sábado, 15 de maio de 2021


Limpo ou Limpado?

"Não encontrei um único caso em que a forma do
assim chamado particípio passado irregular diferisse
da forma do correspondente adjetivo qualificativo, o que, desde logo,
poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância
consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são,
sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma"

   
   1. A Regra Comummente Aceite
   2. Onde a Lógica Parece Falhar
   3. As Exceções da Mudança


Glossário

Na reflexão que se segue, referir-me-ei a:

 *) particípio passado como uma forma verbal terminada em -ado ou em -ido, declinável em género e número, que se refere a uma ação empreendida no passado pelo sujeito;

*) objeto como a pessoa ou a coisa relativamente à qual foi empreendida essa ação;

Coberto ou cobrido
*) verbo abundante como aquele para o qual se diz coexistirem duas formas de particípio passado, uma delas chamada particípio passado longo, regular ou fraco, e a outra designada por particípio passado curto, irregular ou forte;

*) adjetivo qualificativo como uma palavra declinável em género e em número que indica a natureza ou condição permanente (qualidade) de alguém ou de algo, ou a sua condição temporária (estado);

*) tornar como um verbo que significa transformar ou modificar alguém ou algo, imprimindo-lhe determinado estado ou qualidade diferente do que apresentava antes da ocorrência.

1. A Regra Comummente Aceite

Uma questão das que me parece mais facilmente poderem conduzir, por um lado, à hesitação na escrita ou na fala e, por outro, à ambiguidade na interpretação é a inexistência de uma norma gramatical precisa - e fundamentada em lógica clara e consolidada - quanto à adequada utilização do particípio passado.

Alguma pesquisa empreendida levou-me a concluir que uma regra mais ou menos consensual poderá ser formulada assim:

a)    na voz ativa, isto é, nos casos em que é referida a intervenção do sujeito, enquanto agente, como causadora da alteração da qualidade ou do estado do objeto, emprega-se o chamado particípio passado irregular – como em “depois de eu o ter limpado” -, habitualmente antecedido por uma forma de um dos verbos auxiliares ter ou haver;

b)   na voz passiva, ou seja, nos casos em que é, simplesmente, referida a alteração do estado ou da qualidade do objeto, mas desta vez sendo este o sujeito e indeterminado o agente, emprega-se o designado por particípio passado regular – como em “foi limpo” -, normalmente antecedido por uma forma de um dos verbos ser ou estar, aqui utilizados como auxiliares;

Limpo ou limpado
c)  nos casos em que não existe qualquer ação ou alteração da condição do objeto, mas apenas a informação quanto à mesma, independentemente do tempo - e seja ela temporária ou permanente mas não atribuível a um terceiro - não se emprega qualquer das chamadas formas do particípio passado, mas sim o adjetivo qualificativo – como em “ele é limpo” (ele é uma pessoa limpa), “ele foi limpo” (ele foi, em tempos, uma pessoa limpa), “ele era limpo” (ele era, em tempos, uma pessoa limpa) ou “ele está limpo” (hoje, ele está limpo, embora possa não o estar habitualmente) - também antecedido, habitualmente, de uma forma de um dos verbos ser ou estar, embora aqui atuando como verbo principal, já que, não sendo referida qualquer ação externa que, no passado, haja provocado uma alteração da qualidade ou do estado do objeto, não há lugar à utilização de um particípio passado antecedido por um verbo auxiliar.

2. Onde a Lógica Parece Falhar

O que sintetizei em 1. c) quanto à utilização do adjetivo qualificativo parece pacífico entre as pessoas que, na Internet, se pronunciam sobre este assunto.

Gasto ou gastado
Há, no entanto, que salientar que não encontrei um único caso em que a forma do assim chamado particípio passado irregular referido em 1. b) diferisse da forma do correspondente adjetivo qualificativo – limpo e limpo -, o que, desde logo, poderá fazer-nos aventar a hipótese de estarmos perante uma notória redundância consubstanciada na adoção inútil de classificações distintas para termos que são, sempre, exatamente iguais, e declináveis exatamente da mesma forma.

Mas o que significa, na verdade, dizer que algo “foi limpo”?  Em que consiste este particípio passado irregular?

