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quinta-feira, 25 de agosto de 2022


O Rio de Nós

Vemos os outros como quem olha o rio.

Contemplamos, letárgicos, o vago tremular uniforme das águas e os lampejos do Sol que elas refletem, como gentes que se movem sem se mexer e nos atiram à cara a diferença que julgam ter.

Excitamo-nos quando, fugaz, um peixe salta a espreitar o Mundo que lhe tira a vida, deleitamo-nos com os círculos efémeros que deixa no espelho tranquilo e se esbatem até ao infinito. Vibramos com novas chocantes, mas logo esquecidas, que nos dizem do podre de nós que mora nos outros, da dor da morte, da pungente desgraça, de coisas de arrepiar. De espíritos esmagados pela torrente de notícias sem novidade, pasmamos ante as lágrimas choradas por quem a desdita fere, ao longo de uma vida para si ou para os seus jamais sonhada, imaginada, sequer.

Arrepiamo-nos quando a pedra atirada ao rio nos salpica; mas não quando a atiramos nós e arrepia outros como nós, que nem vimos que por ali também andavam como nós. 

Afinal, quem os mandou lá estar?

- x -

O rio é lindo; é calmo, e pacífico. Pelo menos, é lindo, calmo e pacífico o que dele vemos .

Mas o que vemos do rio não passa de uma ridícula porção dele.

O rio não é superfície: é massa. Uma gigantesca mole de líquido que a gravidade impele, prenhe de vivos e de mortos, de peixes que nadam e daqueles que iremos almoçar, dos que não foram pescados e apodrecem na lama do leito do rio que corre para o mar, com os ramos, os escolhos e os despojos que para lá não paramos de atirar.

O rio é lindo, mas brutal. É corrente que, à passagem, tudo amassa, moi, tritura, mata, destrói, sem, ao menos, parar para pensar.

A molécula de água é fonte da vida. O rio, é fonte da morte. Também nós, fonte de vida, unidos para ser firmes na defesa, acabamos fonte de morte, sempre a atacar; ou, bem pior, a ignorar.

A riqueza que gostamos de acreditar que em nós habita, dilui-se, fenece à vista de alheias virtudes. Ao fatal anonimato, resistimos tolamente num infindável e frenético vai-vem de imagens e frases que pespegamos na montra social para sobressair, quantas vezes pisando outros para, humilhando-os, o  nosso protagonismo assegurar.

- x -.

Somos lindos, desde que não olhemos o espelho de nós nas águas calmas. Nas do lago que nos é próximo, ou nas do imenso rio que passa e continuará a passar.

terça-feira, 28 de junho de 2022


Guerra? Que Guerra?

Explosões? Tiros? Muito déja vu...

Há várias décadas que estamos imunizados contra o horror de tudo isso.

Então não passámos os mais recentes anos a contemplar, durante horas a fio, filmes de guerra, históricos ou de ficção, com mais ou menos conteúdo e mais ou menos efeitos especiais, mas sempre brutais, com imagens em tudo semelhantes às que hoje nos trazem do conflito?

Tudo isso se passa lá bem longe, na realidade distante ou para lá da ainda mais distante fronteira da imaginação.

Os mais de nós jamais sentiram na carne o impacto de uma bala ou de um estilhaço, assim podendo permitir-se o luxo de maldizer coisas tão mais graves como uma forte dor de dentes, uma nova borbulha na cara ou o comichar da mais ligeira cutânea erupção, sem esquecer as recorrentes cefaleias típicas daquelas alturas em que, inexoravelmente, se aproxima o terrível momento de fazer aquelas coisas chatas que não podemos deixar de fazer.

Há mortos? Muitos? Sim, mas não morre tanta gente a cada instante? Por esta ou por aquela causa, ou simplesmente de velhice ou de doença; e ainda bem, ou o que seria da Humanidade num ainda mais sobrepovoado planeta?

Refugiados? Pois. Mas, olhe: se têm de fugir, é porque andaram a incomodar os poderes instituídos, ao ninguém os mandou. Ou não estão para ficar a lutar pela pátria deles e, depois, a gente que os ature por cá a dar cabo do sossego da nossa.

Guerra? Que guerra?

Vemos as terríveis imagens da desgraça enquanto nos deliciamos com a mesma beberragem que acompanha os filmes de horror. Depois de tanta desgraça e de tanta ameaça, acontece-nos agora o mesmo nada que então.

Para quê tanta conversa, tanta preocupação?

- x -

A esta indiferença abjeta nos conduziu um estilo de vida confortável, comparativamente idílico face ao inimaginável que caracteriza o agora de quem vive os horrores de uma invasão, provocada pelo delírio de um louco, empurrado ou não por qualquer outra menos evidente, menos clara personagem ou razão.

Ah, mas estamos de férias, no Verão! A solo ou com a famelga, na tasca da praia, em casa com os amigos, com o uisque no copo, com a mine e os pistachos, ou com o chouriço e o garrafão, chateados com as férias da bola, indispensável para começar uma bela discussão.

Digam lá: acaso a guerra nos vai tirar isto? Claro que não!

Vão cair bombas em Lisboa? Nucleares? Não brinquem! Isso não passa de notícias falsas, para nos espevitar a adrenalina e fazer palpitar o adormecido coração!

A guerra, pois...  É chato, mas vai tudo acabar bem; e eles, lá, os outros, que aguentem, que a gente também já cá aguentou muita coisa... no tempo dos reis e isso, sei lá...

São coisas que acontecem, mas passam. Tudo passa, e a gente cá continua  na nossa Terrinha. Ou não?

Eu cá, de tanta coisa sobre essa guerra, até já me aborrece só de olhar para a televisão.

O pior é que agora nem há bola. Vou falar de quê? Fingir que sou um perito em quê? Na guerra?

Cruzes! Já não basta a inflação! Ou a guerra acaba, ou ainda entro eu em depressão...

domingo, 5 de junho de 2022


Sentido de Estado

"No momento em que é eleito para o importante cargo de presidente da República,
um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente,
do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional
e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos
"

"Num mundo civilizado, será, assim, impensável que um outrora presidente da República venha, do nada,
desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado
"

"Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico,
menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar
"

Sentido de Estado
Se o significado de sentido de estado é tão evidente como qualquer outro, não menos certo é que a definição de sentido de estado é tão difícil como qualquer outra. Se não quanto à substância, pelo menos quanto ao grau, ou seja, à fronteira além da qual, do ponto de vista da legalidade, da decência, da probidade, da mais elementar educação, cada um considera que seria ilegítimo comportar-se no desempenho das funções públicas que lhe foram confiadas.

Resta, naturalmente, o caso daquelas figuras públicas que, sem reserva ou pudor, desvalorizam o dever de se comportar de forma responsável e cívica, reféns que estão do próprio umbigo, do incomensurável ego que terá determinado, desde a génese, a decisão de enveredar por uma carreira política orientada, não para o serviço da coisa pública, mas do engrandecimento e glorificação de coisa própria, mormente património, imagem ou poder.

Ora, casos de manifesta falta de sentido de estado não têm faltado.

Quem não se lembra das trapalhadas do Ministério da Justiça no processo de nomeação de um procurador europeu?*) Ou do Presidente da Assembleia da República que, em plena crise pandémica, convidou todos os portugueses a deslocar-se a Sevilha para assistir a uma partida de futebol?*)

Por mais que estejamos cientes de que por aí anda muita gente mal formada, pouco educada, insensata, insensível, quase todos os dias os mais diversos canais informativos nos confrontam com demonstrações de boçalidade pessoal e política, de inabilidade social, que em nada beneficiam, cá dentro como lá fora, a imagem de Portugal.

O que dizer do ministro da economia - hoje arguido num processo-crime - que, em plena sessão parlamentar, dirigiu, a um deputado da oposição, o conhecido gesto representativo de um par de chifres?*) Ou do secretário de estado que entendeu que, a nível internacional, Portugal saiu beneficiado com a pandemia?*) Ou do outro que apodou de estrume e de coisa asquerosa um programa televisivo de informação?*) Mesmo assim, mantém-se no poder, embora em pasta diferente, o que bem diz do sentido de estado de quem, não obstante, o convidou...

A par da deficiente formação e educação, a incompetência endémica que grassa, descontrolada, pela cena política nacional leva certos indivíduos a personalizar o impessoal, a esquecer-se de que, em prol da inviolabilidade da missão que desempenha, devem ser tratadas na esfera privada e pessoal as disputas privadas e pessoais do titular de um cargo institucional.

