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segunda-feira, 15 de agosto de 2022


Ensinar sem Saber, Governar sem Querer

Continuamos dominados por uma política de facilitismo e de escancarar de portas à confusão entre ensino e educação.

Parecendo ignorar que existe desemprego entre professores, e apesar de garantir que as turmas do próximo ano já têm quase todos os professores atribuídos*), prepara-se o nosso absoluto Governo para, na forma desajeitada que lhe é habitual, reduzir drasticamente o nível de habilitações exigidas para lecionar no ensino secundário*).

Em lugar de se requerer a habilitação própria, passa a considerar-se suficiente a avaliação em função do "percurso formativo dos candidatos", apenas tendo em conta as disciplinas relacionadas com a disciplina a lecionar.

Por outras palavras, tira-se umas cadeiras que já se sabe que irão ter saída, manda-se às malvas o resto do curso e passa-se a, nos termos da lei, poder ser colocado como professor do ensino secundário.

Assim, e à boleia de uma alegada dificuldade pontual em contratar professores licenciados para ministrar aulas de informática, passaremos a poder ter, ao que parece em qualquer disciplina, docentes não licenciados, muito ao jeito daquilo que aconteceu, com os resultados sobejamente conhecidos, pouco depois de 1974, tema que já amplamente desenvolvi a propósito do desempenho dos magistrados judiciais portugueses nos acontecimentos que antecederam a fuga de João Rendeiro.

A manifesta falta de formação, em áreas fulcrais, da trupe de incompetentes tecnocratas que preside aos destinos desta mole de passivos e subservientes eleitores que lhes vai assegurando o pré, não lhe permite compreender que um professor licenciado detém uma cultura mais abrangente, se encontra mais documentado, mais instruído em áreas relacionadas com a dominante na área que escolheu, e não apenas nesta. Encontra-se, assim, mais apto a lecionar, a passar a mensagem por forma a motivar os alunos, não apenas a empinar, mas a investigar, a ampliar, eles mesmos, o leque de conhecimentos, assim se tornando, potencialmente, indivíduos aptos a um desempenho profissional que honre e eleve lá por fora a marca "Portugal", sem o que jamais passaremos da cepa torta, seja no curto, no médio ou no longo prazo.

Tudo isto, teoricamente, já se sabe, uma vez que, eivadas das maleitas causadas pelo destrutivo virus de Bolonha, as licenciaturas de hoje mal afloram o nível de exigência de outrora, antes de mais por pouco haver quem saiba, de facto, ensinar e, sobretudo, educar.

Além do mais, medidas destas, sobretudo com caráter geral, violam frontalmente o princípio de igualdade, na medida em que conferem oportunidades iguais a indivíduos com competências supostamente desiguais. Fazem tábua rasa do esforço suplementar investido, durante anos, por quem se licenciou com o objetivo de ir, um dia, lecionar, o que as torna, também, injustas e desincentivadoras para quem considere licenciar-se.

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Se não existem professores de informática em quantidade suficiente para fazer face às necessidades, houvessem os sucessivos governos tratado de, atempadamente, incentivar inscrições nas licenciaturas nessa área, em lugar de se limitarem a deixar andar e correr, agora, atrás do prejuízo.

A liberdade de escolha é um direito essencial em qualquer democracia, mas não pode ser confundido com o direito dos governos a demitir-se da função de sensibilizar os governados para as atuais e previsíveis necessidades do Estado.


terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

sábado, 4 de junho de 2022


Em Defesa do Idioma

Vale o que vale, mas não deve passar em claro a tentativa da França no sentido de expurgar o idioma da enxurrada de anglicismos*) importados mormente através dos canais associados à informática e às redes sociais - aos quais haverá que juntar, a desenfreada proliferação de emojis e, no caso português, de brasileirismos atirados a esmo.

Não será, propriamente, animadora a previsão de acolhimento pela restante população da imposição, aos funcionários públicos, da utilização de expressões como joueur professionel em lugar de pro-gamer, ou de joueur-animateur en direct para substituir o bem mais simples streamer. Pode, até, dizer-se com propriedade que a coisa é pouco prática, que gasta mais tinta, que demora muito tempo a dizer e uma infinidade de argumentos contrários absolutamente razoáveis.

A iniciativa é, não obstante, meritória, quanto mais não seja por procurar quebrar a incompreensível inércia cúmplice por parte daqueles a quem cumpriria zelar pela preservação dos idiomas, e que a todas estas agressões vão, passivamente, assistindo, chegando ao ponto de adotar o indesejável, de defender o indefensável, de aplaudir uma deturpação que nada mais favorece do que a ambiguidade, a perda de identidade cultural e linguística, enfim, uma descontrolada e cada vez mais criticada globalização.

Ainda que provavelmente condenada ao insucesso, seria bom que, por cá, a iniciativa levasse a alguma calma, ponderada e séria reflexão...


Não perca, no correspondente separador no topo desta página,
outros artigos polémicos sobre diversos temas relacionados com a

LÍNGUA PORTUGUESA

quinta-feira, 21 de abril de 2022


20 Palavras em Latim que Usamos Frequentemente

Após este título, lista aqui um sítio dito de cultura: Ad aeternum; Agnus Dei; Alibi; a priori; a posteriori; a fortiori; ad hoc; Curriculum Vitae; Cogito, ergo sum; Carpe diem; Ex libris; Errare humanum est; Ex nihilo nihil fit; in extremis; In loco; Ipsis verbis; Quid pro quo; Sine Qua Non; Sine die; Veni, vidi, vici.

Há que dizer, antes de mais, que a ideia de divulgar, junto da população menos atenta a estas coisas, temas da língua portuguesa em linguagem que se esforça por facilitar a compreensão e a aprendizagem, aparece como uma iniciativa sem dúvida louvável, faceta que seria injusto não salientar. Isto, apesar de essa linguagem se afastar, por vezes, tanto de algum cuidado na escrita que acaba por redundar em erros gramaticais ou, pelo menos, num facilitismo excessivo, numa ausência de rigor e de precisão na utilização do mesmo idioma que, supostamente, estariam a ensinar - como é o caso, por exemplo, da utilização, no referido título, de usamos em lugar do quiçá mais apropriado utilizamos, uma vez que utilizar de palavras as não torna usadas ou desgastadas, assim sendo aqui preferível o verbo utilizar.

Mas como aceitar que o à-vontade seja tal que nem se trate de cuidar que o título corresponda ao que é apresentado? Vejamos.

Palavras diferentes, não são vinte: são mais de quarenta; e, se se referem a artigos da lista compostos por uma única palavra, resumem-se a um: Alibi. Tudo o resto são locuções, conjuntos de mais de uma palavra.

Além do mais, tem o caro Leitor por hábito utilizar frequentemente a expressão Ex nihilo nihil fit? Sabe, pelo menos, o que significa? Ou Agnus Dei, comum na missa em latim que há muito tempo praticamente acabou? Quid pro quo? Carpe diem? "Frequentemente" utilizadas?

Mas, por quem, afinal?

E o alibi? Por que estranha razão estaremos, a proferi-lo, a utilizar a forma latina, quando, também em português, se encontra dicionarizada? Será que quando dizemos vida estamos, também, a proferir ou escrever uma palavra espanhola que, em português, é frequentemente utilizada?

Mesmo as restantes, serão elas "frequentemente" utilizadas pelos destinatários do artigo? Ou, de outra forma visto, que interesse terá um artigo como este para as pessoas que tais "palavras" utilizam "frequentemente"?

Nem vou gastar o meu tempo e a paciência do caro leitor a referir-me aos numerosos artigos dos dez mais isto ou dos trinta mais aquilo, tudo de acordo com critérios absolutamente subjetivos e sem a mais pequena parcela de fiabilidade, a não ser para quem os escreve.

Lamentavelmente, estas coisas são ad nauseam - esqueceram-se desta, que é, pelo menos, mais utilizada do que Ex nihilo nihil fit... - pespegadas naquela coisa chamada Discovery da Google, que me aparece cada vez que alguma coisa no motor de busca vou procurar.

Desta forma lamentável se desvaloriza, se subverte uma ideia com inegável potencial, sacrificando-a à vontade ou à necessidade de publicar à viva força, "frequentemente"; de manter as audiências e o interesse da Google e dos anunciantes que, no meio de muito disparate, as coisas mais incríveis e desinteressantes vêm divulgar.

Pobre língua portuguesa, e pobre de quem ainda pensa que, a páginas dessas, alguma coisa de verdadeiramente válido ainda irá buscar...


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LÍNGUA PORTUGUESA

quarta-feira, 6 de abril de 2022


Luís de Camões


"Um rei fraco
faz fraca a forte gente
"

Luís de Camões*)              
(Lusíadas, III 138)                       


Referia-se o Poeta a Dom Fernando I*), no tempo em que o poder executivo se encontrava nas mãos do monarca, e não nas do chefe do governo.

Naquele tempo, não existiam eleições; tampouco partidos políticos aos quais, na sequência de indesejáveis resultados daquelas, o rei tivesse de se coligar, ficando refém de cedências desmesuradas e fortemente lesivas do interesse nacional.

Naquele tempo, também havia, por toda a parte, escaramuças, guerras e invasões; mas, dominada pelo soberano, a população que aguentasse os impactos bélicos, políticos, sociais e económicos, já que outro remédio não tinha, e a vida  fácil não passava de uma ilusão.

Naquele tempo, existiam ainda mais pestes e pragas sanitárias; mas o incipiente estágio da medicina pouco ou nada permitia fazer para as controlar, pelo que, sob esse aspeto, pouco importava se o rei era forte ou fraco, competente ou não, já que impotente seria, certamente, para resolver problemas de tamanha dimensão.

Naquele tempo, não havia, liberdade, direitos humanos, e eram muito elementares a justiça, a educação e os outros pilares de uma democracia então inconcebível, e da qual, hoje, muita gente não tem a mais ínfima noção.

Hoje, sabe-se que todas estas novidades existem; e que, mesmo em detrimento da ordem pública e da paz social, muito tuga que por aí anda delas chorudos proventos procurará extrair, em lugar de pensar como poderá assegurar o respetivo gozo aos concidadãos.

Hoje, depois dos brutais impactos recentemente sofridos, há fundos europeus generosamente distribuídos em volume suficiente para, não apenas procurar minorar os efeitos daqueles, como para proporcionar oportunidades únicas de suster o nosso já proverbial trambolhão económico, seja absoluto, seja relativo face aos parceiros da União.

Hoje, mais do que nunca, tornou-se de suma importância, para o Estado, ter ao leme um primeiro-ministro que seja, não apenas popular, habilidoso e flexível, mas, pelo menos, um gestor convincente, recrutador eficaz, estratega competente, administrador incorruptível, educador culto e informado, legislador experiente.

