"Até que ponto a probabilidade talvez ínfima de um acidente fatal – ou, pelo menos,
dramaticamente grave - para a visão legitimará e justificará as dores de cabeça,
a privação do bem-estar de milhões de pessoas? "
"Para quê a aprovação de leis absolutamente desnecessárias, que nenhum efeito prático alcançam
a não ser a sempre condenável privação da liberdade dos destinatários
além do estritamente necessário ao funcionamento do Estado de Direito? "
Aconteceu-me acompanhar, a um
oculista, alguém que necessitava de mudar de óculos. Sempre usoulentes de
vidro – aquelas a que os eruditos da área gostam de chamar “lentes minerais”. Que são ligeiramente mais pesadas do que as outras; mas que só se partem, não se riscam.
Apresentam, não: apresentavam! É
que fiquei a saber que as lentes de vidro já praticamente
não são utilizadas, pelo que, tendo deixado de haver em stock, só são
fornecidas por encomenda, saindo a um preço cerca de seis vezes superior
àquele pelo qual antes eram vendidas!
Estupefacto, perguntei a razão
desta alteração dos hábitos dos consumidores, a ponto de as lentes de vidro
quase terem desaparecido do mercado. Fiquei, então, a saber que a “evolução” se
devera ao facto de elas serem consideradas “perigosas”, dado o risco de se
quebrarem em caso de queda frontal do portador, que poderia ocasionar um
impacto do rosto no chão e, por via deste, a quebra das lentes e possível lesão
do globo ocular.
Acrescentou o oculista que, em certos países
europeus, a venda destas lentes “minerais” foi até proibida, por este mesmo
imperativo de segurança.
Voltei a casa a matutar no
assunto, e a perguntar-me quantas vezes alguém terá cegado ou, pelo menos,
ficado seriamente ferido num olho por ter tropeçado e caído de bruços, com tão
forte impacto direto no chão que as lentes se tenham quebrado e entrado pelos
olhos dentro…
Tanto quanto consigo imaginar, o
infausto acontecimento apenas poderá, razoavelmente, ocorrer no caso de o
indivíduo ter as mãos amarradas atrás das costas ou, de alguma outra forma,
estiver privado da utilização das mesmas para, pelo menos, minorar a intensidade
e a gravidade do tombo.
Lembrei-me, então, de alguém conhecido que, sempre tendo utilizado as outras, as modernas lentes “orgânicas”, invariavelmente era obrigado a trocá-las a cada dois ou três anos, de tal forma a densidade dos riscos acumulados impossibilitava uma visão razoavelmente límpida, antes interpondo, entre os olhos e aquilo que eles queriam ver, uma espécie de permanente nevoeiro. O mesmo alguém padecia de frequentes e intensas cefaleias, às quais o dito nevoeiro estava longe de ser alheio, se não o principal responsável por elas.
Por que motivo, em nome de
rebuscadíssimas razões de segurança, lhes passou a ser negado o direito a decidir correr, ou não, o risco? A escolher entre as lentes “minerais”, de vidro, e as “orgânicas”, muito mais
caras do que outrora eram as primeiras, e feitas de uma espécie de plástico
incomparavelmente mais sujeito a adquirir riscos, a ponto de acabar por dificultar a visão
que os óculos, afinal, supostamente servem para melhorar?
Ocorreu-me uma primeira resposta:
para dinamizar a indústria e o comércio de óculos, aumentando os já
astronómicos preços – e margens de lucro - que a estafada “oferta do segundo
par” não chega para atenuar.
Que me perdoem os oculistas se
estiver enganado - e que, nesse caso, aqui escrevam de sua justiça o que lhes
aprouver comentar -, mas a magreza do argumento da muito remotamente possível ocorrência de acidentes não convence.
Pretender comparar o mais do que certo incómodo causado, a milhões de consumidores, pelo “nevoeiro” das lentes “de plástico”, ao mais do que diminuto risco de lesão devida a uma improvável queda frontal ou acidente de efeitos similares cujo impacto não possa atenuar-se mediante o auxílio dos braços e das mãos parece, não apenas ridículo, mas despudorado, se for acertada esta primeira hipótese.
Ou – segunda hipótese - dever-se-á tudo àquela irritante mania de alguém pouco ocupado lá por Bruxelas querer apresentar serviço inventando fantasmas para assustar os incautos e acrescentar temores às suas nem sempre esclarecidas mentes, manipulando, qual bonecreiro, as consciências alheias em nome e ao serviço do ego e da anchura de um punhado de tecnocratas e burocratas empenhados em, cada vez mais, apertar a rede, ainda que à custa de imposições indubitavelmente deletérias para a saúde humana? Estarão a preparar, na sombra, o mercado para "inovadoras" e "criativas" iniciativas legais para generalizar a proibição de lentes de vidro em toda a Comunidade Europeia? Ou mais longe, ainda?
A assim acontecer, para quê, nesta e em tantas outras áreas da governação, a aprovação
de leis absolutamente desnecessárias, que nenhum efeito prático alcançam a não ser a sempre condenável privação da liberdade dos destinatários além do
estritamente necessário ao funcionamento do Estado de Direito?
Qual o estalão aplicável?
Fica a questão, ao cuidado de
quem pense saber responder.