Tampouco poderemos esquecer-nos das indecorosas declarações de uma bastonária*) – agora também a contas com a justiça por alegada falsificação de contas – segundo a qual “(…) a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!”; ou que chama esterco a um jornalista*) e envia cumprimentos ao respetivo pai, já falecido.

Ser frontal e, até, polémico é um direito; mas esse exercício elementar da liberdade não pode ser, em instância alguma, confundido com vulgaridade, com ordinarice, com baixeza.

Só ataca o autor quem não tem como atacar a ideia.  Significa isto que, ou o atacante é incompetente, ou o autor tem razão. Seja qual for o caso, a forma ordinária do discurso sempre acabará por ofuscar o brilho do conteúdo, por muito que o autor possa estar com a razão.

Perdurarão na memória coletiva a frieza do escandaloso e degradante desempenho de um certo ministro da administração interna em diversos momentos do seu mandato, e a despudorada exoneração de um chefe do estado-maior da armada em benefício de um popular herói da vacinação. As trampolinices com graus académicos não são novidade, e os recorrentes episódios de excessos de velocidade ao volante de viaturas oficiais sem justificação plausível e aceitável tendem a ser olhados com naturalidade, se não com respeitosa admiração.

O mesmo acontece com a apresentação e promoção, por parte dos diversos partidos políticos, de candidatos autárquicos elementares, manifestamente inaptos para a função, ineptos, até; incapazes de alinhavar duas frases e de articular duas ideias, exemplares emergências do país profundo cuja existência, invocando as estatísticas da frequência escolar que zelosamente alimentam, os poderes instituídos insistem em negar.

Tudo isto é feio, tudo isto é triste, tudo isto é fado, a fatalidade quotidiana e comezinha da política nacional, que, de tão degradada que está, já não consegue recrutar pessoas de qualidade pessoal e técnica para nos dirigir ou governar.

- x –

Constitucionalmente situado num patamar muito acima de qualquer outro cidadão e, supostamente, ao serviço de todos eles, eleva-se, desejavelmente intocável, a imagem dos sucessivos Presidentes da República Portuguesa, supremos magistrados da Nação, garantes da estabilidade, da liberdade e da igualdade, para os quais todos quereremos poder olhar com respeito e admiração.

No momento em que é eleito para tão importante cargo, um cidadão de adequada qualidade pessoal e intelectual compenetra-se, imediatamente, do peso da responsabilidade assumida e, com esta, do dever de salvaguardar a aura de superioridade institucional e moral do lugar que ocupa, e por toda a sua vida ocupará na memória dos cidadãos.

Este dever de salvaguarda não resulta, longe disso, de propósitos de engrandecimento ou exaltação pessoais, antes da necessidade de preservação da dignidade do cargo, independentemente de quem, em cada momento, o ocupar, preservação essa essencial ao exercício, quer da magistratura de influência, quer dos poderes efetivos de supervisão da atividade governativa de que estará investido e lhe competirá exercer.

O momento em que assumir tão altas funções deverá, por tudo isto, ofuscar, quase apagar, quaisquer reminiscências do passado em funções hierarquicamente inferiores que, ao longo da carreira política, o novo titular possa ter desempenhado.

Jamais deverá, assim, o próprio vir a campo defender, sobretudo a despropósito ou com motivação forçada e sem provocação, o seu anterior desempenho no governo, ou desafiar a fazer melhor quem, imediatamente ou não, o tiver sucedido no mesmo cargo. Fazê-lo, seria, não apenas ridicularizar-se, mostrar de si uma essência eticamente pouco estruturada e uma forma indizivelmente elementar, como minimizar o estatuto de tão alto magistério, dessa forma comprometendo, ingloriamente, o desempenho dos que nele lhe viessem a suceder: a imagem do cargo oscilaria no pedestal que, à eficácia no desempenho, é tão essencial.

Já de si, e em quaisquer circunstâncias, o combate político vazio de ideias, comezinho, rasteiro é, a todos os títulos, um espetáculo degradante. Que a tal nível pudesse, alguma vez, descer um outrora presidente da República seria uma inequívoca demonstração, não apenas da incapacidade genérica e inata para o desempenho do cargo, como do erro histórico em má hora cometido pelos votantes quando da eleição.

Num mundo civilizado, será, pois, impensável que um outrora presidente da República alguma vez venha, do nada, desafiar um primeiro-ministro em funções a fazer melhor do que aquele terá feito no passado. Será impensável que, numa espécie de carta aberta eivada de pronomes pessoais e possessivos na primeira pessoa do singular, publique um monótono e entediante cardápio dos seus feitos no exercício de um pretérito poder executivo, numa aparente tentativa egocêntrica de atrair para si a atenção de uma comunicação social que já pouco ou nada lhe ligue por, sobre ele, já pouco ou nada de interesse haver a noticiar.

Será, além do mais, de esperar que o trato do tempo algumas arestas lime em algum indivíduo mais básico, menos educado que as contingências da democracia na presidência da República acabem por alcandorar.

- x -

Os Presidentes da República que já não estão entre nós sempre assim o entenderam e agiram em conformidade. O primeiro Presidente da República eleito no atual regime, também.

O atual Presidente da República tem manifestado igual entendimento.

O elevado sentido de estado de todos estes sempre, respeitosamente, poderemos louvar.

* *

Como o exemplo vem de cima - seja lá, no presente caso, este cima o que for... -, não admira que diversos atores políticos continuem a fazer figuras tristes, supostamente em defesa de... de quê?

(continua aqui)

quinta-feira, 26 de maio de 2022


Rex Stout


"Sempre que possível, é mais sensato confiar na inércia. É a maior força do Mundo"


"It is always wiser, where there is a choice, to trust to inertia. It is the greatest force in the world"

Rex Stout *)
in "Fer-de-Lance"


Trata-se, é verdade, de um pensamento atribuído a uma personagem tão pouco ativa como Nero Wolfe *).

Existe, todavia, uma tendência para nos esquecermos de que, no que à Física diz respeito, inércia é a incapacidade de qualquer corpo alterar, por si só, o seu estado de repouso ou movimento. Não apenas de repouso, portanto.

De outra forma dito, inércia é, ora o fluir tranquilo de uma situação ou de um processo - como a vida, a nacionalidade, a sociedade, a profissão -, ora a pausa indispensável a qualquer atividade. Quer as situações, quer os processos, tendem a evoluir ao seu ritmo natural, sem sobressaltos, em paz, o que não deve, nem pode, ser confundido com estagnação, marasmo. Nem umas, nem outros, se interrompem ou suspendem por si sós: apenas por um impacto exercido sobre eles, um ato de vontade, uma ação exógena, um grão de areia na engrenagem, até.

Esta tendência de crescimento pacífico e natural, quase inerte, apropriado à capacidade de aceleração saudável do ser humano, em todas as vertentes, não se quebra, pois, por si só, mas apenas por algo que venha desestabilizar as pacíficas águas sobre as quais desliza a vida, quantas vezes desnecessária e inutilmente agitadas por nada mais do que a ânsia de conquistar eleitorado, de gerar avultados resultados económicos ou de conseguir narcísico protagonismo.

Assim nascem, por esse Mundo fora, guerras de diversa ordem e de âmbito mais ou menos restrito, desde invasões de estados por outros a meras questiúnculas restritas do quadro empresarial ou familiar.

A vontade de quebrar a inércia em prol dos outros, seja da Humanidade, seja do núcleo restrito que nos rodeia, será sempre de saudar dentro dos limites de uma razoável moderação e de respeito pelo próximo, do que lhe pertence, da maior ou menor capacidade de cada um para acompanhar o nosso entusiasmo.

No entanto, tal como é absolutamente inaceitável a invasão arbitrária de uma nação por outra, também será sempre de condenar a invasão arbitrária e egoísta de um espírito em paz por outro que dele, de alguma forma, pretende aproveitar-se.

Pensemos em política, em publicidade, em qualquer forma de exibicionismo.

Pensemos no que quer que seja suscetível de nos proporcionar protagonismo desejável apenas por nós; e tenhamos a moderação e a temperança essenciais à manutenção dos equilíbrios sem os quais jamais chegaremos, onde quer que seja, de forma sustentada e duradoura, apenas semeando em volta a morte, a dor, a ansiedade, a destruição.

