"Não encontrei um único caso em que a forma do
assim
chamado particípio passado irregular diferisse
da forma do
correspondente adjetivo qualificativo, o que, desde logo,
poderá
fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância
consubstanciada
na adoção inútil de classificações distintas para termos que são,
sempre,
exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma"
1. A Regra Comummente Aceite
Glossário
Na reflexão que se segue, referir-me-ei a:
*)
particípio passado
como uma forma verbal terminada em -ado ou em -ido, declinável
em género e número, que se refere a uma ação empreendida no passado pelo
sujeito;
*) objeto
como a pessoa ou a coisa relativamente à qual foi empreendida essa ação;
*)
adjetivo qualificativo
como uma palavra declinável em género e em número que indica a natureza ou
condição permanente (qualidade) de alguém ou de algo, ou a sua condição
temporária (estado);
*) tornar
como um verbo que significa transformar ou modificar alguém ou algo,
imprimindo-lhe determinado estado ou qualidade diferente do que apresentava
antes da ocorrência.
1. A Regra Comummente Aceite
Uma questão das que me parece mais facilmente poderem conduzir, por um lado, à
hesitação na escrita ou na fala e, por outro, à ambiguidade na interpretação é
a inexistência de uma norma gramatical precisa - e fundamentada em lógica
clara e consolidada - quanto à adequada utilização do particípio passado.
Alguma pesquisa empreendida levou-me a concluir que uma regra mais ou menos
consensual poderá ser formulada assim:
a) na voz ativa, isto é, nos casos em que é referida a intervenção do sujeito, enquanto agente, como causadora da alteração da qualidade ou do estado do objeto, emprega-se o chamado particípio passado irregular – como em “depois de eu o ter limpado” -, habitualmente antecedido por uma forma de um dos verbos auxiliares ter ou haver;
b) na voz passiva, ou seja, nos casos em que é, simplesmente, referida a
alteração do estado ou da qualidade do objeto, mas desta vez sendo este o
sujeito e indeterminado o agente, emprega-se o designado por
particípio passado regular – como em “foi limpo” -,
normalmente antecedido por uma forma de um dos verbos ser ou
estar, aqui utilizados como auxiliares;
2. Onde a Lógica Parece Falhar
O que sintetizei em 1. c) quanto à utilização do adjetivo qualificativo parece
pacífico entre as pessoas que, na Internet, se pronunciam sobre este
assunto.
Mas o que significa, na verdade, dizer que algo “foi limpo”? Em que consiste este particípio passado irregular?
O particípio passado de “foi limpo” não será, pois, limpo, mas
tornado, do que resulta que limpo
não é um particípio passado, mas o adjetivo qualificativo que exprime a nova
condição – estática - que o objeto passa a apresentar
uma vez concluída a ação de em algo diferente o tornar.
Haverá, assim, que reconhecer que o particípio passado do verbo
tornar ou de um equivalente se encontra sempre presente, embora omisso,
nas frases que exprimem, na voz passiva, uma alteração da qualidade ou do
estado de um objeto – que aqui atua como sujeito -, independentemente da forma
como é conjugado o verbo auxiliar, sendo, então, forçoso concluir pela
inexistência de verbos abundantes com dois particípios passados, um
regular e o outro irregular.
Na voz passiva, o particípio passado – elidido – do verbo tornar será,
então, seguido pelo adjetivo qualificativo que escolhermos aplicar, atualmente
chamado particípio passado regular.
Isto, porque, embora omisso, estando na voz passiva o particípio passado de tornar sempre presente, se o limpo que se lhe segue fosse, também ele, classificado como particípio passado - como a atual regra pretende - teríamos dois particípios passados seguidos, algo que me parece que a língua portuguesa não iria suportar.
Note-se, por fim, que, quanto à estrutura da oração no que se refere aos nomes
predicativos, quer do sujeito, quer do complemento direto, a nova regra aqui
proposta nada vem alterar.
3. As Exceções da Mudança
Falta dizer que, como é sabido, a linguagem corrente se vem encarregando de suprimir alguns dos mais comuns particípios passados terminados em -ado e -ido, metamorfoseando-os em ditas exceções que mais não representam, afinal, do que a cómoda adoção, como particípio passado, da forma tendencialmente mais breve do adjetivo qualificativo (entre outros, feito por fazido, dito por dizido, escrito por escrevido), para já não falar daqueles particípios passados ditos regulares que talvez jamais tenham existido, como os correspondentes a posto, vindo e visto.
