(Introdução à Secção 'Língua Portuguesa')
"A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se,
em lugar
de definir como devemos exprimir-nos,
a gramática se limitar a observar
como vamos facilitando a expressão,
preferindo levar à conta da chamada
hipercorrecão
qualquer tentativa de resistência à degeneração"
2. Fundamentação
1. Liberalidade e Ambiguidade
Há quem diga que isso de falar bem é obrigação apenas dos estudiosos do tema, mas tal apenas demonstra incapacidade de compreender, plenamente, o que é um idioma: a obrigação de falar ou escrever bem é de todos nós, já que falar e escrever são os dois únicos processos que nos permitem fazermo-nos entender de de forma supostamente mais evoluída do que os outros animais.
Assim, se, como alguém terá dito, "o idioma é a instrução de um povo", importa garantir que essa instrução se baseie em conhecimento sólido e estabilizado, transmitido por uma linguagem arrimada em normas de aplicação universal no âmbito de cada idioma; normas precisas e fundamentadas em apurada lógica, sem prejuízo, naturalmente, da evolução que, em ritmo tranquilo e ponderado, nas línguas vivas deverá acontecer.
Qualquer dicionário nos mostrará, porém, que, na maior parte dos casos e contrariando essa pretendida precisão, a uma mesma palavra diversos significados podem ser atribuídos, situação que deve, não obstante, ser encarada com a naturalidade devida a quanto possa, sem desvirtuar a linguagem, proporcionar ao texto formas de enriquecimento e de diversificação.
Inversamente, a combinação de palavras numa frase deve exprimir, obrigatoriamente e até ao limite do possível, a ideia exata que se pretende passar, liberta de qualquer fator de incerteza, sob pena de uma inoportuna liberalidade na interpretação por parte do destinatário poder gerar a compreensão defeituosa da ideia emitida, ainda que claramente formulada pelo autor.
Assim, sendo as regras gramaticais tão numerosas, extensas e prenhes de exceções, se na sua génese ou evolução privilegiarem, em detrimento da racionalidade, o acaso ou o arbítrio, cada vez mais difícil se tornará fazer-se entender e, com algum rigor e elegância, exprimir-se a já de si tendencialmente descuidada e mal falante população.
Viveríamos, então, no reino do mal entendido, do conhecimento defeituoso e distorcido, obstáculos que estaríamos a acrescentar à inevitável falibilidade inerente à nossa humana condição.
Viveríamos? Ou viveremos?...
2. Fundamentação
Sob pena de o sistema legal mais não constituir do que um ditatorial acervo de axiomas que a ninguém interessa, que ninguém irá valorizar, e que, a não ser pela força, ninguém acabará por acatar, para ser aceite pelos destinatários deve qualquer norma ser explicada na sua motivação, e fundamentados o conteúdo e a formulação.
Ora, enquanto componentes de um sistema normativo, as regras gramaticais não se furtam à necessidade da observância destes requisitos essenciais. Não obstante, se um dos pais do socialismo escreveu que "não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência", parece estar comummente aceite que não é a regra gramatical que determina a prática, mas a prática que determina a regra.
3. Indiferença e Facilitismo na Gramática
A existência de regras gramaticais perde todo o sentido se, em lugar de definir como devemos exprimir-nos, a gramática se limitar a observar como vamos facilitando a expressão - quase sempre por comodista assimilação intuitiva de normas de idiomas porventura menos exigentes na formulação -, e preferindo levar à conta da chamada hipercorreção qualquer tentativa de resistência à degeneração, fenómeno que se manifesta, com especial acuidade, na tendência para a supressão da vírgula e para a elisão de preposições.
O grande e verdadeiro problema atual da gramática acaba por residir no facto de, por não existir legislação clara e obrigatória que a regule, cada linguista ou candidato a tal responder a questões objetivas com simples visões pessoais que, quando não fundadas na razão, não passam de mais ou menos válidas opiniões que, como acontece com todas as infundadas opiniões, apenas contribuem para alimentar a confusão.