Na Ucrânia, como bem junto a qualquer de nós.

* *

Por falar em inércia, no meio desta confusão toda gerada pela invasão, de todas as acusações ou insinuações de responsabilidade que lhe são feitas, onde pára, agora, Angela Merkel, a chanceler alemã que terá aberto a, Vladimir Putin, as portas da Ucrãnia, ou de qualquer estado da antiga União Soviética que resolvesse invadir?

[continua aqui]


sexta-feira, 25 de março de 2022


Vladimir Putin Morreu. Leva-nos com Ele?

Em memória da extinta cidade mártir de Mariopol

Aquilo que o Presidente da Federação Russa pretendia representar aos olhos do Mundo esboroou-se nuns poucos dias de indizível e gélida barbárie: de indiferença perante o sofrimento causado a milhões de inocentes em nome da exaltação do ego de um psicopata formado nas hostes do KGB*), e da multiplicação dos proventos económicos da sua coorte, militar ou não militar.

Refém de um ror de operações plásticas pensadas para lhe permitir parecer quem não é; refém de incontáveis mansões, iates e do mais que comprar lhe aprouver; refém de grandiosos e parolos cenários em que exibe a agora depauperada imagem que, décadas a fio, julgou cultivar - quando, no íntimo, todos escarneciam dele e inventavam manobras arriscadas para a fera amansar -, é este o execrável tirano que ordenou o martírio dos ucranianos e que, com ele, se recusa a parar.

Demonstrado que está, à saciedade, que o rei vai nu, que aquela figurinha que nem andar sabe, ridícula, desengonçada, mesquinha, sem planta, cometeu erros tão inesperados e inacreditáveis numa operação arrastada mas que, em toda a sua maldade, deveria ter sido simples e fulminante, nada resta da personagem que ele julgava estar a criar. O respeitado, sofisticado e admirado Vladimir Vladimirovitch que, nos seus sonhos mais loucos, Putin imaginou e idealizou, simplesmente morreu, e não sabe já como fazer-se ressuscitar.

O atual Presidente da Federação Russa não passa, assim, de um indivíduo básico, mal formado, sádico e, quanto a sofisticação, ao nível rasteiro de um daqueles craques da bola que gastam, em mansões e mais mansões, em iates e mais iates e no mais que lhes aprouver comprar, os milhões amealhados à custa de submissos basbaques que vivem do magro salário ao fim do mês. Craques que, com totais desplante e frieza, se não coíbem de continuar a exibir, na Internet, a faustosa riqueza*), os óculos caros da mamã, os hábitos espalhafatosos da irmã, enquanto outros são bombardeados ou metralhados, são desalojados, espoliados dos seus bens, e morrem; e sofrem; e choram, quantas vezes sem um ombro amigo onde se amparar.

Como se tal não bastasse, a longevidade física do dito Presidente poderá agora estar, também ela, seriamente comprometida, a fazer fé no que pode ler-se sobre o seu periclitante estado de saúde, não apenas mental, mas físico.

Ora, isto, é sério, muito sério. Não apenas para ele - que, como pessoa, interessa menos que nada -, mas para toda a Humanidade que, imprudentemente, caiu nas mãos de um maníaco do poder já mais do que ciente do irreparável trambolhão que acaba de dar, queda da qual jamais poderá, por meios legítimos, recuperar. De um maníaco que sabe muitíssimo bem que a única forma de se tornar inesquecível não é o mero recurso a armas químicas, ou lançar a III Guerra Mundial: será estender a mão e premir o botão nuclear!

- x -

Desfasado no tempo, cada vez mais só, hirto, irredutível, doente, escarnecido, ostracizado, ridicularizado, o que tem, afinal, a perder Vladimir Putin a perder com uma guerra nuclear? Nada. Da forma como o este aramamento está partilhado entre o Leste e o Oeste, quem premir o botão mata, é certo; mas, não menos certo é que comete, ao mesmo tempo, suicídio inevitável - a menos que o faça do avião presidencial, teoricamente imune a impactos de deflagrações de ogivas nucleares.

Indiferente ao homicídio e à tortura, que lhe importa o suicídio? A personagem Vladimir, o Grande que criou, morreu. O corpo estará, quiçá, prestes a segui-la. Até agora, apenas conseguiu que, por uns tempos, todos falem dele. Resta-lhe, para ficar na História de um planeta morto, ser, dessa morte, simultaneamente o orgulhoso agente e o causador.

Esquecer-se-á de que, para que o botão nuclear seja ativado, outros tarados terão de concordar com ele; e que nem todos estes terão assento no avião presidencial?

Poderão ser, assim, estes corruptos autómatos acenadores de cabeças a nossa única esperança? Ou estarão os sequazes  do Presidente também prontos, não apenas a assassinar os seus, mas a suicidar-se em nome da sacrossanta imagem de um perigoso e egocêntrico vaidoso que, diz-se, deixaram de olhar como um indiscutível patrão?

As próximas semanas ou meses, se existirem, o dirão... Dirão se chegou, afinal, o momento em que até os crimes de guerra deixam de interessar, por deixar de haver quem os irá julgar.

* *

Do lado ucraniano, nem tudo parece serem rosas, também...

(continua aqui)

quarta-feira, 2 de março de 2022


Aquilino Ribeiro


 

"O janotismo nas sociedades primárias
é sempre um trunfo certo"

Aquilino RIbeiro*)   
(Quando os Lobos Uivam)      


Por alguma estranha razão, quando leio coisas destas, lembro-me logo de certas pessoas que deambulam sem rumo a exibir os glúteos nas redes sociais, os bólides à porta dos estádios, as toilettes nos chamados picadeiros, os milhões sabe-se lá como amealhados, e outras tantas foleiradas de cultivadores da própria imagem, quantas vezes pendurados, com as suas famílias, no crédito necessário à aquisição destas máscaras e fantasias que não dispensam no seu eterno e humanamente desolador Carnaval dos Animais.

Lembro-me, também, daqueles políticos profissionais que nada mais fizeram na vida do que ser políticos profissionais, o que quer que tal coisa possa querer dizer; e temo o efeito que um governo recheado de pessoas destas - alcandoradas ao poleiro, não por especial competência ou mérito, mas como forma de retribuição pelos serviços prestados à maioria absoluta instituída - possa vir a provocar sobre um país conformado, anestesiado e em estado de negação quanto à manifesta irresponsabilidade de quem parece obstinar-se em aplicar tão irresponsável critério à escolha daqueles por quem tão grandes responsabilidades irá distribuir.

Na situação em que o Mundo se encontra, e em pleno período crítico de aplicação de fundos externos generosamente distribuídos,Portugal carece de rigor, de princípios, de disciplina, de valores.

Tudo isto é incompatível com a simples ideia de ter irredutíveis janotas a governar.

sábado, 19 de fevereiro de 2022


Anátema sobre o Segredo Pessoal!


"Aquilo que parece nunca nos ocorrer quando partilhamos algo, relativo a nós ou a outrem,
que não queremos ver divulgado é que, para o esconder se sobre o assunto for interpelado,
àquele a quem o confiámos resta … mentir!
"

"Segredo é segredo; e, quem o não quer guardar, nem o deve deixar contar"

"Quem ouve um segredo é amigo, um bom amigo. Mas... e quem o transmite? Amigo é também?"


Há tanta coisa que banalizamos com a maior das facilidades!...

Segredo pessoal
Umas, porque nada nos dizem, porque com elas nada temos a ver, porque não interessam, porque são... coisas dos outros. Outras ainda porque, simplesmente, nunca sobre elas nos dedicámos, verdadeiramente, a pensar. Nelas, ou nos seus impactos e consequências: usamo-las, aguentamos quando vêm dos outros e, por assim dizer, fazem parte do quotidiano de qualquer ser humano, em qualquer parte do Mundo, de qualquer idade, em qualquer meio.

Uma dessas coisas é o segredo pessoal.

Jamais saberei por que há quem se sinta muito lisonjeado pelo simples facto de alguém com ele ter partilhado um segredo; e quanto mais cabeludo o segredo for, tanto melhor, já que tanto maior será a prova de confiança que virá massajar o mais ou menos depauperado ego de cada um de nós, esquecendo-se, porventura, quem partilha o segredo de que o interlocutor poderá ser tão fiável como a fechadura de um cofre aberto - caso em que, contar-lhe o que quer que seja, acabará por ser tão eficaz para o conservar secreto como se o tivéssemos publicado na primeira página de um jornal.

