sábado, 26 de março de 2022


Chamo-lhe, ou Chamo-o de?

"A forma 'chamou-o de tonto' não passa da deturpação brasileira da expressão 'chamou-lhe tonto'

"Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e,
com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões que apenas se prendem com convenções sociais.
Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar
"


Deixando muito boa gente de cabelos em pé, com cada vez maior frequência, encontramos, faladas ou escritas, expressões como “chamou-o de tonto”. Seguem-se-lhes, ora o ataque de quem sustenta que tais expressões apenas são válidas no Brasil, ora a defesa de quem recorre à estafada cantilena da anterior utilização por este ou por aquele autor português - amiúde citando uma produção posterior à invasão, pela telenovela brasileira, do inconfundível espaço cultural genuinamente português

O Predicado

Assim, e como quase sempre acontece nestas coisas da língua pátria, nenhuma fundamentação válida é apresentada para uma ou para outra posição, resumindo-se cada uma à mera e inane, embora legítima, expressão da opinião subjetiva dos respetivos defensores ou detratores.

O raciocínio lógico que, de seguida, aqui se desenvolve, leva a perfilhar a conclusão segundo a qual a forma “chamou-o de tonto” não passa, em boa verdade, da deturpação brasileira da expressão “chamou-lhe tonto, corretamente utilizada na mesma língua portuguesa que, mau grado os tratos de polé que lhe infligem, os brasileiros dizem falar.

- x –

Iniciemos o raciocínio referindo aquilo que é evidente: independentemente das circunstâncias em que o ato é praticado, no caso de que aqui tratamos chama-se, sempre, algo a alguém.

Temos, assim:

  • o predicado composto pela forma do verbo chamar,
  • o objeto (ou complemento) direto algo – o nome, normalmente pejorativo, que se chama –,
  • e o objeto indireto alguém – aquele a quem se chama o tal nome.


A ideia expressa no nosso exemplo, é, pois, a de que alguém “chamou tonto a ele”; e, utilizando, como complemento indireto, o pronome oblíquo átono, essa ideia exprime-se, em bom português, como “chamou-lhe tonto”, assim se concluindo ser esta expressão correta a utilizar, seja por quem for e em que lugar do Globo o vier a fazer.

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Onde e por que começou, então a deturpação para “chamou-o de tonto”?

Jamais o saberemos, mas poderemos pensar em algumas possíveis explicações:

1. O erro poderá ter sido originado, dada a semelhança formal, pela errada associação do ato de chamar algo a alguém com, por exemplo, a ideia de vestir ou cobrir alguém, como em “vestiu-a de branco”. 

Inexiste, porém, qualquer confusão legítima entre esta expressão, corretamente construída, e “chamou-o de tonto”, já que, no primeiro caso, associado ao objeto direto “-a” (por ela) temos o complemento circunstancial de modo “de branco”, e não uma estranha espécie de objeto indireto que, no segundo caso, se pretende inadequadamente exprimir com “-o”.

No mesmo exemplo, o complemento circunstancial de modo “de branco” - no sentido de “de tecido branco” - inicia-se, e muito bem, pela preposição “de”.

2. Uma outra causa provável poderá ter a ver com o facto de ser possível chamar alguém para determinado fim, como em “chamei-o para trabalhar comigo”, caso em que o “-o” nos surge, naturalmente, como objeto direto. Mas, neste caso, surge com toda a legitimidade - e sem de -, uma vez que exprime, não aquilo que se chamou a alguém, mas a pessoa (objeto direto) que foi convocada.

Claro está que diversos complementos iniciados por de são, aqui, suscetíveis de enriquecer a ideia, como em “ontem chamei-o, lá de longe, para trabalhar aqui comigo”, sempre se mantendo inalterada a classificação do “-o”. 

No entanto, nada disto tem, no entanto, qualquer relação legítima com o errado "chamar alguém de".