Salvo melhor opinião, entendo que “foi limpo” significa que algo “foi tornado limpo”, "foi-lhe dada a qualidade ou estado de limpo", apenas acontecendo que, abreviando por comodidade de expressão, acabamos por omitir a forma do verbo tornar - como em "viu-se (tornado) envolto em polémica".

O particípio passado de “foi limpo” não será, pois, limpo, mas tornado, do que resulta que limpo não é um particípio passado, mas o adjetivo qualificativo que exprime a nova condição – estática - que o objeto passa a apresentar uma vez concluída a ação de em algo diferente o tornar.

Haverá, assim, que reconhecer que o particípio passado do verbo tornar ou de um equivalente se encontra sempre presente, embora omisso, nas frases que exprimem, na voz passiva, uma alteração da qualidade ou do estado de um objeto – que aqui atua como sujeito -, independentemente da forma como é conjugado o verbo auxiliar, sendo, então, forçoso concluir pela inexistência de verbos abundantes com dois particípios passados, um regular e o outro irregular.

Extinto ou extinguido
Com este enunciado bem mais simples e fácil de aplicar, estaremos perante um único particípio passado – terminado em -ado ou -ido (v. 3. infra) correspondente ao atualmente chamado irregular -, que será, na voz ativa, o do verbo principal e, na voz passiva, o do verbo tornar ou, pontualmente, o de uma expressão de significado idêntico, como, por exemplo, mudar para ou transformar em.

Um bom exemplo disso é a expressão, corrente nos tribunais, "foi presente ao juiz de instrução", na qual se não afigura possível negar a presença implícita de tornado, no sentido de "foi-lhe conferido o estado de presente perante o juiz".

Na voz passiva, o particípio passado – elidido – do verbo tornar será, então, seguido pelo adjetivo qualificativo que escolhermos aplicar, atualmente chamado particípio passado regular

Isto, porque, embora omisso, estando na voz passiva o particípio passado de tornar sempre presente, se o limpo que se lhe segue fosse, também ele, classificado como particípio passado - como a atual regra pretende - teríamos dois particípios passados seguidos, algo que me parece que a língua portuguesa não iria suportar.

Note-se, por fim, que, quanto à estrutura da oração no que se refere aos nomes predicativos, quer do sujeito, quer do complemento direto, a nova regra aqui proposta nada vem alterar.

3. As Exceções da Mudança

Falta dizer que, como é sabido, a linguagem corrente se vem encarregando de suprimir alguns dos mais comuns particípios passados terminados em -ado e -ido, metamorfoseando-os em ditas exceções que mais não representam, afinal, do que a cómoda adoção, como particípio passado, da forma tendencialmente mais breve do adjetivo qualificativo (entre outros, feito por fazido, dito por dizido, escrito por escrevido), para já não falar daqueles particípios passados ditos regulares que talvez jamais tenham existido, como os correspondentes a posto, vindo e visto.

Impresso ou Imprimido
Sem prejuízo de ainda ser, porventura, possível fazê-lo, não se afigura razoável pretender que, tanto tempo decorrido a falar e a escrever assim, se deva, agora, reverter esta situação.

Deveremos considerar, também, casos menos claros, como os de internado e interno, cuja utilização caótica e ambígua dificulta o enquadramento numa regra perfeitamente enunciada.

Não obstante, a adoção do que acima proponho poderá levar a que, em nome e na salvaguarda da clareza na expressão, se logre suster a degeneração na ambiguidade a que, inexoravelmente, conduzirá a eliminação das formas ainda resistentes de particípio passado em -ido e -ado, particularmente daquelas que, como no exemplo limpado - e, com ele, em tantos outros como acendido, cobrido, descobrido, dispersado, enchidoganhado, gastado, imprimido, matadoocultado, pagado, prescrevido (surpreendentemente, já que contém “escrevido”), salvado ou sujado -, também se encontram em vias de extinção em benefício da forma do adjetivo qualificativo – a que a regra atual chama “particípio passado regular”.