Depois, quando acontece a notícia espalhar-se, nada a fazer. Mas, não se queixe quem contou o segredo, já que, tal como qualquer criminoso que se preze sabe que o crime deixa de ser unicamente seu a partir do momento em que recorre a um cúmplice que a todo o momento pode expô-lo, também deveria saber o risco que corre quem, quando já não aguenta mais aquilo dentro de si e sente que irá explodir se não o partilhar, deixa sair uma informação secreta, sua ou de outrem, que bem melhor faria em guardar.

Contar a alguém um segredo, comporta, na verdade, uma elevada dose de risco. Sobretudo quando a informação tiver sido transmitida por um terceiro, ninguém tem o direito de, em nome de quem em si confiou, correr o risco de a ver divulgada: “a confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não pertence”.

Por outro lado
Por outro lado, se a coisa apenas é do conhecimento de quem a partilha, algo muito seu que não quer que venha a saber-se, decidir divulgá-lo, mesmo pedindo segredo, parece fraqueza, temeridade, ingenuidade, inconsciência ou mera idiotice. Um pouco como quem, já com um grãozito na asa, conta a história da sua vida aos amigos do bar, dizendo muitas vezes que tudo aquilo é segredo… no exato momento em que, inevitavelmente, deixou de o ser.

- x –

O lado supostamente positivo que alguns encontram no facto de deter um segredo confiado por alguém é o de, para o depositário, ele, inevitavelmente, gerar algum poder.

Pode ser algo tão simples, chato e legítimo como o poder de massacrar a pobre criatura que abre o seu coração dando-lhe não solicitados conselhos de amigo, do tipo “vê lá, não faças isso” porque isto, aquilo ou aqueloutro; mas pode, também, facilmente tornar-se matéria-prima da mais abjeta chantagem, manipulação ou de qualquer outra atividade tão querida de certos espíritos perversos que parecem trazer dentro de si o suplemento de escândalos de um pasquim cor-de-rosa dedicado à cusquice social, expondo, de forma inequívoca, o mais repugnante daquilo que, para ganhar dinheiro ou por mero prazer sádico, um ser dito humano é capaz.

Ainda dentro do supostamente positivo de um  segredo, existe o esconder por amor, ou seja, guardar para nós algo com que não queremos magoar, melindrar, suscetibilizar quem, no nosso sempre subjetivo e muito falível juízo, entendemos poder sofrer duramente se ficar a saber algo que acabamos por optar por não divulgar. Mas, apenas numa situação em que se conheça bem, mas muito bem, a pessoa e a sua situação atual, em que o nosso coração não consiga ceder à razão, já que tal omissão sempre corresponderá à passagem de um atestado de menoridade, de incapacidade para lidar com a vida, apenas entendível e aceitável em casos extremos de fragilidade ocasional motivada por um impacto anterior, ou permanente provocada por doença ou debilidade equivalente.

Como qualquer um de nós, alguém condenado a connosco viver a vida deve pressupor-se habilitado e preparado para o fazer no meio em que se encontra, não nos assistindo, fora dos referidos casos, o direito de o considerar de alguma forma inapto para tomar conhecimento daquilo que diz respeito a si, aos que lhe são próximos, ou aos seus interesses.

Conhecimento dos factos
Além do mais, o facto de guardarmos segredo, não significa que o interessado não venha, mais tarde, a tomar conhecimento dos factos por outra via ou, até, a ficar a saber que retivemos a informação que deveríamos ter partilhado; e uma boa amizade pode assim ficar comprometida.

A par do segredo pessoal existem, como é sabido, segredos obrigatórios, como o segredo profissional relativamente à informação que confiamos, por exemplo, a um advogado, a um médico - até a um sacerdote, embora, neste caso, possa ser posta em causa a qualificação do segredo como profissional.

Também existe, evidentemente, o segredo de estado e, até há bem pouco tempo, o segredo de justiça - segredo que, nos tempos que correm, não passa de uma abstração, dado que ainda o inquérito judicial mal começou, e já tudo quanto possa despertar o ávido apetite da opinião pública aparece escarrapachado na primeira página de um qualquer jornal. Mas estes outros tipos de segredo são, ao contrário do segredo pessoal, vitais ao funcionamento da sociedade e do Estado, pelo que a sua legitimidade é inquestionável por qualquer mortal.

- x -

A face fortemente negativa do segredo pessoal, quando partilhado com alguém obrigado a mantê-lo, reside, por sua vez, na carga, por vezes insuportável, que sempre representa para o novo depositário, que nem sequer o próprio facto de ser detentor de um segredo pode divulgar.

No caso do segredo profissional, do de estado, do de justiça, bastará ao interpelado responder que não pode pronunciar-se sobre o assunto, e a questão fica arrumada. Todavia, aquilo que parece nunca nos ocorrer quando partilhamos algo,   relativo a nós ou a outrem, que não queremos ver divulgado é que, para o esconder se sobre o assunto for interpelado, àquele a quem o confiámos resta … mentir!

A vida do António parece que não vai muito bem… Ele disse-te alguma coisa?”. “Não... nada”.

Mentira!

Ao partilhar, aliviamos um pouco a nossa carga emocional. É verdade. O preço, porém, é sempre o mesmo, e sempre pago pelo outro: ter de mentir para honrar o compromisso. Mentir, por vezes mesmo a quem lhe é bem próximo. Porque segredo é segredo; e, quem o não quer guardar, nem o deve deixar contar.

Quem ouve um segredo é amigo, um bom amigo. Mas... e quem o transmite? Amigo é também?


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terça-feira, 18 de janeiro de 2022


Novak Djokovic - A Estrela Cadente

Notoriedade é responsabilidade. Responsabilidade para com aquela imensidão de adeptos - ou fans, como insistem em chamar-se - que os segue como se fossem deuses, seres omniscientes e infalíveis, modelos de bondade, seriedade e sabedoria.

Não são. São, apenas, seres humanos habitualmente bastante elementares, com uma especial aptidão - quase sempre na área do desporto e, dentro desta, dos desportos com bola. Talvez a velocidade do esférico atraia, ou a imensidão das fortunas acumuladas; ou talvez as pessoas se embasbaquem simplesmente porque têm necessidade de se embasbacar.

A verdade é que muitos destes astros e estrelas - que também por cá alguns temos... - não passam de indivíduos sem educação, sem estatura moral, narcísicos, ambiciosos, que aprendem a sorrir e a fingir emocionar-se com algo exterior ao seu ego, quando a verdade é que apenas nele pensam, indiferentes ao interesse da comunidade e, sobretudo, à fraca qualidade do exemplo com que, inevitavelmente, contaminam quem os idolatra.

Tudo isto é mau. Mas, muito pior é quando o exemplo põe em causa o bem-estar e a saúde de toda uma nação*) ; que, aliás, nem é a deles.

sábado, 25 de dezembro de 2021


A Cozer em Lume Brando... até à Morte

 

Ao cozinhar animais vivos encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração
do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que,
lá bem no fundo, não apenas sentimos como até
 sabemos
, sem necessidade de grande experimentação".

 

Quando era miúdo, ensinaram-me que, tocando com o que quer que fosse, mesmo muito ao de leve, num bicho da conta*), aquilo que, então, me parecia uma espécie de minhoca se encolhia todo, passando a assemelhar-se a uma continha preta - não sei se ainda se pode dizer isto, ou se terei de dizer “uma continha de origem africana”, ao que, um dia, poderá pretender obrigar-me a pirosice a que dão o nome de linguagem inclusiva *), contra a qual diversas vezes já aqui me insurgi. Bem, adiante...

De Tenra Idade aprendemos
Mesmo de tenra idade, qualquer miúdo, por muito burrinho que possa ser, entende existir ali uma relação de ação e reação, um nexo de causalidade: o bicharoco encolheu-se todo porque sentiu alguma coisa que lhe sugeriu que poderia estar ameaçado; e o facto de alguém se encolher, se fechar sobre si, imediatamente sugere, mesmo intuitivamente, a quem tal vê, a forte probabilidade de o sujeito estar a experimentar um forte incómodo.