Hoje, como naquele tempo, um governo chefiado por alguém ideologicamente débil, politicamente elástico, gestor inseguro, justiceiro complacente, comunicador fechado, planeador disperso, andarilho ausente, apenas faria ainda mais fraca a nossa cada vez mais fraca gente.

terça-feira, 29 de março de 2022


Médicos sem Fronteiras à Moda Tuga

Desde pequeno que me ensinaram a nada esconder do meu médico, pois só assim poderia ele garantir, dentro daquilo que é humanamente possível, um diagnóstico correto e uma terapêutica eficaz. Esta necessidade de uma comunicação plena e perfeita é tão importante na relação entre médico e paciente, que, para que flua sem barreiras de qualquer espécie,  se tornou necessário instituir a figura do segredo profissional, indispensável ao exercício da profissão.

Como explicar, neste quadro, a recente decisão da Ordem dos Médicos de permitir que clínicos ucranianos refugiados em Portugal aqui exerçam medicina sem um razoável domínio da língua portuguesa? *) Num tal cenário, que comunicação irá, efetivamente, acontecer?

Constituída que é por médicos, com quem se encontra, antes de mais, comprometida a Ordem? Qual a sua missão? O que se espera, primeiro, da Ordem dos Médicos: que se ocupe do acolhimento dos refugiados ucranianos, ou que cuide de assegurar a qualidade do exercício da medicina em Portugal?

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Será legítimo esperar que o inglês da esmagadora maioria dos utentes dos hospitais e centros de saúde portugueses - para não falar da boa parte da população mais idosa ainda analfabeta... - lhes permita, com um mínimo de fiabilidade, informar um médico ucraniano dos males que o afligem?

Serão, unicamente, os males físicos os que um médico trata? Apontando para o pescoço, talvez o paciente dê a entender que lhe dói a garganta... ou será uma bem mais grave dificuldade em engolir? Neste caso, como saberá o clínico se se trata de uma consequência de tensão emocional e quais os fatores que poderão estar a provocá-la, ou de algo bem pior? Passar-se-á a fazer exames por tudo e por nada? Será isto que a Ordem quer para a medicina em Portugal?

Esta autorização popularucha, demagógica e deletéria da Ordem não encontra justificação minimamente aceitável na vontade de acolher e integrar as vítimas da guerra, antes inevitavelmente deteriora a qualidade dos cuidados de saúde enquanto os médicos ucranianos "vão aprendendo português", nas palavras do Senhor Bastonário que nada mais exemplificam do que a lastimável propensão bem portuguesa de pôr o carro à frente dos bois.

Que justificação poderá, ademais, encontrar-se para desafiar o Estado, "através dos professores, a organizar cursos de português para estes médicos ucranianos"? Através dos professores, ou através dos doentes, assim trespassados por uma formidável espada no seu direito a ser devidamente tratados em segurança?

Quanto tempo levarão estas acções de formação? Entretanto, transforma-se em vítimas os pacientes?

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Mesmo que a ideia seja trabalharem junto a colegas portugueses, sempre acabarão aqueles médicos por empecilhar e atrasar o trabalho destes, agora arvorados em tradutores - partindo do princípio de que, numa área tão sensível, ucranianos e portugueses se entendem na perfeição num idioma que não é o deles.

Além das consultas, haverá, por certo, na medicina tarefas que estas vítimas dos desmandos de um alucinado e narcísico ditador possam desempenhar sem comprometer a qualidade da prestação médica do Serviço Nacional de Saúde. Se não houver, que tal o mesmo Estado que irá promover o ensino da língua portuguesa pensar em subsidiar essa formação e assegurar o sustento dos médicos a quem a formação se destina?

Meritório é, sem dúvida, o esforço benévolo de integração de refugiados de um tão desgraçado conflito, mas jamais à custa da saúde dos que cá vivem, incluindo dos imigrantes ucranianos por cá há muito estabelecidos. Todavia, e independentemente da elevação dos ideais que possam ter estado na génese da disparatada decisão anunciada pela Ordem, nada, mas nada, deverá permitir que estes possam intervir, negativamente, naquilo que é sagrado em tão nobre ocupação.

"Estamos de acordo que esses médicos tenham integração enquanto estão a aprender a língua, justamente depois de terem os seus cursos reconhecidos pelas faculdades de medicina, e que possam, com a ajuda dos seus tutores, contribuir para o Serviço Nacional de Saúde" não passa, pois, da expressão, por parte do Senhor Bastonário, de uma permissividade, de um facilitismo, até de uma certa ignorância que, através da Ordem, ao exercício da medicina nada de bom prometem trazer.

domingo, 23 de janeiro de 2022


E Jacuzzi, Tem?

Um dia, a moda ainda pega, neste paraíso do facilitismo escondido sob a capa de um humanismo desmesurado, além de tudo o que é minimamente exigível por quem queira, como alardeia, assegurar a segurança e o bem-estar da generalidade da população.

A coisa terá começado quando aquele que disputa, com um outro também a braços com a justiça, o título de ex-banqueiro mais conhecido da praça*) - um e outro talvez não pelas melhores razões... - se lembrou de andar por aí a indagar das condições do estabelecimento prisional onde teria mais ou menos como certo ir parar depois de condenado pelas trampolinices que andou a fazer em atividades dignas do mais despudorado amigo do alheio (e, como a sentença condenatória já transitou em julgado, já posso omitir o eterno "alegadamente").

A esse, de pouco o cuidado terá servido, diga-se de passagem, se atentarmos na alhada em que acabou por se meter*) ao querer fugir com o rabo à seringa, acabando por ir parar a uma cadeia bem pior do que aquela onde não quis cumprir pena.

Ora, entre ex-banqueiro e ex-ministro a diferença não será assim tão grande - alguém terá pensado. Vai daí, um pobre governante que nem o suficiente conseguiu reunir para satisfazer a pesada caução milionária que lhe fora imposta por suspeitas de ter feito umas coisas menos bonitas - provavelmente em conluio com um dos anteriores -, não terá resistido à intolerável pressão psicológica de, apesar do tempo frio, estar instalado numa palhota ali mesmo ao pé do quase Mediterrâneo e, por causa dessa estupidez da prisão domiciliária, nem um simples mergulho o deixarem dar.

Na palhota do Minho, terá pensado, é que lhe apetecia agora estar!...

Meu dito, meu feito, e vá de convencer não sei quem de bom coração a deixá-lo mudar-se para lá, a fazer fé no que li por aí*), num viatura da Guarda Nacional Republicana, acompanhado da respetiva tripulação - e, talvez, de uma escoltazita ou guarda de honra, pois então!

Terá, ao menos, uns trocos para pagar as despesas de deslocação?


sábado, 27 de novembro de 2021


Rendeiro: No Rescaldo de Uma Fuga

 

Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir o suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios. Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo condenado após amplamente discutida e validada a prova

Ao dizer que os juízes não obedecem a ordens, não está, implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das medidas de coação impostas ao Condenado?

Impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar


Introdução

1. Introdução


2. Enquadramento

    2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial
    2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses
    2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional
    2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais
    2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial
    2.6. Do Processo Penal
    2.7. Da Discricionariedade

3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes

    3.1. Síntese Cronológica
    3.2. O Condenado
    3.3. Oito Legítimas Interrogações
    3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados
    3.5. Os Políticos

4. Conclusão e Propostas



1. Introdução

Embora seja praticamente impossível não estarem direta ou indiretamente presentes, independentemente do assunto da conversa, são os dois pilares fundamentais da sociedade e, ao mesmo tempo, os dois temas sobre os quais, dada a condição miserável em que em Portugal se encontram, mais me custa escrever.

O primeiro, é a educação, pensada para que as pessoas saibam comportar-se no melhor interesse da comunidade; o segundo, a justiça, indispensável para que elas sejam encorajadas a assim agir, e sancionadas quando não quiserem fazê-lo.

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Começamos, supostamente, a ser educados em casa, onde cada vez menos é possível encontrar progenitores com qualificações educacionais, culturais e, até, funcionais mínimas para uma educação saudável e efetiva saberem assegurar, já que, para poderem procriar, as pessoas não estão obrigadas a apresentar o diploma de uma formação em educação infantil e juvenil. E mesmo que estivessem...

Segue-se, frequentemente, a creche ou o jardim de infância, onde, ainda hoje e mau grado as avançadas, certificadas e avalizadas novas teorias quanto à melhor forma de preparar para a vida os rebentos, a educação é transmitida por educadores, mesmo diplomados, que, ainda hoje e com a maior das descontrações, os ensinam a cantar o “Atirei o pau ao gato / Mas o gato não morreu / Dona Chica assustou-se / Com o berro, com o berro que o gato deu”, como ao passar por uma dessas escolas há não muito tempo e sem grande espanto ouvi.

Confrontados com belas e ternurentas canções como esta, não será de admirar, anos mais tarde, a propensão dos jovens, outrora dóceis infantes, para a violência e para a destruição - para as quais também são atraídos graças, em não pequena parte, à necessidade de gerar lucros que assegurem a prosperidade de certas empresas que produzem e comercializam conhecidos, bárbaros e sumamente violentos jogos para consolas e computadores.

Mais tarde ainda, alguns acedem às profissões jurídicas, em cujo exercício elaboram leis, dirigem inquéritos, acusam, defendem, julgam e decidem os destinos de muitos dos tais que escolhem portar-se mal em clara ofensa dos legítimos interesses de quem, melhor ou pior, goza da proteção que o direito a esta sociedade de todos nós se destina a garantir.

Personalidade do Jurista
Vai-se, entretanto, a personalidade do jurista formando, numa vivência quotidiana em muitos aspetos idêntica à de qualquer outro mortal, através da absorção e integração dos dados e impactos da experiência com as características essenciais de cada um, supostamente buriladas pela tal educação, pela formação pessoal que, nos alvores da vida, lhe deveria, como a todos nós, ter sido assegurada.

Mas que nem sempre foi…

 

2. Enquadramento

2.1. Da Necessidade da Existência de Limitações ao Exercício da Magistratura Judicial

Contrariamente ao que se entendia no tempo em que o Sol girava em torno da Terra, os juristas, designadamente os magistrados, são seres humanos como quaisquer outros, que começaram por ser crianças e jovens educados e formados como quaisquer outros, para o bem de uns e para o mal e de outros.

A sua atividade profissional visa – também como, teoricamente, qualquer outra - o serviço da coletividade de acordo com princípios e normas previamente estabelecidos, que a mesma atividade definem e condicionam. Não são, como antigamente era uso olhá-los, criaturas quase divinas, dotadas de incomensurável sapiência e da autoridade dela decorrente para, com quase total discricionariedade e autonomia, decidir da sorte dos seus semelhantes cujas ações hoje lhes compete identificar, avaliar e sancionar à luz do princípio da legalidade, com objetividade, imparcialidade e lucidez.

Não se afigura, assim sendo, aceitável que alguns deles tendam, ainda, a comportar-se como se divinos fossem, porquanto não deixe de ser verdade que o destino de quem das suas decisões depende apenas possa ser decidido por alguém que, estritamente naquilo que importa à relação específica julgador-julgado, esteja acima dele, isto é, que detenha um ascendente legitimamente conferido pela coletividade em que ambos se inserem: um poder tamanho e com tão expressivo grau de independência que, porventura mais do que qualquer outro poder, deva ser exclusivamente conferido a quem souber exercê-lo com a indispensável idoneidade, autoridade, sapiência e moderação.

