boçalidade pessoal e política, de inabilidade social, que em nada beneficiam, cá dentro como lá fora, a imagem de Portugal.

O que dizer do ministro da economia - hoje arguido num processo-crime - que, em plena sessão parlamentar, dirigiu, a um deputado da oposição, o conhecido gesto representativo de um par de chifres?*) Ou do secretário de estado que entendeu que, a nível internacional, Portugal saiu beneficiado com a pandemia?*) Ou do outro que apodou de estrume e de coisa asquerosa um programa televisivo de informação?*) Mesmo assim, mantém-se no poder, embora em pasta diferente, o que bem diz do sentido de estado de quem, não obstante, o convidou...

A par da deficiente formação e educação, a incompetência endémica que grassa, descontrolada, pela cena política nacional leva certos indivíduos a personalizar o impessoal, a esquecer-se de que, em prol da inviolabilidade da missão que desempenha, devem ser tratadas na esfera privada e pessoal as disputas privadas e pessoais do titular de um cargo institucional.

Tampouco poderemos esquecer-nos das indecorosas declarações de uma bastonária*) – agora também a contas com a justiça por alegada falsificação de contas – segundo a qual “(…) a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!”; ou que chama esterco a um jornalista*) e envia cumprimentos ao respetivo pai, já falecido.

Ser frontal e, até, polémico é um direito; mas esse exercício elementar da liberdade não pode ser, em instância alguma, confundido com vulgaridade, com ordinarice, com baixeza.

Só ataca o autor quem não tem como atacar a ideia.  Significa isto que, ou o atacante é incompetente, ou o autor tem razão. Seja qual for o caso, a forma ordinária do discurso sempre acabará por ofuscar o brilho do conteúdo, por muito que o autor possa estar com a razão.

Perdurarão na memória coletiva a frieza do escandaloso e degradante desempenho de um certo ministro da administração interna em diversos momentos do seu mandato, e a despudorada exoneração de um chefe do estado-maior da armada em benefício de um popular herói da vacinação. As trampolinices com graus académicos não são novidade, e os recorrentes episódios de excessos de velocidade ao volante de viaturas oficiais sem justificação plausível e aceitável tendem a ser olhados com naturalidade, se não com respeitosa admiração.

O mesmo acontece com a apresentação e promoção, por parte dos diversos partidos políticos, de candidatos autárquicos elementares, manifestamente inaptos para a função, ineptos, até; incapazes de alinhavar duas frases e de articular duas ideias, exemplares emergências do país profundo cuja existência, invocando as estatísticas da frequência escolar que zelosamente alimentam, os poderes instituídos insistem em negar.

Tudo isto é feio, tudo isto é triste, tudo isto é fado, a fatalidade quotidiana e comezinha da política nacional, que, de tão degradada que está, já não consegue recrutar pessoas de qualidade pessoal e técnica para nos dirigir ou governar.

- x –

Constitucionalmente situado num patamar muito acima de qualquer outro cidadão e, supostamente, ao serviço de todos eles, eleva-se, desejavelmente intocável, a imagem dos sucessivos Presidentes da República Portuguesa, supremos magistrados da Nação, garantes da estabilidade, da liberdade e da igualdade, para os quais todos quereremos poder olhar com respeito e admiração.

No momento em que é eleito para tão importante cargo, um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente, do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos.

Este dever de salvaguarda não resulta, longe disso, de propósitos de engrandecimento ou exaltação pessoais, antes da necessidade de preservação da dignidade do cargo, independentemente de quem, em cada momento, o ocupar, preservação essa essencial ao exercício, quer da magistratura de influência, quer dos poderes efetivos de supervisão da atividade governativa de que estará investido e lhe competirá exercer.

O momento em que assumir tão altas funções deverá, por tudo isto, ofuscar, quase apagar, quaisquer reminiscências do passado em funções hierarquicamente inferiores que, ao longo da carreira política, o novo titular possa ter desempenhado.

Jamais deverá, assim, o próprio vir a campo defender, sobretudo a despropósito ou com motivação forçada e sem provocação, o seu anterior desempenho no governo, ou desafiar a fazer melhor quem, imediatamente ou não, o tiver sucedido no mesmo cargo. Fazê-lo, seria, não apenas ridicularizar-se, mostrar de si uma essência eticamente pouco estruturada e uma forma indizivelmente elementar, como minimizar o estatuto de tão alto magistério, dessa forma comprometendo, ingloriamente, o desempenho dos que nele lhe viessem a suceder: a imagem do cargo oscilaria no pedestal que, à eficácia no desempenho, é tão essencial.

Já de si, e em quaisquer circunstâncias, o combate político vazio de ideias, comezinho, rasteiro é, a todos os títulos, um espetáculo degradante. Que a tal nível pudesse, alguma vez, descer um outrora presidente da República seria uma inequívoca demonstração, não apenas da incapacidade genérica e inata para o desempenho do cargo, como do erro histórico em má hora cometido pelos votantes quando da eleição.

Num mundo civilizado, será, pois, impensável que um outrora presidente da República alguma vez venha, do nada, desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado. Será impensável que, numa espécie de carta aberta eivada de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa do singular, publique um monótono e entediante cardápio dos seus feitos no exercício de um pretérito poder executivo, numa aparente tentativa egocêntrica de atrair para si a atenção de uma comunicação social que já pouco ou nada lhe ligue por, sobre ele, já pouco ou nada de interesse haver a noticiar.

Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico, menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar.

