quarta-feira, 2 de março de 2022


Aquilino Ribeiro


 

"O janotismo nas sociedades primárias
é sempre um trunfo certo"

Aquilino RIbeiro*)   
(Quando os Lobos Uivam)      


Por alguma estranha razão, quando leio coisas destas, lembro-me logo de certas pessoas que deambulam sem rumo a exibir os glúteos nas redes sociais, os bólides à porta dos estádios, as toilettes nos chamados picadeiros, os milhões sabe-se lá como amealhados, e outras tantas foleiradas de cultivadores da própria imagem, quantas vezes pendurados, com as suas famílias, no crédito necessário à aquisição destas máscaras e fantasias que não dispensam no seu eterno e humanamente desolador Carnaval dos Animais.

Lembro-me, também, daqueles políticos profissionais que nada mais fizeram na vida do que ser políticos profissionais, o que quer que tal coisa possa querer dizer; e temo o efeito que um governo recheado de pessoas destas - alcandoradas ao poleiro, não por especial competência ou mérito, mas como forma de retribuição pelos serviços prestados à maioria absoluta instituída - possa vir a provocar sobre um país conformado, anestesiado e em estado de negação quanto à manifesta irresponsabilidade de quem parece obstinar-se em aplicar tão irresponsável critério à escolha daqueles por quem tão grandes responsabilidades irá distribuir.

Na situação em que o Mundo se encontra, e em pleno período crítico de aplicação de fundos externos generosamente distribuídos,Portugal carece de rigor, de princípios, de disciplina, de valores.

Tudo isto é incompatível com a simples ideia de ter irredutíveis janotas a governar.

terça-feira, 1 de março de 2022


A Ucrânia e a Adesão à UE: o Tiro no Pé

 

A Ucrânia é um estado assumida e intensamente nacionalista, e a simples ideia de nacionalismo compromete, decisivamente,
a possibilidade de consenso, e ofende, fortemente, o conceito de
união

Com apenas meia dúzia de Estados-membros, a exigência de unanimidade faz sentido. Mantê-la, com quase trinta, não passa de temeridade;
no plano prático, e quanto às pretendidas unidade e solidariedade, é garantia de ineficácia; quanto aos ideais, é subversão

Que, aos europeus, jamais falte ânimo ou empenho no apoio a quem dele necessita;
mas, que não lhes falte lucidez e bom senso na defesa de uma cada vez mais indispensável União

 

Federação Russa
Independentemente das razões que possam assistir-lhe, a atuação prepotente, arrogante e, muito provavelmente, criminosa da Federação Russa e do seu Presidente facilmente aparece, aos olhos de qualquer ser humano minimamente civilizado, como absolutamente inaceitável, quer no que exclusivamente ao país sob ataque diz respeito, quer no que se refere ao posicionamento do agressor perante uma Europa com a qual mantém relações comerciais de relevo e com a qual diz pretender continuar a cooperar.

Sem prejuízo do que antecede, a introdução no panorama político internacional, pela Ucrânia, da formalização do pedido de adesão à União Europeia não apenas se afigura inoportuno, como poderá comparar-se à atitude de quem aproveita para pôr o pé no caminho da porta quando, em lugar de procurar fechá-la, alguém do outro lado até a está a escancarar.

No presente cenário de guerra, num quadro de forte necessidade de apoio militar e solidário, a Ucrânia exibe, desta forma, um oportunismo inaceitável, uma evidente tentativa de exploração do presente estado de intensa emotividade evidenciado, em seu benefício, pelos restantes países - designadamente dos europeus, que, por todos os meios ao seu alcance, procuram valer-lhe - para, do nada, lhes pespegar bem à frente do nariz uma quase imposição de aceitação numa organização de cariz predominantemente económico e desprovida de qualquer vertente militar como é a União Europeia; para forçar algo que, noutro contexto, faria tanto sentido como a apresentação de um pedido de adesão urgente à estritamente militar NATO por parte de um estado militarmente estabilizado, mas cuja economia se estivesse a degradar.

Claro que a situação económica da Ucrânia é tudo menos invejável. Mas, numa altura em que os apoios voluntários chovem de todo o Mundo, não será, seguramente, o tempo indicado para, com dificilmente reversível impacto, pedir à Europa um compromisso para o futuro.

Ou seja: pedir ainda mais, e mais.

- x -

Combinado com a postura menos alinhada e, sem margem para grande dúvida, mediática e interventiva adotada pelos governantes e outros responsáveis ucranianos, a intempestividade do pedido não pode deixar de nos fazer refletir, seriamente, naquele que, uma vez admitida à União, seria o comportamento do prospetivo novo Associado.

Inoportuno pedido de adesão
O inoportuno pedido de adesão imediata faz-nos parar um pouco, abrir os olhos, e contemplar a luta pela independência da agora martirizada Ucrânia com menos calor, menos emoção, mais ponderação, porventura menos adesão. É que, a despeito de todo o auxílio e de toda a solidariedade que qualquer estado em idêntica situação nos merece, também a União tem direito à identidade, à independência e, sobretudo, a uma consistência essencial à eficaz e eficiente prossecução dos ideais e dos objetivos que presidiram à sua fundação.

Ora, o que não cessam os entrevistados ucranianos de proclamar como uma virtude? Que “somos muito nacionalistas!”, característica com que explicam a abnegada defesa da independência do seu Estado e da integridade do respetivo território.

