O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da
proliferação de
situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor
que se impõe, é, à boa maneira portuguesa,
passar uma esponja sobre o
assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados,
porventura
de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a
administração da justiça deve ser.
Não posso queixar-me da minha infância.
Claro está que houve quem a tivesse mais alegre, mais ‘feliz’ do que eu, mas
não terá sido esse o caso da grande maioria dos meus concidadãos. Posso, pois
, considerar-me, sob esse aspeto, privilegiado, não me tendo tornado num
daqueles infelizes que, por de uma infância falha de afetos terem tido que
aprender a defender-se, durante toda a vida serão avessos às investidas do
afeto de quem lho quiser dispensar.
Quem me fez crescer sabia bem que não se educa crianças com jogadas táticas,
mas com opções estratégicas, e que não se tem crianças por ter, para procriar
como os bichos, para mostrar à família e à vizinhança ou seja lá para com que
objetivo mais aberrante for, deixando-as depois, mesmo de tenra idade, à sorte
delas, já que a vida de quem as fabricou não pode, evidentemente, ser
prejudicada ou, sequer, molestada nas suas rotinas – sobretudo nas de lazer –
pela necessidade de atender às mais elementares carências e anseios de quem os
primeiros passos ainda estará, talvez, a aprender a dar.
Se, como terá dito um eminente estadista francês de há uns séculos atrás, “o destino de uma criança é,sempre, fruto do tratamento da mãe”, não poderemos surpreender-nos com a degradação crescente da qualidade
humana de muitos que nos rodeiam, não tanto por culpa própria, mas, desde o
berço, pela indiferença, pelo enfado, pelo descuido por vezes não apenas
comprometedor da qualidade do futuro, mas, até, da existência dele.
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Quando a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens dá conta de uma quantidade crescente, não apenas de crianças largadas à toa*), mas, lembrando a Roda dos Expostos*), de bebés, de diversas nacionalidades, enjeitados à nascença em Portugal, quer em ambiente doméstico, quer hospitalar, gerando níveis críticos de apreensão quanto à evolução de milhares de casos narrados quase diariamente, é impossível deixar de me comover e de pensar que um desses desgraçados… podia ter sido eu.
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Mesmo quando, na origem de uma tragédia, o dolo, ainda que eventual, inexiste;
mesmo quando se trata de mais ou menos grave negligência decorrente de
cansaço, de exaustão, de insónias recorrentes, de pressão profissional, de uma
daquelas horas em que o tempo e o espaço parecem passar por nós sem que deles
nos apercebamos, não deixa de ser evidente, por muito legítimas e até,
naturais, que a explicação ou a justificação invocada possam ser, que a
criança negligenciada o foi porque não estava a ser, na mente e no coração do
cuidador, o principal objeto de atenção; e isto é válido mesmo que a tensão ou
a exaustão tenham sido adquiridas em atividades em prol da própria criança ou
dos seus irmãos.
Não é vergonha pedir ajuda, quando nos sentimos incapazes, especialmente se a tal ponto chegamos por razões legítimas e, até, louváveis. É, antes, vergonha não o fazer, dessa forma expondo a inevitáveis e desmesurados riscos quem não tem como deles se defender, vergonha tanto maior quanto maior for o grau de formação*)– e, desejavelmente, da correspondente educação - do responsável.
Especialmente tratando-se de uma mãe – admitindo, naturalmente, que se trate
de alguém capaz de experimentar os sentimentos que consensualmente a sociedade
considera naturais e saudáveis por parte de uma mãe -, tampouco pode
esquecer-se ou ignorar-se o sofrimento imenso que poderá estar a sentir quem
deixou de prestar a atenção e o cuidado necessários a uma menor cuja tenra
idade de dois anos evidentemente tornava incapaz de se libertar da clausura e
da inerente tortura por privação de ar para respirar.
Não obstante, oblivio signum negligentiae, não sendo verdade que a
autora não deve ser investigada e, eventualmente, acusada e punida, se for
julgada culpada, mais a mais tendo em conta, por um lado que existe um crime
denominado homicídio por negligência e, por outro, que a tese do
esquecimento não passa de uma suposição, de mera alegação.
O que não pode fazer-se, por ser socialmente condenável e propiciador da proliferação de situações congéneres em lugar de ter o papel inibidor que se impõe, é, à boa maneira portuguesa, passar uma esponja sobre o assunto, como parece quererem fazer meia dúzia de espíritos exaltados, porventura de boa fé, mas completamente a leste do paraíso quanto ao que a administração da justiça deve ser*).
Podia ter acontecido na infância de qualquer de nós, que já nascemos na era do
automóvel.
Aquela criança que morreu e tanto sofreu, poderia ter sido o meu caro
Leitor.
Podia ter sido eu.