No sentido inverso, não parece existirem exceções, apenas situações em que a ação não gera alteração da qualidade ou do estado.  É o que acontece, por exemplo, com os particípios passados assassinado, chegado, enganadoobrigado/desobrigado, molhado trazido, para o qual não existe adjetivo qualificativo diferenciado correspondente, numa forma sintética, uma vez que, por exemplo, pelo simples facto de um objeto ser trazido, não fica treito, ou coisa que o valha, mas sim na mesma condição anterior ao facto de ser trazido, a menos que tenha ela sido alterada por qualquer incidente no percurso devido a causa não diretamente inerente ao ato de trazer, logo, irrelevante para o assunto que aqui nos traz.

Pelo que a nova regra agora proposta possa valer, aqui fica ela, para o caso de alguém autorizado a querer considerar, por entender não ser verdade que, para a gente comunicar… “Tanto faz !”.

* *

Este tema dos particípios, do limpo ou limpado é, talvez, um dos mais polémicos e interessantes da gramática portuguesa, ocorrendo a dúvida muito frequentemente e nas mais variadas situações do dia-a-dia.

No entanto, não menos importante e suscetível de gerar dúvidas a cada passo é a velha questão do "aluga-se quartos" ou "alugam-se quartos", "vende-se casas", ou "vendem-se casas".

A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


Casos de Particípio Passado "em Risco"

(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista informando no espaço "Comentários")

aberto ou abrido
aceite ou aceitado
aceso ou acendido
assente ou assentado
ativo ou ativado
bento ou benzido
cheio ou enchido
coberto ou cobrido
completado ou completo
concluso ou concluído
corto (regionalismo alentejano) ou cortado
descoberto ou descobrido
disperso ou dispersado
eleito ou elegido
empregue ou empregado
entregue ou entregado
envolto ou envolvido (ex: no crime)
expresso ou expressado
expulso ou expulsado
extinto ou extinguido
enxuto ou enxugado
expulso ou expulsado
farto ou fartado
findo ou findado
frito ou fritado (frigido)
ganho ou ganhado
gasto ou gastado
imerso ou imergido
impresso ou imprimido
incluso ou incluído
isento ou isentado
inserto ou inserido
isento ou isentado
junto ou juntado
liberto ou libertado
limpo ou limpado
morto ou matado
oculto ou ocultado
omisso ou omitido
pago ou pagado
preso ou prendido
prescrito ou prescrevido
revolto ou revolvido
roto ou rompido
salvo ou salvado
seco ou secado
seguro ou segurado
solto ou soltado
submerso ou submergido    
sujo ou sujado
suspenso ou suspendido
tinto ou tingido
vago ou vagado

A evolução das línguas vivas haverá de acontecer, como tudo o resto, no tempo devido e a um ritmo razoável, por oposição à crescente tendência para cada um falar como muito bem lhe apraz, na esperança de que, por artes de adivinhação ou por qualquer outro processo transcendental, o outro entenda o que alguém lhe quer dizer - mesmo que lhe seja dito precisamente o contrário do que acabe por entender.


3 comentários:
  1. Acabo de ler, numa publicação da Internet, que certos trabalhos de desenvolvimento informático 'foram sendo atrasos'.
    Ocorre-me que a asneira pode ter-se devido a uma de duas situações:
    - um simples 'lapsus digitorum' daqueles a que qualquer um está sujeito;
    - ter a febre da simplificação e a subjacente ignorância chegado a pontos de se inventar adjetivos que não existem, nem sequer nos liberalíssimos dicionários da internet (atraso é, sempre, um substantivo ou forma verbal).
    Como, também nestas coisas da língua portuguesa, o meu espírito necessita de paz, a primeira das duas hipóteses será aquela em que me vou forçar a acreditar...

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  2. Caro Senhor António Ladrilhador,

    Cada vez que posso, mas com muita frequência, leio o seus escritos com atenção. Aprendo sempre. Gosto, especialmente, desta secção dedicada à Língua Portuguesa. Curiosamente, eu, que tenho criticado algumas das suas posições expressas noutras áreas, julgo ter discernido aqui - no seu próprio comentário - uma das muitas motivações que, nesses assuntos, o animarão! Refiro-me àquilo que tomo como uma confissão: "... o meu espírito necessita de paz...". Bendito desassossego, que é tão produtivo! Por certo, daqui em diante, percebê-lo-ei melhor, mesmo se de si discordar.
    Saudações cordiais.

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    Respostas
    1. Concordando ou discordando, será sempre bem-vindo.
      Votos de um excelente fim-de-semana.

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