3. Outra explicação poderá residir na semelhança com o verbo apodar, que significa chamar um nome “feio”.

Esse sim, apesar de exprimir, também, uma ideia de transmissão de determinada ideia a alguém, rege a preposição “de”; ao contrário do que acontece com o verbo chamar, mas de forma idêntica ao que sucede, por exemplo, com os verbos notificar e informar, quando utilizados com o mesmo objetivo.

Enfim, seja qual for a origem do cada vez mais recorrente erro chamar alguém de, do ponto de vista lógico, racional, substantivo, que deve presidir à formação e desenvolvimento de qualquer idioma, poucas dúvidas poderão restar de que, quando utilizado para veicular uma ideia a alguém, o verbo chamar não rege a preposição de.

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Não obstante, e tal como em múltiplas outras vertentes da vida, também na gramática nem todos os preceitos são válidos independentemente das circunstâncias em que são aplicados.

Não se conclua, assim, que a preposição “de” deve ser, obrigatoriamente, excluída de frases construídas com o verbo chamar, no sentido de qualificar alguém.

De facto, este ato de chamar algo a alguém ocorre, inevitavelmente, em circunstâncias como, por exemplo, as de lugar relativas àquele que chama, as quais, quando expressas na frase, operam como complementos que devem ser introduzidos pela preposição “de”.

Se decidirmos referir, por exemplo, circunstâncias de lugar, o nosso “chamou-lhe tonto” inicial evoluirá para “de longe, chamou-lhe tonto”; ou, quanto às circunstâncias de modo, para “chamou-lhe tonto, assim de chofre”, sendo diversas as possíveis variantes.

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A posição aqui assumida vai, aliás, de encontro àquilo que sucede com outros verbos que exprimem a transmissão de uma ideia a alguém e, pelo menos nesse sentido, não regem preposição, tais como dizercomunicartransmitirpedir e oferecer, entre outros.

·         Disse-lhe o que pensava”, e não “disse-o do que pensava

·         Comuniquei-lhe a minha posição”, e não “comuniquei-o da minha posição

·         Transmiti-lhe a informação”, e não “transmiti-o da informação

·         Pedi-lhe ajuda”, e não “pedi-o de ajuda

·         Ofereci-lhe os meus préstimos”, e não “ofereci-o dos meus préstimos

·         Chamei-lhe tonto”, e não “chamei-o de tonto

Desafortunadamente, porém, começa a ser comum encontrar, em sítios de cariz alegadamente cultural - que aqui não serão nomeados -, esta última construção chamar alguém de, até em escritos que, embora de forma aligeirada, abordam temas importantes da língua portuguesa, tais como a formação ou utilização de vocábulos ou o enunciado e a aplicação de regras gramaticais.

Na elaboração do que esses sítios culturais afixam, regularmente colaboram emergentes linguistas que não hesitam em iniciar parágrafos por "E", ou em dinamizar um monótono texto com um popularucho "Bolas!" ou outra expressão de gosto duvidoso e pretensamente coloquial.

Alguns insistem, mesmo, em exibir, com indesejável frequência e em desproporcionadas dimensões, imagens dos seus desinteressantes rostos em pose que talvez considerem sedutora, encabeçando textos mais ou menos emotivos e em tom propositadamente acessível. Esperarão, porventura, dessa forma captar aquele auditório mais amplo e interessante - leia-se: que " mais cliques" -, mas que se não mostra capaz de entender explicações mais elaboradas, por absoluta falta de substrato intelectual, cultural e teórico que lhe permita interpretá-los.

Na falta de assunto ou de fundamentação, limitam-se, amiúde, esses eruditos a citar autores e, com títulos chamativos e a coberto da gramática, a abordar questões vocabulares que, afinal, têm a ver, não com regras gramaticais, mas com meras convenções sociais.

Demonstrações lógicas daquilo que sustentam, não é comum encontrar; e dizer, apenas, que algo é assim porque é assim, não será, quiçá, a melhor forma de ensinar.

- x -

Pede-se algo a alguém, tal como se chama algo a alguém.

Pede-se-lhe, e chama-se-lhe.