Nada o provava, evidentemente - mas a simples observação sugeria... -, que essa sensação, presumivelmente desagradável, estivesse associada a uma qualquer forma de sofrimento ou de dor. Afigura-se, não obstante, inegável que, ao fazê-lo dobrar-se sobre se mesmo, o sistema nervoso do bichinho reagia a algo que lhe fora transmitido pelos sentidos. A qualquer idiota não deixaria de ocorrer tão evidente e simples possibilidade.

Dado que tudo aquilo que os sentidos transmitem é sentido pelo sujeito, muito provavelmente, se a sensação for demasiado forte e acutilante – como, no caso dos humanos sabemos ser a provocada por um objeto pontiagudo -, tudo indicará que, proporcionalmente ao tamanho, ao mais leve toque o bicho da conta poderá sentir alguma... dor.

Claro está que, tanto quanto julgo saber, nada disto tinha ainda, nos já longínquos dias da minha infância, sido cientificamente demonstrado; e bem sabemos que, por todas as razões e mais algumas, é recomendável que nada se aceite como certo antes de ser sujeito a adequada validação.

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Sempre haverá, no entanto, que lembrar que não estamos aqui a refletir sobre determinado fenómeno que tenha como objeto uma reação química ou física de seres inanimados, mas sim o que parece tratar-se de uma reação vital de um ser vivo. Se algum de nós apresentar sintomas de um mal-estar evidente, não deixaremos de tudo o fazer para o tratar, mesmo que o quadro clínico não tenha sido objeto de análise científica prévia nem se enquadre em qualquer sintomatologia conhecida. Ou não será assim?

A reação do bicho da conta assemelha-se, com toda a probabilidade, pelo menos à maior parte das reações conhecidas de seres vivos quando lhes são, experimentalmente ou não, infligidos maus tratos suscetíveis de redundar em sofrimento: encolhem-se, esperneiam e, até, gritam, se souberem e puderem gritar como os humanos.

Não sei se as lagostas e os caranguejos se encolhem ou esperneiam quando mergulhados em água a ferver com o intuito de lhes tirar a vida de uma forma ideal à preservação da frescura e do paladar quando transferidos da cozinha para o prato. Nunca tive, na verdade, o discutível prazer de assistir à elaboração de qualquer destes pitéus - que nem aprecio - baseados no consumo, quer de um, quer de outro desses animais ou de outros da mesma ordem.

O que parece, agora, certo - pelo menos a Ciência assim o diz - é que os crustáceos sentem dor, designadamente quando sujeitos a tal tratamento eivado de desumanidade *).

Ser humano de bom senso
Mas não o intuiria já, há muito, qualquer ser humano de bom senso? Não é primeira, entre todas as outras, a humana tendência para comparar, para associar ao que sentimos aquilo que outros poderão estar a sentir? Quando fazemos mal ou bem a quem quer que seja, não o fazemos baseados no conhecimento de que iremos provocar sensação idêntica àquela que experimentaria qualquer de nós?

Quando acariciamos um cão ou um gato, não pressupomos que o que ele sente será algo semelhante ao prazer de recebermos nós idêntica carícia? Que sentido faria a carícia, se assim não fosse, afinal?

Tal como o bicho da conta, a lagosta e o caranguejo são crustáceos: se um é capaz de sentir, de sofrer, como poderá não ter ocorrido aos espíritos mais distraídos que, tal como o primeiro, os últimos haveriam, também, de padecer? E, com eles, qualquer outro animal?

Se, ao que dizem, até os tartígrados*), no seu escasso milímetro de tamanho, sentem, sofrem, se encolhem para se defender dos impactos do ambiente*), entrando num processo de criptobiose*) - eles que resistem às para nós insuportáveis temperaturas, do zero quase absoluto à da água em ebulição, bem como a pressões de seis mil atmosferas -, como não admitir, seriamente, a hipótese de que todos os seres animados sofrem fisicamente, independentemente do grau e do tipo de estimulação?

Ao cozinhar animais vivos*) encontramo-nos perante mais uma inequívoca demonstração do primado, no nosso espírito, daquilo que nos é conveniente, mesmo que a despeito do que, lá bem no fundo e contra nós, não apenas sentimos como até sabemos, sem necessidade de grande experimentação.

Convém muito mais concluir que “não, não sentem, com certeza. São tão pequeninos!”, e vá de os torturar até à morte em benefício de uma porventura mais agradável e sofisticada degustação.

Gostamos de acreditar que não sentem, que a Natureza os preparou para esse tipo de morte. Até a Bíblia narra como benéfica a alegada intervenção de Jesus Cristo na Pesca Milagrosa. Mas, não sofreram inevitavelmente, como hoje sofrem, asfixiando até à morte, os desgraçados peixes, ali no chão?

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Esta prática de cozinhar animais vivos tem, no entanto, bem mais que se lhe diga.

Dado que, como disse, não sou versado nessas artes culinárias, sempre acreditei, ingenuamente, que a água era fervida e, uma vez em ebulição, os bichos para lá eram atirados, perecendo quase instantaneamente, embora no meio da maior aflição.

Alguma pesquisa a que procedi quando este tema foi, recentemente, suscitado na comunicação social, fez-me, porém, saber que o que se passa é bem pior, ainda: os desventurados seres são imersos em água fria, que vai sendo, progressivamente, aquecida, passando as vítimas pela fase do banho frio semelhante ao do seu habitat natural, embora sem sal; pela do desconforto de uma água morta onde, normalmente, não habitam; por fim, pelo intolerável e prolongado horror, muito provavelmente acompanhado da noção da morte iminente, de sentir o corpo todo como que rebentar com um calor impossível de descrever e no qual se torna, também, impossível sobreviver praticamente qualquer representante do reino animal *).

Nada disto é novo: na Idade Média existiam métodos de tortura e de lenta e dolorosa privação da vida, por execução, igualmente atrozes, como a fogueira ou o touro de bronze*). Nos nossos dias, temos notícia de pais que matam filhas com água a ferver*), ou com ela as torturam antes de barbaramente as assassinarem*) de outra forma.

Mas, será isto, este tipo de seres que, verdadeiramente, somos ou queremos ser? Nós, que tanto nos preocupamos com os pergaminhos e com a imagem que de nós mostramos, será que encaramos tamanha indiferença pelo sofrimento causado pelos nossos atos, como uma manifestação de sofisticada evolução civilizacional?

Um consagrado autor português escreveu que “todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior *)”.

Faltou-lhe acrescentar “uma crueldade infinitamente maior”...

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A noção claríssima que, intuitivamente, temos da nossa semelhança, em muitos aspetos, com outros representantes do reino animal leva-nos, em certas circunstâncias, a agir para com eles como para com qualquer representante da nossa espécie, ou até melhor. A vertiginosa expansão das clínicas veterinárias e a cada vez maior multiplicidade de marcas de produtos para animais de estimação vendidas até em supermercados são disso a mais viva e evidente demonstração.

Todavia, essa identidade de tratamento opera, pelos vistos, em ambos os sentidos: para o bem, e para o mal.

Quem, com aberrante indiferença, não hesita em torturar crustáceos em nome de uma boa mesa - inegavelmente importante no convívio social -, como reagirá noutro contexto em que a morte de outrem às suas mãos acabe por surgir como a sequência inevitável ou natural?

Não sendo vegetariano, não posso deixar de perguntar-me como, por outro lado, nas mesmas circunstâncias reagirá quem, ciente de quanto aqui antecede, aceita e paga para, com cumplicidade cruel, satisfazer os anseios do seu sofisticado paladar com despojos inertes de implacavelmente torturados representantes do reino animal.

Sobretudo hoje, que é dia de Natal...

Feliz Natal!

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terça-feira, 21 de dezembro de 2021


Liberalismo ou Encapotado Negacionismo?

De entre tantos outros defeitos herdados da educação que recebi, ressalta o da convicção de que a nossa liberdade termina precisamente onde começa a dos outros. Ou, como já aqui citei, que "a única maneira de defender a liberdade é limitar a liberdade de cada um".

Corolário inevitável deste facilmente compreensível pressuposto, é que o liberalismo que extravasa a fronteira precisa em que entramos no domínio do interesse social legítimo dos nossos concidadãos não passa de incitamento à mais abjeta e caótica anarquia, ao primado do egoísmo e do egocentrismo, à irracionalidade de quem pretende, à viva força, que a liberdade individual de qualquer um - ao que quer que seja e por mais doentia e desvairada que ela seja - se sobrepõe, sempre e incondicionalmente, a qualquer esforço sério e socialmente legítimo do Estado de direito na defesa dos interesses da população.

