quinta-feira, 5 de maio de 2022


A Inenarrável Conferência das Laranjas


"Seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, mostra-se desrazoável classificar
como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores"

"Pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve,
o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente,
colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?
"

~Exemplo de Demagogia
Quando nos pedem um exemplo de demagogia, acabamos, quase invariavelmente, por falar do discurso deste ou daquele dirigente partidário, de qualquer quadrante político, que, com o intuito de impressionar o auditório - leia-se, "o eleitorado"... - ilustra a parlenga com supostos casos práticos de substância nenhuma, mas de forma suficientemente barroca e prenhe de aspetos mais ou menos folclóricos para fazer emergir sentimentos, sejam eles de aquiescência ou de aplauso, de mágoa ou de indignação.

Nesta arte, atrás dos dirigentes políticos não ficam, seguramente, os sindicais, do que é exemplo recente o Coordenador do Sindicato dos Professores da Região Centro, Conselheiro Nacional e Secretário-Geral da Federação Nacional dos Professores (como esta gente gosta de títulos compridos e pomposos!...), Dirigente da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública e Membro do Conselho Nacional e da Comissão Executiva da CGTP-Intersindical Nacional.

Talvez para fazer crer aos mais distraídos que alguma chama ainda arte no cada vez mais enfezado Partido Comunista Português (PCP) - que, todas estas importantes e representativas estruturas, agora na quase clandestinidade lá vai continuando a manipular -, decidiu o pugnaz e pertinaz dirigente proceder, em conferência de imprensa, a uma chaboqueira demonstração das limitações e da ineficácia do Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho da Administração Pública (SIADAP) e do pauperismo a que, do seu ponto de  vista, ela condena os profissionais representados pela Federação que dirige, demonstração essa que, antes de continuar a leitura, recomendo ao caro Leitor que aqui não deixe de apreciar.

Além de ter decidido enveredar, na apresentação, por ações tão violentas como o partir pratos em público - atitude surpreendente vinda de alguém afeto a uma estrutura tão pacifista como o PCP... -, recorreu o distinto conferencista a uma indescritível demonstração baseada em três pratos de laranjas pelos quais espalhou uma amostra de quinze delas.

Atribuiu-as desta forma: ao primeiro prato, sete peças de fruta; ao segundo, "por exemplo, sei lá", cinco; e, ao terceiro, "vamos admitir" três. Tudo muito cândido e descontraído, como se do mais natural do Mundo se tratasse.

O senão desta aparentemente improvisada e ingénua distribuição reside, todavia, no facto de, ao primeiro prato, ter feito corresponder a quantidade de docentes que, na amostra, seria classificada com excelente (sete); ao segundo prato, a que obteria muito bom (cinco); e, ao terceiro, quem teria obtido, apenas, bom.

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Dois vícios lógicos e objetivos logo saltam à vista, por dizerem bem do descoco com que estas demonstrações são feitas, e da irremediável fragilidade de uma argumentação eivada, quer de insanável erro no pressupostos de facto, quer de notório e despudorado viés.

O primeiro vício consiste na patente falta de correspondência, com a realidade, dos pesos atribuídos a cada classe, já que, seja qual for o ponto de vista de onde olhemos a questão, se mostra desrazoável classificar como "excelente" o desempenho da maior fatia dos docentes - ou de quaisquer outros trabalhadores, o que, entre outros males, desde logo desvirtuaria o próprio conceito de excelência.

Excelència é a qualidade daquele que se destaca dos restantes, do quase perfeito, do virtualmente inigualável, definição universalmente aceite e que, inquestionavelmente, pulveriza qualquer tentativa de vulgarização em que se procure confundir tão raro e sublime nível de desempenho com outro de mera normalidade.

