A resposta é "Vende-se casas",
não apenas como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas,
sobretudo, por ser esta, por dedução lógica, a correta formulação
gramatical
1. Casos de Ambiguidade Semântica
2. Uma Possível Origem da Confusão
ref
3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores de Séculos Há Muito Passados
3.3. Ao Argumento da "Cópia do Francês"
3.4. Ao Argumento do "Reforço da Ideia de Pluralidade"
3.5. Ao Argumento de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva
3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva Sintética"
4. Em Jeito de Conclusão
5. Proposta
1. Casos de Ambiguidade Semântica
O que significa isto? O que quer transmitir-nos quem aquilo ali escreveu?
Se seguirmos a lusitana propensão para nos escusarmos a refletir, recorrendo à mais elementar lógica, sobre estas coisas da língua falada e escrita, seremos livres de entender como bem nos aprouver o que a tabuleta reza… e seremos livres de cair no erro ao interpretá-lo, também.
O que daqui importa reter é que, se considerarmos aceitáveis ambas as formas, se Tanto faz! , ser-nos-á impossível conhecer a intenção de quem escreveu “Aqui lavam-se cães”, uma vez que deixaremos caminho aberto a qualquer das interpretações: que, a eles próprios, os cães se lavam ali, ou que lá os lava alguém.
- x -
Imaginemos, agora, uma sala nas instalações de uma fábrica cuja atividade produtiva represente especial risco para a integridade física de quantos lá trabalham.
Durante a apresentação a um visitante, o guia informa: “Nesta sala, tratam-se os trabalhadores”, querendo transmitir que, quando algum se fere, ali vai tratar-se - a si próprio - recorrendo, por exemplo, à caixa de primeiros socorros disponível na sala. No entanto, a aceitarmos ambas as interpretações acima enunciadas, também esta frase poderia tornar-se ambígua, na medida em que poderia significar que algum trabalhador com conhecimentos na área da saúde à mesma sala acederia sempre que necessário, a fim de tratar, não as próprias feridas, mas as de colegas que se lesionassem, uma vez mais se gerando a confusão entre o reflexo e o indefinido, entre o próprio ou alguém por ele.
- x -
Este risco sério de ambiguidade semântica ocorre, na voz ativa, em presença de verbos reflexivos correspondentes a ações que possam ser praticadas por uma pluralidade de pessoas ou de animais tendo como objeto os próprios ou idênticos a eles (se como pronome reflexo ou recíproco), sempre que essas ações forem também materialmente suscetíveis de ser sobre eles desencadeadas por um ou por vários terceiros indefinidos (se como pronome indefinido, a tal partícula apassivante que a alguns alunos tanta confusão faz, e bem).
Estar-se-á, desta forma, a referir sempre com o verbo no singular a ação empreendida por alguém indefinido sobre um qualquer objeto, seja este singular ou plural, ficando as formas plurais lavam-se, formam-se e tratam-se reservadas para quando a ação de lavar, formar ou tratar for desencadeada, sobre os próprios ou reciprocamente, por vários animais ou pessoas atuando como sujeitos.
Com o verbo no plural, se opera como pronome reflexo, significando os próprios. Com o verbo no singular, se opera como pronome indefinido, significando outrem, alguém.
- x -
Eis, pois, definitivamente, estabelecida a confusão e instalada, por via do
facilitismo, a ambiguidade semântica -
e não apenas a sintática, como alguns pretendem -, e explanada a
razão desta reflexão.
2. Uma Possível Origem da Confusão
3. Comentários à Fundamentação Encontrada
3.1. Ao Argumento do "Soa Melhor"
Encontrei, por essa Internet, quem diga que há linguistas que preferem a forma vendem-se casas - e outras coisas que a si próprias ou umas às outras não podem ser vendidas - porque soa melhor, ou porque subjaz uma suposta intenção estilística de valorizar a ação, e não o agente*).
A Língua Portuguesa está, como qualquer idioma vivo, em constante
transformação, tal como os seres humanos que a criaram e desenvolveram o
estão; mas, tal como os seres humanos, está, também ela, sujeita a regras, a
leis, cuja inobservância sistemática - em nome de uma suposta liberdade,
criatividade ou o que queiram chamar-lhe - a nada mais conduzirá do que à
perda da identidade, como cada vez mais acontece com a língua que falamos em
Portugal.
3.2. Ao Argumento do Exemplo de Autores Consagrados
Esta questão é importante, uma vez que existe a presunção quase generalizada de que um autor, por muito consagrado, se interessa necessariamente pelas mais polémicas questões da gramática - ou de todas elas, pelo menos, se apercebe.