Esquece-se, porventura, quem o defende de que, se ele e os outros acérrimos defensores circulam em segurança pela via pública e se sentem seguros nos seus lares, tal se deve à ação do Estado na perseguição, detenção, julgamento, condenação e - quando não os deixa fugir... - detenção de quem comete crimes, designadamente contra as pessoas e contra a propriedade, em tais atividades estando o mesmo Estado, afinal, a fazer precisamente aquilo que dele se espera e que é, ao fim e ao cabo, parte importante da sua razão de ser.

Olvidam, também, essas pessoas que, tal como a lei penal considera criminoso quem mata, quem fere, quem, de alguma forma, causa prejuízo grave a outrem, criminoso é, também, quem causa ou se arrisca a causar-lhe sério dano à saúde. Isto, seja o agente um mal intencionado e mal formado ser humano  ou um virus na sua atividade legítima e habitual.

Pretender, mesmo sem assumir contornos negacionistas, que cada indivíduo tem a liberdade de escolher ser vacinado ou não quando estão em causa a eficácia, a eficiência e, mesmo, a sobrevivência do Sistema Nacional de Saúde - não apenas no tratamento de doentes com COVID-19 mas no dos que padecem de qualquer outra doença - é ultrapassar todas as linhas encarnadas do que é natural, legítimo, razoável; é ultrapassar o mais liberal limite da própria definição de humanidade.

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Dar eco, como há dias deu o jornal Observador, a um arrazoado de infindáveis aberrações*) por parte de uma representante da assim chamada Oficina da Liberdade*) que sustenta que se torna cidadão de segunda quem vive em países que, à falta de alternativa, se vêem constrangidos, para evitar a propagação da pandemia, a decretar a vacinação obrigatória não estará, propriamente, a agir no exercício da liberdade de imprensa, antes talvez a propagar ideias perigosas, bem próximas de um acéfalo e parolo negacionismo e que, numa altura tão crítica para estas andanças como é a do Natal, se arriscam a prejudicar gravemente o mais legítimo e sagrado interesse nacional.

Pretender, por exemplo, que "por toda a Europa, parece renascida a ideia de que quaisquer medidas adotadas pelo poder político, em nome da saúde pública, são legítimas, mesmo que sejam absurdas, como é o caso da irónica divulgação de dados pessoais de saúde para aceder a um restaurante de fast food" diz bem da verdadeira natureza das ideias expressas, quando é certo e sabido que, para aceder a qualquer restaurante, basta apresentar um certificado digital a uma aplicação que apenas responde "Válido", sem especificar se o é por a pessoa ter contraído anteriormente a doença, por ter sido vacinada ou por qualquer outra razão admissível. Ou seja: sem revelar qualquer dado pessoal de saúde, mas apenas o estado de conformidade ou de inconformidade perante uma lei que vai de encontro ao mais básico e universal interesse nacional.

Como pode, de facto, alguém pretender que é do interesse ou do bem-estar de qualquer indivíduo estar permanentemente sujeito a uma contaminação potencial?  Como pode alguém de boa-fé alegar que a administração de uma vacina viola a dignidade humana? Ou que está a ser discriminado alguém impedido de entrar num restaurante por não apresentar a prova possível de que tudo fez para não contaminar outros?

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O apodado "certificado digital da discriminação" não passa de um "certificado digital da diferenciação", apenas condenável por aqueles que defendem a liberdade de tudo e a qualquer preço, não hesitando em, a contrario, violar a própria Constituição que dizem defender, já que insistem em considerar tudo igual a tudo. Mesmo ao que, manifestamente, por natureza ou por estado é tudo menos igual.

A manipulação da comunicação com os espíritos de leitores menos críticos ou menos preparados a troco de algo que, num tal quadro, poderá ser facilmente confundido como ânsia de protagonismo ou de promoção social ou profissional parece pouco prudente, nada profícua e, até, contraproducente para a imagem própria de alguém que ciosamente se possa estar a procurar promover ou socialmente alardear.

A defesa dos interesses e direitos de cada cidadão é fundamental para evitar abusos e desmandos como aqueles que durante décadas conhecemos em Portugal. Mas é pernicioso e atenta contra os mais elementares e nobres propósitos de qualquer organização societária insurgirmo-nos contra aquilo que, objetiva e fundamentadamente, a Ciência e os seus representantes consideram uma precaução essencial.

ª ª

No âmbito da defesa dos interesses e direitos, até que ponto será lícito o Estado conceder gratuitidade de tratamentos a pessoas que, simplesmente, se recusam a tomar as precauções consideradas essenciais a limitar a propagação da doença?

(continua aqui)

domingo, 12 de dezembro de 2021


E que tal Fazê-los Pagar a Continha?

Da pusilanimidade e falta de objetividade do Governo de Portugal na gestão da crise pandémica, muito especialmente na altura do Natal, já aqui falei após o descalabro vivido no início deste ano de 2021.

A par de algumas medidas que, na época festiva que se avizinha, se afiguram, à partida, mais avisadas e fundamentadas do que no ano anterior, assistimos, no entanto, a nova demonstração de timidez e omissão governativas, eventualmente devidas à proximidade de mais um ato eleitoral.

Tem isto ao ver com a conclusão expressa em estudos recentemente divulgados segundo os quais, juntamente com os imunodeprimidos, os não vacinados constituem a grande maioria dos internados com COVID-19 em Portugal*); e no Brasil também*), e não é de agora.

Ora, como é sobejamente sabido, a todos os portugueses com idade e nas condições clínicas adequadas, foi, gratuitamente, dada a oportunidade de serem atempadamente vacinados, não apenas no interesse da comunidade, mas no interesse próprio, tão querido a quem tende a pouco querer saber dos outros.

Esquecem-se aqueles que recusaram a vacina de que oportunidade implica responsabilidade, designadamente a responsabilidade económica pela recusa da vacina.

Não parece, assim, fazer qualquer sentido que continue o Estado para o qual economicamente todos somos obrigados a contribuir a suportar os custos com o internamento de indivíduos egocêntricos, medrosos ou apenas ansiosos de protagonismo a qualquer preço, que recusarem vacinar-se, assim acabando, quase inevitavelmente, por apanhar o sempre incómodo, dispendioso e, por vezes, letal bicharoco.

Que o Serviço Nacional de Saúde os trate, acho muito bem. Agora, que todos tenhamos de pagar a continha de uns quantos idiotas que, ainda por cima, comprometem a eficiência e eficácia do Serviço que, desnecessariamente, solicitam já me parece muito além daquele razoável que um governo, por muito pouco razoável, deverá tolerar.

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Em democracia, e por uma elementar questão de justiça, não é lícito tratar igualmente o que não é igual.

Todos fomos postos em pé de igualdade no processo de vacinação. Agora, os benefícios devem ser, também, iguais para quantos foram vacinados, mas bem diferentes para quem recusou a inoculação.


PS: Como já espero reações apatetadas ao texto, aqui transcrevo um elevadíssimo comentário afixado no artigo "Juiz Negacionista ou Advogado Oportunista, que diz bem do que vai na cabeça de alguma desta gente:

    "Prepara-te para um contra ataque em breve do https://forasteiro.net
    Vão ser todos abatidos, tu e o Scimed e mais uns quantos, prometemos.
    A bem ou a força irão ser todos expostos, como vieste ao mundo nú asism o serás em breve.
    Aguarda".

sábado, 11 de dezembro de 2021


Originais à Viva Força

"A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo"


Ao assistir a certas atitudes e ao ouvir certos comentários, convenço-me de que existe uma quase generalizada incapacidade para separar duas realidades absolutamente distintas: moda e originalidade.

Confusão
A confusão não faz, evidentemente, qualquer sentido, já que os conceitos são, não apenas distintos, mas antagónicos: originalidade é a qualidade daquilo que é diferente, próprio, inovador, enquanto moda*) corresponde ao conceito estatístico daquilo que constitui a tendência dominante, a classe com maior representatividade em determinado universo. Ou, no plano social e para utilizar uma linguagem mais terra-a-terra, a propensão de um conjunto alargado de pessoas para copiar, para adotar uma ideia que crêem original, ou sensacional, ou espampanante a ponto de, de certezinha absoluta, ir embasbacar outros invejosos que se irão maravilhar - ou roer todos por dentro... - ao olhar para nós.

