“A Ucrânia é um estado assumida e intensamente nacionalista, e a simples
ideia de nacionalismo compromete, decisivamente,
a possibilidade de
consenso, e ofende, fortemente, o conceito de união”
“Com apenas meia dúzia de Estados-membros, a exigência de unanimidade faz
sentido. Mantê-la, com quase trinta, não passa de temeridade;
no plano
prático, e quanto às pretendidas unidade e solidariedade, é garantia de
ineficácia; quanto aos ideais, é subversão”
“Que, aos europeus, jamais falte ânimo ou empenho no apoio a quem dele
necessita;
mas, que não lhes falte lucidez e bom senso na defesa de uma
cada vez mais indispensável União”
Independentemente das razões que possam assistir-lhe, a atuação prepotente,
arrogante e, muito provavelmente, criminosa da Federação Russa e do seu
Presidente facilmente aparece, aos olhos de qualquer ser humano minimamente
civilizado, como absolutamente inaceitável, quer no que exclusivamente ao país
sob ataque diz respeito, quer no que se refere ao posicionamento do agressor
perante uma Europa com a qual mantém relações comerciais de relevo e com a
qual diz pretender continuar a cooperar.
Sem prejuízo do que antecede, a introdução no panorama político internacional,
pela Ucrânia, da formalização do pedido de adesão à União Europeia não apenas
se afigura inoportuno, como poderá comparar-se à atitude de quem aproveita
para pôr o pé no caminho da porta quando, em lugar de procurar fechá-la,
alguém do outro lado até a está a escancarar.
No presente cenário de guerra, num quadro de forte necessidade de apoio
militar e solidário, a Ucrânia exibe, desta forma, um oportunismo inaceitável,
uma evidente tentativa de exploração do presente estado de intensa emotividade
evidenciado, em seu benefício, pelos restantes países - designadamente dos
europeus, que, por todos os meios ao seu alcance, procuram valer-lhe - para,
do nada, lhes pespegar bem à frente do nariz uma quase imposição de aceitação
numa organização de cariz predominantemente económico e desprovida de qualquer
vertente militar como é a União Europeia; para forçar algo que, noutro
contexto, faria tanto sentido como a apresentação de um pedido de adesão
urgente à estritamente militar NATO por parte de um estado militarmente
estabilizado, mas cuja economia se estivesse a degradar.
Claro que a situação económica da Ucrânia é tudo menos invejável. Mas, numa
altura em que os apoios voluntários chovem de todo o Mundo, não será,
seguramente, o tempo indicado para, com dificilmente reversível impacto, pedir
à Europa um compromisso para o futuro.
Ou seja: pedir ainda mais, e mais.
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Combinado com a postura menos alinhada e, sem margem para grande dúvida,
mediática e interventiva adotada pelos governantes e outros responsáveis
ucranianos, a intempestividade do pedido não pode deixar de nos fazer
refletir, seriamente, naquele que, uma vez admitida à União, seria o
comportamento do prospetivo novo Associado.
O inoportuno pedido de adesão imediata faz-nos parar um pouco, abrir os olhos,
e contemplar a luta pela independência da agora martirizada Ucrânia com menos
calor, menos emoção, mais ponderação, porventura menos adesão. É que, a
despeito de todo o auxílio e de toda a solidariedade que qualquer estado em
idêntica situação nos merece, também a União tem direito à identidade, à
independência e, sobretudo, a uma consistência essencial à eficaz e eficiente
prossecução dos ideais e dos objetivos que presidiram à sua fundação.
Ora, o que não cessam os entrevistados ucranianos de proclamar como uma
virtude? Que “somos muito nacionalistas!”, característica com que
explicam a abnegada defesa da independência do seu Estado e da integridade do
respetivo território.
“Ainda bem”, pensarão, de início, os europeus da União, cuja defesa
contra uma eventual agressão por parte do Governo Russo tem, neste preciso
momento, na Ucrânia a sua mais corajosa e valorosa linha da frente, arrojada e
ousadamente exposta a mísseis e balas, lutando pela causa da sua tão querida
nação. Mas, ainda que o termo nacionalista utilizado em mais ou menos
emotivas entrevistas possa, aqui e ali, ser utilizado com menos rigor,
esquecem-se os mesmos europeus da União de que a Ucrânia é um estado assumida
e intensamente nacionalista, e de que
a simples ideia de nacionalismo compromete, decisivamente, a possibilidade
de consenso, além de ofender, fortemente, o conceito de união.
