"Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu,
não
parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto,
preferindo-lhe
o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos
- e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser
iguais"
1. Pressupostos
Não valeria a pena investigar se a investigação científica não conduzisse à
descoberta de novas realidades e de conhecimento retificado ou acrescentado
quanto àquelas que julgamos conhecer; tampouco se, convidando o registo dessa
evolução à introdução, na linguagem falada e escrita, de novos conceitos,
escolhêssemos não os adotar.
Nesta adoção de neologismos ou adição de significados a termos existentes
sempre se haverá, porém, de assegurar que o léxico próprio de uma área do
conhecimento não irá, por erro, incúria, indiferença ou outro vício do
processo, afetar o rigor vocabular de outra área - ou de todas as outras.
Em tais condições, agravar a polissemia, acrescentando significados ou
utilizações possíveis a termos deles sobrecarregados, mais longe não levará do
que ao incremento da dúvida nociva e a uma crescente degradação da clareza, a
ponto de nos arriscarmos a cair na situação ridícula de, ao tentar, fechada
sobre si, enriquecer próprio o léxico, determinada área do conhecimento acabar
por adotar vocábulos de significado já tão difuso que, além de nada de bom
acabarem por acrescentar à clareza do discurso científico, inexoravelmente
acabarão, antes, por fortemente a prejudicar.
Assim parece ter acontecido, no caso que aqui me traz, com a Política e com as
Ciências Sociais.
2. Primeira Apropriação Lexical
Quando, num formulário, existe um campo “Sexo:”, ninguém espera que o
preenchamos designando o órgão reprodutor com que nascemos, ou com que, mais
tarde, tivermos escolhido ficar: o que se espera é que, mediante
feminino ou masculino, indiquemos qual o conjunto a que
pertencemos atendendo às diversas variáveis primárias e secundárias que,
sexualmente, nos caracterizam.
Assim, conscientes de que, ao nível do comportamento e a despeito do que é
fisicamente aparente, as coisas são tudo menos simples, parecem as Ciências
Sociais ter, num dado momento, sentido a necessidade de
introduzir, no seu léxico específico e em benefício exclusivo do mesmo,
um novo conceito destinado a caracterizar, já não os dois possíveis conjuntos
de caraterísticas sexuais biológicas propriamente ditas, mas algo que
poderemos, em síntese, definir como o que, inerente à sexualidade, se passa no
plano dos sentimentos e das emoções do ser humano; e também, a
necessidade de incluir cada indivíduo numa classificação quanto à forma como,
em virtude dessas emoções e desses sentimentos, se irá comportar.
De forma porventura ligeira e pouco refletida, ter-se-á, então, decidido acrescentar aos significados do termo género estas combinações de sentimentos, emoções e comportamentos de raiz sexual que visam, a jusante, o desenho de modelos sociais e culturais baseados nos múltiplos decimais e tons de cinzento que poderão assumir, designadamente na intensidade e na forma como cada pessoa se identifica com um ou outro padrão comummente associado a indivíduos de um ou do outro sexo biológico, intensidade e forma essas que, como um todo, por identidade de género *) as Ciências Sociais terão decidido designar.
Tal escolha aconteceu, porém, em claro detrimento do rigor dos léxicos da Biologia*) e da Linguística*), que, como veremos, não se terão as Ciências Sociais coibido de prejudicar.
3. Lesados Diretos da Primeira Apropriação
O prejuízo para o léxico da Biologia aconteceu porque há muito que o animal humano está, como qualquer outro ser vivo, sujeito à classificação biológica*), a qual pode, de forma simplificada, ser hierarquicamente enunciada como domínio, reino, filo, classe, ordem, família, género e espécie – que são, no caso dos humanos, respetivamente Eukariota, Animalia, Chordata, Mammalia, Primate, Hominidae, Homo e Homo sapiens.
Só depois, na base da pirâmide, podem os indivíduos da maior parte das
espécies ser, complementarmente, classificados de acordo com o sexo biológico
que apresentam, feminino ou masculino.
