quarta-feira, 12 de março de 2025


O Estado dos Velhos do Estado

 

A missão fulcral, quase única, do Estado é assegurar a produtividade,
procurando criar, nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que ela aconteça

O Estado não passa de uma abstração, de um conceito distante,
e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos menos mata a solidão

Será assim tão difícil gerir a coisa pública por forma a que os velhos carenciados
tenham um poucochinho mais de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até, felizes?

 

Habituamo-nos a olhar o Estado como uma criatura voraz, que procura, através do sistema fiscal, sugar o que pode dos nossos mais ou menos parcos rendimentos, supostamente em prol do mesmo Estado - que somos, afinal, todos nós.

Alguns, não poucos, olham-no também como um viveiro de corruptos que vão para a política para... digamos que para aproveitar as benesses dadas a quem serve o Estado ou, pelo menos, é pago para o fazer.

Voraz ou não, gerido ou não por arrivistas mais ou menos oportunistas e desilustrados, a verdade é que, como acontece com qualquer organização, o Estado tem de prover, antes de mais, à saudável sobrevivência dele mesmo, a fim de evitar males maiores a quantos dele dependem, seja lá como for.

Centra, para tal, a atenção na população ativa ou potencialmente ativa, na respetiva formação e desenvolvimento, na criação de estruturas e infraestruturas adequadas a aumentar a produtividade e o bem-estar dos seus elementos profissionalmente válidos – válidos em teoria, pelo menos... -, para que a atividade dos mesmos gere riqueza para alimentar o Estado através receita fiscal, assim se reiniciando o interminável ciclo.

Não nos iludamos, pois: a missão fulcral, quase única, do Estado é assegurar a produtividade, procurando criar, nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que ela aconteça.

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Trata-se, assim, de uma missão essencialmente económica, na qual se inserem, é verdade, importantes vertentes sociais; mas estas, sempre subordinadas ao objetivo de alimentar e manter o Estado enquanto tal, e tão independente quanto possível da caridade de bancos e de países terceiros.

Por outras palavras, a educação enquanto tal, a saúde enquanto tal, a justiça enquanto tal, e por aí fora, nada disso interessa ao impessoal, indiferente e objetivo Estado, já que nenhuma utilidade para ele teriam, a não ser enquanto potenciadores indispensáveis da atividade e da saúde económicas.

Neste quadro, que interesse têm, para o Estado, os improdutivos ou pouco produtivos velhos que há mais ou menos tempo inverteram o seu papel de produtores para o de meros consumidores, na maior parte dos casos dependentes de prestações sociais que tanto oneram o mesmo Estado?

Interesse nenhum, claro.

Os "reformados e os pensionistas" - cuja defesa supostamente ainda dá o que resta de ânimo a decadentes e também envelhecidas estruturas políticas - são tão úteis ao Estado como outros "inúteis", doentes crónicos, reclusos e outros que tais. Isto porque o problema do Estado social não reside, apenas, numa eventual falência dos sistemas de segurança social, mas também, já hoje e sempre, nas avultadas quantias subtraídas ao consumo por via da cobrança de taxas sociais e nos perdidos impostos que tais montantes gerariam se por aí andassem a circular, em lugar de servirem para pagar pensões e subsídios a enfermos, anciãos e outros que tais.

No entanto, o Estado não abandona, simplesmente, os velhos. Pelo contrário: reforma-os, pagando-lhes pensões vitalícias para que, uns melhor, outros pior, possam, pelo menos, sobreviver.

Porquê?

As possibilidades de resposta abundam, claro, das mais piedosas às mais cínicas, e não faltará quem vá aventando novos e inovadores fundamentos para a manutenção do paquidérmico, mas indispensável, Estado social.

Porém, sejam quais forem os fundamentos, as razões invocadas, sempre prevalecerá a dura verdade de que o implacável ogre cuida dos velhos apenas por obrigação, já que, enquanto entidade abstrata, não conhece a bondade, a piedade, a ética, a generosidade: apenas um infindável rol de imperfeitas normas jurídicas, nas quais encaixa recursos humanos para o servir e recursos económicos para estes sustentar.

Os velhos - mesmo aqueles que o serviram - são um frete com que o Estado, o Estado puro, não tem de se preocupar. Faz aquilo a que as circunstâncias obrigam, mas não cuida, não protege, não acarinha, porque o Estado não passa de uma abstração, de um conceito distante, e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos menos mata a solidão.

Só um velho entende os velhos, os que, como ele, chegaram ao ponto em que, o que já foi, agora apenas serve para alimentar o sonho, e vivem – ou sobrevivem - saudosos do tempo em que o tempo passava sem terem de o empurrar para a frente.

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Proclamou a ONU, alguns anos atrás, o Dia Mundial da Justiça Social. É muito fácil fazer proclamações, e dias mundiais de qualquer coisa, são-no já os dias quase todos.

Mas será a dita justiça social apenas dar dinheiro?

Será assim tão difícil gerir a coisa pública por forma a que os velhos carenciados tenham um poucochinho mais de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até, felizes?

Será, mesmo, impossível gastar algum dinheiro de todos nós, não apenas a alimentar e vestir os velhotes, mas em procurar fazê-los sair do torpor solitário e desalentado em que, desiludida, a maior parte deles acaba por mergulhar?

Será assim tão dispendioso intensificar a fiscalização dos lares – alguns deles, meros depósitos de quem gente já não se sente -, em prol da dignidade de quantos lá arrastam, penosamente, os seus dias?

Em vez de apenas alimentar e tratar os que não têm abrigo, será, mesmo, impossível encontrar um mecenas que se empenhe em os albergar e deles cuidar?

Empenhar recursos dos sistemas de saúde para prolongar a vida de uma ancianidade caduca e acabada não é obra meritória: é tortura, é sentença de prisão perpétua, de morte lenta de quem já nada tem à frente, já pouco ou nada de belo tem para contemplar.

Fugit irreparabile tempus

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