Este mal é, naturalmente, agravado pela necessidade social - e, por vezes, económica - de protagonismo, a qual pode levar, a qualquer preço, à apresentação de teorizações fantásticas e fantasiosas, bem como à invenção de variantes sem nexo que alguns seguidores fiéis de mais ou menos consagrados mestres cegamente adotem e propalem originando pandemias de linguística corrupção.
Por outro lado, o sentimento comum do “Ou isso !” e do “Tanto faz !” sempre que alguém chama a nossa atenção para uma utilização, que lhe pareça menos própria, de determinado termo ou expressão será, porventura, a principal causa de mal entendidos e da deterioração das relações humanas que, por tais desentendimentos, poderá ocorrer – já para não falar dos casos em que nenhum esclarecimento é pedido porque… simplesmente, nada se entendeu.
Do ponto de vista funcional, um idioma deve conter estritamente o essencial para as pessoas se entenderem. Isto pressupõe a inexistência da ambiguidade. Um pouco além, vêem as questões de estilo e algumas aceitáveis liberalidades, que não podem, em caso algum, poderem sobrepor-se ao tal essencial a que as pessoas saibam do que o outro está a falar.
Pior ainda, e além da indiferença e do facilitismo que transparecem de tão displicentes reações, há que ter em conta a aparente tendência de certos supostos conhecedores para, quando se torna difícil justificar as liberalidades e as regras ilegais que propõem ou defendem, preferirem assumidos conhecedores dizer que esta ou aquela forma “também é aceitável”, preferindo fornecer visões subjetivas e invocar classificações criativas em lugar de, como cumpriria, a sua concordância ou oposição exprimir e fundamentar.
Não basta saber: é preciso saber dizer.
A desvalorização da estabilidade e do rigor da expressão, este alheamento da necessidade de respeitar o outro através da normalização da fala e da escrita cujo sentido ele, de outro modo, muito terá de se esforçar por compreender, aparece, pois, como um indesejável contributo da Linguística para a indiferença, que, em cadência crescente, vemos grassar no seio de sociedades que de si mesmas dizer estar inseridas na Civilização.
4. Notas Finais
Resta salientar que os textos publicados nesta secção dedicada à Língua Portuguesa se limitam a exprimir opiniões formadas a partir de uma reflexão individual e solitária, despoletada por determinada ambiguidade encontrada, por uma aparente incongruência, por uma frase que não soou bem.
Em caso nenhum devem tais opiniões ser confundidas com ensinamentos, ou as propostas confundidas com interpretações ou formulações autorizadas de regras gramaticais. Espera-se, antes, que os artigos sejam lidos com a dose de ceticismo adequada a incipientes contributos que mais não almejam do que servir como estímulos para a reflexão de outros, desejavelmente bem mais aptos e conhecedores, que ao aprofundamento dos mesmos ou de idênticos problemas um dia se queiram, porventura, dedicar.
Cabe, também, declarar que não é propósito deste esforço desafiar, por mero capricho e ad libito, regras gramaticais claras, inequívocas e para as quais esteja disponível sólida fundamentação, antes propor alternativas àquelas que parecerem inquinadas de dois dos piores vícios que qualquer ciência ou disciplina podem afetar: a dúvida e a ambiguidade que um erro teórico aparentemente insignificante pode acabar por gerar.
Salvo algum lapso, será seguido o mais recente acordo ortográfico - escolha que se deve à obrigatoriedade do cumprimento da legislação, sem, contudo, abdicar daquilo que se entenda indispensável à clareza do texto.
* *
Contrariamente ao que acontece em Portugal, alguns países vão dando o exemplo através de iniciativas destinadas a preservar o idioma, designadamente defendendo-o dos ataques das expressões americanas das quais diariamente nos invade tudo quanto se relaciona com a informática.
