A resposta é "Vende-se casas",
não apenas como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas,
sobretudo, por ser esta, por dedução lógica, a correta formulação
gramatical
1. Casos de Ambiguidade Semântica
2. Uma Possível Origem da Confusão
ref
3. Comentários à Fundamentação Encontrada
3.1. Ao Argumento do "Soa Melhor"
3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores de Séculos Há
Muito Passados
3.3. Ao Argumento da "Cópia
do Francês"
3.4. Ao Argumento do "Reforço
da Ideia de Pluralidade"
3.5. Ao Argumento
de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva
3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva
Sintética"
3.7. Ao Argumento da "Regência de Preposição"
4. Em Jeito de Conclusão
5.
Proposta
1. Casos de Ambiguidade Semântica
Comecemos por ilustrar com o cenário imaginado de, na margem de uma pequena
lagoa, existir uma tabuleta com os dizeres “Aqui lavam-se cães”.
O que significa isto? O que quer transmitir-nos quem aquilo ali escreveu?
Se seguirmos a lusitana propensão para nos escusarmos a refletir, recorrendo à
mais elementar lógica, sobre estas coisas da língua falada e escrita, seremos
livres de entender como bem nos aprouver o que a tabuleta reza… e seremos
livres de cair no erro ao interpretá-lo, também.
No entanto, se preferirmos a precisão e a clareza, leremos “Aqui lavam-se cães” como um aviso para não nos banharmos naquele lago porque os simpáticos
animaizinhos têm o hábito de ali se lavar… cada um por si ou uns aos outros.
Inversamente, se nos identificarmos com o que parece ser a tendência cada
vez mais generalizada para, mesmo com o verbo no plural, considerar o
se, não como pronome reflexo, mas como
pronome indefinido - ou, como se habituaram a
chamar-lhe, partícula apassivante, partícula apassivadora ou pronome apassivante - quem escreveu
“Aqui lavam-se cães” terá podido querer dizer que
alguém ali costuma lavar os cachorros, ou que alguém ali
presta esse serviço.
O que daqui importa reter é que, se considerarmos aceitáveis ambas as formas,
se
Tanto faz! , ser-nos-á impossível conhecer a intenção de quem escreveu “Aqui lavam-se cães”, uma vez que deixaremos caminho aberto a qualquer das interpretações: que,
a eles próprios, os cães se lavam ali, ou que lá os lava alguém.
- x -
Imaginemos, agora, uma sala nas instalações de uma fábrica cuja atividade
produtiva represente especial risco para a integridade física de quantos lá
trabalham.
Durante a apresentação a um visitante, o guia informa: “Nesta sala, tratam-se os trabalhadores”, querendo transmitir que, quando algum se fere, ali vai tratar-se -
a si próprio - recorrendo, por exemplo, à caixa de primeiros
socorros disponível na sala. No entanto, a aceitarmos ambas as interpretações
acima enunciadas, também esta frase poderia tornar-se ambígua, na medida em
que poderia significar que algum trabalhador com conhecimentos na área da
saúde à mesma sala acederia sempre que necessário, a fim de tratar, não as
próprias feridas, mas as de colegas que se lesionassem, uma vez mais se
gerando a confusão entre o reflexo e
o indefinido, entre o próprio ou
alguém por ele.
Anexa a este texto existe uma listagem que, apesar de incompleta,
contém dezenas de situações de ambiguidade possíveis, como o caso de uma escola que
publicite “Aqui formam-se profissionais competentes e qualificados", pretendendo focar o esforço e o brio dos seus alunos. Ora, a
admitirmos a utilização do verbo no plural, poderia a escola, recorrendo à
mesma frase, estar afinal a pretender elogiar, não o empenho dos
alunos na própria formação - forma reflexa -, mas o esforço de
professores não nomeados, indefinidos, para a formação daqueles.