Ainda bem”, pensarão, de início, os europeus da União, cuja defesa contra uma eventual agressão por parte do Governo Russo tem, neste preciso momento, na Ucrânia a sua mais corajosa e valorosa linha da frente, arrojada e ousadamente exposta a mísseis e balas, lutando pela causa da sua tão querida nação. Mas, ainda que o termo nacionalista utilizado em mais ou menos emotivas entrevistas possa, aqui e ali, ser utilizado com menos rigor, esquecem-se os mesmos europeus da União de que a Ucrânia é um estado assumida e intensamente nacionalista, e de que a simples ideia de nacionalismo compromete, decisivamente, a possibilidade de consenso, além de ofender, fortemente, o conceito de união.

O patriotismo radica no amor saudável pelo país de origem ou de adoção, na sua defesa, na alegria de o ver desenvolver-se e sobressair pelas melhores razões, mantendo-o no lugar que lhe cabe na cena internacional, respeitando o lugar dos outros e congratulando-se com o bem comum; já o nacionalismo tem por base a supremacia da pátria sobre as restantes nações, o amargo de boca vindo de um complexo de inferioridade relativamente a outros que se despreza, a inultrapassável tendência para nos tornarmos “orgulhosamente sós”.

Patriotas, desejavelmente, todos somos. Mas, nacionalismo, já por cá tivemos, e não ansiamos, propriamente, em Portugal ou na Europa, por uma nova edição.

- x -


Os chamados frugais
Algo inesperadamente, nos tumultuosos dias que correm os Estados-membros encontram-se, pelo menos no essencial e de forma cada vez mais consequente e efetiva, em perfeita sintonia na condenação da invasão da Ucrânia pelas forças da Federação Russa. Mas, não nos esqueçamos por exemplo, dos atrasos ainda há bem pouco tempo provocados pelos chamados frugais *) numa questão tão importante como a fixação dos montantes das contribuições para a recuperação dos danos económicos da pandemia.

Tais atrasos deveram-se, como é sabido, à necessidade de unanimidade entre os Estados-membros na tomada de decisões.

Esta obrigação de unanimidade poderia fazer todo o sentido numa Comunidade Económica Europeia a seis, mas, numa União Europeia a vinte e sete, mostra-se um anquilosado fator de instabilidade e, se o bom senso prevalecer, um cada vez mais forte inibidor de novas adesões, designadamente por parte de países de cariz nacionalistas liderados por indivíduos que aliam a inegável coragem pessoal a uma também inegável ânsia de protagonismo capaz de os levar a, no Futuro, frequente ou sistematicamente inviabilizar ou, pelo menos, atrasar obrigatoriamente consensuais tomadas de decisão.

Por tudo isto, o mesmo nacionalismo que tanta coragem, força e substância à Ucrânia dá na guerra, deverá, inequivocamente, afastá-la de qualquer possibilidade de aderir à União Europeia em qualquer momento anterior a uma revisão da questão da unanimidade, pelo menos em direção a uma maioria qualificada de quatro quintos dos Estados-membros, o que, cada vez mais, se constitui como uma indispensável evolução.

Com apenas meia dúzia de Estados-membros, a exigência de unanimidade faz sentido. Mantê-la, com quase trinta, não passa de temeridade; no plano prático, é garantia de ineficácia; quanto aos ideais, é subversão.

- x -

A defesa que, como efeito colateral, a Ucrânia está a fazer contra uma eventual tentativa de invasão da Europa por mais um governante alucinado, convém-nos, sobremaneira; mas admitir no seu seio mais um país marcadamente nacionalista será aquilo que, com o seu estatuto atual, menos convém a uma União já fragilizada na sua pouco planeada expansão: se criticamos as opções do Presidente da Federação Russa pela aparente irracionalidade, não é lícito que caia também a Europa em idêntica alucinação.

A perspetiva europeia reconhecida à Ucrânia não é suficiente para justificar a adesão; e, por muito comovente que esta possa parecer enquanto gesto simbólico, não podemos, com ele, comprometer aquilo que, melhor ou pior, a União ainda representa, e a proficiência no exercício das competências específicas que são, afinal, a razão última da sua manutenção.

A Ucrânia pode, e deve, ser um país amigo de uma União Europeia que, pelo que representa o terrível sacrifício, muito lhe ficará a dever. Mas, para tanto, não terá, inevitavelmente, de se tornar um Estado-membro. A coragem no campo de batalha é um atributo raro e nobre, mas, no que toca a uma união económica, não é um requisito ou uma mais-valia num processo de adesão.

A eficácia da União Europeia depende, fortemente, da credibilidade, e esta da racionalidade na gestão, enquanto a Ucrânia é hoje, pelas razões piores, mas mais legítimas e evidentes, um estado governado com o coração.

Não nos deixemos, pois, embalar pelo mediaticamente empolgante, pelo politicamente correto, nem pelas atualmente mais fortes batidas do nosso coração: uma vez admitida num quadro de exigência de unanimidade, a nacionalista Ucrânia não deixará de representar mais um espinho na já esbroada coroa da União.

Que, aos europeus, jamais falte ânimo ou empenho no apoio a quem dele necessita; mas, que não lhes falte lucidez e bom senso na defesa de uma cada vez mais indispensável União.

* *

Portugal apoia, com naturalidade, a defesa da Ucrânia. Apoia, com uma pequena exceção, um pequeno feudo de irredutíveis e anquilosados militantes, soturnos, bisonhos, alienados, simplesmente o oposto dos irredutíveis gauleses conterrâneos do saudoso Astérix.

[encontrará aqui a sequência deste artigo]