Ora, o que, antes de mais, ocupa um escritor que se preze não é o estudo da gramática, antes a reflexão sobre a estrutura do texto, o conteúdo ideológico daquilo que escreve e a forma mais ou menos convincente como o irá apresentar, podendo para tal recorrer, quase até ao absurdo, às chamadas liberalidades, direito que lhe é genericamente, socialmente e, até, pelos linguistas reconhecido. A teoria e o rigor gramaticais aparecem-lhe, depois, como algo bem menos importante do que o facto de soar melhor já aqui referido, do que a preocupação de mais intensamente o leitor impressionar.
Torna-se, pois, substancialmente abusivo pretender olhar-se para autores que escrevem em Português como se de puristas da língua se tratasse: não o são, e insistir nesta postura será subscrever a tese facilitista de que um idioma se forma, antes de mais, a partir da prática que, sem limites, é deixada à solta para se sobrepor à lógica, à teoria, à regra.
Se assim fosse, sendo as redes sociais o maior repositório de produção escrita dos nossos dias, haveria, mais tarde ou mais cedo, que reconhecer o há-des e o há-dem como formas... sabe-se lá de quê.
Ou será sabem-se lá de quê?
Fica, por fim, a pergunta: quererá, mesmo, quem assim argumenta exemplificando, por exemplo, com o Padre António Vieira, que voltemos a exprimir-nos no Português de então? É que, se Vieira e outros são invocáveis para argumentar a favor do vendem-se, haverá, se quisermos parecer minimamente coerentes, que segui-los em tudo o mais, também...
"Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser".
Será caso para se dizer "escrevei assim nas redes sociais e não vos espanteis com o que vos irão responder!"
3.3. Ao Argumento da "Cópia do Francês"
A estes haverá que dizer que é mais provável que se trate de algo bem diferente, por muito que tal possa desagradar-lhes: por ser a classificação do se e do on como pronomes indefinidos a correta, também os franceses concluíram assim. E, já que falamos disso, também os brasileiros e, por exemplo, os alemães, com o man em "Wo kann man gute Sachen verkaufen?" - e não können -, ou em "Man verkauft Güter" - e não verkaufen.
Ora, isto está bem à vista de qualquer um capaz de uma abordagem desassombrada e cristalina do problema - mesmo que ensine francês há por aí quem diga como garantia de qualidade do absurdo em que insiste.
3.4. Ao Argumento do "Reforço da Ideia de Pluralidade"
Existe, também, quem pretenda que “Vendem-se casas” e “Vende-se casas” significam exatamente a mesma coisa, devendo-se a terminologia escolhida ao facto de, no primeiro caso, supostamente resultar reforçada a ideia de pluralidade relativa a casas*).
Ora, salvo melhor opinião, direi que, do ponto de vista gramatical, tal posição não é aceitável, uma vez que, em “Vendem-se casas”, a ideia de pluralidade estaria reforçada no lugar errado, no complemento direto, em casas, naquilo que se vende, e não no sujeito indeterminado da voz claramente ativa alguém, como cumpriria - uma vez que o que se pretende significar com o se é que "alguém vende casas".
Não manda, de facto, a gramática que é o sujeito, e não o complemento direto, que condiciona a forma do verbo? Ou também aqui a gramática é para ser só a brincar?
Com os pronomes indefinidos invariáveis (algo, cada, nada, ninguém, outrem, tudo e o alguém que o se aqui substitui ), o verbo é sempre conjugado no singular, pelo que não existe qualquer razão para que com o substituto se tal não acontecer. Sendo o aqui sujeito alguém (se) indeterminado, o verbo há de com ele concordar na forma ativa da terceira pessoa do singular – vende-se casas, alguém vende casas -, e não, no plural, como em alguém vendem ou alguéns vendem, se quisermos disparatar.
Além do mais, qual a utilidade semântica de, em todas as situações - porque de uma regra se trata - reforçar a ideia de pluralidade? Não seria bem mais útil e adequado, nos casos em que tal se justificasse, reforçar a ideia com um modificador? "Vende-se muitas casas" reforçaria muito mais a ideia do que o "Vendem-se casas" que alguns insistem em advogar.
3.5.
Ao Argumento de Terem o Mesmo Significado a Voz Ativa e a Voz Passiva
Sustentam outros que vende-se casas na voz ativa equivale a casas são vendidas na voz passiva*).