Mérito Pessoal do Juiz
Enquanto o mérito funcional do juiz dimana, por inerência, do cargo que ocupa, o mérito pessoal e profissional apenas poderá ser granjeado por via da competência, do brio, da isenção.

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No entanto, e tal como, nos mais variados planos, acontece com a generalidade dos mortais, a personalidade, a educação e a formação de cada magistrado judicial diferem substancialmente das dos restantes. Por isto mesmo se encontra, quiçá com indesejável frequência, a par de indivíduos incontestavelmente sérios, competentes, sabedores e, sobretudo, sábios, outros indevida ou insuficientemente formados, incompetentes, corruptos, e, até, conhecidos ou mesmo, condenados por comportamentos comprovadamente lesivos dos interesses daqueles cujo cumprimento de deveres e exercício de direitos lhes cumpre, paradoxalmente, exigir e assegurar.

Profundamente incrustados na mais funda essência da Humanidade, estes e outros vícios são tão suscetíveis de afetar o desempenho de um juiz, como o de quem exerce qualquer outra profissão. Torna-se, desta forma, essencial para a transparência, para a estabilidade e para a uniformidade e equidade na administração da justiça que os poderes do juiz, sejam, em tudo quanto não prejudique a eficácia global das decisões, estritamente limitados por legislação imparcial, clara, precisa, obrigatória, coerciva, e, em cada lugar e época, adequada à efetiva realidade social e cultural dos decisores.

A maior dificuldade reside, necessariamente, em assegurar o equilíbrio entre, por um lado, a previsão dos limites formais indispensáveis ao exercício da magistratura judicial e, por outro, a necessidade de garantir a aplicação de uma justiça não apenas adjetiva, mas substantiva, que saiba extrair conclusões válidas em presença do eterno confronto de interesses entre a sociedade e o indivíduo que nela vive e nela se forma.

Não foi um poeta alemão que disse “Atentai, Senhor, que o interesse do Estado se não confunda com justiça”?*) Pois o inverso não deixa de ser verdadeiro: o interesse do particular em manter uma liberdade a que perdeu o direito - especialmente o interesse de um indivíduo já condenado e com a sentença confirmada em, pelo menos, uma instância - não pode, em caso algum, sobrepor-se ao superior interesse de uma comunidade que, entre outras considerações, veria a sua segurança seriamente ameaçada por uma eventual fuga daquele à justiça; para não falar do convite, face à descabida impunidade e por via do deplorável exemplo, à propagação do ilícito a outros de moralidade idêntica à daquele que, no caso, o tiver praticado.

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A aplicação de uma justiça substantiva e com amplos poderes discricionários, implica maior responsabilidade, assim sendo vedado aos julgadores ceder à tentação do automatismo, do menor esforço, da letargia, do medo, até.

Sempre sem transigir perante a tentação do excesso - ou do protagonismo mediático -, há de o juiz assegurar uma judicatura que, insista-se, sempre no estrito respeito pelo princípio da legalidade, seja operante, interventiva; que se não contente com o não fazer ondas, com a decisão politicamente correta; que se não escude na pureza formalista do estrito e ineficaz cumprimento da lei por parte de magistrados que ajam como meros funcionários contratados para executar a tarefa menor que a administração da justiça, seguramente, não é.

Seria, por exemplo, incompreensível que, na fixação de medidas de coação visando a neutralização do risco de fuga de figuras públicas com substanciais meios de subsistência e já condenadas em primeira e, até, em segunda instância, se não vissem os condenados imediatamente privados, pelo menos, da posse do respetivo passaporte: não sendo, evidentemente, possível evitar completamente a fuga mediante a simples apreensão do documento, não menos difícil será vislumbrar razão objetivamente aceitável para que um tribunal mantenha as condições ideais para que ela se verifique.

Mas, acontece…

 

2.2. Da Formação dos Agentes Judiciários Portugueses

Independentemente da motivação subjacente e do facto de com ela se concordar ou não, a Comunidade Europeia decidiu, há não muito tempo, aumentar abruptamente a quantidade de licenciados, em qualquer área, mediante o processo de convergência académica iniciado com a celebração do acordo de Bolonha*) - o qual, como é sabido, reduziu, substancialmente, a duração da formação numa época em que, paradoxalmente, existe um cada vez maior acervo de conhecimentos a exigir maturada assimilação.

Ora, ainda que partindo do muito discutível pressuposto de que vivemos numa sociedade maioritariamente constituída por indivíduos devidamente educados e de elevada consciência social e cívica, é claro que uma inadequada, insuficiente ou apressada formação técnica em qualquer profissão inevitavelmente resultará em deploráveis níveis de eficiência e de eficácia no subsequente desempenho. Isto é tão evidente que não necessita de demonstração.

Por maioria de razão, numa área tão sensível e, paralelamente, de tamanha responsabilidade como aquela de que aqui falamos, qualquer défice estrutural ou pontual na derradeira fase da preparação para o exercício de uma profissão não tardará, algures no sistema judiciário, a fazer sentir os seus efeitos, arriscando-se a acarretar danos reputacionais muito sérios e dificilmente reparáveis para a credibilidade e para a confiança que sempre deverá ser possível e natural associar aos próprios conceitos de justiça e da sua aplicação.

O subsequente decaimento da qualidade da formação técnica dos juristas portugueses foi, recentemente, objeto de severo reparo pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, que propôs a exigência de maiores qualificações académicas*) aos candidatos a advogados que tiverem concluído a licenciatura já na vigência das alterações decorrentes do referido processo de aceleração da formação.

Por razões difíceis de descortinar – quem sabe se relacionadas com a tal ideia de intocabilidade da magistratura que dominava no tempo em que o Sol girava em volta de nós… -, parece a ninguém ter ocorrido que de igual défice formativo iriam, inevitavelmente, padecer os restantes agentes judiciários com formação universitária de nível superior, designadamente os magistrados judiciais, também eles passados a ser formados à pressa, pelo menos naquilo que ao tronco comum da licenciatura em Direito se refere.

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Recuando algumas décadas, não podemos esquecer-nos de que, mesmo antes do atual descalabro da qualidade da formação académica, já a maior parte dos magistrados e advogados mais veteranos agora em atividade em Portugal tinha sido, também ela, formada e ensinada depois de uma outra dramática degradação do ensino - porventura bem mais séria do que a de Bolonha - nos anos que se seguiram à Revolução dos Cravos que amplamente proclamou os direitos universais à educação, à justiça e à saúde.

Acontece que, embora todos eles sejam direitos essenciais cujo reconhecimento em Portugal há muito tardava, dos três, é o direito à educação o primeiro dos primeiros, pois que, sem ele, qualquer outro carece de sentido, seja por da sua existência nem nos consciencializarmos, seja por, mesmo conscientes, não reunirmos os requisitos intelectuais e formativos para o viver em plenitude.

Importante direito fundamental
Ora, esse importante direito fundamental à educação foi, naqueles tumultuosos anos, precipitadamente implementado, não se tendo cuidado de, minimamente, assegurar que, mediante um processo de formação progressivo e cuidado de novos professores, sempre haveria quem, efetivamente, educasse e ensinasse; e que, por esse processo, a qualidade da educação e do ensino se manteria - o que, manifestamente, não aconteceu.

Para tanto, era necessário tempo. Algo que o legislador de então não tinha.

Bem pelo contrário, a necessidade sentida por alguns políticos de apresentar serviço a um eleitorado sôfrego de mudança a qualquer preço – ainda que não houvesse com o que a realizar e com o que a pagar – fez o País mergulhar a pique num processo de artificiosas equivalências que, de equidade, nada tinham; e, por via delas permitiu-se que impreparados estudantes dos primeiros anos de bacharelatos passassem a poder lecionar, a poder educar, nos ensinos preparatório e secundário, sem qualquer competência técnica ou pedagógica para o fazer com um mínimo de qualidade e de rigor.

Entre largas centenas de exemplos, para lecionar a disciplina de Matemática no ensino secundário bastava ter aprovação em quatro cadeiras anuais do bacharelato em Administração e Contabilidade.

Era mau, era péssimo, e muitos o sabíamos. Mas, o que importava era que, sempre que era chamado a votar, o povo estivesse convencido de que, “agora, todos temos direito à educação”; ou, pensava-se, os votos não tardariam a refletir a sensação de incumprimento das promessas políticas alardeadas pela Revolução e que eram, afinal, aos olhos dos oprimidos a sua principal motivação. Uma vez mais, “por prevalecer o número de votos mais que o peso das razões”.

Claro está que, sem professores devidamente habilitados, andavam os governantes a vender ao povo gato por lebre, valendo o facto de, da esqualidez do resultado da lecionação, os eleitores se nem aperceberem, fosse pelo entusiasmo dos tempos então vividos, fosse por não deterem, para que dela se apercebessem, a necessária… educação.

As ditas equivalências, de efeitos irreversíveis e de facilitismo e demagogia inenarráveis, estiveram na origem de muitos dos efeitos nefastos - que, muitas décadas depois, perduram e, por muito tempo ainda, perdurarão - sobre o desempenho de indivíduos afetos às mais variadas profissões. Inevitavelmente, resultaram, também, em impactos demolidores na generalidade das áreas científicas, designadamente na do direito, com inevitável e bem patente prejuízo para a qualidade atual da justiça e da sua administração.

Três direitos fundamentais
Isto, sem esquecer, naturalmente, que, no topo do bolo da pressão política, e para agravar as coisas, à data militava também a cereja da necessidade premente de, para gáudio de certas universidades privadas pertencentes, quer a empresas, quer a cooperativas de oportunidade, produzir fornadas e mais fornadas de juristas e outros licenciados que, rapidamente, inundaram o mercado de trabalho e acabaram, como ainda acontece, a desempenhar subalternas e miseravelmente remuneradas funções.

Enfim, dos três direitos fundamentais referidos, só mesmo o direito à saúde se salvou do descalabro de então. Provavelmente por uma razão bem simples: enquanto o legislador pensava que, educado, estava ele e que, como individualmente interessado, provavelmente nunca os seus caminhos se cruzariam com os da justiça, já no que respeita a saúde, a médicos, a enfermeiros… nunca se sabe; e, ciente mesmo legislador de que, mais tarde ou mais cedo, todos inevitavelmente acabamos por ir parar às desejavelmente sábias mãos de Esculápio, lá nos livrámos, naqueles tempos, de, em nome de enviesadas ideias de igualdade e de democracia, ver maqueiros e auxiliares de enfermagem a realizar… cirurgias, pois então!

 

2.3. Da Credibilidade do Desempenho Profissional

O que antecede não pretende, evidentemente, desvalorizar a competência e a qualidade profissional de todos os portugueses ou, sequer, de todos os atuais profissionais da educação, da justiça ou de qualquer outra área afetada pelos desmandos desses gloriosos, mas conturbados, tempos. Pessoas competentes, empenhadas e com qualidades intrínsecas de relevo sempre existirão e, nos mais diversos campos, continuarão a formar-se; desde, claro está, que preferencialmente o façam por elas próprias, ou tenham a ventura de ter pais que devidamente as eduquem e mestres que saibam ensiná-las - o que, convenhamos, nos dias que correm não é coisa de fácil constatação.