Não há que enganar.

* *

Tudo isto, naturalmente, sem negar aos nossos irmãos brasileiros o mais amplo e sedimentado direito de se exprimir como bem entenderem, naquela sua língua que tão parecida é com a nossa.

(continua aqui)


A gramática de um idioma define-se pela estrutura lógica,
e não pela utilização mais ou menos própria que, aqui ou ali,
um ou outro escritor dela fará


7 comentários:
  1. Ora, ora...quem assim fala não é gago.
    Poder-se-á chamar-lhe tudo, menos... chamar-lhe tonto!
    Saio daqui mais informada, se bem que não seja uma seguidora do NAO nem no uso do português do Brasil.

    Tenha um bom fim-de-semana. :)

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    1. Muito obrigado pela sua simpática apreciação.
      Tenha um ótimo Domingo!

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  2. Caro Sr., se me permite, gostaria de acrescentar que existe a expressão idiomática _ ou talvez zona idiomática_ "chamar nomes" (a alguém) que, sintácticamente, dispensa a regência da preposição.
    Quanto à origem da incorrecta forma "chamou-o de idiota", além da justificação já avançada, lembro que foi grande a influência do Francês na nossa Língua, sobretudo após os anos da emigração, pelo que houve uma grande "colagem" de certas construções gramaticais "galicistas" que se foram introduzindo na nossa língua oral, principalmente através dos Sujeitos falantes menos alfabetizados.
    Assim: "Chamou-o de tonto" tem exacta correspondência ao francês "il l'a appelé d'idiot".
    Com os melhores cumprimentos,
    AP


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    1. Caro Leitor
      Agradeço, penhorado, o seu contributo.
      Penso que "chamar nomes" exprime a forma genérica e abrangente da ideia, pelo que "chamar-lhe tonto" ou "chamar-lhe nomes" requererá, precisamente, a mesma estrutura e classificação gramaticais.
      Relativamente à expressão francesa, concordo inteiramente com a semelhança e com a possibilidade de haver, de alguma forma, influenciado a deturpação da portuguesa correspondente.
      Permita, no entanto, que introduza duas não muito importantes objeções:
      - o impacto do francês na língua portuguesa - mormente por via da significativa emigração para França - será, porventura, menos intenso do que o devido à importação de produções televisivas brasileiras;
      - sem prejuízo de algumas migrações ocorridas, no Brasil, até dada a considerável distância geográfica, a influência do francês poderá não corresponder à explicação mais pertinente para a evolução linguística (em brasileiro correto, mas em incorreto português).
      Não passam, porém, uma e outra observações de meras anotações, que em nada desvalorizam o meu sincero agradecimento pelo enriquecimento que a variável que introduziu trouxe à discussão.

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    2. Caro Sr., aqui estou uma vez mais. Desta vez para lhe indicar umas páginas interessantíssimas que, tenho a certeza, irá lê-las com gosto.

      https://gerflint.fr/Base/Bresil_special2/couto.pdf

      Com os melhores cumprmentos,
      AP

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  3. (cont.)
    Se me permite, ainda gostaria de acrescentar:

    http://anais.uesb.br/index.php/cmp/article/viewFile/8713/8869

    AP

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    1. Lerei, certamente, com agrado, e agradeço as sugestões.
      Permito-me, no entanto, salientar que jamais neguei a influência do francês. Simplesmente, no caso específico abordado no texto que publiquei - 'chamar alguém de algo' - não me parece que tenha o francês influído, diretamente, nessa deturpação da língua portuguesa. Penso antes que, dado ter ocorrido, quase exclusivamente, a partir do início da transmissão de telenovelas brasileiras, terá sido essa a fonte direta da indesejável evolução.
      Não me refiro, naturalmente, à evidente influência do francês sobre a língua brasileira, que pouco tem a ver com a nossa (https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2022/02/acerca-da-lingua-que-falam-no-brasil.html).
      Terá, assim, sido o brasileiro o veículo direto da deturpação, e o francês o indireto, por via daquele.

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