- x -

Os Presidentes da República que já não estão entre nós sempre assim o entenderam e agiram em conformidade. O primeiro Presidente da República eleito no atual regime, também.

O atual Presidente da República tem manifestado igual entendimento.

O elevado sentido de estado de todos estes sempre, respeitosamente, poderemos louvar.

* *

Como o exemplo vem de cima - seja lá, no presente caso, este cima o que for... -, não admira que diversos atores políticos continuem a fazer figuras tristes, supostamente em defesa de... de quê?

(continua aqui)

segunda-feira, 30 de maio de 2022


Vila Viçosa

Vila Viçosa - Vila Ducal
Vila Viçosa Hoje

As imagens não deixam dúvida: Vila Viçosa está muito mais arborizada hoje do que nos tempos idos em que a fotografia do postal foi obtida.

Quanto ao mais, quem a visitar encontrará uma vila que, sem prejuízo de uma equilibrada evolução, soube conservar a traça e o ritmo que se esperaria encontrar numa terra de tão grandes tradições, impossível de separar de trechos inesquecíveis da História de Portugal.

Existe, todavia, uma espécie de crendice primária de que enfermam os espíritos de certos autarcas que os leva a procurar compensar eventuais défices de competência técnica e política com tiradas tonitroantes para consumo da comunicação social, levando-os a nem se aperceber, não apenas do porventura irreversível erro de julgamento que a elas subjaz, como da figura triste que acabam por fazer perante quem sobre estes assuntos quiser pensar, a par da indiferença daqueles a quem já parece que nada, além do vício das redes sociais, poderá interessar.

Vai daí, que Vila Viçosa anunciou, recentemente, a intenção de propor à Assembleia da República a sua elevação a cidade *), a fim de garantir "mais valias, quer ao nível do acesso a determinados fundos comunitários locais ou regionais, como ao nível de fundos diretamente em Bruxelas". Nas palavras do recém-eleito Presidente da Câmara, "o ser elevado a cidade é um reconhecimento que da Assembleia da República, que reconhece a evolução de Vila Viçosa, reconhece a sua importante e relevante história, o seu enorme património, e acha que é uma terra com grande relevo para o país. É no fundo, reconhecer a nossa identidade como uma terra que cresceu, que evoluiu, que tem história e que tem relevância".

Entende, assim, o ilustre entrevistado ser necessária a elevação de Vila Viçosa a cidade para que a Assembleia da República reconheça o seu importante passado - o que não passa de um rematado disparate -; e para que lhe reconheça a grande relevância presente, quiçá esquecendo-se ou procurando fazer esquecer que tal relevância terá sido conquistada em sucessivas presidências de câmara do Partido Socialista e do Partido Comunista Português (PCP), já que, consultados os dados oficiais, o Partido Social Democrata a que o atual primeiro autarca pertence não elegia um presidente desde os idos de 1993.

Eis-nos, pois, perante um flagrante caso de aproveitamento político daquilo que, durante décadas, os adversários derrotados vieram fazendo muito antes de nós.

Além do mais, não será despiciendo perguntarmo-nos até que ponto será necessária a elevação a cidade para que uma terra progrida, tendo em conta os casos, entre outras, das vilas de Cascais e de Oeiras, caracterizadas pela teimosia em permanecer vilas sem que tal haja, aparentemente, beliscado, mesmo ao de leve, a sua fulgurante expansão e projeção internacional nas áreas que lhes são de interesse.

Não terá, então, a evolução de uma vila muito mais a ver com a competência e dedicação dos seus autarcas do que com os títulos, com os estatutos a que procura ascender? Sobretudo quando a proposta do PCP de realização de um referendo municipal sobre o assunto foi preterida pela da maioria que impõe que a candidatura a cidade avance, quer a população queira, quer não.

Vamos, assim, ter a Cidade de Vila Viçosa, uma gota de água quando comparada com as cidades de Nova Iorque, de São Paulo, de Tóquio, de Paris e, mesmo, do Porto ou de Lisboa, num país que, de tão ridiculamente pequenino que é - mais nas mentalidades do que no território - até tem cidades com menos de 2000 habitantes, graças à demagogia de certos governos e à necessidade de rapar o tacho dos votos até gastar o teflon.

Auri sacra fames, o que importa é a captação de fundos*) para mais umas rotundas, uns parques infantis, enfim, para aquilo a que as mentes pequeninas chamam desenvolver o que resta das vilas históricas portuguesas, esquecendo-se - ou nem notando... - que, muitas vezes, desenvolver é sinónimo de estragar.

sexta-feira, 13 de maio de 2022


Lisboa a Quarenta à Hora


"O que, verdadeiramente, polui o ar as cidades é o constante pára-arranca, as horas esquecidas passadas nos engarrafamentos, o desespero de quem vê o tempo útil esvair-se enquanto procura, em vão, um lugar para estacionar"

"Nas horas de ponta, quando a poluição mais acontece,
quantas vezes ultrapassará os vinte ou trinta quilómetros por hora a velocidade de circulação?
"

"Tamanha e inane arbitrariedade, digna das mais abjetas ditaduras de extrema-esquerda,
demonstra bem que para, enquanto extremista, ainda mais se assemelhar ao "Chega!",
ao "Livre" apenas falta um ponto de exclamação ao nome acrescentar
"


Aliada aos maus tratos verbais recebidos - quer das bancadas das diversas assembleias ditas democráticas, quer de uma imprensa ávida de palavras fortes que vendam publicidade, quer, também, da ululante mole que, em manifestações sediças e rançosas a que já ninguém liga, faz coro com os dichotes cacafónicos expelidos por ferrugentos megafones -, a cada vez menos prestigiante imagem que, por muito boas razões, a generalidade da população tem da política e dos seus mais destacados agentes tem, como efeito imediato e indissociável, o progressivo desinteresse dessas andanças por parte de quem lhes poderia, ainda, emprestar uma réstia de credibilidade, de eficácia e de desinteressada dedicação.

