quarta-feira, 6 de julho de 2022


Aborto: 'Nim' ou Não?


"Uma anquilosada Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos
como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada"

"A norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação"

"Há que ter presente que o ruído é, sempre, consequente,
e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição"


Aborto nos 'States'
Aparentemente, tratou-se de um balde de água fria, ideal para reanimar as hostes mediáticas quando o assunto do dia parece serem, já, as férias: quando até a guerra na Ucrânia se encontra, para alguns menos atentos, a marcar passo, quando, enfim, já pouca gente liga ao que quer que seja, além, naturalmente, dos episódios mais ou menos folclóricos, mais ou menos ridículos protagonizados pelos políticos que nos governam e por aqueles que gostariam de estar a governar-nos.

O assunto aqui vertido rendeu rios de dinheiro, páginas de anúncios, horas de publicidade televisionada intercalando comentários mais ou menos inflamados de ativistas, de juristas, dos autodenominados politólogos, de sociólogos, até de simples e mais ou menos bem pagos curiosos.

A verdade, porém, é que tudo não passou de uma decisão há muito esperada de um estrutural e conjunturalmente politizado Supremo Tribunal dos Estados Unidos, recentemente tornado conservador graças aos bons ofícios dessa inenarrável e inclassificável criatura de ascendência europeia denominada Donald Trump que, manipulações de resultados à parte, preenche o ideário de metade dos nativos daquela grossa fatia do norte do continente americano da qual todos, de alguma forma, dependemos e a cujos caprichos e desígnios prestamos e continuaremos a prestar respeitosa vassalagem.

No entanto, e para lá do significado político e social que é bastante fácil e quase inevitável atribuir-lhe, o efeito prático do aresto será, possivelmente, pouco expressivo.

Mal andam pois, a assim ser, aqueles que, na ânsia de agitar bandeiras, o fazem quase como se a polémica conclusão tivesse ido no sentido de proibir a interrupção voluntária da gravidez nos E.U.A.  Mas não foi, seguramente, disso que se tratou.

Estão, assim, estas bem intencionadas pessoas, que aos quatro ventos bramam a sua indignação, apenas a abrir alas àqueles que defendem a polémica decisão sustentando que se trata, meramente, da assunção de uma postura mais democrática e mais liberal por parte do Tribunal, na boa tradição americana que nos prezamos de adotar, também, em Portugal.

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Ocorre, porém, goste-se ou não e concorde-se ou não, que o entendimento de que o julgamento proferido dota a sociedade norte-americana de uma maior democraticidade e de uma maior liberalidade tem, do ponto de vista formal e jurídico, a sua razão de ser.

Ao contrário de Portugal, estado único, independente, dividido em regiões e autarquias dotadas de autonomia meramente administrativa, os Estados Unidos são isso mesmo que o nome diz: estados, independentes em quanto não está regulado pela demasiado genérica e hoje patentemente obsoleta Constituição comum à qual, em tempos há muito idos, todos eles acederam sujeitar-se; e, como se sabe, em direito, a norma vaga escancara, ao abuso e à conveniência, as portas da interpretação.

Acontece, também, que, por inevitável e sensato princípio, as constituições se limitam à enunciação de princípios, resultando omissas quanto à aplicabilidade específica dos mesmos à miríade de situações concretas com que os diversos intérpretes se irão defrontar. Cumpre, assim, aos mais ou menos políticos e politizados órgãos investidos de atribuições de fiscalização do cumprimento da Lei Fundamental interpretar a respetiva letra e preencher, por decisão definitiva e irrecorrível irrecorrível, as lacunas que a cada passo não deixam de se manifestar. Sobretudo, numa Constituição do século XVIII, necessariamente tão desfasada da realidade atual dos Estados Unidos, como as teorias marxistas-leninistas de antanho o estão da realidade de qualquer nação moderna e civilizada, como há quem diga que somos nós.