- x -
Este risco sério de ambiguidade semântica ocorre, na voz ativa, em presença de
verbos reflexivos correspondentes a ações que possam ser praticadas por uma
pluralidade de pessoas ou de animais tendo como objeto os próprios ou
idênticos a eles (se como pronome reflexo ou recíproco),
sempre que essas ações forem também materialmente suscetíveis
de ser sobre eles desencadeadas por um ou por vários terceiros
indefinidos (se como pronome indefinido, a tal
partícula apassivante que a alguns alunos tanta confusão faz, e bem).
Nos três exemplos acima, a dúvida quanto à real intenção dos autores das
frases apenas poderá ser afastada se, para significar que alguém lava
cães na lagoa, se anunciar, no singular, “Aqui lava-se cães”, e não "Aqui lavam-se cães"; se se
utilizar “Nesta sala trata-se trabalhadores” para dizer
que alguém trata os trabalhadores, em lugar de se tratarem eles; e se a escola
publicitar: “Aqui forma-se profissionais competentes e qualificados” referindo-se à atividade
docente e formam-se - a si mesmos - para a discente.
Estar-se-á, desta forma, a referir
sempre com o verbo no singular a ação empreendida por alguém indefinido
sobre um qualquer objeto, seja este singular ou plural, ficando as formas plurais
lavam-se,
formam-se
e
tratam-se reservadas para quando a ação de lavar, formar ou tratar for
desencadeada, sobre os próprios ou reciprocamente, por vários animais ou
pessoas
atuando como sujeitos.
Com o verbo no plural, se opera como pronome reflexo,
significando os próprios. Com o verbo no singular,
se opera como pronome indefinido, significando outrem,
alguém.
- x -
Um último exemplo, que recentemente encontrei: entende um dirigente de topo de
um partido português que “só devem ser vacinados os deputados que se consideram vitais”. Mas consideram-se eles vitais a si mesmos, uns aos outros, ou refere-se o
dirigente àqueles que se considera – ou seja, que
alguém exterior ao conjunto dos deputados considera - vitais ?
Eis, pois, definitivamente, estabelecida a confusão e instalada, por via do
facilitismo, a ambiguidade semântica -
e não apenas a sintática, como alguns pretendem -, e explanada a
razão desta reflexão.
2. Uma Possível Origem da Confusão
Além do reflexivo ou recíproco vendem-se e do indefinido vende-se, existe uma terceira construção que, por
utilizar o verbo no plural, poderá ter dado origem à forma
incorreta vendem-se pretendendo significar que alguém,
que não os próprios, vende. Trata-se do mais simples vendem, significando, na voz ativa e com sujeito também indeterminado, que há pessoas que vendem.
Encontramos esta formulação em expressões como "vendem por aí casas boas e baratas", também no sentido de que há quem por aí venda casas boas e baratas. Ou seja: existe uma forma do verbo no plural da terceira pessoa que,
é verdade, exprime, de forma gramaticalmente correta, a ideia de que alguém
age sobre as casas, vendendo-as.
Note-se que esta terceira forma tem, relativamente ao
degenerado vendem-se, a única diferença de não incluir o se
- seja lá como for que queiramos classificá-lo.
Porventura
por, dada a inexistente diferença de significado entre eles, ter havido
quem confundisse este vendem com o seu sinónimo vende-se, terá a forma vendem acabado por degenerar em vendem-se,
não por tal corresponder a um aperfeiçoamento lógico, racional,
criterioso do idioma, mas apenas por facilitismo, por se haver abdicado de pensar nestas coisas
da língua e assumido, erroneamente, que, afinal... Tanto faz!
Não encontrei qualquer referência à razão pela qual terá sido inventada a
designação partícula apassivante para algo que, com o verbo no
singular, não passa, afinal, de um pronome indefinido,
classificação bem mais adequada a este se que,
muito simplesmente, faz as vezes do indiscutível pronome indefinido alguém. Penso, no entanto, que o assunto
é relevante e digno de consideração, se quisermos ficar com uma ideia
abrangente sobre a problemática em discussão.