O défice de formação, de educação e de conhecimento da natureza humana que encontramos nas hordas de filisteus que, cada vez mais, vão ocupando cargos eletivos nas diversas instâncias decisórias dos destinos da Nação amiúde os leva, por sua vez, a acreditar que, se os eleitores não agem da forma cívica como, ingénua ou desesperadamente, os políticos pensam que todos os cidadãos gostariam de se comportar, tal se deve à endémica falta de condições recorrentemente apontada como desculpa já mais do que esfarrapada para quando as coisas correm mal; ou, simplesmente, não correm, como acontece nas mais das ocasiões.

Deixaram-se, assim, certos executivos mais recentes da Câmara Municipal de Lisboa convencer, anos atrás, de que a solução para certos males que apoquentam os alfacinhas e os envergonhavam e envergonham lá fora seria uma vistosa sementeira de ciclovias na Cidade das Sete Colinas, elevações estas que poucos ciclistas teriam apetência ou, até, capacidade para subir a pedalar.

No imaginário destas pessoas, de um momento para o outro os automóveis passariam a ficar na garagem, à porta de casa, ou, pelo menos, nos parques dissuasores da periferia; a circulação tornar-se-ia fluída; o estacionamento, acessível por toda a cidade; o ar, cristalino e límpido por toda a parte; e Lisboa tornar-se-ia um paraíso para os habitantes e para os exércitos de turistas que a vêm financiar.

Ora, como o português quer saber é dele mesmo e o carrinho porta-a-porta é requisito indispensável, não só àquilo que considera qualidade de vida, mas, tal como a piscina no relvado da vivenda decorada com águias ou leões, aquilo que lhe dá um status, um mais do que parolo pseudo-estatuto social, o bom resultado foi, já se sabe, o de sempre: nenhum.

- x -

Acontece, porém, que aqueles dos autodenominados políticos que não passam de impreparados e ineptos indivíduos não entendem estas coisas. Embasbacam-se, incrédulos, quando lhes dizem que o problema da boa gente lusitana não é tanto a falta de meios ou de condições, como a imensa e já estrutural falta de formação, de educação e de conhecimento da natureza humana, a mesmíssima que afeta os ditos decisores que o são apenas por estarem inscritos num ou noutro partido, por outro modo de vida não lhes terem conseguido arranjar.

Vai daí que a solução para povoar as até então ineficazes ciclovias de Lisboa passou a ser - pasme-se! - semear ainda mais algumas destas ineficazes ciclovias de Lisboa, desta vez pondo-lhes mesmo ao lado bicicletas elétricas, a fim de procurar convencer a utilizá-las quem por esses montes e vales se recusava a pedalar.

Começou, por isso, Lisboa a encher-se de ciclistas, e a ver automóveis e motorizadas desaparecer do horizonte visual e olfativo das aflitas e intoxicadas famílias da Capital? Claro que não!

O trânsito continuou caótico, nauseabundo, às zonas de estacionamento verde, amarela e encarnada vieram juntar-se a castanha e a negra - penso que, tal como operação militar especial, o termo negra ninguém irá censurar...*) -, e, tal como dantes, os níveis de poluição não param de aumentar.

Não deixa de ser verdade que, principalmente nas horas de ponta, lá circulam por essas dispendiosas ciclovias uns quantos cidadãos. Circulam, mas de forma não controlada nem fiscalizada. Circulam, mas caótica e irresponsavelmente saindo das ditas vias e pedalando sobre os passeios, ignorando semáforos, atravessando artérias à toa, assim pondo em risco a segurança dos transeuntes, às mãos e aos pés de absolutos ignorantes das disposições do Código da Estrada, que nem exame de código necessitam de fazer, para mais os atrair para cima da miraculosa e impoluta bicicleta. Para facilitar...

Feitas as contas, evidente se tornou, pois, a inutilidade de andar por aí a espalhar mais um ror de ciclovias numa terra cujos habitantes não gostam, nem alguma vez irão gostar, de pedalar.

- x -

Chegado a esta conclusão, o irresistível e inigualável prazer que o Partido da Maioria Absoluta parece experimentar sempre que estende a mão à já irrisória extrema-esquerda portuguesa redundou, uma vez mais, numa demonstração da brilhante e fulgurante demagogia a que o Partido Socialista há muito nos vem a habituar: reduzir em mais dez quilómetros por hora a velocidade máxima de circulação automóvel em Lisboa*).

Do ponto de vista da despesa, a ideia é genial, já que o custo é praticamente nulo, além de uma ou outra campanha na comunicação social. Fora isso, poucos são os sinais de trânsito que terão de ser alterados, já que se trata de uma medida de aplicação genérica, e não pontual. Assim, quando se constatar que foi mais uma ideia abstrusa que fracassou perante a monolítica falta de educação e de consciência social dos destinatários, pelo menos ninguém poderá assacar à insignificante força política proponente denominada "Livre" qualquer responsabilidade pelo custo; ou, se alguém o fizer, ela facilmente a descartará.

Mas, por que é, afinal, que a medida vai falhar?

