"Para os dicionários consultados, ato tanto pode ser a ação como o seu resultado,
e facto tanto pode ser o resultado da ação ou ela mesma, não havendo,por
este andar,
de estar longe o dia em que será indiferente dizer
qualquer coisa ou o seu contrário,
desde que – por artes mágicas,
porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender"
2. Polissemia que Degenera em Confusão
3. Confusão no Tribunal
4. Notas Finais
1. Descrédito Crescente dos Dicionários
O que é um dicionário?
As pessoas da minha não muito ínclita geração, habituaram-se a venerar estes
anafados volumes em papel como uma espécie de cardápio de todas as palavras
que compõem um idioma - excluindo, naturalmente, as conjugadas e declinadas,
bem como o mais pesado palavrão -, e a eles sempre recorriam ao
deparar com um vocábulo novo e, para elas, desconhecido, ou quando uma dúvida
emergia relativamente a determinado significado ou ortografia.
Dicionários – sempre em papel, já que o digital ainda não era, sequer, uma
quimera -, havia diversos, uns mais conhecidos e tidos como fiáveis do que
outros, mas todos credores do maior respeito e tidos por fiáveis e
rigorosos.
Isto, era dantes.
O mais triste é que nada disto verdadeiramente espanta, se tivermos presentes as adaptações e concessões que simultânea e constantemente vão desvirtuando até as próprias regras gramaticais, hoje em dia eivadas de explicações no mínimo criativas - embora, muitas delas, de espantosa ilogicidade -, cada um palrando como muito bem lhe apetece, indiferente à teoria e à forma desde que, melhor ou pior, lhe pareça que se faz entender.
2. Polissemia que Degenera em Confusão
A título de exemplo, uma breve pesquisa nos dicionários em linha na Internet,
mostra-nos, para a palavra facto e entre muitos outros, o significado
de “coisa realizada, ato, feito”, ou de “ação, resultado acabado ou que está em vias de execução”, “ação de fazer alguma coisa; processo”.
Para ato, encontramos, por sua vez, “ação considerada na sua essência ou resultado. [Por extensão] Feito, facto”, “Funcionamento da habilidade de atuar ou agir, ou referente àquilo que dessa
ação resulta; (Por extensão) Ocorrência ou facto”.
Quer isto dizer que, para os dicionários consultados, ato tanto pode
ser a ação como o seu resultado, e facto tanto pode ser o resultado da
ação ou ela mesma, não havendo, por este andar, de estar longe o dia em que
será indiferente dizer qualquer coisa ou o seu contrário, desde que – por
artes mágicas, porventura – pareça que, mesmo assim, nos faremos entender.
Aplicando a esta fantasiosa cartilha a propriedade transitiva "se é verdade que, se A é igual a B e B é igual a C então A é igual a C", teremos que facto e ato são a mesmíssima coisa, o que cedo se apresentará como um rematado dislate a qualquer pessoa que se disponha a dispensar uma porção mínima dos seus neurónios a refletir sobre a matéria.
Note-se que não estamos, sequer, em presença de um caso de ambiguidade ou
vagueza, uma vez que entre uma ação (ato) e o correspondente
acontecimento (facto) não existe confusão possível: o
segundo é, sempre, resultado do primeiro, ainda que este nasça de um
ato da Natureza - ou como lhe quisermos chamar -, com isto se
entendendo qualquer coisa desde um movimento tectónico até ao ataque por um
lobo em busca da sua vianda diária, passando por tudo o resto que não decorra
de um ato humano explícito, identificável e atribuível a um sujeito, sem
prejuízo, naturalmente, da eventual responsabilidade de seres humanos em
outras ações ou omissões identificadas como causas, ainda que indiretas,
desses naturais acontecimentos.
Um incêndio é um facto, e não passa de um facto. Pode é dar-se que a causa direta desse facto tenha sido um ato, doloso (fogo posto) ou negligente (um fósforo em brasa atirado, impensadamente, ao ar), que o tenha determinado.