3. Comentários à Fundamentação Encontrada
3.1. Ao Argumento do "Soa Melhor"
Encontrei, por essa Internet, quem diga que há linguistas que preferem a forma
vendem-se casas - e outras coisas que a si próprias ou umas às
outras não podem ser vendidas -
porque soa melhor, ou
porque subjaz uma suposta intenção estilística de valorizar a ação, e não o
agente*).
Sempre com o devido respeito, a estes direi que, no momento em que linguistas
começarem a defender determinada formulação gramatical fundamentando em meras
questões de estilo ou no facto de soar melhor, toda a teoria se
terá esfumado no ar, a gramática terá perdido as suas regras - que, a partir
de então, poderão ser ignoradas e violadas ad libitum - e sido
transformada em não mais do que um registo histórico de uma evolução anárquica
dos idiomas. Terá, nesse dia, o chamado ensino do Português nas
escolas passado a ser olhado como o ato de, simplesmente,
impingir matéria para tortura, tédio e perda de tempo de mestres e
alunos.
A Língua Portuguesa está, como qualquer idioma vivo, em constante
transformação, tal como os seres humanos que a criaram e desenvolveram o
estão; mas, tal como os seres humanos, está, também ela, sujeita a regras, a
leis, cuja inobservância sistemática - em nome de uma suposta liberdade,
criatividade ou o que queiram chamar-lhe - a nada mais conduzirá do que à
perda da identidade, como cada vez mais acontece com a língua que falamos em
Portugal.
3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores Consagrados
Esta questão é importante, uma vez que existe a presunção quase generalizada
de que um autor, por muito consagrado, se interessa necessariamente pelas mais
polémicas questões da gramática - ou de todas elas, pelo menos, se apercebe.
Ora, o que, antes de mais, ocupa um escritor que se preze não é o estudo da
gramática, antes a reflexão sobre a estrutura do texto, o conteúdo ideológico
daquilo que escreve e a forma mais ou menos convincente como o irá apresentar,
podendo para tal recorrer, quase até ao absurdo, às chamadas
liberalidades, direito que lhe é genericamente, socialmente e, até,
pelos linguistas reconhecido. A teoria e o rigor gramaticais aparecem-lhe,
depois, como algo bem menos importante do que o facto de
soar melhor já aqui referido, do que a preocupação de mais
intensamente o leitor impressionar.
Torna-se, pois, substancialmente abusivo pretender olhar-se para autores que
escrevem em Português como se de puristas da língua se tratasse: não o são, e
insistir nesta postura será subscrever a tese facilitista de que um idioma se
forma, antes de mais, a partir da prática que, sem limites, é deixada
à solta para se sobrepor à lógica, à teoria, à regra.
Se assim fosse, sendo as redes sociais o maior repositório de produção escrita
dos nossos dias, haveria, mais tarde ou mais cedo, que reconhecer
o há-des e o há-dem como formas... sabe-se
lá de quê.
Ou será sabem-se lá de quê?
Um linguista escreve sobre linguística, e ai dele se o não fizer seguindo,
rigorosamente, os cânones da gramática. Qualquer outro autor escreve sobre
aquilo que bem lhe aprouver, e preocupa-se tanto com a lógica gramatical como
a maior parte dos seus leitores - que vão intuindo como regra gramatical
qualquer liberalidade recorrente dos seus autores favoritos...
Tudo isto para não falar, claro está, do paradoxo em que, inevitavelmente,
caem aqueles que pretendem que um idioma evolui, não pelo desenvolvimento do
raciocínio lógico subjacente à regra gramatical, mas pela absorção dos usos
de escritores
cuja arte se caracteriza, entre outras coisas, precisamente por esse
salvo conduto para violar as regras.
Assim, a referência a autores apenas servirá para, a jusante, ilustrar a
aplicação desta ou daquela regra: nunca para, a montante e mediante o processo
inverso, se invocar a sua produção literária como manancial de informação
relativa à forma como, em Português correto, nos devemos exprimir.