Onde quer que se encoraje a formação, à pressa, de pessoas que venham a executar determinada tarefa, inevitável se torna que a quantidade se sobreponha à qualidade, quer da aprendizagem técnica, quer, não raramente, até da formação da personalidade.

Num tal quadro, a verdade é que, jurista ou não, ninguém pode ser responsabilizado por ter aterrado no meio de um destes dois pretéritos mas imparáveis processos de degradação pedagógica e educacional, nos quais alguém notoriamente impreparado acaba a formar alguém que, necessariamente, fica, pelo menos, tão impreparado como o formador e como aqueles que, por sua vez, poderá acabar a formar também; e assim sucessivamente, até chegarmos ao ponto desgraçado em que hoje nos encontramos – e nem será bom tentar imaginar como, daqui a poucos anos e por via de uma espiral aparentemente irreversível, pior ainda acabará por ser.

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Não obstante tudo isto, quando assume funções qualquer juiz digno desse nome já tem de saber ser e de saber estar: em público, numa audiência de julgamento; ao prolatar uma decisão; no gabinete, interrogando um suspeito ou arguido, na presença de outros juristas; perante colegas, em múltiplas situações. Sempre.

Porém, factos são factos; e, no que respeita à magistratura, a imprensa não cessa de apontar casos – que alguns de nós diretamente presenciaram ou nos quais participaram, até - que nos levam a concluir por uma falta de qualidade gritante, quer na fundamentação das decisões judiciais, quer nos apartes a despropósito lavrados nas mesmas ou proferidos ao vivo; quer, ainda, na quase sistemática falta de pontualidade de alguns juízes na comparência a audiências de julgamento, ou na arrogância prepotente e parola com que se dirigem aos seus interlocutores, arguidos ou não.

Esquecem-se ou ignoram, porventura, que é o alto cargo que deve ser dignificado pelo desempenho e pela postura do magistrado judicial: não o cidadão, simplesmente porque o ocupa. Esse, apenas é meritíssimo enquanto exerce a função ou nela se jubila, deixando de ser meritíssimo quando opta por diferente mister.

O respeito devido a um magistrado judicial não advém de um estatuto de superioridade que lhe seja conferido pelo simples facto de ter apresentado ao Estado que o emprega um qualquer certificado de habilitações: decorre da dignidade, imprescindibilidade e enorme responsabilidade social e humana de uma função que, nos dias de hoje, as notícias e aquilo que diretamente se lê nas decisões e vê nas salas de audiências sugerem estar nas mãos de cada vez mais pessoas menos aptas e pouco preparadas; muito relativamente idóneas para, com eficácia, competência e, sobretudo, discernimento e sensatez, exigir de cada um aquilo que deve à sociedade, e a esta aquilo que deve a cada um.

Porventura mais do que qualquer outra atividade, médicos, professores e juristas hão de, sempre, estar acima de qualquer dúvida quanto a eventuais défices de idoneidade ou de competência; e, o que os torna idóneos e competentes, é a exigência, pelos próprios e por terceiros, de excelência em todas as vertentes do desempenho das suas nobres profissões.

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Para a lei ser eficaz, importa que haja quem a aplique, não propriamente prolatando espampanantes e pesadas sentenças, mas, sobretudo, garantindo que, seja a sentença qual for, ela será, efetivamente, executada.

Penal ou Não
Penal ou não, uma sentença não cumprida escarnece da justiça, do sistema judiciário, de toda a sociedade, cuja segurança e estabilidade ficam comprometidas quando se não se consegue a execução, pedra de toque de toda a construção jurídica, sem a qual o edifício normativo rapidamente se esboroaria por carecer de qualquer utilidade.

Acontece que, apesar de aparentadas no direito, a função de um magistrado judicial não é comparável à de um notário ou à de um conservador, salvo o devido respeito por estas importantes profissões. Enquanto aos últimos compete aplicar e fazer cumprir procedimentos estritos, inalteráveis e com praticamente todas as possíveis cambiantes dos atos previstas em códigos específicos, o mesmo acontecendo como as circunstâncias suscetíveis de os afetar, ao primeiro cumpre interpretar a lei e aplicá-la às circunstâncias específicas do caso concreto, exercendo um poder discricionário consideravelmente lato. No caso da fixação de medidas de coação, talvez demasiado lato, até…

Não é fácil. Já no século XVII alguém dizia que “o dever dos juízes é administrar a justiça; a sua profissão, diferenciá-la.  Alguns deles conhecem o seu dever e exercem a sua profissão” *).

Tão amplos poderes e tão vasta discricionariedade não são, evidentemente, compatíveis com défices de inteligência, de sensatez, de aprendizagem, de formação, ou, genericamente falando, de educação. Bem pelo contrário: exige-se de um magistrado, judicial ou não, o conhecimento abrangente, não apenas da lei, mas também da realidade social, além do raciocínio lógico superior, da sabedoria e da postura indispensáveis a quem detém nas suas mãos a possibilidade de, nos termos da lei, privar terceiros do direito fundamental à liberdade.

Alguém citava, há pouco tempo, um juiz segundo o qual “para despachar processos, é necessário 75% de bom senso e 25% de direito”. Lá saberá da sua razão…

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Uma parte relativamente significativa de um eventual défice em algumas destas vertentes poderá, é verdade, ser compensado com uma experiência intensa e prolongada em níveis de integração profissional do juiz nas fases iniciais da carreira, antes de, desejavelmente muitos anos mais tarde, aceder a funções de maior responsabilidade em processos muito mediatizados ou correspondentes a delitos ou interesses de maior relevância e potencial impacto social. Para tanto, é indispensável a tramitação profissional por níveis sucessivos que proporcionem frequentes oportunidades de contacto com terceiros diversificados na formação, na vivência, na personalidade e na qualidade em que agem ou operam.

O que não é admissível num estado dito de direito onde a administração da justiça se quer eficaz, é que o acompanhamento e decisão de processos de gigantesca responsabilidade seja distribuído a juízes que apenas tenham condições objetivas para agir como funcionários unicamente aptos a aplicar estritamente o que dizem os livros, receando ou, por qualquer outra razão, sendo, manifestamente, incapazes de interpretar e enquadrar os factos na personalidade do sujeito e nas circunstâncias daqueles; ou que não detenham a indispensável dose de bom senso necessária à judiciosa aplicação da lei; ou, ainda, de magistrados de tenra idade e, consequentemente, de menor experiência, daqueles que nenhuma sensação de segurança transmitem e que na presidência de um coletivo até confrange ver.

Um juiz não nasce juiz. Faz-se. Com o tempo. Com muito tempo.

Na medida em que o resultado de um eventual erro seja, previsivelmente, suscetível de indignar e de prejudicar o direito de centenas de pessoas, de milhares de pessoas, de toda uma coletividade, até, será imperdoável e irresponsável, por parte do legislador, permitir que se confie a direção do processo a juízes de fracas características pessoais ou profissionais, irresponsabilidade que apenas seria equiparável à de uma companhia que confiasse, a um jovem piloto com escassas horas de voo, os comandos de um gigantesco e repleto avião comercial.

Há coisas que não se faz; que, simplesmente, não podem acontecer.


2.4. Dos Requisitos dos Magistrados Judiciais

Uma das principais atividades intelectuais do juiz – e espirituais, dada a forte dose de subjetividade - é a ponderação.

Opera nas mais diversas operações lógicas requeridas em todas as etapas de um processo judicial ou de inquérito. É o caso, por exemplo, da ponderação do valor da prova apresentada - já que, se fosse valorada ad libitum por qualquer um, bastaria que um menos preparado investigador tropeçasse em algo que considerasse “prova” para o infeliz acusado estar condenado sem apelo nem agravo, ainda que no meio do mais despudorado atropelo dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.

Uma vez o agente considerado culpado, cabe ao julgador ponderar, também, a medida da pena, adequando-a, dentro dos limites definidos na lei, à personalidade do acusado e às circunstâncias do caso concreto.

Importante Ponderação
Ponderação não menos importante é a que atua na verificação dos pressupostos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade *) que regem a aplicação das medidas de coação, muito especialmente das privativas da liberdade, como é o caso das mais gravosas: a obrigação de permanência na habitação*) e a prisão preventiva*).

Aquele que aqui interessa, de entre os pressupostos destas últimas, é a constatação, pelo juiz, da existência de perigo de fuga*), competindo-lhe, sempre no estrito cumprimento dos requisitos legais, decretar a medida quando entenda necessário evitar que um qualquer espertalhão com a manha a transbordar-lhe dos olhos, do rosto, da postura, da atitude, da fala, daquilo que se quiser – que pode ser quase tudo… - vá de férias até paragens longínquas para não mais voltar… provavelmente até à prescrição do processo*) ou à prescrição da pena*), se por outras terras entretanto se andar a pavonear.

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Os olhos são, diz-se, o espelho da alma, e neles estará, mais do que em qualquer manual, refletida a verdadeira dimensão do risco de fuga, da intenção de ao castigo se furtar. Mas, os olhos, não é qualquer um que os sabe ler, e, para que a ponderação – e, de um modo geral, a atividade judicativa – seja eficaz, pelo menos quatro qualidades deve  um juiz de julgamento ou de instrução apresentar.

Antes de mais, a capacidade intrínseca, já que, tal como seria inconcebível a mera ideia de um cirurgião que não possa ver sangue, a de um piloto de linha aérea que tenha medo das alturas ou a de um contabilista incapaz de contar, por maioria de razão o seria a de um juiz deficitário no que se refere ao processamento lógico, ou com inconfessáveis vícios de caráter, ou padecendo de, ainda que ténue, sociopatia ou maleita similar.

Seguem-se, inevitavelmente, a formação pessoal cuidada, desejavelmente começada em casa e, na devida idade, continuada na escola, e, na universidade, a aprendizagem aprofundada das coisas do direito,.

Mais difícil de encontrar - e, no entanto, igualmente essencial - é o último destes quatro requisitos: um amplo conhecimento da realidade das pessoas e das circunstâncias das suas vidas, personalidades, relações, gostos, afinidades, atividades, a fim de, ao julgar, permitir atenuar os efeitos das inevitáveis diferenças, já que “um homem só pode ser perfeito juiz das ações de outro homem quando entre ambos se dão absolutamente as mesmas condições de existência.  Desde que estas variam, varia com elas a maneira de ver as coisas”.

Necessidade de Coexistência
Como é bom de ver, a necessidade de coexistência dos quatro requisitos torna singularmente rara a aptidão para o desempenho da judicatura, logo - há que insistir -, absolutamente incompatível com a formação em massa de sucessivas fornadas de magistrados judiciais destinados a suprir as necessidades de um sistema judiciário afogado numa ineficiência em Portugal há muito unanimemente reconhecida, mas jamais sarada.


2.5. Do Percurso Até à Magistratura Judicial

No caso do juiz do foro criminal, a arte da ponderação desenvolve-se, sobretudo, não na universidade ou no Centro de Estudos Judiciários*) (CEJ), mas através da experiência adquirida no contacto de proximidade com investigadores, com testemunhas, com alegados e confirmados infratores, proximidade essa impossível de conseguir no ambiente de inevitável distanciamento inerente a uma audiência de julgamento.