Muito simplesmente porque, como qualquer um entende, a maior parte da poluição saída do tubo de escape não ocorre quando um veículo circula a uma velocidade estabilizada, como acontece em horas de baixa densidade de tráfego, seja essa velocidade de quarenta, de cinquenta ou, até, de oitenta quilómetros por hora: o que, verdadeiramente, polui o ar as cidades é o constante pára-arranca, as horas esquecidas passadas nos engarrafamentos, o desespero de quem vê o tempo útil esvair-se enquanto procura, em vão, um lugar para estacionar.

Quantas vezes ultrapassará os vinte ou trinta quilómetros por hora a velocidade de circulação nas horas de ponta, quando a poluição mais acontece? Nessas horas em que o ar se pinta de partículas castanhas e cinzentas enquanto os motores queimam, inutilmente, preciosas toneladas de combustível perante a impotência e incompetência camarárias para fazer face ao comodismo e à falta de educação de quem, tendo alternativa, por aí anda a circular?

- x  -

Por falar em alternativa, a alternativa disponível ao Estado e à Autarquia para por termo a este lastimável estado de coisas seria, como todos sabemos, dotar a Cidade de uma rede de transportes públicos digna desse nome. Uma rede atrativa, económica, confortável, eficiente e digna de todos os encómios que cada um de nós gostaria de lhe poder associar.

Em vez disso, e porque estas coisas são caras, levam tempo, Roma e Pavia não se fizeram num dia e toda a lista de argumentos à disposição do mamute socialista de cuja cultura é característica essencial o bem típico hábito indígena de procrastinar, temos uma rede de autocarros lenta, aborrecida, atrasada, entediada, onde abanam ao sabor das curvas milhares de portugueses que nem um carrito hiper-usado têm dinheiro para comprar, porque, se tivessem, seria nele que se iriam deslocar; e uma rede de metropolitano que, comparada com outras europeias mais parece a de um comboio de brincar. Da rede de amarelos da Carris que ficam horas parados na calçada para não arrancar o farolim de trás de um selvagem mal estacionado, nem vale a pena falar.

Os táxis, os ubers e quejandos estão pela hora da morte e poluem tanto como qualquer outro automóvel, pelo que nenhum bem a este quadro negro vêm acrescentar.

- x -

O partido extremista que propôs e, sabe-se lá como, fez o pusilânime Partido da Maioria Absoluta aprovar a ridícula e aberrante medida de reduzir ainda mais a velocidade em Lisboa, tem a liberdade no nome, mas não no coração. Tamanha e inane arbitrariedade, digna das mais abjetas ditaduras de extrema-esquerda, demonstra bem que para, enquanto extremista, ainda mais se assemelhar ao "Chega!", ao "Livre" apenas falta um ponto de exclamação ao nome acrescentar.

Qual partido de extrema-direita, não hesitou o suposto "Livre" em fazer limitar, ainda mais, aos lisboetas a liberdade e a fluidez de circulação nas horas menos complicadas, unicamente a troco da fútil esperança num protagonismo desbragado que redundasse num magro punhado de votos numa próxima eleição, e em nada contribuindo para melhorar a situação nas horas de ponta em que os trabalhadores deixam as suas casas e a elas regressam depois, com as paciências esgotadas e ansiosos por, finalmente, repousar.

A moda, tida por politicamente correta por quem apenas a sua paróquia governa, de aproveitar o mais ínfimo pretexto para, por medo da crítica ou por mais ou menos inconfessável interesse, impor, aos veículos motorizados, reduções drásticas na velocidade de circulação conduz, por vezes, a aplicações tão excessivas e descabidas que acabam por tornar o politicamente correto em eleitoralmente perigoso, dada a desrazoabilidade ou mera inutilidade das decisões tomadas, bem como o manifesto desequilíbrio entre os interesses em presença.

A bárbara redução do limite de velocidade nas cidades não é, seguramente, o caminho adequado à resolução dos prementes problemas da circulação automóvel, do estacionamento e da poluição atmosférica.

Para os eleitores, a resposta está em encontrar quem saiba, queira e tenha a coragem necessária a implementar uma eficaz, eficiente, económica e confortável rede de transportes públicos que, efetivamente, incentive a imobilização do parque automóvel por parte dos habituais utilizadores.

Como tão providencial criatura parece inexistir no qualitativamente muito limitado recheio das forças políticas atuais, inevitável se torna que despropositados cuidados paliativos como este se tornem irresistíveis para os mais incompetentes daqueles que se dedicam à governação.

Para os lisboetas, para os portugueses, os problemas do trânsito nas cidades continuarão, assim, sem solução.

Tal como o problema da poluição...

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quinta-feira, 5 de maio de 2022


A Inenarrável Conferência das Laranjas


"Seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, mostra-se desrazoável classificar
como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores"

"Pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve,
o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente,
colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?
"

~Exemplo de Demagogia
Quando nos pedem um exemplo de demagogia, acabamos, quase invariavelmente, por falar do discurso deste ou daquele dirigente partidário, de qualquer quadrante político, que, com o intuito de impressionar o auditório - leia-se, "o eleitorado"... - ilustra a parlenga com supostos casos práticos de substância nenhuma, mas de forma suficientemente barroca e prenhe de aspetos mais ou menos folclóricos para fazer emergir sentimentos, sejam eles de aquiescência ou de aplauso, de mágoa ou de indignação.

Nesta arte, atrás dos dirigentes políticos não ficam, seguramente, os sindicais, do que é exemplo recente o Coordenador do Sindicato dos Professores da Região Centro, Conselheiro Nacional e Secretário-Geral da Federação Nacional dos Professores (como esta gente gosta de títulos compridos e pomposos!...), Dirigente da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública e Membro do Conselho Nacional e da Comissão Executiva da CGTP-Intersindical Nacional.

