A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que "colocar" não é,
Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso,
Simplicidade, está a tornar-se, cada vez mais, um conceito incompatível
com a noção de sucesso no funcionamento do elevador social. O que é simples não exalta, não conta, não tem valor.
Pior ainda, é que os embasbacados com a “cultura”
demonstrada por quem assim tão “bem” fala adiram à nova “moda linguística", sob
o olhar complacente, se não aprovador, daqueles a quem competiria zelar pela
pureza do idioma, mas que, ao invés, contemplam, embevecidos o que consideram evolução
da língua, e não passa, afinal, de simples mudança degenerativa. Ou seja: de uma mudança para
pior!
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Vem este arrazoado a propósito da mais ou menos recente condenação à morte da palavra “pôr”. Lembra-se o Leitor de quando, mais recentemente, ouviu na televisão uma ou outra forma deste verbo? E na boca de quem?
Pois não. É que as pessoas já não põem: colocam!
Colocam vidas em risco, dinheiro a prazo, fogo no armazém, palavras na minha boca, uma pedra no assunto; colocam pessoas em causa, em posição delicada ou sob vigilância; colocam imóveis no mercado, colocam os piscas antes de virar o carro, a vida coloca-lhes obstáculos e desafios, os treinadores colocam jogadores no “onze”; colocam alguém ao nível de outrem, colocam o Windows 11 no PC, e até os criminosos se colocam em fuga!
Ignoram estas gentes que as formas eruditas, precisamente por procurarem sê-lo, apenas devem ser utilizadas com parcimónia e, sobretudo, com critério, cuidando de que se não vulgarizem ou generalizem a ponto de perderem, por completo, a tal erudição; sobretudo quando proferidas por quem nem uma frase sabe articular, e destrata a gramática torturando-a e espezinhando-a muito além dos limites da dúvida ou, no discurso falado, da aceitável flexibilização.
De tanto quererem ocultar a ignorância, e de tanto quererem parecer cultos ou chiques, acabam, apenas, por mostrar... que o não são.
Esquecem-se - ou jamais souberam - de que o verbo colocar está associado a uma ideia de cuidado, de precisão na colocação ou instalação física de algo: com todo o cuidado e precisão, coloca-se um prato sobre a mesa, a loiça no armário, a primeira pedra no terreno de uma construção.
Ora, isto é bem diferente daquilo que sucede com o verbo pôr, destinado a apenas significar, genericamente, levar a determinado lugar - concreto ou abstrato -, ou lá deixar ou largar algo, sem especial preocupação quanto às circunstâncias em que é levada a cabo a ação.
Assim, e contrariamente ao que sucede com colocar, serve, também, o verbo pôr para significar, em linguagem corrente, vestir, incluir, acrescentar, expor, atribuir, ficar, chegar, começar e tantas outras ações.
Admitamos que será, porventura, este caráter corrente associado ao verbo pôr que leva muitos falantes do português - e,
sobretudo, do brasileiro que para cá as telenovelas vão trazendo - a considerar que colocar é, daquele, uma forma mais elaborada. Menos simples, mais... sofisticada, pensam eles.
Ora, isto não é verdade. Nem pode ser, já que o próprio verbo pôr, enquanto forma corrente, é em si mesmo uma substituição genérica, abrangente, mais cómoda, das diversas formas mais específicas, menos cómodas, mais difíceis; ou mais eruditas, se assim quiserem chamar-lhes. Aquelas de que nem sempre a gente se lembra a tempo e, por isso... coloca tudo!
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A erudição não nasce do comum, do geral, pelo que colocar não é, de modo algum, uma forma genérica supostamente erudita do mais popular pôr. Se o facilitismo é, já de si, nefasto e pernicioso, pior fica, ainda, quando lhe é apimentado com a presunção.
Formula-se ou apresenta-se uma dúvida, mas não se coloca. Pôr uma camisola é a forma corrente de vestir uma camisola, pelo que a alternativa a este pôr não será colocar uma camisola, mas sim vesti-la.
Põe-se os piscas do carro, ou liga-se, mas não se coloca os pisca-piscas, a não ser durante a montagem do automóvel. Nesse processo, sim: coloca-se os pisca-piscas em lugares físicos bem precisos e determinados da carroçaria, de acordo com o projeto.
A esta conclusão conduz, também, o facto de, para pôr, apresentarem esses e outros dicionários cerca de quatro dezenas de significados, enquanto, para colocar, mais não propõem do que, quando muito, uma escassa dúzia. A serem, de facto, sinónimos, para um e para outro a quantidade de significados seria, presumivelmente, igual ou, pelo menos, razoavelmente equivalente, como é bom de ver.
Não é, porém, o verbo pôr a única vítima desta moda
das colocações.
Colocam-nos perguntas, em lugar de as formular ou fazer; colocam artigos na lista, em lugar de pôr ou incluir; colocam textos em inglês, em lugar de os pôr ou retroverter; colocam
questões, em lugar de as formular – embora até já haja quem faça, questões, sabe-se lá por que estranho processo de fabricação.
Em lugar de apresentar, atribuir, fornecer, dar, fixar, colocam divergências, responsabilidades, garantias, situações, objetivos e tantas coisas mais. Até já há quem coloque baixas médicas - pergunto-me onde! -, em lugar de as apresentar; ou meter, na forma popularmente aceite.
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Tudo isto não passa, naturalmente, de uma reflexão, de uma visão pessoal da problemática enunciada, procurando explicá-la mediante um olhar crítico sobre a sociedade contemporânea, visão essa destinada a ser, por quem com ela não concorde, contestada de forma fundamentada no conhecimento científico - ou, pelo menos, mais válido do que outras meras opiniões.
Certo, certo, parece ser que o esfumar do verbo pôr e dos outros que, a esmo, com esforço mínimo e a seu bel-prazer, cada qual substitui por colocar irá continuar imparável, paralelamente à ânsia galopante de aparentar saber-se o que se não sabe, e de parecer o que se não é.
Continuará, sim: e um dia ouviremos, até, falar de galinhas colocadeiras, as tais que, em vez de, simplesmente, pôr os ovos, de os largar algures no ninho, os colocam, quiçá por um processo mais sofisticado.
Agora, dêem-me licença, que tenho de ir... colocar a mesa para o jantar!










