Desde pequeno que me ensinaram a nada esconder do meu médico, pois só assim poderia ele garantir, dentro daquilo que é humanamente possível, um diagnóstico correto e uma terapêutica eficaz. Esta necessidade de uma comunicação plena e perfeita é tão importante na relação entre médico e paciente, que, para que flua sem barreiras de qualquer espécie, se tornou necessário instituir a figura do segredo profissional, indispensável ao exercício da profissão.
Como explicar, neste quadro, a recente decisão da Ordem dos Médicos de permitir que clínicos ucranianos refugiados em Portugal aqui exerçam medicina sem um razoável domínio da língua portuguesa? *) Num tal cenário, que comunicação irá, efetivamente, acontecer?
Constituída que é por médicos, com quem se encontra, antes de mais, comprometida a Ordem? Qual a sua missão? O que se espera, primeiro, da Ordem dos Médicos: que se ocupe do acolhimento dos refugiados ucranianos, ou que cuide de assegurar a qualidade do exercício da medicina em Portugal?
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Será legítimo esperar que o inglês da esmagadora maioria dos utentes dos hospitais e centros de saúde portugueses - para não falar da boa parte da população mais idosa ainda analfabeta... - lhes permita, com um mínimo de fiabilidade, informar um médico ucraniano dos males que o afligem?
Serão, unicamente, os males físicos os que um médico trata? Apontando para o pescoço, talvez o paciente dê a entender que lhe dói a garganta... ou será uma bem mais grave dificuldade em engolir? Neste caso, como saberá o clínico se se trata de uma consequência de tensão emocional e quais os fatores que poderão estar a provocá-la, ou de algo bem pior? Passar-se-á a fazer exames por tudo e por nada? Será isto que a Ordem quer para a medicina em Portugal?
Esta autorização popularucha, demagógica e deletéria da Ordem não encontra justificação minimamente aceitável na vontade de acolher e integrar as vítimas da guerra, antes inevitavelmente deteriora a qualidade dos cuidados de saúde enquanto os médicos ucranianos "vão aprendendo português", nas palavras do Senhor Bastonário que nada mais exemplificam do que a lastimável propensão bem portuguesa de pôr o carro à frente dos bois.
Que justificação poderá, ademais, encontrar-se para desafiar o Estado, "através dos professores, a organizar cursos de português para estes médicos ucranianos"? Através dos professores, ou através dos doentes, assim trespassados por uma formidável espada no seu direito a ser devidamente tratados em segurança?
Quanto tempo levarão estas acções de formação? Entretanto, transforma-se em vítimas os pacientes?
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Mesmo que a ideia seja trabalharem junto a colegas portugueses, sempre acabarão aqueles médicos por empecilhar e atrasar o trabalho destes, agora arvorados em tradutores - partindo do princípio de que, numa área tão sensível, ucranianos e portugueses se entendem na perfeição num idioma que não é o deles.
Além das consultas, haverá, por certo, na medicina tarefas que estas vítimas dos desmandos de um alucinado e narcísico ditador possam desempenhar sem comprometer a qualidade da prestação médica do Serviço Nacional de Saúde. Se não houver, que tal o mesmo Estado que irá promover o ensino da língua portuguesa pensar em subsidiar essa formação e assegurar o sustento dos médicos a quem a formação se destina?
Meritório é, sem dúvida, o esforço benévolo de integração de refugiados de um tão desgraçado conflito, mas jamais à custa da saúde dos que cá vivem, incluindo dos imigrantes ucranianos por cá há muito estabelecidos. Todavia, e independentemente da elevação dos ideais que possam ter estado na génese da disparatada decisão anunciada pela Ordem, nada, mas nada, deverá permitir que estes possam intervir, negativamente, naquilo que é sagrado em tão nobre ocupação.
"Estamos de acordo que esses médicos tenham integração enquanto estão a aprender a língua, justamente depois de terem os seus cursos reconhecidos pelas faculdades de medicina, e que possam, com a ajuda dos seus tutores, contribuir para o Serviço Nacional de Saúde" não passa, pois, da expressão, por parte do Senhor Bastonário, de uma permissividade, de um facilitismo, até de uma certa ignorância que, através da Ordem, ao exercício da medicina nada de bom prometem trazer.