Talvez para fazer crer aos mais distraídos que alguma chama ainda arte no cada vez mais enfezado Partido Comunista Português (PCP) - que, todas estas importantes e representativas estruturas, agora na quase clandestinidade lá vai continuando a manipular -, decidiu o pugnaz e pertinaz dirigente proceder, em conferência de imprensa, a uma chaboqueira demonstração das limitações e da ineficácia do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) e do pauperismo a que, do seu ponto de  vista, ela condena os profissionais representados pela Federação que dirige, demonstração essa que, antes de continuar a leitura, recomendo ao caro Leitor que aqui não deixe de apreciar.

Além de ter decidido enveredar, na apresentação, por ações tão violentas como o partir pratos em público - atitude surpreendente vinda de alguém afeto a uma estrutura tão pacifista como o PCP... -, recorreu o distinto conferencista a uma indescritível demonstração baseada em três pratos de laranjas pelos quais espalhou uma amostra de quinze delas.

Atribuiu-as desta forma: ao primeiro prato, sete peças de fruta; ao segundo, "por exemplo, sei lá", cinco; e, ao terceiro, "vamos admitir" três. Tudo muito cândido e descontraído, como se do mais natural do Mundo se tratasse.

O senão desta aparentemente improvisada e ingénua distribuição reside, todavia, no facto de, ao primeiro prato, ter feito corresponder a quantidade de docentes que, na amostra, seria classificada com excelente (sete); ao segundo prato, a que obteria muito bom (cinco); e, ao terceiro, quem teria obtido, apenas, bom.

- x -

Dois vícios lógicos e objetivos logo saltam à vista, por dizerem bem do descoco com que estas demonstrações são feitas, e da irremediável fragilidade de uma argumentação eivada, quer de insanável erro no pressupostos de facto, quer de notório e despudorado viés.

O primeiro vício consiste na patente falta de correspondência, com a realidade, dos pesos atribuídos a cada classe, já que, seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, se mostra desrazoável classificar como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores, o que, entre outros males, desde logo desvirtuaria o próprio conceito de excelência.

Excelència é a qualidade daquele que se destaca dos restantes, do quase perfeito, do virtualmente inigualável, definição universalmente aceite e que, inquestionavelmente, pulveriza qualquer tentativa de vulgarização em que se procure confundir tão raro e sublime nível de desempenho com outro de mera normalidade.

Por muito bom se designa, por sua vez, aquele que se não limita a demarcar-se, em algum grau, do normal - como acontece com o simplesmente bom -, mas que, embora sem atingir um patamar de excelência, o faz de forma suficientemente expressiva para merecer que o adjetivo qualificativo seja elevado a um grau superlativo - o que também pressupõe uma escassez assinalável, na medida em que se aproxima do topo da escala.

Por si só, este escalonamento tornaria evidente que, a menos que passemos a atribuir, a excelente e a muito bom, os significados quase opostos dos atuais, a distribuição proposta na conferência de imprensa é, meramente, anedótica e pensada para consumo de pessoas suficientemente elementares para, com tamanha parvoíce, não ficarem incomodadas; não, seguramente, para docentes dotados do sentido crítico indispensável a quem trabalha para um ministério que se propõe educar.

Como se não bastasse a pouco invejável fase que a nobre profissão atravessa - com uma carreira que se afigura pouco motivadora para aqueles que, com qualidade, brio e dedicação a exercem -, pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve, o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente, colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?

Ter-se-á, outrossim, o improvisado comediante esquecido de incluir os pratos de laranjas correspondentes às restantes três classes do SIADAP: suficiente, medíocre e mau? Ou será que a qualidade dramaticamente elementar da aprendizagem manifestada pelo ror de alunos que acaba, quase analfabeto, o ensino secundário permitirá, paradoxalmente, concluir que não existem, em Portugal, professores com desempenhos suficientes, medíocres e, muito menos, maus?

Considerará a dita pessoa ter, com tão triste espetáculo, prestado um serviço útil e digno aos seus representados, cuja inteligência, afinal, ali apenas foi, de alguma forma, insultar? Ou serão os argumentos disponíveis tão escassos e débeis que se torne necessário atirar para a frente com o folclore para, em desespero de causa, tentar impressionar? É, pelo menos, a ideia com que se fica, queiramos ou não...

Ou tratar-se-á, mais simplesmente, do reconhecimento da completa incapacidade para, de forma minimamente elaborada, sobre esses argumentos discursar?

Tendo presente que "a qualidade da expressão verbal consiste em ser claro sem cair na banalidade", a ser a última a razão, a situação reveste-se de singular gravidade, dado que tal incapacidade comunicacional residirá em alguém que, não nos esqueçamos, além da tal lista de pomposos cargos é, também, professor. Ou foi? Ou já se esqueceu de que foi?

Que exemplo dá aos alunos um docente que se vê forçado a recorrer a um espetáculo destes, que muitos eles não deixarão de ver, para fazer passar uma mera reivindicação salarial?

Que classificação ser+a de atribuir ao desempenho de um comunicador destes, que prefere refugiar-se na vulgaridade de quem entende que o gesto é tudo, a primar por alinhar devidamente as ideias e, de forma articulada e minimamente elegante, com elas saber impressionar?

Suficientemedíocre ou... mau?