Não obstante, a adoção do que acima proponho poderá levar a que, em nome e na
salvaguarda da clareza na expressão, se logre suster a degeneração na
ambiguidade a que, inexoravelmente, conduzirá a eliminação das formas ainda
resistentes de particípio passado em -ido e -ado,
particularmente daquelas que, como no exemplo limpado - e, com ele, em
tantos outros como acendido, cobrido, descobrido,
dispersado, enchido, ganhado,
gastado, imprimido, matado, ocultado,
pagado, prescrevido (surpreendentemente, já que contém
“escrevido”), salvado ou sujado -, também se encontram em vias de extinção em benefício da
forma do adjetivo qualificativo – a que a regra atual chama “particípio passado regular”.
No sentido inverso, não parece existirem exceções, apenas situações em que a
ação não gera alteração da qualidade ou do estado. É o que acontece, por exemplo, com os particípios passados
assassinado, chegado, enganado, obrigado/desobrigado, molhado e trazido, para o qual não existe adjetivo qualificativo
diferenciado correspondente, numa forma sintética, uma vez que, por
exemplo, pelo simples facto de um objeto ser trazido, não fica treito,
ou coisa que o valha, mas sim na mesma condição anterior ao facto de ser
trazido, a menos que tenha ela sido alterada por qualquer incidente no
percurso devido a causa não diretamente inerente ao ato de trazer, logo,
irrelevante para o assunto que aqui nos traz.
Pelo que a nova regra agora proposta possa valer, aqui fica ela, para o caso de alguém autorizado a querer considerar, por entender não ser verdade que, para a gente comunicar… “Tanto faz !”.
* *
Este tema dos particípios, do limpo ou limpado é, talvez, um dos mais polémicos e interessantes da gramática portuguesa, ocorrendo a dúvida muito frequentemente e nas mais variadas situações do dia-a-dia.
No entanto, não menos importante e suscetível de gerar dúvidas a cada passo é a velha questão do "aluga-se quartos" ou "alugam-se quartos", "vende-se casas", ou "vendem-se casas".
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela
utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor
dela fará
Casos de Particípio Passado "em Risco"
(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista
informando no espaço "Comentários")
aberto ou abrido
aceite ou aceitado
aceso ou acendido
assente ou assentado
ativo ou ativado
bento ou benzido
cheio ou enchido
coberto ou cobrido
completado ou completo
concluso ou
concluído
corto (regionalismo alentejano) ou cortado
descoberto ou descobrido
disperso ou dispersado
eleito ou elegido
empregue ou empregado
entregue ou entregado
envolto ou envolvido (ex: no crime)
expresso ou expressado
expulso ou expulsado
extinto ou extinguido
enxuto ou enxugado
expulso ou expulsado
farto ou fartado
findo ou findado
frito ou fritado (frigido)
ganho ou ganhado
gasto ou gastado
imerso ou imergido
impresso ou imprimido
incluso ou incluído
isento ou isentado
inserto ou inserido
isento ou isentado
junto ou juntado
liberto
ou libertado
limpo ou limpado
morto ou matado
oculto ou ocultado
omisso ou omitido
pago ou pagado
preso ou prendido
prescrito ou prescrevido
revolto ou revolvido
roto ou rompido
salvo ou salvado
seco ou secado
seguro ou segurado
solto ou
soltado
submerso ou submergido
sujo ou sujado
suspenso ou suspendido
tinto ou tingido
vago ou vagado
A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.
Acabo de ler, numa publicação da Internet, que certos trabalhos de desenvolvimento informático 'foram sendo atrasos'.
ResponderEliminarOcorre-me que a asneira pode ter-se devido a uma de duas situações:
- um simples 'lapsus digitorum' daqueles a que qualquer um está sujeito;
- ter a febre da simplificação e a subjacente ignorância chegado a pontos de se inventar adjetivos que não existem, nem sequer nos liberalíssimos dicionários da internet (atraso é, sempre, um substantivo ou forma verbal).
Como, também nestas coisas da língua portuguesa, o meu espírito necessita de paz, a primeira das duas hipóteses será aquela em que me vou forçar a acreditar...
Caro Senhor António Ladrilhador,
ResponderEliminarCada vez que posso, mas com muita frequência, leio o seus escritos com atenção. Aprendo sempre. Gosto, especialmente, desta secção dedicada à Língua Portuguesa. Curiosamente, eu, que tenho criticado algumas das suas posições expressas noutras áreas, julgo ter discernido aqui - no seu próprio comentário - uma das muitas motivações que, nesses assuntos, o animarão! Refiro-me àquilo que tomo como uma confissão: "... o meu espírito necessita de paz...". Bendito desassossego, que é tão produtivo! Por certo, daqui em diante, percebê-lo-ei melhor, mesmo se de si discordar.
Saudações cordiais.
Concordando ou discordando, será sempre bem-vindo.
EliminarVotos de um excelente fim-de-semana.