Um facto, ou é espontâneo, ou é gerado mediante a prática, por alguém, do ato que o origina.
Não se pratica uma cadeira: constrói-se uma cadeira, dá-se-lhe existência (facto) através da prática dos atos necessários à obtenção do resultado pretendido: serra-se a madeira, prega-se os pregos e por aí fora, todos eles atos visando a conssecução do resultado final idealizado: uma cadeira.
Para que ocorra o facto de a cadeira passar a existir, é necessária a prática de uma série de atos na sequência definida no procedimento técnico adotado pelo marceneiro. Da mesma forma, jamais uma pessoa poderá praticar um facto, apenas lhe sendo possível dar-lhe existência, torná-lo real, como resultado mediato ou imediato do ato ou dos atos que praticar.
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Qual é, então, a função de um dicionário?
Elucidar quanto aos significados que o costume sedimentado e enriquecido pela obra de consagrados autores gradualmente foi associando a cada termo ou, obedientemente, aos primeiros ir aditando todas as semelhanças, por muito ténues, que o falador mais ignorante resolver começar a associar-lhe, por ignorância, arrogância ou parola gabarolice?
Não tarda irá aparecer por aí um autodenominado dicionário que nos dirá
que, além da vintena de significados que já lhe atribuem,
rasgar significa também arrasar, dar cabo de, como agora
é uso dizer-se nas redes supostamente sociais. Será, então, caso de rasgar mas é o dito dicionário – ou melhor, de o
deletar, como alguns gostam de dizer, já que bytes ainda ninguém
descobriu como rasgar.
Ao gosto pela elegância na escrita sucedeu o mau gosto pela agressividade. Por este andar, a falta de exigência, de um mínimo de rigor, levará a que, um destes dias, rasgar signifique também… oferecer uma flor.
3. Confusão no Tribunal
Do que antecede haverá, naturalmente, que ressalvar termos como
escrita, em que
substantivos homónimos significam quer o ato de escrever, quer o seu resultado; e até o
correspondente adjetivo qualificativo, para complicar. No plano global, porém,
a proliferação vocabular não apenas traz consigo inevitável prejuízo
para o rigor e para a fiabilidade dos significados inscritos nestes
gigantescos índices de palavras, como facilmente conduz a evidentes erros
lógicos, por vezes com repercussões lamentáveis, nomeadamente em áreas
particularmente sensíveis do conhecimento e, dentro destas, a profissões cuja
dignidade imprescindível ao funcionamento do Estado nos levaria, com toda a
legitimidade, a esperar que cuidassem os seus agentes de falar e escrever de
forma estruturada, até elegante e, sobretudo, clara.
Um caso evidente é o da magistratura, com especial acuidade no que se refere ao rigor e clareza da redação das decisões judiciais e de outras peças jurídicas, elaboradas por técnicos dos quais, em prol da fiabilidade das decisões prolatadas, seria de esperar que, em todas as situações, soubessem demonstrar especial capacidade para interiorizar, com precisão e critério, os conceitos e as respetivas e evidentes diferenças, em lugar de ceder a este novo facilitismo lexical que se apresenta, não apenas absolutamente injustificado e inútil, como contraproducente, apenas servindo para descredibilizar o desempenho de quem a ele adere e para, nos espíritos menos esclarecidos, a dúvida e a confusão fomentar.
O léxico comum, mesmo corrompido pelo facilitismo e pela indiferença, distingue-se de forma inconfundível do léxico jurídico, por maioria de razão quando se trata de conceitos técnicos muito específicos e frequentemente nomeados. Sobretudo, não pode esse léxico comum inquinar ou desvirtuar conceitos que a teoria jurídica consagra e, até há algum tempo, a prática cuidava de aplicar.
Voltando aos atos e aos factos, e salvo melhor opinião,
facto jurídico é qualquer ocorrência suscetível de gerar ou extinguir
um direito, podendo também servir para manter ou alterar um direito
previamente existente. Já por
ato jurídico entende-se, não um acontecimento, mas uma ação humana que,
se for censurável, poderá corresponder a um comportamento deliberado ou
meramente culposo.