Ora, sem deixar de ser verdade que, do ponto de vista técnico-jurídico se inverteu uma posição hermenêutica aceite durante o mais recente meio século, a verdade insofismável é que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos não veio impor o que quer que fosse. Bem pelo contrário: veio devolver a cada estado o direito de decidir por si quanto a tão sensível matéria.

Esta é a verdade objetiva, que, por muito que possa doer, não há como contrariar.

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Já aquela dúzia de estados que, pressurosamente, correu a anunciar leis mais repressivas na matéria apenas se está a colocar na mesmíssima posição que o nosso Torrão Natal antes da Revolução de 1974, quando a prática do aborto era genericamente proibida.

Ao tempo, efeito inevitável foi, como se sabe o do florescimento de clínicas especializadas ao longo da raia, às quais recorriam as portuguesas suficientemente abastadas para percorrer a distância e suportar os custos da intervenção; e, por cá, a proliferação de parteiras não encartadas, procuradas por quem não tinha meios para se dar a outros luxos, e abortava em circunstâncias que, mesmo quando não documentadas, são bem fáceis de imaginar. A verdade, aliás, é que, ainda hoje uma boa parte atravessa a fronteira para o efeito*), dado o regime mais benévolo da lei espanhola que está a vigorar.

Poderemos, no entanto, comparar o nível económico das portuguesas de então - e de parte considerável das de agora... - ao das americanas dos dias de hoje? Claro que não.

Poderemos, outrossim, comparar o grau de esclarecimento da população mundial quanto à matéria - nomeadamente quanto à existência e disponibilidade de contracetivos - na América do Norte ou onde quer que seja no mundo dito civilizado dos nossos dias, com a situação cultural, social e politicamente estagnada dos lusitanos de então? Claro que também não.

Assim, nos estados americanos que optarem por endurecer as restrições a consequência mais provável e imediata da decisão será, provavelmente, a vantagem económica dos restantes estados, que irão acolher quem pretender interromper a gravidez. É que, independentemente do estado de origem, é o local do 'crime' que determina a jurisdição, pelo que essas pessoas que abortam além fronteiras estaduais não poderão ser punidas no estado onde estão domiciliadas. Tal como, noutros tempos, não podiam ser legalmente perseguidas em Portugal as portuguesas que abortavam em Badajoz.

Fala-se, segundo se diz, da criminalização, por parte de certos estados radicais, da mera deslocação para interromper a gravidez noutras paragens; mas isso, a acontecer, não passará de uma medida extrema, de uma verdadeira aberração suscetível de firmar, indelevelmente, do espírito das restantes nações a noção de que, no tão amado e admirado País dos norte-americanos, a liberdade e a democracia não passam de uma nada democrática ilusão.

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Bem, e antes da polémica decisão?

Em sociedades como aquelas que elegeram, para os governar, os políticos que a nova legislação restritiva irão impor, será que, já então, se poderia abortar sem imediatamente se adquirir um sério estigma social, mesmo junto de familiares e de amigos?

Ousaria a generalidade das cidadãs por lá interromper a gravidez, ou já demandaria outras paragens para o fazer? Quantas clínicas de Badajoz não haverá para lá dessas fronteiras estaduais americanas? Quantas não irão, a partir de agora, surgir como cogumelos ou florescer mais ainda? Com um nível económico tão diferente do nosso, bem poucas serão decerto as norte-americanas que não terão meios para se deslocar a um estado liberto de tão severa legislação.

A assim ser, o que veio, então, esta decisão do Supremo mudar? Como contrariar os tais que dizem que ela apenas veio ainda mais liberalizar, democratizar?

Como, enfim, agitar bandeiras contra ela, sem as suas formalmente inatacáveis posições estar, paradoxalmente, a divulgar?

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O pouco imparcial Supremo Tribunal norte-americano efetuou uma manobra propagandística de cujo impacto social e mediático sempre esteve bem ciente. Não resistiu a uma acintosa e, bem vistas as coisas, na prática pouco impactante provocação, bem ao estilo do seu arquiteto Donald Trump-

A esta provocação, talvez tivesse sido bem melhor não terem os opositores de aquém e além fronteiras dado tanto tempo de antena, o qual apenas terá servido para evidenciar, contra o que era propósito dos mesmos, que, de facto, o acórdão confere, individualmente, a cada estado uma maior liberdade de decisão.