- x -
A fonte por excelência da regra gramatical é a lógica, e o seu livro a teoria
a partir dela deduzida, sem a qual estaremos condenados ao desnorte próprio de
quem deambula sem rumo.
Como deixou escrito um notável italiano, "todo aquele que se apaixona pela prática, sem ligar ao conhecimento, é como
o marujo, que entra no navio sem leme ou bússola, e nunca sabe ao certo para
onde vai".
Fica, por fim, a pergunta: quererá, mesmo, quem assim argumenta
exemplificando, por exemplo, com o Padre António Vieira, que voltemos a
exprimir-nos no Português de então? É que, se Vieira e outros são invocáveis
para argumentar a favor do vendem-se, haverá, se quisermos parecer
minimamente coerentes, que segui-los em tudo o mais, também...
"Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado,
sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo,
ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a
ciência das que hão de ser".
Será caso para se dizer "escrevei assim nas redes sociais e não vos espanteis com o que vos irão
responder!"
3.3. Ao Argumento da "Cópia do Francês"
Naquele tom mais ou menos inflamado que nada convém à discussão, que se
pretende serena, desta e das outras coisas, sustentam alguns que, quem defende
que
se é sujeito da oração e pronome indefinido, se limita a,
obedientemente, transpor para o Português a regra francesa de utilização do
verbo no singular a seguir a
on - como em "
on vend des maisons".
A estes haverá que dizer que é mais provável que se trate de algo bem
diferente, por muito que tal possa desagradar-lhes: por ser a classificação
do se e do on como pronomes indefinidos a
correta, também os franceses concluíram assim. E, já que falamos disso, também
os brasileiros e, por exemplo, os alemães, com o man em "Wo kann man gute Sachen verkaufen?" - e não können -, ou em
"Man verkauft Güter" - e não verkaufen.
Ora, isto está bem à vista de qualquer um capaz de uma abordagem desassombrada
e cristalina do problema - mesmo que ensine francês há por aí quem diga como
garantia de qualidade do absurdo em que insiste.
3.4. Ao Argumento do "Reforço da Ideia de Pluralidade"
Existe, também, quem pretenda que “Vendem-se casas” e “Vende-se casas” significam exatamente a mesma coisa, devendo-se a terminologia escolhida ao
facto de, no primeiro caso, supostamente
resultar reforçada a ideia de pluralidade relativa a casas*).
Ora, salvo melhor opinião, direi que, do ponto de vista gramatical, tal
posição não é aceitável, uma vez que, em “Vendem-se casas”,
a ideia de pluralidade estaria reforçada no lugar errado, no complemento
direto, em casas, naquilo que se vende, e não no sujeito indeterminado da
voz claramente ativa alguém, como cumpriria - uma vez que o que se
pretende significar com o se é que "alguém vende casas".
Não manda, de facto, a gramática que é o sujeito, e não o complemento
direto, que condiciona a forma do verbo? Ou também aqui a gramática é para
ser só a brincar?
Com os pronomes indefinidos invariáveis (algo, cada, nada, ninguém, outrem,
tudo e o alguém que o se aqui substitui ),
o verbo é sempre conjugado no singular, pelo que não existe qualquer
razão para que com o substituto se tal não acontecer. Sendo o aqui
sujeito alguém (se) indeterminado, o verbo há
de com ele concordar na forma ativa da terceira pessoa do singular –
vende-se casas, alguém vende casas -, e não, no
plural, como em alguém vendem ou alguéns vendem, se quisermos
disparatar.
Ademais, esta
coisa de reforçar a ideia de pluralidade
viola frontalmente o princípio da economia linguística, uma vez que,
estando o plural já clara e obrigatoriamente estabelecido em casas, o alegado reforço - aliás, incorreto - mais não constitui do que
manifesta redundância
– figura aqui e ali tolerável por uma questão de estilo mas à qual me parece
jamais dever ser atribuída a dignidade de regra gramatical. Redundância essa
que, saliente-se, nada tem a ver com o processo morfo-sintático legítimo de
concordância do predicado com o sujeito, processo que segue a regra
gramatical.