O patriotismo radica no amor saudável pelo país de origem ou de adoção, na sua
defesa, na alegria de o ver desenvolver-se e sobressair pelas melhores razões,
mantendo-o no lugar que lhe cabe na cena internacional, respeitando o lugar
dos outros e congratulando-se com o bem comum; já o nacionalismo tem por base
a supremacia da pátria sobre as restantes nações, o amargo de boca vindo de um
complexo de inferioridade relativamente a outros que se despreza, a
inultrapassável tendência para nos tornarmos “orgulhosamente sós”.
Patriotas, desejavelmente, todos somos. Mas, nacionalismo, já por cá tivemos,
e não ansiamos, propriamente, em Portugal ou na Europa, por uma nova
edição.
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Algo inesperadamente, nos tumultuosos dias que correm os Estados-membros
encontram-se, pelo menos no essencial e de forma cada vez mais consequente e
efetiva, em perfeita sintonia na condenação da invasão da Ucrânia pelas forças
da Federação Russa. Mas, não nos esqueçamos por exemplo, dos
atrasos ainda há bem pouco tempo provocados pelos chamados
frugais *) numa questão tão importante como a fixação dos montantes das contribuições
para a recuperação dos danos económicos da pandemia.
Tais atrasos deveram-se, como é sabido, à necessidade de unanimidade entre os
Estados-membros na tomada de decisões.
Esta obrigação de unanimidade poderia fazer todo o sentido numa Comunidade
Económica Europeia a seis, mas, numa União Europeia a vinte e sete, mostra-se
um anquilosado fator de instabilidade e, se o bom senso prevalecer, um cada
vez mais forte inibidor de novas adesões, designadamente por parte de países
de cariz nacionalistas liderados por indivíduos que aliam a inegável coragem
pessoal a uma também inegável ânsia de protagonismo capaz de os levar a, no
Futuro, frequente ou sistematicamente inviabilizar ou, pelo menos, atrasar
obrigatoriamente consensuais tomadas de decisão.
Por tudo isto, o mesmo nacionalismo que tanta coragem, força e substância à
Ucrânia dá na guerra, deverá, inequivocamente, afastá-la de qualquer
possibilidade de aderir à União Europeia em qualquer momento anterior a uma
revisão da questão da unanimidade, pelo menos em direção a uma maioria
qualificada de quatro quintos dos Estados-membros, o que, cada vez mais, se
constitui como uma indispensável evolução.
Com apenas meia dúzia de Estados-membros, a exigência de unanimidade faz
sentido. Mantê-la, com quase trinta, não passa de temeridade; no plano
prático, é garantia de ineficácia; quanto aos ideais, é subversão.
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A defesa que, como efeito colateral, a Ucrânia está a fazer contra uma
eventual tentativa de invasão da Europa por mais um governante alucinado,
convém-nos, sobremaneira; mas admitir no seu seio mais um país marcadamente
nacionalista será aquilo que, com o seu estatuto atual, menos convém a uma
União já fragilizada na sua pouco planeada expansão: se criticamos as opções
do Presidente da Federação Russa pela aparente irracionalidade, não é lícito
que caia também a Europa em idêntica alucinação.
A perspetiva europeia reconhecida à Ucrânia não é suficiente para
justificar a adesão; e, por muito comovente que esta possa parecer enquanto
gesto simbólico, não podemos, com ele, comprometer aquilo que, melhor ou pior,
a União ainda representa, e a proficiência no exercício das competências
específicas que são, afinal, a razão última da sua manutenção.
A Ucrânia pode, e deve, ser um país amigo de uma União Europeia que, pelo que
representa o terrível sacrifício, muito lhe ficará a dever. Mas, para tanto,
não terá, inevitavelmente, de se tornar um Estado-membro. A coragem no campo
de batalha é um atributo raro e nobre, mas, no que toca a uma união económica,
não é um requisito ou uma mais-valia num processo de adesão.
A eficácia da União Europeia depende, fortemente, da credibilidade, e esta da
racionalidade na gestão, enquanto a Ucrânia é hoje, pelas razões piores, mas
mais legítimas e evidentes, um estado governado com o coração.
Não nos deixemos, pois, embalar pelo mediaticamente empolgante, pelo
politicamente correto, nem pelas atualmente mais fortes batidas do nosso
coração: uma vez admitida num quadro de exigência de unanimidade, a
nacionalista Ucrânia não deixará de representar mais um espinho na já esbroada
coroa da União.
Que, aos europeus, jamais falte ânimo ou empenho no apoio a quem dele
necessita; mas, que não lhes falte lucidez e bom senso na defesa de uma cada
vez mais indispensável União.
* *
Portugal apoia, com naturalidade, a defesa da Ucrânia. Apoia, com uma pequena exceção, um pequeno feudo de irredutíveis e anquilosados militantes, soturnos, bisonhos, alienados, simplesmente o oposto dos irredutíveis gauleses conterrâneos do saudoso Astérix.
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