Por muito bom se designa, por sua vez, aquele que se não limita a demarcar-se, em algum grau, do normal - como acontece com o simplesmente bom -, mas que, embora sem atingir um patamar de excelência, o faz de forma suficientemente expressiva para merecer que o adjetivo qualificativo seja elevado a um grau superlativo - o que também pressupõe uma escassez assinalável, na medida em que se aproxima do topo da escala.

Por si só, este escalonamento tornaria evidente que, a menos que passemos a atribuir, a excelente e a muito bom, os significados quase opostos dos atuais, a distribuição proposta na conferência de imprensa é, meramente, anedótica e pensada para consumo de pessoas suficientemente elementares para, com tamanha parvoíce, não ficarem incomodadas; não, seguramente, para docentes dotados do sentido crítico indispensável a quem trabalha para um ministério que se propõe educar.

Como se não bastasse a pouco invejável fase que a nobre profissão atravessa - com uma carreira que se afigura pouco motivadora para aqueles que, com qualidade, brio e dedicação a exercem -, pensará a dita personagem que os professores dignos de ser assim chamados encaixarão, de ânimo leve, o insulto à respetiva lucidez e capacidade de análise, por parte de quem a eles acaba por, indelevelmente, colar a imagem de um discurso primário como este, sem qualquer base científica em que se arrimar?

Ter-se-á, outrossim, o improvisado comediante esquecido de incluir os pratos de laranjas correspondentes às restantes três classes do SIADAP: suficiente, medíocre e mau? Ou será que a qualidade dramaticamente elementar da aprendizagem manifestada pelo ror de alunos que acaba, quase analfabeto, o ensino secundário permitirá, paradoxalmente, concluir que não existem, em Portugal, professores com desempenhos suficientes, medíocres e, muito menos, maus?

Considerará a dita pessoa ter, com tão triste espetáculo, prestado um serviço útil e digno aos seus representados, cuja inteligência, afinal, ali apenas foi, de alguma forma, insultar? Ou serão os argumentos disponíveis tão escassos e débeis que se torne necessário atirar para a frente com o folclore para, em desespero de causa, tentar impressionar? É, pelo menos, a ideia com que se fica, queiramos ou não...

Ou tratar-se-á, mais simplesmente, do reconhecimento da completa incapacidade para, de forma minimamente elaborada, sobre esses argumentos discursar?

Tendo presente que "a qualidade da expressão verbal consiste em ser claro sem cair na banalidade", a ser a última a razão, a situação reveste-se de singular gravidade, dado que tal incapacidade comunicacional residirá em alguém que, não nos esqueçamos, além da tal lista de pomposos cargos é, também, professor. Ou foi? Ou já se esqueceu de que foi?

Que exemplo dá aos alunos um docente que se vê forçado a recorrer a um espetáculo destes, que muitos eles não deixarão de ver, para fazer passar uma mera reivindicação salarial?

Que classificação ser+a de atribuir ao desempenho de um comunicador destes, que prefere refugiar-se na vulgaridade de quem entende que o gesto é tudo, a primar por alinhar devidamente as ideias e, de forma articulada e minimamente elegante, com elas saber impressionar?

Suficientemedíocre ou... mau?

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Bem, mas isto é nada, quando comparado com a epidemia de palavrões - ou de um certo palavrão - que por aí grassa graças a um desajeitado comentador da guerra, que não sabe quando deve ficar calado.

segunda-feira, 2 de maio de 2022


O Estranho Caso dos Copinhos de Feijão

Não, não é o título de um romance policial. Não passa de um pequeno e indignado texto acerca de uma descarada aldrabice na área da doçaria, impunemente repetida por, pelo menos, um pequeno fabricante, com a complacência de grandes superfícies de retalho.

Poderá ser ingenuidade, excesso de confiança ou, até, mania. Mas, quando passo pela loja de uma marca de supermercados na qual confio, parto do princípio de que os produtos vendidos correspondem, dentro do razoavelmente expetável, ao que é anunciado na embalagem, supostamente para permitir ao potencial consumidor uma informação esclarecida.