Mesmo que o motivo do encantamento não seja original, mas apenas supostamente original...

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Vem este supostamente a propósito, não da eticamente condenável prática do plágio - mais ou menos bem disfarçada, mas sempre correspondente à admissão íntima, por quem plagia, da incapacidade de se igualar ou, pelo menos, aproximar das capacidades e do mérito do original autor -, mas a propósito da deriva do conceito de original, ou da própria compreensão do significado efetivo do mesmo.

Dos relatos da História e daquilo que, nas últimas décadas presenciámos, extrai-se que jamais se assistiu a tamanho desfilar de criadores, de criativos, de entendidos criativos, de construtores de ideias, de promotores de ateliers de ideias, enfim, de toda a espécie de idiotas que, a par de um punhado dos que são, verdadeiramente, originais, verdadeiramente autores, o marketing atual vai associando a indivíduos que mais não fazem, afinal, do que deteriorar, estragar, adulterar o que de bom outros antes deles realmente criaram.

Podendo, embora, admitir-se que, nas suas mais diversas vertentes, o campo da arte se encontra especialmente sujeito a tais desmandos, dá a ideia de que o virus da falsa originalidade alastrou, em incontáveis e cada vez mais contagiosas variantes, a praticamente todas as áreas de atuação humana onde o principal objeto e valor resida na capacidade de gerar ideias dignas desse nome; ou seja, de ideias com as condições necessárias a, caracterizando-se pela diferença mas respeitando, ao mesmo tempo, a indispensável estabilidade da construção social vigente, resultar numa melhoria das condições materiais ou espirituais de vida do nosso semelhante.

Já nos habituámos a pagar para assistir a espetáculos de onde se sai nauseado com o vazio ou aberrante original que por lá se vê; a contemplar originais obras ditas de arte que não passam de rabiscos e borrões cuspidos numa tela - incompreensíveis a menos que o autor esclareça o que lhe terá perpassado o espírito quando as espirrou -, ou mamarrachos escultóricos que facilmente passariam despercebidos, quais calhaus para ali caídos, se os não tivessem plantado numa galeria de exposições, no meio de uma rotunda ou em lugar de destaque num jardim ou parque qualquer.

Manifestações artísticas
Todavia, a par destas manifestações artísticas, os meios de comunicação social dão destaque a uma cada vez maior quantidade de indivíduos à cata de factos que lhes proporcionem oportunidades de se evidenciar, de aparentemente debater, interminavelmente, os mesmos assuntos em tom pomposo e palrar barroco.

Embasbacam as gentes menos educadas ou cultivadas com janelas de oportunidade, com temas abordados em textos sem qualquer densidade e que, no final do dia, convocam muitas dúvidas sobre icónicas, apelativas e estratosféricas personalidades que aparecem linkadas a temas públicos e notórios que interessam apenas e só aos instagramáveis cuja mundivivência se integra no ADN daquelas pessoas top que publicam posts que se tornam virais e altamente rentáveis, ou comentam desconstruindo raciocínios que geram narrativas talvez pouco rentáveis mas incontornáveis, que rentabilizam delas se demarcando proativamente, ainda que com as mesmas possam concordar.

A empáfia*) desta gente, a incrustada apetência por esvaziados mas economicamente compensadores excursos destinados ao consumo de telespectadores desolados e abúlicos, são evidente epifenómeno da explosiva multiplicação de canais televisivos que, por esse processo, ficaram limitados a noticiar o que os restantes noticiam, a comentar o que os outros comentam, a publicitar os mesmos produtos, a simular mudanças profundas, originalidades não originais que copiam de televisões de outros mundos, de outros canais.

Contratam faladores que, ora copiam o que, na véspera, de outros leram ou lhes ouviram, ora buscam, desesperadamente, onde não existem, teorias supostamente originais quanto às causas disto ou daquilo, ora se limitam a seguir a moda das opiniões por muitos outros já expressas sobre os mesmos acontecimentos; em boa verdade, quase sempre algo que, de tão evidente, ao espírito de qualquer um imediatamente ocorre, tornando-se absolutamente dispensável sequer verbalizar.

Nós vemos e ouvimos porque nos habituámos.. àquilo que há.

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Parecem, certas pessoas - falhas de conteúdo mas ávidas de dinheiro, de fama, de protagonismo, daquele poder que nem sabem o que, realmente, é - empenhadas em explorar o inesgotável filão da ignorância e da estupidez alheia para idealizar, não produtos materiais ou espirituais benéficos e propícios ao desenvolvimento do seu semelhante, antes ao que de mais chocante, de mais aberrante, de mais impactante acorrer aos seus pobres espíritos que seja suscetível de causar sobressaltos morais ou intelectuais quase sempre úteis aos interesses do suposto criativo, mas quase nunca aos daqueles a quem ele a dita criação impinge ou impõe.

Experiência própria ou alheia
Há muito tempo sabe toda essa gente, por experiência própria ou alheia, que sempre encontrará mercado fiel e disposto a pagar seja o que for ou quanto for por coisa nenhuma, por qualquer diferença indiferente, por algo tão impossível como uma moda original, na certeza quase absoluta de que irá, mediante tão obnóxio expediente, brilhar no cinzento meio da pobreza espiritual em que evolui e na qual de outra gente como ela se faz rodear.

Esquecem-se essas pessoas, ou fazem por se esquecer, de que, quem é bem sucedido, apenas foge às regras porque teve uma inspiração, uma ideia, um impulso espontâneo, legítimo e bem intencionado.

Esquecem-se de que jamais se consegue ser original - ou criativo, como agora gostam de dizer ser - apenas porque, deliberadamente, sem uma ideia própria válida e com propósitos inconfessáveis, se escolhe fugir às regras: não é essa opção forçada e tomada a qualquer preço e com indiferença perante a qualidade dos efeitos que faz alguém ser bem sucedido. Pelo menos, junto de quem seja verdadeiramente livre, independente, socialmente válido e consciente.

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Em qualquer ambiente em que se respire, de facto, liberdade e civilização, as regras existem por serem, reconhecidamente e dentro daquilo que se sabe e conhece, a forma mais eficiente, mais eficaz e mais segura de obter determinado resultado; e, económico ou não, a obtenção de qualquer resultado positivo, socialmente legítimo e saudável, resulta numa mais-valia com impacto direto no habitat de  quem o produz, e indireto na transmissão que o efeito multiplicador lhe não deixará de imprimir.

A criatividade verdadeira é inviável no quadro estrito do cumprimento das normas legais ou morais estabelecidas. O conformismo total e submisso perante o status quo jamais levou, onde quer que fosse, uma sociedade a evoluir. Mas, violar uma norma, quebrar uma regra, apenas é útil, salutar e profícuo quando o interesse do próximo é a principal razão dessa escolha: nunca quando visa, antes de mais, a exaltação do próprio, a notoriedade, o lucro fácil, o mais elementar, básico, patego e parolo exibicionismo.

Não vale a pena elaborar rebuscadas explicações políticas, científicas, mais ou menos criativas, não faz sentido nem é bonito explorar a ingenuidade, a ignorância ou a credulidade alheias, ou lançar a dúvida, a suspeita, o mistério, o suspense quanto à verdadeira razão, à causa profunda de ter sido encontrada uma maçã caída debaixo da copa de um pinheiro.

Não, não acabámos de descobrir um pinheiro que maçãs.

A maçã estava debaixo do pinheiro porque alguém para lá a atirou, ou a deixou cair. Ou, mais prosaicamente, dela lá se esqueceu.


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sábado, 20 de novembro de 2021


Na Sala de Pequenos-Almoços

 

O respeito pelas mais elementares normas de cortesia e de etiqueta é o garante último de que saberemos comportar-nos e controlar-nos, mesmo quando em tudo diferimos ou divergimos, quando estamos entre amigos ou inimigos, entre parceiros ou adversários. É que o ambiente natural não é o único que importa preservar: existe o ambiente social, que também importa saber enriquecer, cultivar


Aos Primeiros Alvores do Dia
Aos primeiros alvores, quando tudo em nós resiste à inevitável mudança da horizontal para a vertical, do escuro para a luz do Sol, do conforto do hotel para o bulício da rua, em trabalho ou em gozo de férias, a sala de pequenos-almoços é o entreposto ideal para atenuar os efeitos da dolorosa transição.

Ainda para mais, se o espaço é agradável, o buffet farto, e o serviço simpático e eficiente.

