sábado, 22 de março de 2025


A Falácia da Maioria Absoluta

Resulta uma eventual maioria absoluta apenas de uma anormalmente ampla convergência de opiniões quanto à lista escolhida - e não do facto de os votantes expressamente terem pretendido ser governados em tal maioria

"Os votantes não podem, de modo algum, ser aqui responsabilizados pelo resultado
porque, simplesmente, ninguém lhes perguntou o que queriam

"Contraria-se assim, manifestamente, a vontade popular: perverte-se, pela via eleitoral,
a própria essência da democracia que a mesma via deveria servir


É sempre assim, quando se fala em eleições: alguém começa a pedir maioria absoluta, e outrem a pedir que não a demos a quem a pede. Uns, com o argumento da necessidade de estabilidade política e económica, os outros com o do risco inerente às inevitáveis manifestações mais ou menos ditatoriais na governação por partidos assim alcandorados no poder.

Passadas as eleições, se a dita maioria acontece e as coisas correm bem, vá de se vangloriar os que governam; se corre mal, é ouvir da deleitada oposição o inevitável “nós bem dissemos” - expressão que, na boca de alguns, chega a parecer mais gratificante para quem a profere do que o teria sido o contrário da desgraça que possa ter acontecido.

Em qualquer caso, a vanglória ou a censura  sempre vem acompanhada de “os Portugueses quiseram”, ou “os Portugueses não deixaram”.

Os Portugueses! Disparate!

Os Portugueses nada tiveram a ver com isso! Estes velhos chavões, além de estafados, são absolutamente falsos, resultando pouco séria a tentativa que exprimem de responsabilizar os eleitores pelos efeitos de uma eventual maioria absoluta, ou da sua inexistência.

Os votantes não podem, de modo algum, ser aqui responsabilizados pelo resultado porque, simplesmente, ninguém lhes perguntou se queriam ser governados em maioria absoluta: a vontade que exprimiram no boletim resume-se, afinal, à escolha da lista de candidatos que cada um entende que deverá vencer a eleição, resultando uma eventual maioria absoluta apenas de uma anormalmente ampla convergência de opiniões quanto à lista escolhida - e não do facto de os votantes expressamente terem pretendido ser governados em tal maioria.

Por outras palavras: a maioria absoluta é obra do acaso, e não da manifestação claramente expressa da vontade dos votantes; e é assim, simplesmente, porque ninguém lhes perguntou!

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Ainda que o povo não queira que, de determinado ato eleitoral, resulte uma maioria absoluta, o sistema eleitoral impõe-na como fruto de uma fortuita concentração anormal de votos que os Constituintes de 1975 não previram, e nenhuma das subsequentes revisões da Lei Fundamental contemplou.

De facto, ainda hoje se lê, no número 5 do seu artigo 113º, que “a conversão dos votos em mandatos far-se-á de harmonia com o princípio da representação proporcional”. Esta ideia é complementada pelo número 1 do artigo 149º, segundo o qual “os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei (…), por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos”.

Ou seja: no boletim de voto, ninguém afirma, claramente, que pretende ser governado por um único e dominante partido. A despeito de qual possa ser a vontade popular, nos termos da Constituição e da Lei, tal apenas acontece, ou não. Por mero acaso, ainda que à revelia da vontade popular.

Que assim é, facilmente se comprova pelas conclusões de sondagens em que os inquiridos são convidados a informar se pretendem que o seu partido de eleição deverá, ou não, governar sozinho. Nesta*), por exemplo, se revela que mais de quatro quintos dos portugueses não pretende uma maioria absoluta a governá-los, embora, no atual sistema eleitoral, não tenham como evitá-la caso a contagem dos votos o determine. Contraria-se assim, manifestamente, a vontade popular: perverte-se, pela via eleitoral, a própria essência da democracia que a mesma via deveria servir.

O caso da maioria absoluta saída da eleição de 2022 para a Assembleia da República apresenta-se como um bom exemplo desta perversão do direito de escolher: o temor de uma votação expressiva no Chega, aliado ao notório desnorte de um Partido Social Democrata então titubeante, terá levado a uma votação maciça no Partido Socialista, a qual acabaria por resultar numa maioria absoluta que nem ele, aparentemente, esperava; e, a fazer fé nos 83% de portugueses que nas sondagens se afastaram de tal desiderato, nem os eleitores pretendiam.

Houve maioria absoluta em 2022, quando mais de quatro quintos dos eleitores a não queriam!

É a isto que se chama "democracia"?

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Absolutismo e democracia são, à partida, conceitos incompatíveis. Por isso mesmo, o poder quase absoluto com que, em maioria absoluta, é mandatado um partido político ou coligação apenas deve ser conferido mediante a vontade expressa dos eleitores, e a sua recusa através da expressão, pelos mesmos, da vontade do contrário.

Adotámos, todavia, – e muitos outros connosco - um mecanismo eleitoral em que se impõe ou nega maiorias absolutas à revelia da vontade dos eleitores, o que, inequivocamente, viola o princípio do “respeito da vontade do povo português” consagrado no preâmbulo da Constituição.

