(Introdução à Secção 'Vida')
"Obstinar-se na defesa do impossível contrário não passa do paradoxo
de
alguém pretender raciocinar além da razão, assim negando o primado da
racionalidade"
Acontecendo tais impactos entre mais do que uma entidade não viva e
de forma não provocada pela vontade dos sugestionáveis mortais que
somos, se chegarmos à conclusão de que, em múltiplas repetições daqueles, os
mesmos efeitos visíveis se devem a uma mesma não provocada e imprevista
causa, haverá que concluir que esta não é produto da nossa imaginação, tão
fértil para quase tudo e que, em tal caso, estaria, de forma entediante, a
imaginar sempre um mesmo resultado para algo que, hipoteticamente, não
passasse de uma mera e recorrente ilusão, já que, a despeito da nossa – pelo
menos, da minha – quase total ignorância da matéria, percecionaríamos
precisamente da mesma forma essa fantasmagórica visão, fenómeno que
seria evidenciado pela troca de ideias entre os indivíduos presentes nos
mesmos locais e nas mesmas ocasiões.
Por outras palavras, se sendo nós independentes uns dos outros e dotados de
cérebros diferentes funcionando também independentemente,
percecionamos de idêntica forma algo que não provocamos e de cuja ocorrência
não tínhamos conhecimento antecipado, descrevendo depois, uns aos outros, da
mesma forma o mesmo acontecimento e os seus eventuais efeitos, haverá que
concluir que o facto ocorreu fora do nosso imaginário individual ou
coletivo, independentemente dele e da forma de funcionamento dos cérebros
capazes de o idealizar, os quais, sendo manifestamente diferentes entre si –
mesmo na sua eventual virtualidade -, para um mesmo tipo de evento observam
sempre resultados que podemos considerar globalmente iguais.
A distinção entre o deliberado e o acidental apresenta-se-me,
pois, essencial para fundamentar a rejeição da ideia da inexistência do
Mundo tal como todos o vemos e descrevemos – mais coisa, menos coisa,
já se sabe.
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Mesmo que se insista em admitir como possível a ilusão quanto à identidade
na aparência dos factos ou dos seus efeitos, não parece razoável considerar
que o remédio dado, num local onde não estivemos e por um terceiro que não
vimos atuar, seja eficaz se não tiver obedecido a um conhecimento teórico
adequado à reparação de danos idênticos causados por idênticos factos.
Se o meu automóvel parece ter o radiador furado e, na sequência da aparente
intervenção, numa oficina a que não tive acesso, por parte de alguém que
jamais vi e cuja identidade absolutamente desconheço, o popó vem de lá como
novo, é porque a intervenção não foi assim tão aparente e seguiu o
procedimento técnico adequado, definido pelas especificações do fabricante e
pela anterior experiência do mesmo mecânico no decurso de intervenções
diversas relativas a bem reais avarias do mesmo tipo.
A questão de tudo quanto julgamos ver ser irreal, enquanto mera hipótese, é
legítima. Perante qualquer simples facto, continua a sê-lo. Mas
soçobra, irremediavelmente, quando um terceiro se apercebe, de forma
idêntica à nossa, do efeito provocado; e, sobretudo, quando pelo mesmo
procedimento por nós totalmente desconhecido, o dano é inegável e
eficazmente reparado, sabendo-se que apenas por milagre seria possível o
carro avariado ou danificado, por si só, voltar a andar; e quem tanto
insiste em exercitar a mioleira com sandices que insultam a própria razão
não acredita em milagres, pelo que, quanto a este ponto, nada haverá a
acrescentar.
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Também no plano da perceção individual a distinção entre o deliberado e o
acidental é importante: ao picar, deliberadamente, um dedo com uma
agulha para fazer sair uma gota de sangue, poderei estar a iludir-me, quer
quanto à existência do dedo – e do resto de mim, já agora -, quer quanto ao
ato de picar, quer quanto à existência da agulha, quer, ainda, quanto à
pequena hemorragia resultante. Numa picadela acidental, em
contrapartida, só ao ver o meu dedo começar a sangrar irei investigar a
causa do sangramento para, então, concluir que ele se deveu, por exemplo, ao
corte por um espinho ou farpa qualquer. Trata-se, assim, de um
acontecimento do qual me apercebo apenas através dos seus efeitos, um
acontecimento que não observei nem pude imaginar. Quanto aos
efeitos, podem dizer que a dor é ilusória, mas, nesse caso, quando lhes
acontecer uma dessas ilusões, não desatem a gemer ou a gritar.