As causas, todas as causas, há que as defender com entusiasmo, com militância, com mediatização. Com tudo isso e o mais que as possa dar a conhecer, e motivar quantos a elas quiseram aderir.

Há, no entanto, que ter presente que o ruído é, sempre, consequente, e ter o cuidado de afinar muito bem a pontaria antes de percutir a munição.

*  *

Por cá, estas decisões cabem, exclusivamente, ao Tribunal Constitucional, também não isento de polémica nas nomeações dos seus conselheiros, felizmente não vitalícios, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos.

terça-feira, 5 de julho de 2022


Luís Marques Mendes

LMM - Luís Marques Mendes


"A autoridade é um bem que se degrada quando não se usa
"

Luís Marques Mendes*)              
(SIC - Jornal da Noite)          

Veio isto a propósito do lamentável espetáculo oferecido pelo Ministro das Infraestruturas e pelo Primeiro-Ministro na sequência do despacho mandado publicar por um secretário de estado do primeiro decidindo a nova configuração aeroportuária da zona de Lisboa, seguido da quase imediata ordem de revogação*) do mesmo transmitida pelo segundo ao primeiro.

Assim aconteceu, e de outra forma não poderia ter acontecido, já que, a omitir-se o Primeiro-Ministro de usar do poder que detém após uma decisão de tamanha responsabilidade ter sido tomada a solo por um simples ministro - que nem é primeiro e, para cúmulo, mandada formalizar a um ainda mais simples secretário de estado -, poderia alguém começar a questionar-se sobre qual ministro será, efetivamente, o segundo e qual o primeiro.

Bem, deixemos o trocadilho, que não é este o nosso assunto.

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Nos tempos que correm, não admira que alguma comunicação social menos dada a estas coisas parvas do rigor na palavra falada e escrita tenha anunciado a coisa como tendo o Primeiro-Ministro revogado o disparatado despacho, algo que a lei lhe não permite fazer.*)

O erro não admira, já que, imposto pelas audiências essenciais à obtenção das indispensáveis receitas publicitárias, o frenesi de conseguir a pole position na transmissão da novidade conduz, quase invariavelmente, a que as notícias sejam papagueadas sem qualquer análise, crítica ou estudo prévios, desta forma ficando a qualidade e o rigor que as irão caracterizar a depender, apenas, do cada vez mais escasso substrato cultural do redator.

Anestesiados que muitos vamos estando pela dor provocada por sucessivos impactos de baixíssimo nível daquilo que, desgraçadamente, nos vai sendo dado ouvir e ler, lá acabamos, quantas vezes, a dar por nós a absorver, ora ideias substantivamente erradas, ora outras formalmente expressas de maneira menos correta, menos elegante - inadequada, até -, seja por arautos do facilitismo linguístico agora tão na moda, seja por pessoas educadas e cultas a quem a pressão mediática do comentário regular falado ou escrito convida, também, a facilitar. Ou, como, para dourar a pílula sói dizer-se, a simplificar.

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A citação que aqui é assunto refere autoridade no sentido de habilitação legal para o exercício do poder, o que é um significado evidentemente admissível, correspondente à capacidade - nem sempre legítima - de alguém se fazer obedecer.

Não obstante, a verdadeira autoridade, bem distinta do bem mais pobre e elementar poder, emana naturalmente de quem a detém: não por lhe haver sido atribuída por outrem, mas por o sujeito a ter adquirido através do competente e credível exercício das funções que lhe tiverem sido cometidas, por tal exercício se tendo tornado merecedor da confiança na qualidade das decisões tomadas, a qual impele os respetivos destinatários à pronta, serena e, mesmo, grata obediência, independentemente de vigorar, ou não, norma que legitime a respetiva imposição.