Além do mais, qual a utilidade semântica de, em todas as situações - porque de
uma regra se trata - reforçar a ideia de pluralidade? Não seria bem mais útil
e adequado, nos casos em que tal se justificasse, reforçar a ideia com um
modificador? "Vende-se muitas casas" reforçaria muito mais a ideia do
que o "Vendem-se casas" que alguns insistem em advogar.
3.5.
Ao Argumento de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva
Sustentam outros que
vende-se casas na voz ativa equivale a casas são vendidas na
voz passiva*).
Isto é verdade: a frase é reversível. Mas é-o
apenas quanto à ideia, ao significado: não quanto à classificação sintática dos elementos daquela, já que "voz
ativa" e "voz passiva" são expressões que dizem unicamente respeito à
forma, e não ao conteúdo, à ideia expressa na oração.
Soçobra, assim, inteiramente a pretensão de que, significando "vende-se casas" (ou "alguém vende casas") e
casas são vendidas precisamente o
mesmo, casas será o sujeito de ambas as frases: isto é gramaticalmente errado, uma vez que,
na voz ativa, o sujeito é quem atua, quem executa a ação, enquanto, na
passiva, o sujeito é quem a suporta, quem sofre o efeito da mesma às mãos do
agente.
Dado que, na voz ativa, está em causa uma ação desencadeada sobre algo ou
alguém por um terceiro,
não é com casas (complemento direto), mas com alguém (sujeito) que a forma verbal vende há de concordar; e se alguém, um terceiro indeterminado age, a forma verbal
aplicável é, como vimos, invariável e deve sempre, assumir o singular.
Assim, se as casas fossem vendáveis a si mesmas ou umas às outras, na voz
ativa o verbo poderia estar no plural, exprimindo uma ação reflexa, sobre as
próprias, que delas mesmas afixariam imagens nas montras das agências
imobiliárias e a elas próprias se transacionariam, sem intervenção humana;
mas,
sendo o ato de vender materialmente impossível a uma casa, nunca ela poderá
ser o sujeito de tal oração.
Nunca é uma casa que se vende a ela mesma:
é, necessariamente, alguém que o faz por ela, quem age, o sujeito, mais
especificamente o sujeito humano materialmente capaz de a vender.
Vende-se casas, porque nunca se vendem as casas - a elas próprias.
3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva Sintética"
Convém, ainda, dirimir a questão da chamada voz passiva sintética, como
há quem classifique a forma "vendem-se" por oposição à forma dita
analítica "são vendidas".
Não me parece que esta classificação faça qualquer sentido:
estando a ideia de passividade sempre presente na voz ativa quando o
verbo é transitivo, é redundante pretender que em "vende-se casas" - ou seja, em "alguém vende casas"
- a componente passiva está mais presente do que em "João vende casas":
as casas são sempre vendidas, passivamente, seja por alguém, seja pelo
João.
O
se é, pois, simplesmente
indefinido, e
não
apassivante, porque, nem transforma a voz ativa em passiva
(sintética), nem, ao menos, naquela introduz uma componente de passividade,
como já vimos inevitavelmente presente quer numa, quer noutra voz.
"João vende casas" é uma forma ativa em que o sujeito é João.
"Vende-se casas" e "alguém vende casas" são, igualmente, formas
ativa em que o sujeito é quem vende.
A voz - forma, estrutura - passiva apenas se encontra presente na oração "Casas são vendidas" quando exatamente assim formulada, ou seja, na estrutura que
corresponde à forma dita analítica da voz passiva, embora nela se não
vislumbre qualquer resquício de análise que justifique tal denominação.