* *
Bem, mas isto é nada, quando comparado com a epidemia de palavrões - ou de um certo palavrão - que por aí grassa graças a um desajeitado comentador da guerra, que não sabe quando deve ficar calado.

quinta-feira, 21 de abril de 2022


20 Palavras em Latim que Usamos Frequentemente

Após este título, lista aqui um sítio dito de cultura: Ad aeternum; Agnus Dei; Alibi; a priori; a posteriori; a fortiori; ad hoc; Curriculum Vitae; Cogito, ergo sum; Carpe diem; Ex libris; Errare humanum est; Ex nihilo nihil fit; in extremis; In loco; Ipsis verbis; Quid pro quo; Sine Qua Non; Sine die; Veni, vidi, vici.

Há que dizer, antes de mais, que a ideia de divulgar, junto da população menos atenta a estas coisas, temas da língua portuguesa em linguagem que se esforça por facilitar a compreensão e a aprendizagem, aparece como uma iniciativa sem dúvida louvável, faceta que seria injusto não salientar. Isto, apesar de essa linguagem se afastar, por vezes, tanto de algum cuidado na escrita que acaba por redundar em erros gramaticais ou, pelo menos, num facilitismo excessivo, numa ausência de rigor e de precisão na utilização do mesmo idioma que, supostamente, estariam a ensinar - como é o caso, por exemplo, da utilização, no referido título, de usamos em lugar do quiçá mais apropriado utilizamos, uma vez que utilizar de palavras as não torna usadas ou desgastadas, assim sendo aqui preferível o verbo utilizar.

Mas como aceitar que o à-vontade seja tal que nem se trate de cuidar que o título corresponda ao que é apresentado? Vejamos.

Palavras diferentes, não são vinte: são mais de quarenta; e, se se referem a artigos da lista compostos por uma única palavra, resumem-se a um: Alibi. Tudo o resto são locuções, conjuntos de mais de uma palavra.

Além do mais, tem o caro Leitor por hábito utilizar frequentemente a expressão Ex nihilo nihil fit? Sabe, pelo menos, o que significa? Ou Agnus Dei, comum na missa em latim que há muito tempo praticamente acabou? Quid pro quo? Carpe diem? "Frequentemente" utilizadas?

Mas, por quem, afinal?

E o alibi? Por que estranha razão estaremos, a proferi-lo, a utilizar a forma latina, quando, também em português, se encontra dicionarizada? Será que quando dizemos vida estamos, também, a proferir ou escrever uma palavra espanhola que, em português, é frequentemente utilizada?

Mesmo as restantes, serão elas "frequentemente" utilizadas pelos destinatários do artigo? Ou, de outra forma visto, que interesse terá um artigo como este para as pessoas que tais "palavras" utilizam "frequentemente"?

Nem vou gastar o meu tempo e a paciência do caro leitor a referir-me aos numerosos artigos dos dez mais isto ou dos trinta mais aquilo, tudo de acordo com critérios absolutamente subjetivos e sem a mais pequena parcela de fiabilidade, a não ser para quem os escreve.

Lamentavelmente, estas coisas são ad nauseam - esqueceram-se desta, que é, pelo menos, mais utilizada do que Ex nihilo nihil fit... - pespegadas naquela coisa chamada Discovery da Google, que me aparece cada vez que alguma coisa no motor de busca vou procurar.

Desta forma lamentável se desvaloriza, se subverte uma ideia com inegável potencial, sacrificando-a à vontade ou à necessidade de publicar à viva força, "frequentemente"; de manter as audiências e o interesse da Google e dos anunciantes que, no meio de muito disparate, as coisas mais incríveis e desinteressantes vêm divulgar.

Pobre língua portuguesa, e pobre de quem ainda pensa que, a páginas dessas, alguma coisa de verdadeiramente válido ainda irá buscar...


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LÍNGUA PORTUGUESA

quinta-feira, 24 de março de 2022


Mário Machado e a Juíza de Instrução Criminal

Corre por aí uma onda de indignação pelo facto de, no quadro da aplicação da medida de coação de termo de identidade e residência com apresentações quinzenais à autoridade policial, uma juíza de instrução criminal haver dispensado do dever de apresentação às autoridades o arguido num processo criminal por posse de arma proibida*).

Pondo de parte qualquer consideração de ordem subjetiva relativa à pessoa do arguido - e com a ressalva de que desconheço os textos completos, quer do requerimento, quer da oposição, quer decisão -, parece-me improvável que a agora mediatizada magistrada pudesse haver decidido de outra forma.

Antes de mais, não estando aqui em causa uma autorização para se ausentar do país - note-se bem que jamais foi exigida a entrega do passaporte... -, o único efeito prático da dispensa de apresentação às autoridades foi, salvo melhor opinião, o de permitir uma estada no estrangeiro por um período superior a duas semanas.

Apenas isto; e apenas isto relativamente a um indivíduo que, independentemente das desgraçadas ideias que alardeia e das pesadas condenações anteriores por atos com elas relacionadas, já pagou a dívida à sociedade mediante o cumprimento das penas em que foi condenado, apenas sendo, agora, arguido relativamente à eventual prática de um crime de baixa gravidade, como o é o de posse de arma proibida, punível, nos termos do art.86º do Código Penal Português, com prisão até três anos ou multa até 360 dias..

Neste quadro, com que fundamento poderia a juíza ter recusado um pedido, não para se deslocar à Ucrânia ou onde quer que fosse fora de Portugal, mas apenas para por lá permanecer mais do que os quinze dias de intervalo que lhe foram fixados?