Como alguém disse, para ser justo, um juiz tem de ser capaz de calçar os sapatos do criminoso; mas isso passa por saber, por experiência própria, o que é uma investigação, por ter intervindo em muitas delas, contactado com vítimas, delinquentes, defensores.

Visto muito, ouvido mais, falado pouco.

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Em contrapartida, esta relação de proximidade caracteriza boa parte da função do magistrado do Ministério Público, que é, afinal, o advogado do Estado.

Até meados dos anos setenta do século passado, esta magistratura constituiu uma primeira etapa obrigatória para o acesso à magistratura judicial. Foi-lhe, então, conferido estatuto de autonomia: segundo uns, para dignificar magistrados do Ministério Público que, desgostosos e infelizes, se olhavam como um mero primeiro degrau da escada conducente à magistratura judicial; segundo outros, para o Estado rapidamente satisfazer a necessidade premente de produzir, à pressão, a tal grande quantidade de novos juízes a fim de parecer satisfazer os requisitos do já aqui falado acesso universal à justiça - mesmo a uma justiça de substancialmente menor qualidade, como inevitável seria nas descritas condições.

Sentaram-se, desde então, no lugar cimeiro da teia dos tribunais juízes cada vez mais que jamais passaram pelo alfobre do Ministério Público, com um patentemente reduzido conhecimento das pessoas – sobretudo, dos criminosos -, com uma diminuta experiência dos mais variados aspetos da vida – sobretudo, da vida dos criminosos -, por isso mesmo equiparáveis a docentes sem trabalho de campo realizado, literalmente afogados na leitura de livros e de artigos mais ou menos científicos, exclusivamente baseados nos quais proferem belas mas vazias lições ex cathedra, sem significativa integração na sociedade e produzindo trabalhos com interesse prático nenhum.

Todo um potencial cabedal de indispensável experiência foi, desta forma, liminar e irresponsavelmente desperdiçado, eventualmente em nome de uma dignificação dos magistrados do Ministério Público que jamais poderá ser, de forma significativa e efetiva, assegurada pela separação de carreiras, antes pela exigível qualidade superior num desempenho que, a fazer fé em notícias sobre sucessivas prescrições de processos por causas não cabalmente esclarecidas e sobre diversos percalços devidos a vícios processuais, pouco permite entrever dessa desejável e indispensável qualidade.

Acresce, necessariamente, que, de um ponto de vista funcional, os magistrados do Ministério Público são, e serão sempre, meros advogados do Estado, logo, parte interessada nas demandas judiciais, jamais podendo, sensatamente, considerar-se a sua magistratura equiparável à de um juiz, na medida em que sempre às decisões deste se terão de sujeitar.

Chega, assim, a ser ridícula a insistência na equiparação, antes urgindo reverter, no mais curto espaço de tempo possível - e a despeito da inevitável vozearia em contrário - a separação de carreiras, voltando à bem mais eficaz e promissora progressão. Sobretudo, sendo cada vez mais pobre a formação.

Se a motivação da separação foi o ímpeto revolucionário ou a pressa em aumentar a quantidade de magistrados judiciais, a opção explica-se pelo facto de as revoluções tenderem a racionar com o coração, a tal ímpeto ainda havendo que aliar a proverbial incompetência de decisores políticos então, como hoje, completamente falhos de estratégica visão.

Se a bem diferente motivação foi a dignificação dos magistrados do Ministério Público, teremos de nos perguntar: até que ponto é legítimo, em democracia, que o interesse na exaltação da imagem de uns poucos comprometa, de tal forma, a qualidade do desempenho de uma justiça que a todos interessa e sem a qual, em democracia e em liberdade, não há como viver?


2.6. Do Processo Penal

Através das normas jurídicas e da sua aplicação, procura o direito garantir, tanto quanto é razoável e possível, a normalização dos comportamentos dos indivíduos, independentemente das suas aptidões, competências, personalidade e motivações.

Se todos fôssemos condutores conscienciosos e tecnicamente aptos a determinar, em cada situação, como deveremos comportar-nos ao volante de um automóvel, o cada vez mais encorpado Código da Estrada seria dispensável, redundante - sem prejuízo de ser sempre conveniente saber se devemos circular pela direita ou pela esquerda, e mais uma ou outra coisa...

Todavia, e tal como acontece com muitas outras leis, o Código da Estrada destina-se, antes de mais, aos menos competentes para conduzir, seja do ponto de vista técnico, seja do de um personalidade tendencialmente mais virada para o interesse do próprio e indiferente às necessidades e aos direitos dos outros.

A estas motivações, não é exceção o Código de Processo Penal.

No entanto, face a lapsos que permitam fugas airosas de criminosos condenados por sentenças transitadas em julgado e provavelmente relapsos, há que concluir que, tal como uma cada vez maior quantidade de acidentes rodoviários vem determinando normas objetivas cada vez mais apertadas para a condução, também, numa altura em que tanto se fala de juízes e raramente pelas melhores razões, cumpre apertar os códigos de processo e a conexa legislação.

Antes de mais e na falta de melhor critério objetivo, limitando, de forma mais rigorosa do que atualmente e em função da idade e das horas de voo, o acesso à condução de processos judiciais mais sensíveis - seja pela seriedade da matéria em causa, seja pelo impacto previsível das decisões.

A fim de assegurar um rigoroso e ponderado critério - não apenas na fixação das penas mas no crítico processo de assegurar que serão, efetivamente, cumpridas -, haverá que garantir, com força de lei, que as decisões relativas aos processos mais sensíveis são confiadas a indivíduos, não apenas devidamente ensinados, mas que tenham, de facto, aprendido a lição do direito e, em pelo menos igual dose, a experiência apenas ensinada pela vida e pelo intenso e prolongado exercício da magistratura, designadamente no Ministério Público; e, mais tarde, com vasta experiência como copilotos, como juízes asa, antes de serem chamados à presidência de um desses julgamentos de mais mediática decisão.

Haverá, também, que restringir, significativamente o poder discricionário dos magistrados judiciais na ponderação do risco de fuga e na consequente determinação de medidas - como a apreensão de passaportes... -, bem como agilizando e racionalizando, uma vez a decisão transitada em julgado, os procedimentos relativos à notificação do condenado e à sua condução à prisão.

Poderá argumentar-se, não sem razão, que também o legislador que irá introduzir, na lei, as necessárias alterações terá sido, muito provavelmente, formado nas mesmas escolas e épocas já referidas. Mas, como para legislar, basta meia dúzia, enquanto, para administrar a justiça, são necessários milhares, maior será a probabilidade de escolher bem essa meia dúzia, do que a de que a justiça seja, com excessiva discricionariedade, bem administrada por largas centenas de pessoas pouco preparadas e apenas sujeitas às permissivas normas processuais que atualmente a regem.

Principalmente, no que se refere à aplicação de medidas de coação.

 

2.7. Da Discricionariedade

Discricionariedade não é sinónimo de arbitrariedade.

O juiz não pode fazer o que quer e bem lhe apetece, apenas porque acha que sim, já que, como não poderia deixar de ser, a lei não parte do princípio de que existe, em qualquer caso, um perigo de fuga, tampouco considerando que o risco esteja presente pelo simples facto de existir uma prévia condenação. Exige, antes, a existência de outros elementos de facto que claramente indiciem a intenção de, quando futuramente convocado, o sujeito se não apresentar, designadamente para cumprimento da pena de prisão.

Impõe-se, naturalmente, a maior objetividade possível em tudo quanto toca à limitação de direitos, liberdades e garantias, nos termos constitucionais. Mas, importa, também, que, na decisão de aplicar uma medida de coação, o juiz pondere até que ponto ela não será, efetivamente, imprescindível à luz da probabilidade de fuga e do perigo potencial decorrente do facto de o indivíduo ser deixado em liberdade para continuar a atividade criminosa, bem como em presença do chamado fumus comissi delicti: o fumo, a probabilidade de que um delito tenha, efetivamente, sido cometido.

Ora, este fumo, não há como não o considerar, incomensuravelmente, mais opaco no caso de um indivíduo condenado, do que no de um mero suspeito acabado de deter. Assim, o rigor na aplicação de medidas de coação a indivíduos já condenados em alguma instância terá de ser, necessariamente, maior do que em igual diligência relativa a meros suspeitos.

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Por outro lado, além de não ser confundível com a arbitrariedade, a discricionariedade significa poder, e o poder gera responsabilidade, por dele ser a eficácia um inseparável pressuposto.

Fazer o que a lei permite não significa fazer tudo aquilo a que ela obriga: no caso das medidas de coação, a obrigação do juiz que as decide, o que lhe dá tão amplos poderes, é evitar a fuga. Logo, quando não evita, ainda que por mero erro, não cumpre uma lei que lhe dá os poderes e meios, todos e mais alguns, para não falhar.

A lei prevê, é verdade, que o juiz possa aplicar a medida de termo de identidade e residência, sem entrega do passaporte. Mas, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores”, fica o mesmo juiz obrigado a decretar outras. São essas as palavras que introduzem os preceitos do Código de Processo Penal relativos às medidas de coação mais gravosas, palavras que não deixam margem para qualquer dúvida quanto à responsabilidade exclusiva do julgador na determinação da forma como irá coagir o sujeito a apresentar-se, de como irá, através dela, servir as exigências de natureza cautelar do processo.

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Qualquer que seja o ângulo por que a contemplemos, a fuga de um condenado é um erro de ponderação do risco; e, sob esse prisma, uma indiscutível prova de incompetência por parte do magistrado ou dos magistrados que a tiverem viabilizado por terem sido parcos na seleção da medida a aplicar.

No que tange, especificamente, a aplicação do princípio da proporcionalidade na fixação da medida, se os juízes se mostram, manifestamente, incapazes de o contemplar, impõe-se ao legislador que tal défice de capacidade cuide de, significativamente, atenuar; de, sem demora a sua posição quanto a este assunto vir clarificar.

Isto porque, se, na determinação das medidas de coação, o comportamento do alegado criminoso dever ser objeto de análise e julgamento diferenciados exclusivamente segundo o melhor critério do juiz, a justiça jamais será servida por magistrados que não estejam, minimamente, habilitados a processar, com razoável rigor e sensatez, as informações que tal diferenciação permitam, eficazmente, viabilizar

Pode admitir-se que um juiz de instrução falhe, deixando fugir um suspeito, por ser assaltado por dúvidas na valoração de meros indícios. Mas custa a entender que um juiz de julgamento deixe fugir um indivíduo condenado após amplamente discutida e validada a prova.

 

3. Da Fuga e dos Seus Antecedentes


3.1. Síntese Cronológica

Muitas são as etapas, e disperso o que foi publicado sobre os acontecimentos que antecederam a fuga.