Claro que tudo isto é bastante relativo, sobretudo numa sociedade que, ao mesmo tempo que impõe normas e controlos cada vez mais apertados e rígidos à produção e comercialização de tudo e mais alguma coisa, continua - e muito bem, diga-se - a permitir, em feiras e mercados, a venda a granel de produtos das mais diversas naturezas e origens, obtidos segundo processos de cultivo, colheita e processamento maioritariamente artesanais e sem controlo sanitário visível.

Não obstante, em ambientes estritamente controlados pela fiscalização económica - seja a da famigerada ASAE, seja outra entidade qualquer -, torna-se caricato encontrar, num hipermercado do século XXI, uma embalagem que revela, no rótulo, conter um produto composto por açúcar, ovos pasteurizados, água, coco, farinha de trigo, amido de milho, óleo de girassol, sal, lecitina de soja, levedante E500, açúcar em pó com amido de milho, conservantes E200 e E202...  e 0,5% de feijão, chamando à mistela "Copinhos de Feijão".

Ora, segundo a Wikipedia*), "o pastel de feijão é um doce típico de Portugal, confeccionado em Torres Vedras desde os finais do século XIX. Embora a receita varie um pouco consoante o fabricante, tem como ingredientes base a amêndoa e o feijão branco cozido".

Não se tratando, como é evidente, de pasteis propriamente ditos, poderá, mesmo assim, alguém considerar legítimo que se entenda que uma percentagem de 0,5% de feijão basta para que se anuncie que determinado produto como de feijão, quando, em boa verdade, não passa de uma mistela com resquícios de feijão? É que é óbvio e indesmentível que uma percentagem tão ínfima como 0,5%, de feijão ou do que quer que não seja um aromatizante, nada acrescenta ao sabor ou a qualquer outra caraterística do produto final.

De outra forma dito, a admitir-se que algo tão ridículo como 0,5% é suficiente para determinar ou influenciar a designação, os anunciados "Copinhos de Feijão" facilmente se transformariam, com minúsculas alterações ao processo de fabrico, em "Copinhos de Maçã", ou "Copinhos de Kiwi", ou "Copinhos de Cenoura" ou do que quer que fosse, na certeza de que, no que à percepção pelo consumidor diz respeito, o sabor e a consistência se manteriam completamente inalterados.

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Conduzindo a discussão a outro patamar, ocorre, inevitavelmente, a necessidade premente de o legislador se interessar sobre esta temática, designadamente definindo qual a percentagem mínima necessária para que determinado produto possa designar-se como sendo feito de alguma coisa - e não com alguma coisa... -, no sentido de que isso corresponderá à inclusão de determinada componente em quantidade suficiente para alterar as características relevantes para quem o irá adquirir.

Diversos problemas emergem desta questão, como a natureza do produto em causa e a subjetividade inerente à variação da sensibilidade entre uma infinidade de consumidores.

Quanto à natureza, será oportuno referir, num extremo, a obrigatoriedade de quase exclusividade de determinada casta*) na composição de um vinho para que aquela possa constar da designação da variante (como "Touriga Nacional", "Aragonês", "Alvarinho", "Cabernet Sauvignon") dentro da marca.

Claro está que, transposta para o produto aqui tratado, tal imposição tornaria materialmente impossível a fabricação de um pastel com cem 100% de feijão. Mas, haverá, seguramente, medidas intermédias que poderão ser fixadas como mínimos aceitáveis para viabilizar o processo de fabrico garantido, simultaneamente, a diferenciação.

Quanto às diferentes sensibilidades entre consumidores, não será, seguramente, impossível, através de estudos adequados, determinar os mesmos pesos mínimos de forma a assegurar que não daremos connosco a ingerir a mesma mistela, levados ao engano por uma mais ou menos criativa e fantasiosa designação.

Eis, pois, um caso claro de publicidade enganosa decorrente, simplesmente, da incorreta utilização de uma preposição.