Assim, se as casas fossem vendáveis a si mesmas ou umas às outras, na voz ativa o verbo poderia estar no plural, exprimindo uma ação reflexa, sobre as próprias, que delas mesmas afixariam imagens nas montras das agências imobiliárias e a elas próprias se transacionariam, sem intervenção humana; mas, sendo o ato de vender materialmente impossível a uma casa, nunca ela poderá ser o sujeito de tal oração.
Nunca é uma casa que se vende a ela mesma: é, necessariamente, alguém que o faz por ela, quem age, o sujeito, mais especificamente o sujeito humano materialmente capaz de a vender.
Vende-se casas, porque nunca se vendem as casas - a elas próprias.
3.6. À Classificação da Voz Ativa como "Voz Passiva Sintética"
Convém, ainda, dirimir a questão da chamada voz passiva sintética, como há quem classifique a forma "vendem-se" por oposição à forma dita analítica "são vendidas".
Não me parece que esta classificação faça qualquer sentido: estando a ideia de passividade sempre presente na voz ativa quando o verbo é transitivo, é redundante pretender que em "vende-se casas" - ou seja, em "alguém vende casas" - a componente passiva está mais presente do que em "João vende casas": as casas são sempre vendidas, passivamente, seja por alguém, seja pelo João.
"João vende casas" é uma forma ativa em que o sujeito é João.
"Vende-se casas" e "alguém vende casas" são, igualmente, formas ativa em que o sujeito é quem vende.
A voz - forma, estrutura - passiva apenas se encontra presente na oração "Casas são vendidas" quando exatamente assim formulada, ou seja, na estrutura que corresponde à forma dita analítica da voz passiva, embora nela se não vislumbre qualquer resquício de análise que justifique tal denominação.
3.7. Ao Argumento da "Regência de Preposição"
4. Em Jeito de Conclusão
Voltando à questão da ambiguidade semântica, ninguém duvida de que, independentemente da forma adotada e dado que, de facto, as casas se não vendem a si mesmas ou umas às outras, com esta gramaticalmente errada expressão “Vendem-se casas” estamos a querer significar que “Alguém vende casas”, assim não ocorrendo ambiguidade neste contexto específico - o das casas a venderem-se a elas mesmas ou a serem vendidas por alguém.
Mas não é menos certo que, nos caso dos quatro exemplos com que iniciei este texto – e também, nomeadamente, no dos verbos reflexivos enganar-se, maquilhar-se, pentear-se e nas dezenas restantes que integram a relação que se segue -, este Tanto Faz!, que mais não expressa do que endémico facilitismo, nunca deixará de gerar a incerteza e a ambiguidade semântica que qualquer regra gramatical deve cuidar de eliminar.
Dado que a generalidade dos autores que vejo pronunciar-se sobre estas coisas não parece ter o hábito de se arrimar na lógica, limitando-se, neste como em outros temas, a procurar legitimar - com recurso a mais ou menos fabulosas e irracionais invenções e procurando fazer valer, como axioma, uma ou outra suposta solução para o problema que lhe pareça mais plausível e fácil de entender - a evolução mais ou menos errática e anárquica que observa, não encontrei qualquer apoio ou elucidação de natureza teórica sustentável para a convicção, que parece quase generalizada, de que qualquer das formas do verbo, singular ou plural, é aceitável, ou, até, de que é "vendem-se" a correta ou, pelo menos, a preferível.
Isto, numa área como a gramática em que, atualmente, parece valer tudo e mais alguma coisa, até que, de uma vez, deixemos de nos fazer entender ao escrever ou falar.
Tão infundadas e erróneas conclusões parecem, assim e além do que já aqui foi dito, de afastar, também por falta de fundamentação, além do que a extensa lista de casos possíveis de ambiguidade diz bem da necessidade premente de se definir, de uma vez por todas, uma clara e consensual posição.
A resposta à pergunta de partida é, pois, "Vende-se casas", não apenas como manda o imperativo de evitar a desambiguação mas, sobretudo, por ser esta, como por dedução lógica se procurou demonstrar, a correta formulação gramatical.
5. Proposta
O débil e pouco útil efeito colateral de reforçar, pelo recurso à mera redundância, a ideia de pluralidade sempre haverá de ceder perante os imperativos maiores do respeito pela classificação sintática, da observância do princípio da economia e do imperativo de prosseguir o importante objetivo de procurar a clareza através da fundamentação lógica e coerente, unica forma legítima de eliminação da ambiguidade.
ii) quando a ação é executada pelo sujeito sobre terceiros não idênticos (complemento direto), estamos também na voz ativa - e não numa impropriamente chamada voz passiva sintética -, mas, desta vez, perante o pronome indefinido se - impropriamente designado partícula apassivante -, devendo em tal caso ser o verbo utilizado unicamente na forma singular, por imperativo de concordância, na terceira pessoa, com o sujeito indeterminado (alguém, ninguém).