A fim de que todos saibamos, com a exatidão e isenção permitidas pelas notícias dos factos, o que está em causa nesta reflexão, comecemos por uma breve resenha, ordenada e documentada - poderá selecionar os texto antes de cada *) - daquilo que se relaciona com a epopeia judicial do Herói desta pequena história:


     a) Primeira Condenação

i.       por falsidade informática e falsificação de documento, foi, em 15 de Outubro de 2018, condenado à pena de cinco anos de prisão, com possibilidade de a mesma ser suspensa mediante o pagamento de quatrocentos mil euros a uma instituição particular de solidariedade social*);

Início de Julho de 2020

ii.      no início de Julho de 2020, o Tribunal da Relação de Lisboa agravou o castigo para cinco anos e oito meses, assim afastando a possibilidade de suspensão - limitada por lei a penas até cinco anos*) -        tornando a pena efetiva*);

iii.     em Dezembro de 2020, o Condenado propôs ao Supremo Tribunal de justiça (STJ) pagar ao Estado cem mil euros adicionais a troco de não ter de cumprir os cinco anos e oito meses de prisão;

iv.      em 24 de Fevereiro de 2021, o STJ rejeitou a proposta e confirmou a condenação*);

v.       em 8 de Junho, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu não admitir o recurso entretanto interposto*);

vi.      em 15 de Julho, e ainda no regime de termo de identidade e residência – sem apreensão do passaporte -  decretado por, pelo menos, um dos tribunais, o condenado partiu para uma estada na Costa Rica*);

vii.     violando a lei*), forneceu, como morada de contacto, unicamente a da Embaixada de Portugal, não tendo, apesar disso, sido alterada a medida de coação de termo de identidade e residência, sem entrega do passaporte*);

viii.     em 16 de Julho, iniciou-se o período de férias judiciais, nos termos do art.28º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto*);

ix.       em 20 de Julho, o TC confirmou a inadmissibilidade do recurso*)

x.        em 29 de Julho, a Imprensa noticiava que “vai para a prisão mas só em Setembro, depois das férias judiciais*);

xi.       regressa da Costa Rica a 21 de Agosto, ainda durante o período de férias judiciais;

xii.   em 24 de Agosto, noticiava-se que o “Conselho da Magistratura (CSM) vai reunir informação sobre cumprimento de pena de João Rendeiro*);

xiii.    em 31 de Agosto terminaram as férias judiciais;

xiv.    em 9 de Setembro foi entregue ao CSM a relação de factos mandada elaborar em 24 de Agosto*);

xv.     regressado, entretanto, a casa, voltaria o Condenado a sair, em 12 de Setembro de 2021, para ir tratar da saúde a Londres, uma vez mais violando a lei ao informar, unicamente, a morada da Embaixada de Portugal*);

xvi.   em 17 de Setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou o trânsito em julgado, na véspera, da mais recente decisão do TC, assim se tendo a condenação tornado irrecorrível*);

xvii.    em 22 de Setembro, os advogados do assistente BPP pedem um reforço das medidas de coação, alertando para o perigo de fuga*);

xviii.  em 29 de Setembro, informou o Condenado estar em parte incerta e não ser sua intenção regressar a Portugal para cumprir a pena correspondente à condenação transitada em julgado*);

xix.    com data de 30 de Setembro, o CSM publica uma “Nota à Imprensa – Processos João Rendeiro contendo a relação de factos (documento que tinha em seu poder desde 9 de Setembro) resultante da diligência que ordenara em 24 de Agosto.


b) Segunda Condenação

xx. Entretanto, acusado de fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificado e branqueamento de capitais, foi, em 14 Maio de 2021, o Herói desta história condenado a mais dez anos de prisão efetiva, considerando a Juíza que o Condenado não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento*);

xxi. no mesmo acórdão, diz-se que os arguidos foram “condenados de forma exemplar e expressiva porque os factos que praticaram são graves” e a comunidade não entenderia outra medida*);

xxii.  ainda em 30 de Setembro, a imprensa noticia o entendimento da juíza presidente de que, até 19 de Julho, inexistia “qualquer informação da qual pudesse antever-se um concreto perigo de fuga*);

xxiii.  na mesma data é noticiado que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses vem dizer que, até 13 de Setembro – e não 19 de Julho – “não havia fundamento legal para sujeitar o arguido a medida de coação mais grave que o termo de identidade e residência*)

      
c) Terceira Condenação

xxiv.  A 28 de Setembro de 2021, véspera da oficialização da fuga, noticiava-se que havia sido condenado num outro processo, desta vez por burla, a mais três anos e meio de prisão efetiva*).

- x -

O Condenado não esteve presente na leitura de qualquer das decisões, no caso da mais recente por já se encontrar em fuga.

Dado que este texto versa, precisamente, sobre essa fuga e sobre as razões que a ela poderão ter conduzido, não será aqui desenvolvido o referente a outros eventuais erros, jurídicos e outros, em decisões com ela apenas indiretamente relacionadas ou a ela posteriores, como a detenção ilegal de um outro condenado para cumprir pena antes do trânsito em julgado da decisão*), o inocente com nome idêntico que, depois da fuga, o tribunal andou a tentar apanhar*), o desaparecimento de algumas obras de arte que o Estado não tinha condições para guardar, ou o facto de não ter sido evitada a respetiva substituição por falsificações*) e a recusa da declaração de contumácia pelo tribunal de execução de penas, que se declarou incompetente, porque um juiz de julgamento se esqueceu de preencher uns editais.*)

Mas, tudo isto, confrange, de facto.

Para a imagem do sistema judiciário e do País, tanto amadorismo é desolador…

 

3.2. O Condenado

Convirá salientar que não está aqui em causa um narcísico e, porventura, alucinado Robin dos Bosques à portuguesa que, juntamente com alguns outros, tenha subtraído, de um balcão de banco, um comparativamente magro pecúlio destinado a contribuir para financiar uma revolta armada; ou, se a história se passasse há poucos anos, que o tivesse feito para mandar plantar rotundas onde mal passam carros, ou parques infantis onde não brincam crianças; ou ainda, seguindo a atual moda das campanhas eleitorais, para mandar construir cada vez mais prometidas creches para as nossas criancinhas, numa altura em que a estatística teima em afirmar que cada vez mais vai encolhendo a lusitana população.

Nada disso.

Quem, assumidamente, fugiu à justiça foi alguém diversas vezes condenado por crimes típicos dos escroques, alguém que agiu exclusivamente em proveito próprio e no dos seus sequazes; e que, tal como outros bem conhecidos que operam ou operaram no mesmo ramo ou em ramos da mesma árvore, quis fazer crer que se dedicou à atividade comercial para viver, não apenas de legítimas mas cada vez mais absurdas taxas rotineiramente cobradas a clientes, como também da falsidade e da burla daqueles que ainda acreditam que, quando alguém lhes acena com uma das expressões juros altos ou capital garantido, é certo e sabido que foram eles os escolhidos para receber o pecúlio, o maná que a benemérita instituição mal pode esperar por lhes depor nas mãos.

Esquecem-se, evidentemente, os patéticos incautos de que, se o juro fosse tão bom e o negócio tão garantido, quem os promete preferiria ficar com eles, em lugar de, altruisticamente, partilhar…

Conhecedor da complacência da legislação processual penal portuguesa, sabia muito bem o Condenado que, praticamente, nenhum risco correria ao regressar da Costa Rica em meados de Agosto - quando ainda decorria o longo descanso que os juristas não deixam tirar-lhes - já que, incompreensivelmente, o legislador não parece ter julgado necessário, mesmo em casos de tamanho impacto social e de tão evidente risco de fuga, impor normas objetivas à atividade dos juízes de turno nesse período mais vulnerável, no sentido de, preventivamente ou não, já condenados malandros rapidamente enviar para a prisão.

Parece que sabia, também, o nosso Herói – ou, pelo menos, contava com isso - que, apesar de tido como não possuindo ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, exibindo uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento”, só muito dificilmente veria agravada a generosa medida de coação que lhe fora aplicada.

Apesar de tudo, o risco era grande. Desmesurado. Como poderia saber? Não valerá a pena investigar?

Perigo de Fuga
Com tudo mais do que bem planeado, lá permaneceu em Portugal até 12 de Setembro, data em que, por alegados motivos de saúde, acabou por ir arejar até Londres em vésperas do trânsito em julgado da primeira sentença condenatória; e para, no que dele depender, não mais voltar. Ou - pasme-se! -, pelo menos, até ser ilibado ou indultado, sem prejuízo de choruda indemnização também pedir.*)

Arsène Lupin*) não teria feito melhor!


3.3. Oito Legítimas Interrogações

i. Quem oferece maior perigo de fuga? Um suspeito que ainda nem foi acusado e ainda menos sabe se vai, sequer, ser condenado, ou um criminoso relapso já condenado, que sabe que, a menos que fuja, jamais irá poder escapar à prisão?

Por que razão é, ao primeiro, quase sempre e sem grande hesitação decretada a prisão preventiva, enquanto, ao segundo, foram, neste caso, mantidas todas as condições necessárias a uma possível evasão?

Não será a validação, em segunda instância, da matéria de facto razão mais do que suficiente para que um magistrado de bom senso o ponha, preventivamente, atrás das grades até ao efetivo início da execução da pena? Quantas fugas terão, ainda, de acontecer para que o legislador chame a si a responsabilidade de vincular os juízes à determinação de mais severas, mais eficazes medidas de coação?

No panorama atual da magistratura judicial, não faz qualquer sentido continuar a confiar em meros juízos de valor subjetivos por parte de um ou de outro julgador: há que definir padrões objetivos, linhas vermelhas, factos e circunstâncias de tal forma significativos e perentórios que a própria lei determine que, automaticamente, operarão na imposição ou alteração de medidas de coação.

ii. Na ponderação do perigo de fuga, os poderes de cognição do juiz não podem ficar limitados ao processo: ninguém pode ignorar o que os sentidos lhe transmitem.

Que razão poderá haver para que um magistrado judicial se não sinta alertado do perigo por aquilo que lê ou ouve na comunicação social? Ou não terão os juízes o hábito de ler jornais e de assistir a serviços noticiosos na televisão?

Nenhum alarme soou quando foi noticiado que “vai para a prisão, mas só em Setembro, depois das férias judiciais”? Ninguém pensou, nessa altura: “Espera, e se, daqui até lá, o homem resolve fugir?”.

Pelos vistos… não.


iii. Não existe, por outro lado, um dever de vigilância e de acompanhamento dos processos? Ou ficam na gaveta até que algo de novo – como uma fuga espetacular, por exemplo – acabe por acontecer? É que será muito, mas muito, difícil alguma vez alguém entender que, ao insistir em manter o Condenado em liberdade, lhe não tenha pelo menos um dos juízes de um dos três processos em curso mandado, pelo menos apreender imediatamente o passaporte - por muito discutível que, face à imensidão de meios financeiros aparentemente disponíveis, a alguns possa parecer a eficácia de tal medida.