Daqui se extrai, quanto ao ser humano, evidentes conclusões:
1. de que a sua classificação biológica quanto ao género é única
(Homo), e não dupla (feminino e masculino);
2. de que a divisão em feminino ou masculino se refere,
exclusivamente, ao sexo biológico, e é meramente complementar.
Existe, porém, outra área do conhecimento diretamente lesada pela apropriação feita pelas Ciências Sociais: a Linguística, para a qual Género *) é, inquestionavelmente, uma das variáveis utilizadas para classificar, não só os nomes, como as palavras declináveis que a eles se associam, classificação essa efetuada segundo critérios que, embora numa quantidade significativa de casos se encontrem intimamente ligados às aspetos sexuais biológicos dos seres que alguns substantivos designam, são, na sua maior parte, espontâneas, nascem dos usos, e não de qualquer caracterização biológica de propriedades das quais, amiúde, nenhuma, apresentam.
A palavra árvore, entre tantos outros exemplos, é do género
feminino, apesar de haver árvores do sexo feminino, masculino e
hermafroditas. Tampouco se conhece sexo a armário, mesa ou
cadeira; e, crianças, há-as dos dois.
4. Colagem da Política (ou Segunda Apropriação)
Embora, na linguagem do quotidiano, a confusão deste novo género social
com o género biológico Homo seja muito improvável dada a raridade da
referência a este, o mesmo se não pode sustentar quanto à confusão com o
género das palavras, e isto desde os mais elementares níveis da
escolaridade.
Muito mais séria, porém, resulta, inevitavelmente, a confusão crescente entre, por um lado, os géneros biológico e gramatical e, por outro, o género da igualdade de género *), que por sua vez, a Política tem vindo, ao que parece, a colar ao de identidade de género das Ciências Sociais.
Aqui, os objetos da defendida igualdade são as mulheres e os homens – e, naturalmente, os indivíduos de sexualidade mista, por assim dizer -, e a igualdade que se almeja é, ao que dizem, absoluta, embora se trate de uma pretensão cuja simples formulação bastará para que a consideremos um objetivo de validade e, sobretudo, exequibilidade duvidosas. Entre outras razões, que aqui não cabe desenvolver, desde logo porque, sendo os indivíduos dos sexos feminino e masculino dotados de características biologicamente diferentes, pretender dispensar-lhes igual tratamento, a todos os níveis de todas as vertentes da vida, seria permanentemente violentar uns e outros; ou seja, precisamente o contrário daquilo se diz defender. Já muito diferente e premente é, naturalmente, a questão da igualdade de direitos e de deveres entre todos os indivíduos, independentemente da sexualidade - do sexo das pessoas, e não do género das palavras -, imperativo estruturante de qual sociedade dita civilizada e há muito plasmado na Constituição da República *).
Aliás, numa época em que se fala de sexo como nunca antes se ouviu, não parece fazer qualquer sentido evitar referi-lo neste contexto, preferindo-lhe o tão ambíguo termo género na expressão que diz que os direitos - e deveres - de todos nós de ambos os sexos, meninas e meninos, devem ser iguais.
Apenas conheço o género humano. Género feminino e
género masculino não passam, para mim, de impropriedades
vocabulares.
5. Resumindo…
Ø
Sexo é uma variável de classificação biológica dos seres
vivos.
Ø
Género, aplicado a seres vivos, é uma unidade taxonómica
que, no caso dos seres humanos, corresponde, unicamente, a Homo.
Ø
Para a gramática, sexo é do género masculino, e o género
de um nome serve para, com este, outros termos declinar.
Ø
Em lugar de deitar achas na fogueira do facilitismo e da
confusão generalizada, bem fariam as Ciências Sociais em investir algum tempo
na procura, para identidade de género, de um novo conceito, de uma
alternativa clara e sem efeitos colaterais.
Ø
Quanto à igualdade prosseguida pelos políticos, não necessita
de neologismos: sexo diz muito bem aquilo que querem
significar.