Para lá da emotividade de uma sociedade e da exploração por uma comunicação social ávida de notícias, a verdade é que:

  • para todos os efeitos legais, o arguido é presumível inocente até ao trânsito em julgado de decisão condenatória;

  • sair de Portugal, sempre pode: o pedido visa, unicamente, a possibilidade de permanência além de duas semanas em missão humanitária junto de um país invadido ao qual Portugal presta auxílio e apoio;

  • risco de fuga nunca entenderam os tribunais que existisse, ou outra teria sido a medida de coação aplicada - e a decisão ora criticada tal risco, decididamente, não gerou;

  • da prática dos dois outros crimes que lhe são atribuídos - de incitamento ao ódio racial e à violência - era, à data do despacho, um mero suspeito.

Ora, a juíza de instrução fundamentou o despacho dizendo que dada “a situação humanitária vivida na Ucrânia e as finalidades invocadas pelo arguido para a sua pretensão, o arguido poderá deixar de cumprir a referida medida de coação enquanto estiver ausente no estrangeiro”, o que é consentâneo com os pontos acima enumerados: negar o pedido mais não seria, ao que tudo parece indicar, do que uma decisão arbitrária, subjetiva, politicamente motivada e, do ponto de vista estritamente técnico, notoriamente violadora, pelo menos, do princípio constitucional da proporcionalidade.

Mostra-se, assim, absolutamente ridículo, falso e manipulatório da opinião pública que estejamos perante uma "decisão que autoriza Mário Machado a ir lutar para a Ucrânia"*), ou que o assumido neonazi foi "autorizado pelo tribunal a combater na Ucrânia"*), ou que se pergunte por que razão Mário Machado foi autorizado a sair do país, ou qualquer outra mais ou menos insidiosa patacoada do género, aparentemente apenas destinada a vender assinaturas de jornais ou minutos de publicidade nas televisões, ou devida ao simples facto de, quem a escreveu, nem a parte relevante da fundamentação do despacho se ter dado ao cuidado de ler.

- x -

Mais do que quem aqui escreve, ninguém é mais crítico daquilo que, em crescendo, a magistratura judicial portuguesa de si tem vindo a dar a conhecer, bem como das aberrantes e desumanas ideias defendidas pelas extremas mais extremas da política nacional ou internacional.

Mas, no momento em que começamos, impiedosamente, a crucificar inocentes servidores públicos pelo simples facto de terem proferido decisões acertadas, apenas como forma de exaltar os ânimos ou de desviar as atenções dos leitores e espetadores de coisas bem mais graves e preocupantes que se passam nos meandros da política portuguesa - como, por exemplo, as relacionadas com a formação do próximo governo constitucional; no momento em que tomamos conhecimento de perplexidades relacionadas com o despacho da juíza de instrução por parte de mediáticos juristas de quem se espera uma análise objetiva e fria das disposições da lei, não há como calar mais uma muito séria palavra de alerta para os perigos da prosápia e da excessiva e, por vezes, enviesada mediatização.



sábado, 12 de fevereiro de 2022


Indiferença

"Como explicar que, a par de um atendimento reconhecidamente mais próximo e eficiente
por boa parte do funcionalismo público, seja, paradoxalmente, na área da diplomacia
que tamanha aberração acontece? Que de forma tão grosseira se manifesta, não apenas a ineficiência funcional,
mas a desoladora indiferença, a desgraçada falta de coração, de formação, de educação?

Num Estado que se diz humanista, não há lugar para uma diplomacia fria, dura,
indiferente a quem, com dois, um ou quase nenhum pulmão caminha
por uma rua cheia de pessoas que não choram, e impede que, pelo menos,
sobrevivam juntas pessoas que poucas outras têm a quem dar a mão.
"


Da missão da comunicação social já muitas linhas se escreveu. Também das múltiplas formas como é desvirtuada tão nobre missão, formas essas que a fértil imaginação humana não pára de, pela negativa, enriquecer. Chegaram, mesmo, as coisas a ponto de serem criados produtos informativos, impropriamente chamados polígrafos, cuja única função é averiguar e denunciar mensagens e notícias falsas, num Mundo cada vez mais profundamente mergulhado na dúvida quanto à bondade das intenções de quem noticia, seja nas mais agressivas redes sociais, seja na teoricamente mais cândida blogosfera, seja, enfim, na teoricamente bem mais responsável imprensa tradicional.

Nada disto é novo
Nada disto é novo, tal como novo não é o facto quase apenas o que é mau ser capaz de atrair a atenção de uma cada vez menos educada e menos diferenciada opinião pública, essa solitária mole de mais ou menos desgraçados mas quase sempre desengraçados seres humanos ávidos de qualquer coisa picante, ou lastimável, ou terrível que lhe permita sacudir, ainda que por breves momentos, a poeira que lhes forra o vazio do coração.

Tornam-se, assim, raros os casos em que os mais consagrados media se podem, do ponto de vista económico, dar ao luxo de, a um ou outro caso pessoal verdadeiramente desesperado, dedicar algumas letras por entre os pingos da chuva desta bombástica e inesperada maioria absoluta que até as repetitivas e já nauseantes notícias da pandemia para enésimo plano acaba por conseguir relegar.

- x -

Assim aconteceu há uns dias, com o semanário Expresso*), relativamente à notícia da impossibilidade de obtenção de visto para entrada em Portugal por parte de uma senhora guineense que pretendia apoiar a filha doente; com carinho e companhia, já que pouco mais terá para dar. Uma filha que mora sozinha num primeiro andar sem elevador que, pelas escadas, mal consegue alcançar. Uma filha, que há vários anos, aguarda um indispensável transplante pulmonar, e a quem, mesmo com o aparelho portátil de fornecimento de oxigénio regulado na potência máxima, o ar falta até para se deslocar até a uma biblioteca para estudar.