Que falta de segurança tudo isto acaba por transmitir! Ou será falta de coordenação?

iv. Os juízes não são, é verdade, seres sobrenaturais. Mas também não será muito aconselhável sujeitarem-se a aparecer à opinião pública como pessoas que, profissionalmente, agem como o comum dos mortais que acha que, pois com certeza, há que trabalhar lá no emprego, mas a gente tem as nossas vidas cá em casa e não pode passar o tempo a pensar nessas coisas…

Num cenário de mais do que provável inevitabilidade do posterior encarceramento no âmbito da execução da sentença, quem de boa-fé poderá garantir - ou, até, esperar... - que, uma vez convocado, um condenado sem ”sentido de autocrítica nem de autocensura”, que exiba uma “postura de arrogância” e “não demonstrando arrependimento” se apresentará voluntariamente se, da notificação que recebe, constar que a comparência se destina à revisão das medidas de coação, ou seja, a privá-lo, desde logo, da liberdade?

Pensar-se-á, porventura, que, quem apresenta tais características de personalidade e engendra esquemas de uma tão estranha forma de engenharia financeira como estes, não tem na manga artifícios e trunfos mais do que suficientes para, em direção a outras paragens, rapidamente se saber orientar? Ou será que o fumus comissi delicti era tão espesso que, aquilo que a qualquer um se metia pelos olhos dentro, aos magistrados não permitiu vislumbrar?


v. Como explicar que, na data publicamente conhecida do trânsito em julgado - em que a condenação se torna definitiva e o criminoso sabe que já não escapa às malhas da justiça se decidir ficar por cá -, em lugar de ser automaticamente emitido o mandado de detenção e imediatamente executado tudo deva, ainda, voltar à primeira instância para a respetiva emissão, assim dando, a qualquer condenado, mais do que tempo para, de passaporte no bolso, tomar as medidas que quiser com vista a evitar o castigo?

vi. Onde estão o bom senso e a ponderação de um Conselho Superior que, durante semanas, fica praticamente silencioso e imóvel perante uma situação notória desta natureza e calibre? Afinal, o que se passa na cabeça destes magistrados? Os juízes não podem conversar entre eles? Não existe, ironicamente, na hierarquia dos juízes, uma magistratura de influência? Nesse universo hermético e distante, não existe o hábito de... comunicar?

Qual a justificação para só depois de mais de um mês e de muito alarido mediático ter sido noticiado que o “Conselho da Magistratura vai reunir informação sobre cumprimento de pena”? Por que terá o resultado dessa diligência ficado muito bem guardado durante três semanas, só tendo visto a luz do dia depois de concretizada a fuga? Por que se terá o serôdio comunicado ficado por uma lacónica e acrítica relação dos acontecimentos, sem um comentário ou, sequer, uma opinião pontual?


vii. 
Acaso a cadeia é algum hotel?

Como explicar que seja possível que, prolatada uma sentença condenatória, confirmada a matéria de facto e na pendência de múltiplos e sucessivos recursos, andasse o Condenado, já em Maio, a passear-se  por aí, indagando das condições do estabelecimento prisional onde, presumivelmente, irá cumprir pena?*) A não ser, claro, para no caso de lhe não agradarem, poder, de forma informada, optar pela fuga?


Juiz do Supremo Tribunal
viii. Não vou ao ponto de defender, como alguns, que se inicie a execução de uma sentença condenatória imediatamente após o encerramento da matéria de facto na primeira instância, o que se afigura uma falta de respeito, não apenas dos mais elementares direitos humanos, mas da própria segunda instância, cuja decisão se estaria, de alguma forma, a desvalorizar.

Mas é inevitável perguntarmo-nos: que percentagem de recursos é admitida pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Constitucional? E, de entre os recursos que são admitidos, quantos merecem provimento? Qual a probabilidade de alguém condenado em primeira instância e com a condenação quanto à matéria de facto confirmada pelo Tribunal da Relação ver, no STJ ou no TC, o processo arquivado por vícios de direito?

Diminuta.

Até que ponto, então, o eventual prejuízo, suportado por essa meia dúzia de condenados, de umas semanas a mais de preventiva depois de, irreversivelmente, dada como provada a matéria de facto, justifica que o bem-estar da comunidade acabe comprometido por o condenado fugir e assim uns tantos ingénuos, por cá ou noutra parte, poder continuar a aldrabar? Ou, se se tratar de um homicida, até a matar?

Como algures alguém disse, “penso que a Constituição deveria ser menos utilizada como um escudo para os culpados, e mais como uma espada para as suas vítimas inocentes”.

Não nos esqueçamos, também, de que, nas sábias palavras há alguns anos proferidas por uma ilustre magistrada do Ministério Público, “a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um

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Não é fácil encontrar sensatez em normas permissivas, que conferem ampla discricionariedade a quem, manifestamente, a não sabe exercer; incompreensivelmente arrimadas na complacência, até no tendencialmente erróneo pressuposto da vontade cumprir o castigo por parte de quem a ele foi sentenciado, deixando à discricionariedade de um talvez incompetente magistrado a decisão de tomar, ou não, medidas destinadas a por cá o reter.

A eficácia é a primeira e a principal medida de avaliação da qualidade em qualquer profissão ou área de atividade. Na magistratura judicial, também.

Como está, a lei é omissa, facilita a fuga e os tribunais tampouco a impedem, embora disponham de todos os meios legais necessários para tal; a fuga que, além do perigo potencial que representa para a sociedade, não passa de um claro ato de desrespeito pela Lei, pelos próprios tribunais que a viabilizam, pela justiça, por todos nós.

Neste caso... estavam mesmo a pedi-las! 

Nós, não.


3.4. Os Senhores Juízes e os Senhores Advogados

Ao dizer que “os juízes não obedecem a ordens”, não está, implicitamente, o CSM a reconhecer o erro dos Colegas? A reconhecer que, se do Conselho dependesse, teria sido ordenado o atempado agravamento das medidas de coação?

Assim o exigiria o mais elementar bom senso, a mais básica capacidade de ponderação, no caso de falta de indicação da morada exata no estrangeiro, mesmo de depois de instado a fazê-lo, por parte de um indivíduo já condenado, por crimes semelhantes, em dois processos – um dos quais em vias de ver transitada em julgado a sentença – e acusado, num outro processo, de crimes de idêntica natureza; e, não será demasiado repetir, que “não possui sentido de autocrítica nem de autocensura” e mantém uma “postura de arrogância”, “não demonstrando arrependimento”.

Que elemento de facto faltará, num tal cenário, preencher para se meter pelos olhos de qualquer homem médio a mais do que evidente intenção de o indivíduo se subtrair à ação da justiça? Já para não falar dos olhos de um supostamente esforçado, experiente e competente magistrado judicial…

No momento da desobediência à ordem do tribunal para que indicasse a morada precisa de residência, o perigo de fuga deixou de ser presumido, passou a ser bem real, pelo que, independentemente de o Condenado ter, mais tarde, regressado a Portugal – o que, em meados de Julho, ainda se não sabia que iria acontecer -, logo à chegada deveria ter a medida de coação sido agravada, até ao abrigo do disposto na alínea f) do art.27º da própria Constituição: “detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal*)

Se isto é válido para qualquer um de nós, por que não, também, para o nosso Herói? Mesmo com a melhor das intenções, quantos pesos e quantas medidas por cá existirão na magistratura judicial?

Evidentemente, os juízes não obedecem a ordens, nem tal faria qualquer sentido, pois comprometeria, irremediavelmente, a sagrada independência na administração da justiça. Obedecem, porém, como qualquer de nós, às instruções do legislador, isto é, à legislação.

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Há que reconhecer que, num cenário de tamanha ineficácia, se impõe, é manifesto, uma profunda e urgente revisão do regime das medidas de coação, tornando, não apenas obrigatório, mas automático, que sejam agravadas de acordo com as diversas etapas da marcha do processo penal.

Não se vislumbra, de facto, de que outra forma poderão ser atenuados os efeitos nefastos de uma cada vez menor qualidade global do desempenho da magistratura judicial, a fazer fé nas notícias que, sobre este e diversos outros casos, nos vão chegando pelos mais diversos canais de comunicação.

Não há, assim, como concordar com quem sustenta que “temos que dar cada vez mais poder ao juiz no processo, para que seja ele a decidir, em cada caso, as diligências que devem ou não devem realizadas*). Depois daquilo a que, recentemente, temos vindo a assistir, seria muitíssimo insensato fazê-lo, a menos que todos fossem como o Ilustre Magistrado que, há já alguns anos, assim falou…

A decisão sobre as medidas de coação não pode, em suma, ser, em tão larga escala, deixada ao muito discutível critério de um eventualmente imprudente, impreparado e menos sensato ou esclarecido julgador, que até pareça pensar que o perfil do condenado não conta para a ponderação do risco de fuga, mesmo quando na sentença nada é, quanto a ele, elogiosamente referido. Muito pelo contrário.

Segundo que critério pode, razoavelmente, a conhecida e reconhecida personalidade do arguido não contribuir para, em apoio de um facto relevante, levar um juiz a concluir pelo perigo de fuga?*)

Pior: como se extrai das palavras da própria Magistrada – que a mesma Associação Sindical que entende que, neste caso, aplicar o termo de identidade e residência é cumprir a lei*) logo tentou emendar… -, desde 19 de Julho que a intenção do Condenado de optar pela fuga se manifestava no processo; e desde então, o que se fez para o manter disponível?

O homem só fugiu em finais de Setembro. Mais de dois meses depois! Ninguém viu a coisa a tempo de a impedir?

O que é, afinal, para um juiz, um facto que indicie perigo de fuga? Apenas a constatação dos derradeiros atos preparatórios? Da tentativa? Ou a própria fuga, quando já é tarde demais?

Como evitar os mais do que legítimos sobressaltos e indignação cívicos, quando, do desempenho de certos magistrados judiciais, isto é o melhor que podemos esperar?

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Será, também, vantajoso iniciar uma reflexão séria sobre a equidade na medida das penas, a fim de evitar que sejam aplicadas, por juízes quiçá mais imaturos, ou emotivos, ou sensacionalistas do que outros, penas de dimensão provavelmente nunca vista para crimes de determinada natureza, ainda que justificando com a necessidade de aplicar punições exemplares.

Pretendem tais juízes que uma condenação do Herói desta história em menos de dez anos de prisão causaria indignação social. Talvez. Mas, não causará uma fuga em tais condições muito maior indignação?

Será razoável esperar que não fuja alguém já não propriamente jovem que acaba de ser condenado, num conjunto de processos, a mais de dezoito anos de prisão? É verdade que, à data da fuga, desconhecia, ainda, a decisão relativa ao terceiro processo. Mas, qual seria ela, nem a ele, nem a nós custaria muito adivinhar…

Uma pena razoável, com conta, peso e medida, ainda poderá levar o arguido a optar por sujeitar-se ao castigo, não obstante lhe serem dadas todas e mais algumas possibilidades de, pela via da fuga e alegando “legítima defesa*) ou direito de resistência, a ele se furtar. Não pode, em contrapartida, excluir-se a possibilidade de, perante uma pena que, a despeito do mau caráter e dos antecedentes, o pior dos condenados legitimamente possa considerar injustamente pesada, muito maior ser a tentação de a evitar.

A simples condenação numa pena de prisão, ainda que pesada, não pressupõe, por si só, a existência de perigo de fuga, mas o mesmo não poderá dizer-se de uma pena desproporcionada, injusta, excessivamente empenhada em tornar-se exemplar.