Anos atrás, estas três expetativas seriam legítimas e naturais, nenhuma menos agradável havendo a acrescentar, já que, salvo um ou outro episódio esporádico e menos edificante, para tal grande razão não se iria encontrar.

- x –

Hotel arejado, amplo, tranquilo.

Num canto da sala, sentado pacatamente, um discreto casal nos cinquenta ou sessenta trocava frases em surdina, aqui e ali deslizando pela sala para guarnecer o prato, quase sem se fazer notar. Ambos com a roupa informal, discreta, de pequenas férias numa bonita cidade em Portugal.

O elevador chega. A porta abre-se. Expele três bocas escancaradas e palavrosas nos seus quarentas, fatos de treino num berrante azul e rosa, a gritar alarvidades em suposto português da América enquanto os pés as havaianas fazem falar.

Escolhida a mesa, chinelam para o buffet, atropelando comentários aos assuntos mais diversos que, sem dó nem piedade, impõem ao casal do canto - já que, os ouvidos, quando a gente come à mesa, não tem como tapar.

Minutos depois, o elevador. Tugas boçais, como se tirados de certos cartazes da campanha autárquica, com graça nenhuma.

No carrinho, um infante de tenra idade geme e grita a desdita, ou alguma desconhecida e lancinante dor. O mano, de três ou quatro encantadores aninhos, dá largas à birra de um capricho negado pelos progenitores.

Pais Indiferentes aos Filhos
Imunizados da choradeira, a mamã e o papá, indiferentes, olham placidamente em redor. Buscam, deleitados, a mesa com melhor vista, omitindo o mais débil esforço para suster as lágrimas dos mimados – ou ignorados – futuros doutores.

Pára o elevador. Mais gente chegou. Como aqueles dois espécimes que, há muito ido o Verão e num hotel de cidade, se lambuzam de calções de banho e havaianas copiadas das dos outros três. Bonés na cabeça com as palas para trás, como alguns humanoides pensam que é moda, que lhes fica bem, que os faz parecer sabe-se lá quem. 

Talvez se sintam importantes influencers, manipuladores ou vendedores de banha da cobra, a mitigar um pouco as frustrações que uma chuva de palavrões projeta no ar matinal de uma outrora tranquila e civilizada sala de refeições.

Outros, mais discretos, sentam-se, hesitantes, ponderando se será prudente por ali ficar ou não.

Entre eles, uma jornalista famosa, desses programas de horário nobre, quase irreconhecível nas enormes olheiras sem a maquilhagem que lhes colam à pele na televisão. Resolve ficar. Cotovelos na mesa, sorve, lânguida e ruidosa, o café com leite, debitando, a espaços, vocábulos esparsos para a farta cabeleira pelos ombros, bigode hirsuto e barba por fazer que em frente come parecendo nem ouvir.

Irremediavelmente comprometida a digestão, o casal do canto precipita o fim da refeição. Levanta-se, ajeita as cadeiras e, desta vez, prefere as escadas, para evitar a confusão.

- x –

Respeito pelas Normas de Cortesia e Etiqueta
A sala de pequenos-almoços de um hotel português de três ou quatro estrelas é um microcosmo do Mundo em que vivemos hoje em dia. Ou, pelo menos, do Portugal que habitamos e aos vindouros vamos deixar: bisonho, fechado, enfadonho, atarantado, humanamente pobre e feio. Faz pensar nas imensas mágoas e tensões latentes na mente e no espírito daquela atarantada gente, bem como no dia em que, com estrondo, fatalmente irão estoirar.

A galopante indiferença de uns poucos perante o ambiente que, em cada lugar, a cada um dos outros é legítimo esperar encontrar, surge como uma das notas dominantes de um inovador mas inqualificável conceito que uma parte cada vez maior da população confunde com liberdade: não passa de uma elementar, básica, risível e parola demonstração de completo desrespeito pela tranquilidade alheia; pelas expetativas de quem a um lugar se dirige com determinado propósito, com todo o direito de esperar aí encontrar condições adequadas, como anteriormente sempre encontrava e a cultura (ainda) dominante sugeriria que continuasse a encontrar.

O respeito pelas mais elementares normas de cortesia e de etiqueta é o garante último de que saberemos comportar-nos e controlar-nos, mesmo quando em tudo diferimos ou divergimos, quando estamos entre amigos ou inimigos, entre parceiros ou adversários. É que o ambiente natural não é o único que importa preservar: existe o ambiente social, que também importa saber enriquecer, cultivar.

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A forma de trajar é uma das vertentes.

Nada explica e, muito menos, legitima que, em lugar de obedecer ao mais elementar preceito da boa educação que diz “em Roma, sê romano”, se opte por, onde quer que seja, impor à comunidade as regras de meia dúzia - quantas vezes, até, de um só - que queira parecer original, por pouco mais de si lá ter para mostrar. Apenas se torna incómodo, digno de pena, patético, ridículo em toda a imensidão do seu miserável comportamento, como alguém que não sabe estar nem dos outros quer saber.

Cada um tem o direito de se vestir e de agir como bem lhe aprouver; mas apenas quando está só ou com quem pense e sinta de forma idêntica: que o mesmo vá buscar onde estiver. Ninguém alguma vez  terá um direito legítimo de impor, a espetadores acidentais ou involuntários, condutas, atitudes ou trajos inadequados ao tempo, ao lugar e às demais circunstâncias; que lhes não interessem, que patentemente lhes desagradem ou os violentem nos seus hábitos, educação ou convicções.

Quem assim agir, terá sido educado como as duas criancinhas que, no hotel, a plenos pulmões berravam as suas mágoas ali mesmo ao lado de pais sem educação ou carinho para lhes dar, virados para o próprio umbigo, insensíveis à perturbação causada a quem tinha pagado para, com todo o direito, ali saborear uma tranquila e pacata primeira refeição.

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Será que esta liberdade que insulta a Liberdade considera ofensivo afixar, à entrada da sala, uma papeleta, um quadrinho, qualquer coisa que informe, em letras bem visíveis, que não é permitida a entrada, pelo menos, a hóspedes em chinelas e calções, ou especificando qualquer outra roupagem estapafúrdia que por lá seja uso encontrar?

Dá mau aspeto o papelinho à porta, dirão. Pois dá. Mas não será bem pior o desfile de manifestações variadas e inacreditáveis de falta de educação com que, de outra forma, cada vez mais nos iremos deparar? É que a forma como trajam sempre diz alguma coisa do modo como as pessoas se irão comportar.

Poderão os estabelecimentos abertos ao público continuar a ignorar os efeitos nocivos da deriva educacional de uma sociedade cada vez mais decadente? Mais do que outros, os estabelecimentos de hoteleria e de restauração, num Portugal em que a captação de turistas estrangeiros é vital para dinamizar a economia?

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As normas de conduta em publico, em sociedade, muito especialmente as que se referem à forma de trajar, nasceram do consenso; e, em quanto não violar as leis do Estado, a sua inobservância ou alteração apenas deve ser permitida ou promovida junto de quem a tal estiver recetivo, e vivida em núcleos que, também consensualmente, comportamentos menos consensuais escolham adotar.

Tudo quanto vá fora disso, não passa de agressão egoísta, oportunista e gratuita de terceiros, visando a subversão de modos de vida estabilizados cuja manutenção é essencial à Humanidade, à paz que viabiliza o progresso moral e espiritual que permite contemplar, pensar, sonhar, criar.

Enquanto continuarmos a digladiar-nos para sobressair ao nível comezinho do usufruto imediato e dos comportamentos a ele inerentes, não sobrará espaço nem tempo para investir, ainda que levemente, no crescimento e aprimoramento intelectuais ou espirituais. Os únicos desenvolvimentos que sairão de um combate deste tipo serão os habituais arranhões e equimoses, muitas vezes até corporais.

Se cada um se abstiver, antes, de impor ao outro aquilo de que gosta mas ele não, e cuidar de fazer pelo outro aquilo de que não gosta mas ele sim, as relações interpessoais serão muito diferentes e o Mundo será, para todos, um lugar muito mais agradável para se estar, para dar e para usufruir.

Assim, é que não...

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Esta coisa da falta de maneiras é, a par de outras por vezes bem mais sérias, uma das características mais irritantes de entre as que parecem omnipresentes, como se fizessem parte de boa parte da população.

(leia aqui a sequência)