quinta-feira, 26 de setembro de 2024


As Lentes de Vidro

"Até que ponto a probabilidade talvez ínfima de um acidente fatal – ou, pelo menos,
dramaticamente grave - para a visão legitimará e justificará as dores de cabeça,
a privação do bem-estar de milhões de pessoas? 
"
 

"Para quê a aprovação de leis absolutamente desnecessárias, que nenhum efeito prático alcançam
a não ser a sempre condenável privação da liberdade dos destinatários
além do estritamente necessário ao funcionamento do Estado de Direito? 
"


Aconteceu-me acompanhar, a um oculista, alguém que necessitava de mudar de óculos. Sempre usoulentes de vidro – aquelas a que os eruditos da área gostam de chamar “lentes minerais”. Que são ligeiramente mais pesadas do que as outras; mas que só se partem, não se riscam.

Apresentam, ainda, a enorme vantagem de sair mais em conta do que as outras, as chamadas “lentes orgânicas”, aquelas que parecem de plástico, mais leves, mais dispendiosas, enfim.

Apresentam, não: apresentavam! É que fiquei a saber que as lentes de vidro já praticamente não são utilizadas, pelo que, tendo deixado de haver em stock, só são fornecidas por encomenda, saindo a um preço cerca de seis vezes superior àquele pelo qual antes eram vendidas!

Estupefacto, perguntei a razão desta alteração dos hábitos dos consumidores, a ponto de as lentes de vidro quase terem desaparecido do mercado. Fiquei, então, a saber que a “evolução” se devera ao facto de elas serem consideradas “perigosas”, dado o risco de se quebrarem em caso de queda frontal do portador, que poderia ocasionar um impacto do rosto no chão e, por via deste, a quebra das lentes e possível lesão do globo ocular.

Acrescentou o oculista que, em certos países europeus, a venda destas lentes “minerais” foi até proibida, por este mesmo imperativo de segurança.

Voltei a casa a matutar no assunto, e a perguntar-me quantas vezes alguém terá cegado ou, pelo menos, ficado seriamente ferido num olho por ter tropeçado e caído de bruços, com tão forte impacto direto no chão que as lentes se tenham quebrado e entrado pelos olhos dentro…

Tanto quanto consigo imaginar, o infausto acontecimento apenas poderá, razoavelmente, ocorrer no caso de o indivíduo ter as mãos amarradas atrás das costas ou, de alguma outra forma, estiver privado da utilização das mesmas para, pelo menos, minorar a intensidade e a gravidade do tombo.

Lembrei-me, então, de alguém conhecido que, sempre tendo utilizado as outras, as modernas lentes “orgânicas”, invariavelmente era obrigado a trocá-las a cada dois ou três anos, de tal forma a densidade dos riscos acumulados impossibilitava uma visão razoavelmente límpida, antes interpondo, entre os olhos e aquilo que eles queriam ver, uma espécie de permanente nevoeiro. O mesmo alguém padecia de frequentes e intensas cefaleias, às quais o dito nevoeiro estava longe de ser alheio, se não o principal responsável por elas.

Impôs-se, neste ponto, ao meu espírito inevitável dúvida axiológica: até que ponto a probabilidade talvez ínfima de um acidente fatal – ou, pelo menos, dramaticamente grave - para a visão legitimará e justificará as dores de cabeça, a privação do bem-estar de milhões de pessoas?

Por que motivo, em nome de rebuscadíssimas razões de segurança, lhes passou a ser negado o direito a decidir correr, ou não, o risco? A escolher entre as lentes “minerais”, de vidro, e as “orgânicas”, muito mais caras do que outrora eram as primeiras, e feitas de uma espécie de plástico incomparavelmente mais sujeito a adquirir riscos, a ponto de acabar por dificultar a visão que os óculos, afinal, supostamente servem para melhorar?

Ocorreu-me uma primeira resposta: para dinamizar a indústria e o comércio de óculos, aumentando os já astronómicos preços – e margens de lucro - que a estafada “oferta do segundo par” não chega para atenuar.

Que me perdoem os oculistas se estiver enganado - e que, nesse caso, aqui escrevam de sua justiça o que lhes aprouver comentar -, mas a magreza do argumento da muito remotamente possível ocorrência de acidentes não convence.

Pretender comparar o mais do que certo incómodo causado, a milhões de consumidores, pelo “nevoeiro” das lentes “de plástico”, ao mais do que diminuto risco de lesão devida a uma improvável queda frontal ou acidente de efeitos similares cujo impacto não possa atenuar-se mediante o auxílio dos braços e das mãos parece, não apenas ridículo, mas despudorado, se for acertada esta primeira hipótese.

Ou – segunda hipótese - dever-se-á tudo àquela irritante mania de alguém pouco ocupado lá por Bruxelas querer apresentar serviço inventando fantasmas para assustar os incautos e acrescentar temores às suas nem sempre esclarecidas mentes, manipulando, qual bonecreiro, as consciências alheias em nome e ao serviço do ego e da anchura de um punhado de tecnocratas e burocratas empenhados em, cada vez mais, apertar a rede, ainda que à custa de imposições indubitavelmente deletérias para a saúde humana?

Para quê, nesta e em tantas outras áreas da governação, a aprovação de leis absolutamente desnecessárias, que nenhum efeito prático alcançam a não ser a sempre condenável privação da liberdade dos destinatários além do estritamente necessário ao funcionamento do Estado de Direito?

Qual o estalão aplicável?

Fica a questão, ao cuidado de quem pense saber responder.

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