Não tem de ser assim!  Não deve ser assim!

Maioria absoluta de votos é coisa diferente de maioria absoluta de deputados: esta é a que verdadeiramente conta, e não parece acertado deixá-la ao sabor de um resultado meramente acidental obtido na eleição!

A observância estrita da decisão do eleitorado - e, consequentemente, a legitimação da sua plena responsabilização – apenas se viabilizará se, do boletim de voto, constar a pergunta “Deve a lista vencedora governar com maioria absoluta?”, ou outra de semelhante teor, seguida de duas caixas de validação facultativa: SIM e NÃO.

Só assim estaremos, ao votar, a expressar, inequívoca e deliberadamente, a vontade de conceder, ou não, tal maioria: quem dela fosse adepto votaria SIM, quem não fosse votaria NÃO; e, no caso de indiferença, ambas as caixas em branco ficariam.

Contados os votos, se ganhasse o SIM mas a lista vencedora não tivesse ultrapassado os cinquenta por cento dos eleitos, automaticamente seria atribuído à lista vencedora o mínimo necessário para formar maioria, rateando-se os sobrantes pelas restantes listas, na proporção dos votos obtidos - com ou sem a aplicação do Método de Hondt. Ganhando o NÃO mas tendo a mesma lista ultrapassado a metade dos votos, seriam estes reduzidos até metade menos um dos eleitos, distribuindo-se, daqueles, os sobrantes pelas restantes listas.

(Um aperfeiçoamento importante deste modelo seria a adoção preferencial da pergunta “Deve a lista em que votou governar com maioria absoluta?. No entanto, a necessidade de associar a resposta unicamente à lista votada no mesmo boletim complicaria excessivamente a contagem dos votos, a ponto de a tornar impraticável até à plena adoção do voto eletrónico)

Esta inovadora forma de eleger o Parlamento, uma assembleia ou câmara municipal ou junta de freguesia, não beliscaria, de forma alguma, a essência da democracia, uma vez que continuaria a ser a vontade soberana do povo a decidir, já não apenas QUEM governaria, mas COMO, com que força e autonomia governaria. Bem pelo contrário: ao tornar bem mais clara e pura a expressão da vontade popular, substancialmente a reforçaria!

Então, sim: o aumentado poder de decisão do eleitorado permitiria responsabilizá-lo, fundadamente, pelos males ou benefícios de uma eventual maioria absoluta, ou da falta dela.

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Será assim tão difícil de implementar o que aqui se propõe?

Claro que a eleição de deputados por cada distrito não facilita, mas a prestimosa colaboração de credenciados matemáticos permitiria, certamente, ultrapassar os obstáculos e tornar Portugal o país pioneiro de uma abordagem verdadeiramente democrática da eleição.

Não sejamos, porém, ingénuos a ponto de acreditar na viabilização futura desta prática, nem imaginemos que nada disto ocorreu, já - amiúde, até - aos responsáveis políticos: o principal obstáculo à implementação do que aqui se preconiza não é a imposição constitucional quanto à simples e direta proporcionalidade - facilmente ultrapassada numa revisão constitucional -, nem o facto de ninguém se ter lembrado desta nova forma de eleger em democracia.

Sucede, antes, que, para aprovar a alteração às normas constitucionais, seria necessário o amplo consenso dos partidos mais votados, precisamente aqueles que mais teriam a perder com a alteração do sistema eleitoral, ou não se opusessem, atualmente, oitenta por cento dos portugueses a uma maioria absoluta. É que a apetência pelo poder absoluto é grande, e as maiorias também absolutas são, em democracia, a única forma de o conseguir.

Não obstante, e pelo que possa valer, aqui fica a proposta, que é, também, um desafio.

Afinal, por que não aproveitar agora, quando a dispersão de votos praticamente impede a formação de maiorias absolutas no Parlamento, para alterar a Constituição por forma a acomodar o novo modelo?

A maioria absoluta é uma variável decisiva em qualquer governação que dela beneficie. Não faz, assim, qualquer sentido deixá-la depender de um mero acaso. Deve, antes, depender, unicamente, da vontade expressa e bem explícita dos eleitores.

quarta-feira, 12 de março de 2025


O Estado dos Velhos do Estado

 

A missão fulcral, quase única, do Estado é assegurar a produtividade,
procurando criar, nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que ela aconteça

O Estado não passa de uma abstração, de um conceito distante,
e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos menos mata a solidão

Será assim tão difícil gerir a coisa pública por forma a que os velhos carenciados
tenham um poucochinho mais de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até, felizes?

 

Habituamo-nos a olhar o Estado como uma criatura voraz, que procura, através do sistema fiscal, sugar o que pode dos nossos mais ou menos parcos rendimentos, supostamente em prol do mesmo Estado - que somos, afinal, todos nós.

Alguns, não poucos, olham-no também como um viveiro de corruptos que vão para a política para... digamos que para aproveitar as benesses dadas a quem serve o Estado ou, pelo menos, é pago para o fazer.