Dado que o contrário resultará, sempre, na falta de concordância, quanto ao número, do verbo com o sujeito, a regra agora proposta deverá ser de aplicação geral, mesmo nos casos insuscetíveis de gerar ambiguidade - como o tal das casas que a si mesmas ou umas às outras não são materialmente suscetíveis de se vender.
Quanto à relevância e importância da questão, a expressiva quantidade de casos possíveis de gerar ambiguidade, não deverá deixar grandes dúvidas de que se trata de um problema que urge resolver.
Ou continuaremos a encontrar, em peças jornalísticas, pérolas como "Tratam-se, portanto, de situações delicadas que"... dizem bem do pouco cuidado que há com estas coisas do falar e do escrever.
* *
Por que terá de continuar a ser assim? "Por que terá?" ou "porque terá?"
Eis outra dúvida omnipresente no espírito atento de quem escreve, e no espírito crítico de quem lê.
(continua aqui a discussão deste tema)
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará
Casos Suscetíveis de Gerar Dúvida na Conjugação no Singular ou no
Plural,
(por a ação poder ser executada sobre o próprio agente ou sobre
terceiros)
(caso lhe ocorram outros, por favor ajude a completar esta lista informando no espaço "Comentários")
aborrece-se ou aborrecem-se
acomoda-se ou acomodam-se
acorda-se ou acordam-se
adormece-se ou adormecem-se
assume-se ou
assumem-se
assusta-se ou assustam-se
atira-se ou atiram-se
barbeia-se
ou barbeiam-se
cala-se ou calam-se
cansa-se ou cansam-se
casa-se
ou casam-se
cata-se ou catam-se
chama-se ou chamam-se
corrige-se
ou corrigem-se
considera-se ou consideram-se
corta-se ou
cortam-se
cura-se ou curam-se
deita-se ou deitam-se
deixa-se
ou deixam-se
despe-se ou despem-se
despede-se ou despedem-se
desperta-se
ou despertam-se
dirige-se ou dirigem-se
emenda-se ou emendam-se
encontra-se
ou encontram-se
encosta-se ou encostam-se
enfurece-se ou enfurecem-se
engana-se ou enganam-se
enoja-se ou enojam-se
entristece-se ou entristecem-se
envergonha-se
ou envergonham-se
estima-se ou estimam-se
faz-se ou fazem-se
fere-se ou ferem-se
forma-se ou formam-se
lava-se ou lavam-se
leva-se ou levam-se
levanta-se ou
levantam-se
maquilha-se ou maquilham-se
mete-se ou metem-se
molha-se
ou molham-se
move-se ou movem-se
muda-se ou mudam-se
ocupa-se
ou ocupam-se
olha-se ou olham-se
penteia-se ou penteiam-se
pinta-se
ou pintam-se
põe-se ou põem-se
preocupa-se ou preocupam-se
refere-se
ou referem-se
retira-se ou retiram-se
reúne-se ou reúnem-se
rompe-se
ou rompem-se
seca-se ou secam-se
segura-se ou seguram-se
tem-se ou têm-se
tranquiliza-se ou tranquilizam-se
trata-se ou tratam-se
vê-se ou vêem-se
vende-se ou vendem-se
veste-se ou vestem-se
A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos, a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão, preferindo levar à conta da chamada hipercorreção qualquer tentativa de resistência à degeneração
Foi desta vez que percebi a razão por detrás do "vende-se". Não me parece que me volte a enganar. E, sim, as línguas funcionam porque obedecem a regras. Uma irritação que tenho é com o argumento de que o "literalmente" pode ser aceite como "figurativamente" porque é tão comumente utilizado dessa forma. Pelo menos, no Inglês já vi esse argumento ser utilizado.
ResponderEliminarEm Letras Pequeninas
Muito obrigado pelo seu comentário. Fico feliz por ter sido útil.
EliminarRefere a questão da ambiguidade. Foi ela, precisamente, um dos motivos na génese da decisão de começar este 'blog', razão pela qual o título do primeiro artigo é... "Tanto Faz".
Felicidades para o 'Em Letras Pequeninas', que sigo e cuja leitura recomendo.
Boa semana!