A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela
utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor
dela fará
Se me permite, uma observação a este parágrafo: «Salvo algum lapso, será seguido o mais recente acordo ortográfico - escolha que se deve à obrigatoriedade do cumprimento da legislação, sem, contudo, abdicar daquilo que se entenda indispensável à clareza do texto».
ResponderEliminarEm Portugal, a legislação em vigor quanto à grafia a aplicar, é a de 1945, esta sim, é obrigatória por Lei. O AO90 não é obrigatório em território português, porque não existe LEI alguma que o obrigue. E os que o aplicam NÃO estão a cumprir a Lei. A Resolução do Conselho de Ministros que "recomendou" a aplicação do AO90, NÃO faz Lei.
Como não existe no seu perfil, nada que indique a sua nacionalidade, a grafia aqui utilizada, só será admitida se o senhor for brasileiro. Se é português, saiba que não está a cumprir a Lei.
Acabo de publicar uma reflexão acerca do acordo ortográfico, que talvez lhe agrade ler...
EliminarEntendo o seu ponto de vista. A minha interpretação é, no entanto, diversa.
ResponderEliminarNão aceito qualquer teoria que parta do princípio de que, do ponto de vista linguístico, a intenção do legislador da Resolução do Conselho de Ministros 8/2011, de 25 de Janeiro, era a de que, alguma vez, passássemos a ter dois países a escrever de maneira diferente.
Se, quanto a esta matéria, o direito regula, com força obrigatória geral, apenas determinados setores da população, tal deve-se, muito simplesmente, o facto de vivermos em liberdade, e não ser lícito ao Estado imiscuir-se na vida dos cidadãos a ponto de tornar obrigatória até a forma como escrevem, punindo-os por não o fazer - além do que, por ser, materialmente impossível o sistema judiciário ocupar-se de quem e cometesse "delito" tão comezinho e frequente, jamais tal preceito poderia revestir-se da coercibilidade indispensável a qualquer norma.
Acontece, muito simplesmente, que o Estado se limitou a impor a nova grafia relativamente àqueles sobre os quais tem jurisdição, tem poder para o fazer: aqueles que diretamente emprega e os que estão a estudar e podem ser, como acontece com qualquer outro erro, penalizados pelo facto de não cumprir a norma impositiva.
São eles, segundo a mesma Resolução:
- "todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo"
- "publicação do Diário da República"
- "sistema educativo no ano lectivo de 2011 -2012, bem como aos respectivos manuais escolares a adoptar para esse ano lectivo e seguintes"
Tal é o limite da possibilidade material de o Estado impor a adoção do acordo o ortográfico. Apenas por isso, aos restantes de nós não o impôs.
Claríssima é a intenção do legislador ao "determinar que cada departamento governamental deve desenvolver iniciativas de informação e de sensibilização e assegurar a divulgação de conteúdos no respectivo sítio da Internet, para esclarecimento da aplicação do Acordo Ortográfico" (Resolução, Ponto 5), frase cujo sentido jamais poderá confundir-se com o propósito de vir a ter um país a duas vozes, ou a duas escritas.
Que sentido faria, de facto, vir o direito promover, acintosamente, a divisão dos cidadãos, em lugar de os aproximar?
Por esta razão, e na interpretação que faço da lei, adotei, no Mosaicos, a grafia do acordo ortográfico. Não sou adepto da divisão, e a lei vai, como não poderia deixar de ir, no sentido da coesão.
Quanto à referência à nacionalidade brasileira e ao que penso da propriedade e da oportunidade do acordo, penso que as suas dúvidas ficarão completamente esclarecidas dentro de algumas semanas, quando publicar o artigo subordinado, em princípio, ao título "Acerca da Língua que Falam no Brasil".
Dado que os textos mais completos são publicados apenas ao Sábado, e também por questões de oportunidade e de alinhamento, não posso, ainda, precisar a data, mas deverá acontecer em breve. Já está, praticamente, todo escrito.
Ao verdadeiro tema do artigo que comentou, constato que nada tem a opor, o que compraz.