Para o Direito, um facto é, assim, o efeito da causa que, quando originada num ser humano, se designa por ato, legítimo ou não. Trata-se, pois, de duas realidades distintas, de duas definições inconfundíveis.
Como admitir, então, que em peças jurídicas, designadamente em acórdãos de altos tribunais e, até, de tribunais superiores, tantas vezes se leia que o arguido “cometeu os factos”, “praticou os factos pelos quais vem acusado”? (Para ver que não exagero, experimente o Leitor procurar no Google estas expressões…)
Como entender e aceitar que, durante a leitura do resumo do despacho instrutório*) relativo ao mais mediático megaprocesso da democracia portuguesa tenha o juiz hesitado visivelmente ao referir os “factos cometidos” por um dos arguidos? Como acatar uma decisão vinda de quem não reflete sobre alguns conceitos fundamentais que a ela subjazem?
Como, enfim, admirar e respeitar o legislador de um Código Penal Português que dispõe, repetidamente, sobre a "prática do facto"?
Salvo o devido respeito, como poderemos, com as devidas confiança e deferência, submeter-nos um dia ao julgamento de um magistrado, por muito graduado e considerado que seja, que reiteradamente demonstre nem algo tão elementar como a diferença entre os conceitos de facto jurídico e ato jurídico haver interiorizado, referindo-se a um e a outro como da mesmíssima coisa se tratasse? Como poderemos, em tais circunstâncias, confiar que a decisão do Areópago*) é sábia, segura e, sobretudo, rigorosa, características que lhe são legitimamente exigidas por quem à sua justiça se submete?
Isto, para não falar das trocas e das omissões de preposições, com as quais já
ninguém muito parece ralar-se, como há dias encontrei num aresto em “pugna que sejam dados como não provados os factos” e outras maravilhas da produção de pessoas para quem a gramática não passa,
porventura, de uma ligeira contrariedade para quem não tem, com ela, tempo a
perder.
No entanto, “uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete” *).
Falar e escrever corretamente é um exigente, constante e contínuo exercício de
inteligência e de lógica, executado sobre um suporte teórico que desde os
primeiros anos da instrução primária nos é transmitido; é uma permanente
demonstração do cuidado dispensado às coisas sobre as quais temos de nos
interessar – como o modo de nos exprimirmos, ainda que ao nível mais
rudimentar -, bem como da maior ou menor competência para, em tempo real,
decidir quanto à mais correta utilização da palavra, no escrupuloso respeito
pelas regras gramaticais.
Ora, se mesmo na fala a responsabilidade é tamanha, dado o mais dilatado tempo disponível, muito maior na escrita ela é, por maioria de razão.
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4. Notas Finais
Não é verdade que Tanto Faz!
A falta de rigor na expressão, particularmente na escrita, inquina fortemente
a credibilidade de quem escreve, pondo em causa, muito especialmente no caso
da magistratura, o âmago de uma função que é, simultaneamente, uma missão
essencial ao assegurar do cumprimento de leis pensadas e elaboradas para a
manutenção da ordem e da paz social, só nestas encontrando legitimação.
Podemos, até, ser os juízes mais sérios, mais sábios e tecnicamente mais sabedores que alguma vez prolataram uma decisão: ninguém alguma vez reconhecerá nos nossos escritos uma ciência que exprimimos com as palavras erradas; ainda que, quanto à substância, possamos ter, do nosso lado, a mais ampla razão.
Não basta saber: é preciso saber dizer.
* *
Caso bem recente e nascido, ao que tudo parece indicar, da ânsia de, através de uma suposta mas falsa originalidade, aparentar sabedoria que se não tem, é o da substituição de resistência por resiliência.
Ora, tratando-se, como se trata, de conceitos bem distintos, a utilização à toa dos correspondentes vocábulos apenas conduzirá a uma enorme confusão.