"Na ordem económica das coisas, Rendeiro não passou de um pobre diabo, de um pequeno espertalhão que almejou chegar a grande trapaceiro. De alguém que cometeu o imperdoável pecado de tentar seguir as pisadas dos grandes e, porventura, de sonhar um dia ocupar o respetivo lugar. Algo que nenhum oligarca, em nenhumas paragens, alguma vez poderá perdoar"
1. Dinheiro, o Suporte Vital das Ditaduras
2. Implacabilidade e Frieza, o Suporte Instrumental
3. O Escudo face às Investidas da Lei: Dimensão!
4. O Verdadeiro Pecado de João Rendeiro
1. Dinheiro, o Suporte Vital das Ditaduras
As razões da longevidade de tal lembrança não serão, seguramente, as melhores.
Tampouco tudo quanto nos longos anos do seu consulado aconteceu estará, já,
desvendado ou, pelo menos, divulgado. A verdade conhecida evidencia, porém,
que a força do Estado que serviu dependia, antes de mais, da submissão das
forças armadas e das forças policiais aos desígnios de quem verdadeiramente
mandava no regime que tinha por mero, embora principal, administrador Oliveira
Salazar.
De facto, nenhuma ditadura alguma vez poderá impor-se sem contar com o apoio
efetivo de quem constitui o braço armado indispensável a quem pretenda
subjugar a vontade de toda uma nação; nem, uma vez atingido o poder, nele
poderá manter-se sem a empenhada obediência de quem, no quotidiano, controla,
vigia, investiga, espia, desenvolve, enfim, as atividades das quais depende a
manutenção da ordem pública, independentemente dos ideais e dos interesses
seguidos ou servidos pela governação.
Sustentando estes imensos dispositivos armados e policiais, que tanto podem
servir os mais nobres ideais da liberdade como os mais pérfidos desígnios da
repressão, surge a riqueza, o vil metal sem o qual, armados ou não, os humanos
não têm assegurados os alimentos, o vestuário, a habitação e tudo aquilo que,
supérfluo ou não, consideram indispensável à sobrevivência, bem como à
legítima e moderada ou mais ou menos ilegítima e descontrolada fruição.
Não parece, assim, razoável atribuir-se, unicamente, às virtudes espirituais, intelectuais, oratórias, profissionais ou políticas de um ditador - Salazar ou não - a sua manutenção, por décadas a fio, num poder efetivo e repressivo que seria, evidentemente, impossível conservar apenas por via dos méritos pessoais do próprio: a montante, importa, sobremaneira, garantir, por um lado, o suporte financeiro obtido da cobrança dos impostos que irão financiar a máquina repressiva; por outro, a concordância daqueles que, em mais chorudas fatias, os haverão de pagar, sob pena de os ver para outras paragens debandar.
Em tempos há mais tempo idos, os monarcas guerreiros impunham-se interna e
externamente pela força das armas que adquiriam e das vidas daqueles que as
manejavam. O monarca governava de forma mais ou menos absoluta, ou porque era
o mais rico, ou porque contava com a boa vontade - e com os fundos - dos ricos
oligarcas que, na sombra, o influenciavam ou dirigiam.
A lei do mais rico mais forte prevalecia, pois, quase sempre à revelia
de valores e de princípios que, provavelmente, a muitos deles jamais iriam,
sequer, ocorrer, quanto mais orientar.
A lembrança da governação de Oliveira Salazar é, assim, a mais próxima e
recente de que dispomos de algo que, desde os primórdios da Humanidade, se
sabe, e que, hoje como então, continua a valer para quem, pela força, o seu
semelhante se propõe dominar: as forças armadas e as forças policiais são a
base de sustentação de qualquer regime, e, para um ditador se manter no poder,
alguém de fartas posses as há de, direta ou indiretamente, sustentar.
2. Implacabilidade e Frieza, o Suporte Instrumental
Se as ditaduras vivem do dinheiro com que garantem os alimentos daqueles cuja
força ou vigilância as mantêm no poder, é, também, verdade que dependem da
frieza, da crueza, da maldade e da implacabilidade dos seus servos e sequazes
para se conservarem no poder.
Formados e treinados para aterrorizar com o fantasma do medo induzido pelos
relatos das sevícias praticadas sobre os opositores políticos, inspetores e
agentes das polícias políticas das ditaduras tudo veem, analisam, escalpelizam
da vida pública e privada de cada um, sem qualquer pudor ou consideração pelos
mais elementares direitos próprios dos estados em que se respira liberdade,
aquela liberdade que, para estes torcionários e seus mentores, não passa de um
palavrão a banir do léxico ou, pelo menos, a evitar.
Entre estas máquinas infernais ao serviço dos tiranos que governam nações e os exércitos ao serviço de cartéis de droga ou de mafias organizadas pouca ou nenhuma diferença se há de encontrar.
Há muito alcandorado na presidência da Federação Russa, Vladimir
Vladimirovitch Putin não passa, afinal, de um entre centenas de milhar de
funcionários de polícias políticas ao serviço das ditaduras que existem e
sempre existirão por esse Mundo fora. São esbirros de confiança, designados e
pagos pelas oligarquias para garantir a implacável manipulação e repressão dos
cidadãos, visando a maximização dos interesses ilegítimos e os desvios de
verbas supostamente destinadas à administração da coisa pública para servirem,
antes, as vidas faustosas de multimilionários sem escrúpulos que, da política,
nada mais querem do que garantir uma cada vez maior acumulação.
O frio Vladimir ter-se-á, entretanto, convencido de que, por lhe terem os
detentores do verdadeiro poder – o poder económico - permitido viver, também
ele, no luxo e na abundância, se tornou um oligarca como eles, um par, um
igual: alguém com poder suficiente para, por sua iniciativa, tomar decisões
tão importantes e irresponsáveis como a de invadir um país vizinho em nome da
própria e tresloucada obsessão pela reintegração das repúblicas que ganharam a
independência quando do desmembramento da União Soviética.