Nas palavras de um jurista norte-americano que também escrevia livros policiais, “quando não se obtém justiça perto, tenta-se encontrá-la mais longe”, verdade esta que muito maior rigor na ponderação do equilíbrio entre a medida da pena e a seriedade da medida de coação a aplicar haveria de suscitar.

Todos sabemos que o respeito pelos direitos, liberdades e garantias é um pilar inamovível da democracia. Mas, no caso específico de um condenado que sabe serem tão diminutas as possibilidades de não ser encarcerado que até já se vai informando das condições do hotel, impõe-se o primado do princípio da proporcionalidade na indispensável ponderação entre o direito à liberdade do criminoso condenado em duas instâncias já, e o interesse seguramente maior da coletividade cuja segurança tal liberdade compromete e à qual assiste, por sua vez, o direito à liberdade de viver protegida de prováveis novas investidas daquele que, estranhamente, da liberdade se evita privar.

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Os senhores Advogados do Assistente por onde andaram, também, entre 19 de Julho de 2021 e a data, em Setembro, em que, finalmente, as campainhas fizeram soar?

Pode, é verdade, dar-se o caso de não terem, desde 19 de Julho de 2021, tomado conhecimento de qualquer facto relevante para a ponderação do risco de fuga. Mas, mesmo assim sendo, não teria sido oportuno, mesmo durante as férias, o processo irem espreitar? Tê-lo-ão feito? Nesse caso, porque parece terem tardado a reagir?

Por falar nisso, ninguém parece ter, até agora, reparado na inegável coincidência entre algumas ocorrências enumeradas na cronologia acima e o decurso das férias judiciais.

Dá que pensar…


3.5. Os Políticos

Políticos, todos nós somos, de alguma maneira; quanto mais não seja na forma como, uns mais, outros menos, procuramos emendar e, se possível, desviar a atenção de possíveis erros próprios. Há, até, quem diga que é uma manifestação natural da nossa humanidade…

Não admira, pois, todo o folclore a que temos vindo a assistir em torno do acessório, como a novela dos quadros arrestados – gota de água no oceano da dívida - que acabaram desviados ou falsificados quando à guarda do cônjuge; o episódio do carro à porta de casa pronto para fazer a mudança de mais uns quantos quadros e mobílias*); as andanças do Taxista*)a detenção do Cônjuge do Condenado*); o amante ou novo amor do Cônjuge*); o choro do Cônjuge durante o interrogatório*); o cavalheirismo do Condenado ao avocar a responsabilidade única pelo descaminho dos quadros quando o divórcio parece, já, difícil de evitar*); o dinheiro na conta dos Pais já falecidos*); as tramponilices feitas aos anteriores advogados*); o descoco na exigência da ilibação ou do indulto*); enfim, tudo quanto possa engordar o folclore mediático e contribuir para, do essencial, as atenções da imprensa e do público desviar, e tudo o mais que por aí virá.

Os partidos políticos que foram passando pelo poder, procuram, agora, alijar responsabilidades por omissões legislativas que deixaram à mercê do poder discricionário de menos preparados juízes o controlo de quem parece ter, cabalmente, demonstrado que vale a pena aldrabar este e aquele – rico, de preferência - para chegar a rico e ficar impune. Que para subir na vida, tornar-se famoso e engordar o ego, melhor não há do que o crime de colarinho branco, sem temer, na nossa Santa Terrinha, à cadeia ir parar.

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Dizem esses políticos que não faltam leis, que a lei permite impedir as fugas.

Ora, é precisamente aí que está a questão: a lei permite impedir, mas não obriga a impedir.

A lei permite tudo e mais alguma coisa, assim não sendo de admirar que alguns juízes a não apliquem devidamente porque, simplesmente, não querem fazê-lo, ou porque sentem alguma simpatia pelos ricos e poderosos ou, mais simples e provavelmente, porque não foram formados ou educados como deveriam ter sido. E lá voltamos ao início desta triste história…

Não é, obviamente, de estranhar que a Ordem dos Advogados*) (quase sempre de defesa…) não queira alterar uma lei tão benéfica para os clientes dos seus associados, igual postura não sendo de admirar por parte de partidos em que, assumidamente ou não, grasse airosamente a corrupção.

Com a justiça neste baixo nível, com o Estado neste triste estado, quem pode, em sucessivas eleições, admirar-se com o cada vez mais elevado nível de abstenção?

 

4. Conclusão e Propostas

Poucas dúvidas podem, pois, restar quanto às causas profundas da atual fraca qualidade da administração da justiça em Portugal, as quais, de forma determinante e, pelo menos, por longas décadas, irreversivelmente e com extrema gravidade continuarão a fazer-nos sofrer os seus efeitos.

Os juízes vitimados por esta evolução são, naturalmente, os menos culpados de tudo. As vítimas dessas vítimas - nós - é que são as verdadeiras culpadas das escolhas que vão fazendo para a governação.

A incapacidade de lidar com as cada vez maiores exigências de rigor na gestão e decisão dos processos judiciais exige que, no mais curto espaço de tempo possível, os poderes políticos clara e definitivamente se entendam quanto à completa restruturação do processo e do sistema judiciário.

Isto, num país em que, ao mesmo tempo que a população não cessa de diminuir, parece ser cada vez maior a conflitualidade, cada vez mais numerosas as questões comezinhas com dignidade de ser dirimidas em juízo.

No interesse de quem?

Porquê?

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A execução é a própria razão de ser da sentença. O interesse público e o Direito não se satisfazem numa mera condenação inane, que não faça justiça por não haver quem a faça cumprir. Ubi non est justicia, ibi non potest esse jus*)

A fazer fé nas notícias, não há como, racionalmente, não considerar estarmos em presença de diversos factos dificilmente explicáveis, a não ser por quanto já se disse relativamente à deficiente formação e consequente fraca credibilidade de parte importante e significativa dos agentes da justiça.

O conjunto de factos que as notícias trazem ao cerzir destas conclusões sugere que, no caso aqui abordado, a justiça nem sempre terá sido bem servida por preocupante défice de competência de alguns dos seus agentes.

Ao que tudo parece indicar, terão falhado juízes que deixaram o Condenado à solta, outros juízes que se limitaram a averiguar as razões da demora na detenção, e também advogados do Estado e os do Assistente por não terem sido, no momento oportuno, mais vigilantes e interventivos.

As razões profundas prender-se-ão, como vimos e antes de mais, com percalços no processo educacional e formativo dos quais algumas destas pessoas terão sido vítimas nas épocas aqui amplamente referidas, ao mesmo tempo que, às razões mais próximas, não será, porventura, alheia a descontração nem sempre benéfica associada às prolongadas férias judiciais.

A detenção do Cônjuge, a detenção ilegal de outro condenado, o inocente com nome idêntico que se andou a tentar apanhar, o desaparecimento das telas, eventuais cumplicidades, o esquecimento dos editais, tudo isso é grave, diz bem da qualidade do desempenho de certos magistrados a quem são confiados processos de seriedade e de gravidade supremas.

No entanto, se considerarmos os efeitos, não passam de faits divers quando comparados com as duas grandes perguntas jamais respondidas, as quais, essas sim, causam verdadeiro alarme social:

·     A primeira, por que razão, uma vez constatada, e mais tarde expressamente admitida, a superveniência de risco de fuga a partir de 19 de Julho de 2021, não foi o Condenado prontamente detido ou, pelo menos, apreendido o seu passaporte?

·      A segunda, qual a razão pela qual, apesar de não poder dar ordens a juízes, o Conselho Superior da Magistratura não exerceu, pelo menos, uma magistratura de influência no sentido de procurar assegurar a exigível eficácia na prevenção da fuga?

As respostas que, instintivamente, ocorrem para estas questões são de tal forma revoltantes, de tal forma desprestigiantes para tanta gente e para tantos interesses legítimos e fundamentais associados à promoção e salvaguarda da imagem exterior do País numa vertente tão essencial para o desenvolvimento económico do qual tanto dependemos, que melhor será nem as verbalizar; até porque, de tão imediatas, inevitáveis e evidentes, qualquer um, quase sem refletir, muito naturalmente a tais respostas chegará.

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"The law should be stable but never stand still".

Passemos, pois, sem aqui aprofundar, à formulação de propostas, de ideias singelas, para serem desenvolvidas por quem sabe, visando, naquilo que ainda for possível, o risco de futuros e maiores danos minorar:

I. Elaboração de nova legislação relativa à fixação das medidas de coação, clara, precisa, obrigatória, coerciva e balizada por parâmetros e critérios objetivos que, em alguns casos, gerem automatismos e, noutros, vinculem de forma inequívoca a atuação do juiz, entre as quais:

a) Obrigatoriedade da entrega do passaporte do acusado imediatamente após a prolação da sentença pelo tribunal de julgamento.

b) Obrigatoriedade da prisão preventiva uma vez confirmada, pelo Tribunal da Relação, a sentença condenatória.

c) Na data do trânsito em julgado, emissão automática e imediata execução do mandado de detenção para cumprimento de pena.

II. Classificação, segundo critérios mais objetivos do que os atuais, dos processos judiciais, especialmente os criminais, em função da responsabilidade, do impacto económico e social associável e de outras variáveis que contribuam para definir uns como mais sensíveis do que outros.

III. Revisão dos critérios de distribuição dos processos mais sensíveis, reservando-os aos magistrados mais experientesmais especialmente qualificados.

IV. Criteriosa definição das qualificações e dos requisitos mínimos objetivos de formação e, sobretudo, de idade e de experiência dos magistrados com acesso aos processos classificados como mais sensíveis.

V.  Estabelecimento de um mais exigente regime de vigilância dos processos criminais, designadamente quanto à verificação, quanto às medidas de coação, do rebus sic stantibus.*)

VI. Rigorosa investigação do que, na lei ou fora dela, possa ter levado o Condenado a sentir-se suficientemente seguro de que não seria preso, a ponto de se dar ao luxo de entrar e sair, a seu bel-prazer, do território nacional.

VII.  Reversão da separação das carreiras de magistrado do Ministério Público e de magistrado judicial.

VIII.Reflexão profunda sobre a forma como a ponderação de medidas de coação é abordada no CEJ.

IX.   Encurtamento, para metade, do período de Verão das férias judiciais.

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Os juízes ocupam o topo da pirâmide do sistema judiciário, e o sucedido, independentemente dos culpados, não é desculpável, seja qual for o ângulo de que o queiramos olhar.

Sempre que magistrados investidos nas suas funções pelo Estado falham de forma tão clamorosa, é a credibilidade de todo o sistema que fica em risco, e, com a dele, a credibilidade da própria justiça. Mas, isto, tal como tudo quanto antecede, não passa da minha modesta opinião.

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O caos mora mesmo à esquina de um Estado sem justiça.

A todos convém mantê-lo afastado da nossa habitação.

Sic transit gloria mundi...

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Da mesma forma, haverá que evitar a proximidade de certos magistrados de má fama, que em nada beneficiam a imagem da magistratura.

(leia aqui a sequência)