3.7. Ao Argumento da "Regência de Preposição"
Por fim, àqueles que, sempre sem apresentar fundamentação além do axiomático
porque é assim, defendem que a forma do singular apenas é aplicável
quando o verbo antecede preposição, direi que tal postulado me não parece
fazer qualquer sentido, já que dúvida não pode haver de que o sujeito
indeterminado de "vende-se casas" e o de "precisa-se de operários" é exatamente o mesmo: o tal misterioso e indefinido alguém.
Neste caso, a regência depende, unicamente, de qual o verbo utilizado como
predicado da oração, nada tendo a ver com a voz ativa ou passiva, com o
pronome reflexo ou indefinido, ou com qualquer outra consideração, apenas
contribuindo para aumentar a já de si preocupante confusão.
Como digo, não encontrei qualquer fundamentação para esta pretensão, seja na
boa e desejável lógica, seja em qualquer raciocínio mais ou menos abstruso e
idealizado para servir, especificamente, tal alegação.
4. Em Jeito de Conclusão
Voltando à questão da ambiguidade semântica, ninguém duvida de que,
independentemente da forma adotada e dado que, de facto, as casas se não
vendem a si mesmas ou umas às outras, com esta gramaticalmente errada
expressão “Vendem-se casas” estamos a querer significar que “Alguém vende casas”, assim não ocorrendo ambiguidade neste contexto específico - o das casas a
venderem-se a elas mesmas ou a serem vendidas por alguém.
Mas não é menos certo que, nos caso dos quatro exemplos com que iniciei este
texto – e também, nomeadamente, no dos verbos reflexivos
enganar-se, maquilhar-se, pentear-se e nas dezenas
restantes que integram a relação que se segue -, este Tanto Faz!, que
mais não expressa do que endémico facilitismo, nunca deixará de gerar a
incerteza e a ambiguidade semântica que qualquer regra gramatical deve cuidar
de eliminar.
Dado que a generalidade dos autores que vejo pronunciar-se sobre estas coisas
não parece ter o hábito de se arrimar na lógica, limitando-se, neste como em
outros temas, a procurar legitimar - com recurso a mais ou menos fabulosas e
irracionais invenções e procurando fazer valer, como axioma, uma ou outra
suposta solução para o problema que lhe pareça mais plausível e fácil de
entender - a evolução mais ou menos errática e anárquica que observa, não
encontrei qualquer apoio ou elucidação de natureza teórica sustentável para a
convicção, que parece quase generalizada, de que qualquer das formas do verbo,
singular ou plural, é aceitável, ou, até, de que é "vendem-se" a
correta ou, pelo menos, a preferível.
Isto, numa área como a gramática em que, atualmente, parece valer tudo e mais
alguma coisa, até que, de uma vez, deixemos de nos fazer entender ao escrever
ou falar.
Tão infundadas e erróneas conclusões parecem, assim e além do que já aqui foi
dito, de afastar, também por falta de fundamentação, além do que a extensa
lista de casos possíveis de ambiguidade diz bem da necessidade premente de se
definir, de uma vez por todas, uma clara e consensual posição.
A resposta à pergunta de partida é, pois, "Vende-se casas", não apenas
como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas, sobretudo, por ser
esta, como por dedução lógica se procurou demonstrar, a correta formulação
gramatical.
5. Proposta
O débil e pouco útil efeito colateral de reforçar, pelo recurso à mera
redundância, a ideia de pluralidade sempre haverá de ceder perante os
imperativos maiores do respeito pela classificação sintática, da observância
do princípio da economia e do imperativo de prosseguir o importante objetivo
de procurar a clareza através da fundamentação lógica e coerente, unica forma
legítima de eliminação da ambiguidade.