Tamanho erro jamais os verdadeiros oligarcas lhe perdoarão. Daí, os cada vez
mais audíveis rumores de tensões internas no Kremlin, da suposta debilidade do
estado de saúde do Presidente – sabendo-se, como se sabe, a predileção de
Moscovo pela doença como forma de fazer desaparecer ou, pelo menos, afastar os
indesejáveis -, das alternativas que se perfilam para o substituir no poder
fantoche de que, em má hora, o investiram.
Tal como as grandes fortunas portuguesas jamais perdoariam a Salazar que lhes não defendesse as colónias que os enriqueciam, também as grandes fortunas russas jamais perdoarão a Putin os gigantescos prejuízos decorrentes das pesadas sanções impostas por diversas organizações e países que censuram a sua atuação.
3. O Escudo face às Investidas da Lei: Dimensão!
Ora, coisas destas, não acontecem só em ditaduras.
Um pouco por toda a parte no tresmalhado universo das fortunas conseguidas à custa, quer da implacável
repressão política, quer da não menos implacável exploração económica, domina
uma variável que explica, em boa parte, que pessoas há muito providas de
património mais do que suficiente para assegurar uma vida regalada e faustosa
para si e para os seus familiares, satélites e penduras continuem,
mesmo assim, a procurar engordar mais e mais os seus já fartos pecúlios,
movidos, ao que muitos pensam, pela simples ganância. Essa variável é
a dimensão.
Tal como um combatente com mais força subjugará, em princípio, o seu oponente
mais frágil, também o oligarca mais rico mais facilmente imporá a sua vontade
aos restantes; e isto apenas se consegue com fundos virtualmente inesgotáveis
ou, pelo menos, existentes em quantidade tal que permitam garantir a boa
vontade de todos aqueles a quem se tiver de pagar ou que se tiver de comprar
para tais intentos se lograr atingir.
A acumulação de riqueza é, para muitos, menos uma questão de ganância ou de
ostentação do que de sobrevivência política e social: o oligarca mais rico, o
que tiver o maior iate, o maior avião ou mais hotéis será sempre olhado, pelos
outros, com temor e respeito, e, das suas pelejas económicas e políticas,
tenderá a sair vencedor. O que vê o seu nome cair nas listas dos mais
abastados arrisca-se, pelo contrário, a perder cada vez mais negócios e,
consequentemente, a entrar no irreversível processo entrópico que o levará à
desgraça.
Além do mais, e quer se queira, quer não, a dimensão da fortuna de um
cidadão pesa, também – e de que maneira! -, sobre alguns políticos,
governadores de bancos centrais e, até, incómodos inspetores do fisco ou da
investigação criminal que, por um lado, tendam a deslumbrar-se com a grandeza
alheia e, por outro, tenham consciência do impacto negativo que podem
significar, para as respetivas carreiras, demonstrações de inoportuno e
indesejável zelo no cumprimento do dever.
Demonstrações de temor ilegítimo como estas não faltaram, associadas aos
recentes escândalos que culminaram na extinção de instituições bancárias
portuguesas de dimensão diversa, com por vezes bem brutal impacto sobre as
vidas de quantos neles confiaram e investiram os seus parcos milhares ou
largos milhões.
Os responsáveis pelos atos condenáveis parecem, no entanto, ter tido diferentes destinos consoante a dimensão das respetivas fortunas ou dos bancos que fizeram afundar: enquanto a arraia miúda caiu em desgraça, quem mandava nisto tudo continua a pavonear-se numa inexplicável aura de efetiva impunidade, a despeito de condenações ainda não transitadas por culpas que muito dificilmente alguma vez virão a expiar.
4. O Verdadeiro Pecado de João Rendeiro
Se aos verdadeiramente grandes quase tudo é permitido com a garantia de que alguém olhará para o lado ou, com a devida vénia e reverência, fechará os olhos, aos menos grandes e aos pequenos jamais será perdoada a ousadia de os querer imitar.
Isto, por três principais razões: a primeira, porque aqueles cuja
subserviência e mediocridade leva a idolatrar os de mais generosa
dimensão tendem a evidenciar certa tendência para descarregar as
frustrações nos que lhes não chegam aos calcanhares; a segunda, porque,
dispondo de menos meios económicos que lhes permitam escudar-se, estes são,
também, mais fáceis de apanhar; por fim, porque os mais
crescidos não deixarão de colaborar com as autoridades na caça aos
pequenos que, com a sua inaptidão, acabam por ir revelando técnicas e segredos
cuja exclusividade aos maiores tanto jeito deram e continuariam a dar.
Com algum dinheiro, competente como Salazar, frio e implacável como Putin perante a credulidade e ingenuidade alheias, o pequeno João Rendeiro ter-se-á convencido de que, lá porque conseguiu presidir a um também pequeno banco e até tinha algum jeito para a coisa, era, também ele, um grande, alguém que tinha subido a pulso a escorregadia corda da vida, enquanto ia dando uns murros na cabeça de uns e pisando a de outros para conseguir escalar.
Faltou-lhe, no entanto, a dimensão.
De mortuis nihil nisi bonum, mas há que dizer que, na ordem económica das coisas, Rendeiro não passou de um pobre diabo, de um pequeno espertalhão que almejou chegar a grande trapaceiro. De alguém que cometeu o imperdoável pecado de tentar seguir as pisadas dos grandes e, porventura, de sonhar um dia ocupar o respetivo lugar.
Algo que nenhum oligarca, em nenhumas paragens, alguma vez poderia perdoar.
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