Enquanto espera e quase desespera, Isabel Bapalpeme luta para não enlouquecer, agarrando-se à penosa frequência e estudo de um curso profissional que poderá, um dia, permitir-lhe outros horizontes vislumbrar.

Apesar de, cinicamente, tendermos a dizer que temos muita pena mas que a pobreza é preocupação do Estado e cada um de nós, individualmente, pouco ou nada poder fazer para a debelar, a verdade é que, a menos que não passemos de bestas insensíveis, notícias de casos de pobreza sempre nos hão de entristecer e de, de longe a longe, fazer pensar. Mas, por cruel que possa parecer, a verdade é que casos de pobreza como este - em que, até há poucos dias, os trabalhos de casa eram feitos no telemóvel por nem um pequeno computador ter para estudar - não são notícia, ou os noticiários ocupariam as emissões de dias inteiros, e seriam necessários vários volumes para publicar os jornais.

O que torna este caso escabroso é, antes, o facto de, apesar das diligências levadas a cabo junto da Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau alertando para a gravidade da situação e para a necessidade fundamental da presença da família, vai para quatro anos que a Mãe de Isabel vê o seu visto de entrada em Portugal negado pelas autoridades: ora por não ser possível comprovar a intenção de abandonar o território português antes de o jamais concedido visto caducar, ora porque o tipo de visto pedido não era o adequado e ninguém do facto se dignou esclarecê-la, ora porque há documentos em falta no processo, ora sabe-se lá por que mais que nem vem nos jornais.

Píncaros do Ridículo
Nos píncaros do ridículo da ação do autoproclamado humanitário Estado, lá continua Isabel Bapalpeme, ao fim de quatro longos anos, privada da companhia clinicamente imprescindível da Mãe apenas porque esta, em lugar de um visto de tipologia E7 terá  pedido um visto de tipologia "E" não sei que mais.

O editor de quem escreveu que "a juventude esbate-se, o amor esmorece, as folhas da amizade tombam, mas todos sobrevive a esperança secreta de uma mãe" esqueceu-se, por certo, de enviar um exemplar da obra à Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros...

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Eis senão quando, humilhado pela atenção que a inenarrável indiferença de responsáveis e subalternos a este caso trouxe, salta o bem-aventurado humanismo mediático do dito Ministério a dar instruções urgentes à Embaixada no sentido de proceder, sem mais demora, à tão desejada  emissão do visto.

Mas, qual visto?... Isto só visto.

Logo a Embaixada liga, à Mãe a marcar uma hora para lá comparecer a fim de lhe ser dado o visto nunca visto; comparece até antes da hora; fá-la o segurança esperar mais duas, alegando não ter sido informado de qualquer agendamento; por causa desta comezinha questão, telefonemas ao mais alto nível da diplomacia são trocados; e a mãe, Sábado Babalpeme, lá acaba atendida por um qualquer funcionário.

Sucesso, finalmente? Não...

Sábado não foi atendida por um simples funcionário qualquer: foi atendida por um funcionário tão qualquer, mas tão qualquer que, ao que parece, em lugar de, perante a dificuldade, se ter mexido como a relevância e urgência do caso requeriam, se terá limitado a, uma vez mais, recusar a entrada do pedido de visto por... falta de documentação.

Depois de todos os cordelinhos que a notícia do Expresso tinha feito puxar em bem altas esferas, um enferrujado mas todo importante funcionário limita-se a entregar à Mãe uma lista do calvário administrativo todo que teria, ainda, de percorrer. Ela, que nem sabe ler...

Corre, então, o Semanário junto do altivo e displicente Ministério, o qual, pressionado, logo transmite, à Embaixada ordem de que, para emitir o visto, nada mais exija do que o relatório médico já em seu poder.

Estarão, finalmente, criadas todas as condições? Talvez...

A verdade, porém, é que o visto ainda não foi emitido, mas apenas foi processado na Embaixada: falta o "parecer das entidades competentes em matéria de entrada de estrangeiros em Portugal, aguardando-se a emissão a breve trecho"*).

Decididamente, a débil simplificação administrativa cá do Retângulo não chega aos casos que, mesmo desesperados, apenas se resolvem depois de um considerável arraial...

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Terão sido, possivelmente, situações como esta que inspiraram a definição segundo a qual "diplomacia é a arte de dizermos ´lindo cachorrinho' até encontrarmos uma pedra". Seria, porém, de pensar que Portugal fosse um estado uno, senhor de uma identidade própria, desejavelmente homogéneo onde quer que se encontre representado, e seja em que circunstâncias for.

Como explicar, então, que, a par de um atendimento reconhecidamente mais próximo e eficiente por boa parte do funcionalismo público, seja, paradoxalmente, na área da diplomacia que tamanha aberração acontece? Que de forma tão grosseira se manifesta, não apenas a ineficiência funcional, mas a desoladora indiferença, a desgraçada falta de coração, de formação, de educação?

Num Estado que se diz humanista, não há lugar para uma diplomacia fria, dura, indiferente a quem, com dois, um ou quase nenhum pulmão caminha por uma rua cheia de pessoas que não choram, e impede que, pelo menos, sobrevivam juntas pessoas que poucas outras têm a quem dar a mão.

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Ou será que a diplomacia anda de mãos dadas com o racismo?

(leia aqui o desenvolvimento)