Propõe-se, assim, que, caso oposição fundamentada e convincente não seja
apresentada, se adote como regra que:
i) quando a ação é executada pelo sujeito sobre o
próprio ou entre idênticos, encontramo-nos na voz ativa e perante o pronome
reflexo ou recíproco se, devendo o verbo concordar em número com
aquele, seja ele singular ou plural;
ii) quando a ação é executada pelo sujeito sobre terceiros
não idênticos (complemento direto), estamos também na voz ativa - e não numa
impropriamente chamada voz passiva sintética -, mas, desta vez, perante
o pronome indefinido se - impropriamente designado partícula apassivante
-, devendo em tal caso ser o verbo utilizado
unicamente na forma singular, por imperativo de concordância, na
terceira pessoa, com o sujeito indeterminado (alguém, ninguém).
Dado que o contrário resultará, sempre, na falta de concordância, quanto ao
número, do verbo com o sujeito, a regra agora proposta deverá ser de aplicação
geral, mesmo nos casos insuscetíveis de gerar ambiguidade - como o tal das
casas que a si mesmas ou umas às outras não são materialmente suscetíveis de
se vender.
Quanto à relevância e importância da questão, a expressiva quantidade de casos
possíveis de gerar ambiguidade, não deverá deixar grandes dúvidas de que se
trata de um problema que urge resolver.
Ou continuaremos a encontrar, em peças jornalísticas, pérolas como "Tratam-se, portanto, de situações delicadas que"... dizem bem do pouco cuidado que há com estas coisas do falar e do
escrever.
* *
Por que terá de continuar a ser assim? "Por que terá?" ou "porque
terá?"
Eis outra dúvida omnipresente no espírito atento de quem escreve, e no
espírito crítico de quem lê.
(continua aqui a discussão deste
tema)
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará
Casos Suscetíveis de Gerar Dúvida na Conjugação no Singular ou no
Plural,
(por a ação poder ser executada sobre o próprio agente ou sobre
terceiros)
(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista
informando no espaço "Comentários")
aborrece-se ou aborrecem-se
acomoda-se ou acomodam-se
acorda-se ou acordam-se
adormece-se ou adormecem-se
assume-se ou
assumem-se
assusta-se ou assustam-se
atira-se ou atiram-se
barbeia-se
ou barbeiam-se
cala-se ou calam-se
cansa-se ou cansam-se
casa-se
ou casam-se
cata-se ou catam-se
chama-se ou chamam-se
corrige-se
ou corrigem-se
considera-se ou consideram-se
corta-se ou
cortam-se
cura-se ou curam-se
deita-se ou deitam-se
deixa-se
ou deixam-se
despe-se ou despem-se
despede-se ou despedem-se
desperta-se
ou despertam-se
dirige-se ou dirigem-se
emenda-se ou emendam-se
encontra-se
ou encontram-se
encosta-se ou encostam-se
enfurece-se ou enfurecem-se
engana-se ou enganam-se
enoja-se ou enojam-se
entristece-se ou entristecem-se
envergonha-se
ou envergonham-se
estima-se ou estimam-se
faz-se ou fazem-se
fere-se ou ferem-se
forma-se ou formam-se
lava-se ou lavam-se
leva-se ou levam-se
levanta-se ou
levantam-se
maquilha-se ou maquilham-se
mete-se ou metem-se
molha-se
ou molham-se
move-se ou movem-se
muda-se ou mudam-se
ocupa-se
ou ocupam-se
olha-se ou olham-se
penteia-se ou penteiam-se
pinta-se
ou pintam-se
põe-se ou põem-se
preocupa-se ou preocupam-se
refere-se
ou referem-se
retira-se ou retiram-se
reúne-se ou reúnem-se
rompe-se
ou rompem-se
seca-se ou secam-se
segura-se ou seguram-se
tem-se ou têm-se
tranquiliza-se ou tranquilizam-se
trata-se ou tratam-se
vê-se ou vêem-se
vende-se ou vendem-se
veste-se ou vestem-se
A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de
definir como devemos exprimir-nos, a gramática se limitar a observar como
vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada
hipercorreção qualquer tentativa de resistência à degeneração