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A repetição dos mesmos efeitos devidos à mesma causa diz bem da
efetiva existência das duas entidades – os dois blocos de matéria
inorgânica, ou o dedo e o espinho – mutuamente independentes antes do facto
e depois dele também e que, ao interagir, revelam a respetiva existência. No
caso de um impacto acidental, estaremos, indubitavelmente perante a
constatação de um efeito inesperado, que acabamos por concluir ter sido
originado por uma causa independente da experimentação ou de qualquer outra
manifestação da vontade – logo, de qualquer humana elucubração.
Dito isto, resta constatar a existência da realidade, que, na
definição dada pelos humanos que talvez não existam, se opõe à ilusão.
A uns outros que sustentam que as coisas só existem quando nos apercebemos delas*), que "a realidade só se materializa quando alguém a observa" pedirei que me expliquem quando aconteceu, quanto existiu, por exemplo, a extinção do Cretáceo-Paleógeno*): há perto de sessenta e seis milhões de anos atrás, quando nem seres humanos havia, ou há uns anitos atrás, quando os cientistas assim concluíram? Ou, como não a viram, nem terá existido, até? Quando o gato do meu vizinho come um gafanhoto sem assistirmos ao repasto, significa isso que o gafanhoto continua vivo? Ou a visão pelo gato – e a deglutição, já agora - também serve para fazer as coisas e os factos existir, para os tornar reais?
Se, ao passar com uma ferramenta na mão, inadvertidamente risco a pintura de
um automóvel, quando ocorreu o dano? No momento em que, sem alguma vez
chegar a do facto me aperceber, provoquei o risco ou quando, horas depois, o
proprietário da viatura constatou a sua existência?
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Como acontece relativamente a tudo quanto nesta porventura inexistente
página e nas que, na secção “Vida”, se lhe seguirão irei escrevendo, posso,
naturalmente, estar enganado; mas, como temos, sempre, de partir de algo
para conseguir chegar a alguma parte, considerarei que estou certo até
alguém me demonstrar que o não estou, desde que o faça de forma
fundamentada, racionalmente credível e logicamente sustentada.
Já todos sabemos que a vida é uma sucessão interminável de incontroláveis fatalidades cujos efeitos gastamos a maior parte do tempo a tentar mitigar. Mas, depois de tudo por quanto temos de passar, seria demasiado mau não passarmos de almas penadas, assim constituindo um excesso claro, improdutivo e condenável o facto de, para parecer diferente, alguém decidir ocupar-se da exaltação do distópico, fingindo que são diferentes as verdades imutáveis às quais, em última análise, uns e outros acabamos por nos arrimar. Àqueles que, graças a um processo mental cuja existência sou eu que não consigo idealizar, insistem na cómoda presunção da existência de nada, sem ter, sequer, um ponto de partida que lhes permita caminhar até ao próprio e inexorável ponto de chegada, apenas posso sugerir que, porque, se nada existe, nada vale a pena e nada há do que falar, se mantenham silentes na sua nesse caso inexistente zona de conforto, em lugar de se consumirem e à nossa paciência a discursar sobre… nada. Pelo menos, sobre nada de que valha a pena falar
Toda esta história acerca da nossa não existência ilustra, assim, muito
bem a diferença entre uma ideia boa e uma, como essa, que não passa de uma
ideia… original; como tantas outras que acorrem ao espírito de quem,
por ter pouca graça, se esforça por ser, pelo menos… original.
Afinal, Deus existe mesmo, ou não passa de pura invenção de um ser humano que desespera com a efemeridade da sua existência? NÃO PERCA uma reflexão lógica, fundamentada, sobre o tema porventura mais elementar e decisivo da vida humana. |
A existir um deus, será ele o representado
no teto da Capela Sistina? Jeová? Alá? Manitou? Ou nenhum destes? |
Grande texto. Sem dúvida para ser lido mais do que uma vez. O que de facto eu pretendo fazer. Este texto na minha opiniao é bastante racional, o que será obviamente esse o objetivo do seu autor, que verdade seja dita, sabe bem como escrever.
ResponderEliminarQuanto ao lado arcano da vida, o texto nao tem intençao nenhuma em provar nada, apenas pretende ser um texto de deixar voar a imaginaçao em forma literária, se é que assim se pode chamar. De que nos vale a vida sem acreditar, dormir sem sonhar...
Parabens pelo seu excelente artigo. Aliás, como os que ja tive oportunidade de ler desde que vim espreitar o seu blog.
Muito obrigado, uma vez mais, pela apreciação que faz do meu modesto esforço. Fico, verdadeiramente, feliz por encontrar utilidade naquilo que escrevo.
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