Voraz ou não, gerido ou não por arrivistas mais ou menos oportunistas e desilustrados, a verdade é que, como acontece com qualquer organização, o Estado tem de prover, antes de mais, à saudável sobrevivência dele mesmo, a fim de evitar males maiores a quantos dele dependem, seja lá como for.

Centra, para tal, a atenção na população ativa ou potencialmente ativa, na respetiva formação e desenvolvimento, na criação de estruturas e infraestruturas adequadas a aumentar a produtividade e o bem-estar dos seus elementos profissionalmente válidos – válidos em teoria, pelo menos... -, para que a atividade dos mesmos gere riqueza para alimentar o Estado através receita fiscal, assim se reiniciando o interminável ciclo.

Não nos iludamos, pois: a missão fulcral, quase única, do Estado é assegurar a produtividade, procurando criar, nas mais diversas áreas de atividade, as condições para que ela aconteça.

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Trata-se, assim, de uma missão essencialmente económica, na qual se inserem, é verdade, importantes vertentes sociais; mas estas, sempre subordinadas ao objetivo de alimentar e manter o Estado enquanto tal, e tão independente quanto possível da caridade de bancos e de países terceiros.

Por outras palavras, a educação enquanto tal, a saúde enquanto tal, a justiça enquanto tal, e por aí fora, nada disso interessa ao impessoal, indiferente e objetivo Estado, já que nenhuma utilidade para ele teriam, a não ser enquanto potenciadores indispensáveis da atividade e da saúde económicas.

Neste quadro, que interesse têm, para o Estado, os improdutivos ou pouco produtivos velhos que há mais ou menos tempo inverteram o seu papel de produtores para o de meros consumidores, na maior parte dos casos dependentes de prestações sociais que tanto oneram o mesmo Estado?

Interesse nenhum, claro.

Os "reformados e os pensionistas" - cuja defesa supostamente ainda dá o que resta de ânimo a decadentes e também envelhecidas estruturas políticas - são tão úteis ao Estado como outros "inúteis", doentes crónicos, reclusos e outros que tais. Isto porque o problema do Estado social não reside, apenas, numa eventual falência dos sistemas de segurança social, mas também, já hoje e sempre, nas avultadas quantias subtraídas ao consumo por via da cobrança de taxas sociais e nos perdidos impostos que tais montantes gerariam se por aí andassem a circular, em lugar de servirem para pagar pensões e subsídios a enfermos, anciãos e outros que tais.

No entanto, o Estado não abandona, simplesmente, os velhos. Pelo contrário: reforma-os, pagando-lhes pensões vitalícias para que, uns melhor, outros pior, possam, pelo menos, sobreviver.

Porquê?

As possibilidades de resposta abundam, claro, das mais piedosas às mais cínicas, e não faltará quem vá aventando novos e inovadores fundamentos para a manutenção do paquidérmico, mas indispensável, Estado social.

Porém, sejam quais forem os fundamentos, as razões invocadas, sempre prevalecerá a dura verdade de que o implacável ogre cuida dos velhos apenas por obrigação, já que, enquanto entidade abstrata, não conhece a bondade, a piedade, a ética, a generosidade: apenas um infindável rol de imperfeitas normas jurídicas, nas quais encaixa recursos humanos para o servir e recursos económicos para estes sustentar.

Os velhos - mesmo aqueles que o serviram - são um frete com que o Estado, o Estado puro, não tem de se preocupar. Faz aquilo a que as circunstâncias obrigam, mas não cuida, não protege, não acarinha, porque o Estado não passa de uma abstração, de um conceito distante, e a distância não conforta, não mitiga as penas, muitos menos mata a solidão.

Só um velho entende os velhos, os que, como ele, chegaram ao ponto em que, o que já foi, agora apenas serve para alimentar o sonho, e vivem – ou sobrevivem - saudosos do tempo em que o tempo passava sem terem de o empurrar para a frente.

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Proclamou a ONU, alguns anos atrás, o Dia Mundial da Justiça Social. É muito fácil fazer proclamações, e dias mundiais de qualquer coisa, são-no já os dias quase todos.

Mas será a dita justiça social apenas dar dinheiro?

Será assim tão difícil gerir a coisa pública por forma a que os velhos carenciados tenham um poucochinho mais de apoio? Se sintam motivados, úteis, se não, até, felizes?

Será, mesmo, impossível gastar algum dinheiro de todos nós, não apenas a alimentar e vestir os velhotes, mas em procurar fazê-los sair do torpor solitário e desalentado em que, desiludida, a maior parte deles acaba por mergulhar?

Será assim tão dispendioso intensificar a fiscalização dos lares – alguns deles, meros depósitos de quem gente já não se sente -, em prol da dignidade de quantos lá arrastam, penosamente, os seus dias?

Em vez de apenas alimentar e tratar os que não têm abrigo, será, mesmo, impossível encontrar um mecenas que se empenhe em os albergar e deles cuidar?

Empenhar recursos dos sistemas de saúde para prolongar a vida de uma ancianidade caduca e acabada não é obra meritória: é tortura, é sentença de prisão perpétua, de morte lenta de quem já nada tem à frente, já pouco ou nada de belo tem para contemplar.

Fugit irreparabile tempus

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