Num tal e cada vez mais raro cenário, as relações humanas fluem, a educação manifesta-se, a alegria brota, a economia floresce e os políticos exercem, tranquila e complementarmente, o poder formal e efetivo que a Constituição e a lei lhes conferem.

A fazer uso deste poder meramente formal estão, assim, limitados aqueles que o detêm, não por o haverem granjeado por mérito pessoal imediato e direto, mas por aquele lhes haver sido confiado - quantas vezes à falta de melhor candidato... -, seja por nomeação, seja por um mais ou menos democrático ato eleitoral.

Se dúvidas houver, lembremo-nos da expressão "fazendo uso dos poderes conferidos" - seguida da identificação da norma habilitante - presente, a título de legitimação, em praticamente todos os diplomas legais.

Admitamos, enfim, que esse conjunto de poderes possa, também, ser considerado autoridade, desde que não confundamos esta, imposta e formal, com a outra, meritória e substantiva.

Assim, embora sendo preocupante que já nem palavras tão singelas como aquelas que designam as cores estejam livres da polissemia de que as inquina a conotação com certas tendências - "é um verde", "é um vermelho" e por aí fora -, também o termo autoridade pode ser utilizado para designar algo que nada tem a ver com a autoridade nobre, eficaz, verdadeira, mas apenas com a pessoa ou entidade a quem, por algum processo, tenha sido conferido determinado poder..

Tal é o caso da moda recentemente adotada por sucessivos governos para designar certos organismos que o politicamente correto desaconselha designar por polícia, departamento ou outra coisa mais condicente com as atuais atribuições daqueles. Acreditam, quiçá, que a tal confusão entre autoridade e poder acabe por garantir uma acrescida vontade de obedecer, por o termo mais sonante conseguir inspirar maior temor, uma vez que, pela outra autoridade que, habitualmente, os respetivos responsáveis detêm em dose tão fraca como quem os nomeia, é que a bom porto não chegarão.

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Diga-se, por fim, que, embora preferindo, na citação acima reproduzida, poder a autoridade, não fica como deixar de concordar com a ideia nela expressa pelo Exmº Autor, bem como com a forte probabilidade de ter sido a exibição da detenção e do uso do poder a motivação última de um Primeiro-Ministro que passa por andar cada vez mais entretido com a apetecível Europa, e menos com as inadiáveis mas sempre adiadas reformas estruturais e decisões de fundo para as quais, manifestamente, não nomeou competentes ministros.

De muito pouco servirá, na verdade, uma demonstração de poder na situação descrita, bem eloquente quanto ao notório défice de autoridade do primeiro governante - défice esse aliás muitíssimo natural na sequência de uma escolha de governantes que parece ter seguido, quase exclusivamente, o critério da proximidade pessoal e da simpatia política, ou do temor inspirado por uma certa antipatia política, como terá acontecido e continuará a acontecer no caso aqui vertido.

Comprometida que, com incidentes destes, vai ficando, no Partido Socialista, a sucessão do Secretário-Geral, não estará, mesmo, na altura de o Senhor Primeiro-Ministro bater com a mão no peito e, sem mais demoras, proceder à substituição de diversas pessoas que carreou para o Governo?

O nem terá já, no Partido ou fora dele, quem com ele esteja, efetiva e saudavelmente, disposto a colaborar?

* *

Tal como acontece com o termo autoridade, a multiplicação descontrolada de sinónimos desvaloriza a essência dos vocábulos, esboroa o idioma, atirando-o para um pantanoso charco de mal-entendidos, de ambiguidades, de imprecisões.

Aliás, a discutível escolha de palavras, designadamente em algo tão sério como decisões judiciais, não é, infelizmente, coisa nova, já aqui tendo sido objeto de desenvolvida atenção,. Não passa, na verdade, de mais um efeito nocivo da tendência para a desenfreada polissemia, inevitável no reino do Tanto Faz!, da indiferença, da desistência, sob a capa daquilo a que hoje alguns chamam inovação e originalidade.

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